CAPÍTULO III – Prisão e liberdade provisória: uma análise teórica e jurisprudencial.
3.1 A distinção entre inafiançabilidade e liberdade provisória
O instituto da liberdade provisória presta-se a regular o status libertatis do indivíduo sujeito à persecução criminal estatal. A partir do momento em que uma ação penal é recebida pelo magistrado nasce concomitantemente a possibilidade de restrição ao direito de liberdade do indivíduo, visto que a priori a privação de liberdade é reservada como efeito primário de uma eventual condenação. Nas prisões efetuadas em flagrante, das quase o remédio jurídico é o pedido de liberdade provisória, dispensa-se o mandado judicial para constrição de liberdade, a qual será submetida posteriormente a apreciação do juiz competente para análise da legalidade do ato e da necessidade acautelatória.
Com efeito, o que se deve ter em mente é que instaurada a relação processual imediatamente incidem restrições ao pleno direito de ir e vir do acusado, o qual, por exemplo, não poderá mudar de endereço sem comunicar previamente o juízo, ato corriqueiro para quem não responde a um processo. A apuração da existência de uma infração penal e de sua autoria detém parte da completude da liberdade de qualquer acusado, posto que se verifica uma vinculação mínima à persecução criminal deflagrada.
Neste interregno entre a apuração dos fatos apontados e a formação da coisa julgada, o direito à liberdade deve ser tutelado, respeitada a dignidade da pessoa humana do acusado, a partir das necessidades do processo, que revela um interesse transindividual, que é a descoberta da verdade real dos fatos além do resguardo à segurança da coletividade em tese violada. Nesta senda, tanto a prisão quanto a liberdade serão provisórios, ou seja, pendentes da escorreita apuração dos fatos pelo Estado juiz, daí o poder vinculante do processo frente ao acusado, o que não importa automaticamente na adoção da medida odiosa em observância ao princípio da presunção de não culpabilidade.
A noção de dignidade da pessoa humana referida espelha a necessidade de observância dos direitos fundamentais do acusado. A despeito de não serem absolutos, os direitos fundamentais comportam exceções bastante pragmáticas à sua aplicação. A privação prévia da liberdade só pode ser admitida se indispensável à manutenção da ordem social ou econômica, da boa marcha do processo ou da aplicação da lei penal.
De modo que o instituto da liberdade provisória teve sua feição reinventada e revigorada na atual ordem constitucional, ganhando força de regra geral a ser observada, com status de direito público subjetivo, sob pena de assumir o caráter de cumprimento antecipado de pena.Contudo nem sempre foi assim. A evolução desse instituto e de seu conteúdo assevera a carga valorativa agregada a partir da concepção neoconstitucionalista. Desde o seu primórdio na Constituição imperial de 1824 e no Código de Processo Criminal de 1832, a liberdade provisória resumia-se a espécie concedida pelo arbitramento de fiança, prestada por garantia real, ao alvedrio do Estado; a noção de direito público subjetivo inexistia em absoluto. Nesse diapasão, o Código de Processo Penal vigente, em sua redação original também só contemplou a liberdade provisória mediante o pagamento de fiança, cuja possibilidade jurídica cingia-se às hipóteses dos arts. 322 a 324, além dos casos de incidência de causa excludente de ilicitude, ou seja, cabiam apenas em crimes abstratamente menos graves ou perpetrados sob escusa legal.
A guinada para o atual estádio do instituto teve sua gênese apenas em 1977, com o advento da lei 6.416. O legislador sinalizando os rumos que a política criminal deveria seguir acrescentou um parágrafo único no art. 310 do CPP, no qual instituiu a possibilidade de liberdade provisória sem o pagamento de fiança para os acusados presos em flagrante delito. Esta contribuição revelou-se um marco na processualística penal brasileira ao retirar da lei a autodeterminação da prisão que só admitia exceções taxativamente previstas. A prisão era a regra e a liberdade, a exceção deferida em um estreito rol legal. Com a inserção deste parágrafo único inverteu-se o panorama.
Podemos classificar a liberdade provisória a partir de então em duas formas distintas: liberdade, mediante pagamento de fiança e liberdade sem o pagamento de fiança. E a modalidade sem a prestação de fiança apresentou muito mais benéfica, pois universalizou a liberdade provisória a todas as infrações penais existentes no arcabouço normativo brasileiro bem como diminuiu as reservas legais à sua concessão, as quais foram reduzidas às hipóteses de cabimento de prisão preventiva. Logo, a manutenção da prisão em flagrante ou a concessão de liberdade provisória deve ser aferida da conjugação dos interesses revelados pelos arts. 310 e 312 do CPP. A prisão provisória perdeu o caráter de punição antecipada ao acusado para ser compreendida enquanto medida cautelar, necessária ao deslinde do processo, interpretação que foi alçada ao patamar de cláusula pétrea na atual Constituição, expurgando-se de vez por todas a prisão automática, destituída de fundamentação específica.
Ocorre que todos os citados diplomas legais que proíbem a liberdade provisória são de natureza infraconstitucional e trazem invariavelmente em sua redação a restrição não só da liberdade provisória, mas também da concessão de fiança. Abominável erro terminológico! O instituto da liberdade provisória é gênero, do qual a liberdade mediante fiança é uma das espécies. Logo, não se tratam de institutos autônomos, mas que desenvolvem entre si relação de continência. A previsão de inafiançabilidade e vedação à liberdade provisória traduz uma desnecessária locução normativa, pois desde o direito romano impõe-se que as palavras empregadas nos textos legais devem ser compreendidas como detentoras de alguma eficácia (verba cum effectu sunt accipienda).Essa impropriedade terminológica acaba por oferecer a falsa impressão de que a Constituição, com base em seu art. 5º, XLIII, autorizou a ressurreição da prisão obrigatória no direito brasileiro, quando na verdade, apontou o maior cuidado que a prevenção/repressão dos crimes hediondos e assemelhados requereriam. O raciocínio encetado na esdrúxula fórmula adotada pelo legislador conduz ao seguinte: De início, o acusado não poderá responder em liberdade em razão da inafiançabilidade legal, doutra banda, tampouco poderá fazê-lo mediante liberdade provisória (sem fiança). Tudo isso por dicção legal, sem necessidade de manifestação da autoridade judiciária. Destarte, não há como o acusado responder o processo em liberdade, o que constitui grave equívoco, como bem lembra Feitoza (2009; p. 909):
Assim sendo, não é cabível, na vedação meramente legal da fiança, o raciocínio da vedação constitucional da fiança. A vedação da fiança, na norma infraconstitucional, não implica a vedação da liberdade provisória sem fiança. As razões constitucionais dessa implicação são diferentes das razões da referida opção legislativa infraconstitucional.
Se o sistema vigente só admite a constrição provisória da liberdade quando presente razão acautelatória, esses diplomas jurídicos impeditivos à liberdade provisória atuam na contramão da Constituição e dos valores introjetados no ordenamento em sua decorrência. Os anacronismos do legislador não podem ser acoimados pelos operadores do direito, especialmente, pelos magistrados que aplicam a lei. O argumento veiculado por eminentes Ministros do Supremo Tribunal Federal de que a Constituição conferiu à lei ordinária a tarefa de balizar os limites da inafiançabilidade em crimes hediondos e equiparados, não autoriza, a nosso sentir, a implantação de óbices insolúveis à liberdade, independentemente de um juízo de proporcionalidade ante o caso concreto. Da mesma ideia comunga Delmanto (2006; p. 575):
Não há óbice em nosso ordenamento constitucional que a lei ordinária estabeleça casos de inafiançabilidade. Todavia, a vedação da liberdade provisória quando ausentes os motivos cautelares taxativamente previstos para a prisão temporária ou preventiva, constitui manifesta inconstitucionalidade.
As ressalvas feitas pelo constituinte no art. 5º, incisos XLII e XLIII denotam a atenção especial destinada a um tratamento penal mais rigoroso a crimes que põem em risco o próprio Estado de direito. Mas, da interpretação sistemática dos princípios encartados na mesmo art. 5º, vê-se que o texto fundamental não partiu de uma presunção desfavorável ao acusado, denotando o espírito: "prenda-se porque o crime é grave e a Constituição prescreve um tratamento rigoroso." Logicamente é possível a supressão do direito à liberdade, mas essa necessidade extraordinária decorre da gravidade concreta dos elementos afetos ao crime apurado, e não da presunção de periculosidade apontada pela lei. A partir daí o legislador poderia repensar a necessidade acautelatória em harmonia com os princípios fundamentais regentes da liberdade e da presunção de inocência, sempre respeitando o contraditório que deve ser oportunizado ao acusado.
Ainda há na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal entendimento de que a vedação constitucional a concessão de fiança nos crime hediondos e assemelhados acarreta outrossim na vedação da liberdade provisória sem fiança. Se a Constituição veda uma modalidade de liberdade (com fiança) que em tese oferece maior poder vinculante ao processo em face do oferecimento de garantia pecuniária, por certo, outra modalidade menos efetiva não poderia surtir melhor efeito. O que, a nosso sentir, é uma ideia altamente discutível, pois o juiz investido de poder geral de cautela pode aplicar medidas simples ou combinadas, diversas de dinheiro, suficientemente eficazes para assegurar os interesses processuais, inclusive com precedentes na mesma Corte, Aliás, sendo possível preservar um direito fundamental do acusado, é dever-poder do juiz fazê-lo.
Parte-se do raciocínio de que inexiste qualquer violação ao texto constitucional, uma vez que a própria Constituição realizou a tarefa de sopesar os bens jurídicos que mereceriam uma tutela penal diferenciada, o que o fez nos incisos XLII e XLIII de seu art. 5º, exigindo maior vigor no combate aos crimes de racismo, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, terrorismo e os definidos como crimes hediondos.Nem mesmo a edição da lei 11.464/07, que retirou a vedação à liberdade provisória da lei dos crimes hediondos, foi inicialmente capaz de alterar tal interpretação do Pretório Excelso, pois foi compreendida como reparo à redundância estampada no art. 2º, II da lei dos crimes hediondos. Com as devidas vênias, parece-nos um argumento simplista e revestido de um garantismo exacerbado. Por exemplo, como já explicitado no final do capítulo II não há conflito de normas entre a lei revogadora da vedação à liberdade provisória para os crimes hediondos e a lei de tóxicos. Há sucessão de normas no tempo, e não conflito, posto que uma versa a matéria contida na outra. Mas pela magnitude do crime, o Tribunal reservou-se a uma interpretação do art. 5, XLIII, como se ele fosse o único comando legal atinente a tutela da liberdade provisória, posição que vem sendo devidamente revista.
A prisão ou liberdade antes do trânsito em julgado de sentença penal condenatória exige um juízo de ponderação para que direitos fundamentais não sejam levados a extremos, obstaculizando outros direitos de igual eficácia nem sendo aniquilados ao final, cautelas específicas impossíveis de defluir apenas do texto legal. A Constituição foi bastante explícita quando quis restringir direitos fundamentais, pois foi promulgada sob a sombra recente de uma trágica ditadura militar, que inobservou todo tipo de direitos e garantias individuais. Não haveria sentido em albergar duas modalidades de liberdade provisória, vedar expressamente uma delas para determinados crimes, e a pretexto de cumprir seu comando, interpretar a vedação da fiança como se de fato esta fosse a mesma coisa que liberdade provisória, e não uma de suas espécies. Sendo ela abarcada pelo instituto da liberdade provisória, esta subsiste em sua dimensão intocada pela Constituição, ou seja, concessível sem fiança. Do contrário, estaríamos a cogitar a existência de palavras despiciendas justamente na Constituição, cuja dogmática hermenêutica nos ensina que a Lei Maior diz precisamente aquilo que deve compor o ordenamento jurídico por ela instituído, pois como já aventado, verba cum effectu sunt accipienda, ou, as palavras devem ser compreendidas como tendo alguma eficácia.
Se a fiança é um direito público subjetivo do acusado que foi afastada expressamente em determinado crimes pelo constituinte, o mesmo não se diga da liberdade sem fiança, a qual não foi mencionada – a nosso ver intencionalmente – em caráter proibitivo, especialmente porque lei ordinária regulamentadora de dispositivo constitucional não pode limitar o que é intangível até mesmo para mesmo para emenda constitucional, conforme esclarece Delmanto (2006; p. 576):
O art. 5º, XLIII, de nossa lei maior, ao dispor que ‘a lei considerará inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática de tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos [...] não vedou nem poderia vedar, em absoluto, a liberdade provisória, posto que isto significaria a volta da prisão obrigatória. Por outro lado, interpretar que o seu art. 5º, LXVI, autorizaria, implicitamente, que a lei ordinária pudesse proibir por completo a liberdade provisória, e ainda para todo e qualquer crime (ninguém será levado a prisão ou nela mantido quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança), não condiz com o espírito do art. 5º. Este artigo, que cuida dos ‘direitos e garantias individuais’, cláusulas pétreas as quais sequer podem ser objeto de emenda constitucional (art. 60, §4, IV) há de ser interpretado de modo a ampliar esses direitos e garantias, não o contrário. Em outras palavras, o art. 5º da CR/88 não admite interpretação extensiva em desfavor da liberdade.
3.2 Uma análise da ADI 3112: a posição do Supremo Tribunal Federal sobre o estatuto do desarmamento.
Em 02 de maio de 2007, o Supremo Tribunal Federal julgou a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3112/DF, proposta pelo Partido Trabalhista Brasileiro - PTB contra vários dispositivos do Estatuto do Desarmamento (lei 10.826/03). Dentre as sustentações de inconstitucionalidade merece destaque a análise do posicionamento da Excelsa Corte acerca da inafiançabilidade dos crimes de porte ilegal de arma e disparo de arma de fogo (arts. 14 e 15 da referida lei) e a vedação absoluta à liberdade provisória contida em seu art. 21 (o qual remete aos arts. 16 a 18), os quais guardam intrínseca relação com o presente trabalho.Em atenção a garantia da segurança pública, dever primário do Estado, o legislador brasileiro buscou instrumentos para otimizar a regulamentação do comércio, porte e outras questões afetas às armas de fogo. Assim, a lei 10.826/03 é fruto de extenso processo legislativo, cujo espírito normativo presta-se a combater a escalada da criminalidade, notadamente em crimes contra a vida e o patrimônio. Nessa linha, os crimes capitulados em tal diploma legal foram dotados de rigor visível, em muitos aspectos ofensivos a direitos individuais.Constatou-se no julgamento da mencionada ADI que o legislador, ambicionando atender os anseios de uma sociedade cada vez mais assolada pela violência armada, não demonstrou proporcionalidade na valoração da necessidade constritiva do status libertatis do indivíduo, o que nos remonta novamente ao ideário da "legislação do pânico".No tocante a inconstitucionalidade dos parágrafos únicos dos arts. 14 e 15 do Estatuto, entendeu o pleno daquela Corte, por conduto do voto do Ministro relator Ricardo Lewandowski, que a vedação à fiança é medida desarrazoada, visto que tais delitos não integram o rol de crimes insculpidos no art. 5º, XLIII da Constituição. Ademais, como assentou o eminente relator, trata-se de crimes de mera conduta, cuja lesividade embora perceptível não demonstra proporcionalidade em sentido estrito (adequação entre fins e meios) para com a vedação adotada.
É de se observar ainda que ambos os artigos têm pena de reclusão de 2 a 4 anos, logo, de acordo com a regra geral encartada no art. 323, I do CPP são a priori afiançáveis, malgrado a opção do legislador em denegar tal benefício, o que é perfeitamente factível, de acordo com a competência legislativa outorgada pela própria Constituição. Note-se então dois aspectos bastante conclusivos do voto do ministro relator: 1º) A Constituição traçou o parâmetro inafastável para imposição de inafiançabilidade no art. 5º, XLIII; 2º) Apesar de ao legislador ordinário competir a disciplina dos crimes em que incide a inafiançabilidade, o Poder Judiciário não pode se furtar a proceder o controle de adequação das vedações legais aos ditames da Constituição.As leis 9034/95 (lei do crime organizado) e lei 9618/98 (lei da lavagem de capitais), como já afirmado anteriormente, também não se inserem no rol do art. 5º, XLIII da Constituição Federal, mas continuam a produzir efeitos incontinenti, devido o seu escopo de combate a crimes de notória ofensividade. O legislador ordinário, na esteira da franquia constitucional para o combate a crimes hediondos e assemelhados, estendeu indevidamente o mandamento magno a outras leis ordinárias, o que deve ser prontamente revisto. Dentre suas abalizadas considerações, uma ponderação feita pelo eminente relator carece ser mais bem observada: a Constituição não autoriza prisão ex lege. Ou seja, é terminantemente proibida a vedação ao direito à liberdade por simples imposição legal. Tal raciocínio é expendido sem qualquer submissão ou referência ao art. 5º, XLIII da Constituição, de modo a ser interpretado então como regra plena. Não é mais concebível no ordenamento jurídico pátrio a aplicação de uma medida constritiva pessoal - ordem de prisão – emanada por um comando geral e automático, sem a devida fundamentação do órgão jurisdicional competente. Assim é correto dizer que a prisão ex lege equivale à prisão obrigatória, sendo esta categoricamente repelida pela Carta Republicana.
Desta feita, reconheceu a Suprema Corte a impossibilidade de cerceamento absoluto ao direito a liberdade provisória, o qual pode sofrer reduções, mas não decorrentes de opção legislativa, e sim de medida judicial na qual restem demonstradas as razões que recomendam a adoção da prisão cautelar em detrimento da presunção de não culpabilidade, o que é missão indeclinável do juiz de direito, conforme expressa dicção constitucional, como advertiu o Ministro relator em seu voto:
Em outras palavras, o magistrado pode, fundamentadamente, decretar a prisão cautelar, antes do trânsito em julgado da condenação, se presentes os pressupostos autorizadores, que são basicamente aqueles da prisão preventiva, previstos no art. 312 do Código de Processo Penal. É dizer, cumpre que o juiz demonstre, como em toda cautelar, a presença do fumus boni iuris, e do periculum in mora ou, no caso, do periculum libertatis.
Somente com esta postura é possível preservar os princípios fundamentais correlatos ao instituto da liberdade provisória. As ações do Poder Público não podem inverter a presunção da inocência do acusado - mesmo porque é atribuição do Ministério Público a colheita de acervo probatório para lastrear a ação penal - sob pena de subverter por conseqüência o sagrado direito do contraditório e da ampla defesa; em suma, do devido processo legal material que assegure a paridade de armas entre os litigantes. Do contrário, a mácula sobre a relação processual seria tão gritante a ponto de ensejar uma nulidade absoluta, a menos que todo tipo de ação seja permitida a pretexto de cumprir o bendito art. 5º, XLIII.
A atuação estatal, mormente do Poder Legislativo, como acentuou o Ministro Ricardo Lewandowski não é irrestrita, estando diretamente condicionada pelo princípio da proporcionalidade, que por sua vez, traduz limitação material à ação normativa do Poder Legislativo. Em razão disso, é que se verifica que o Supremo Tribunal Federal tem examinado com crescente acuidade a validade jurídica de atos normativos emanados do Poder Público para exercer o adequado controle de sua compatibilidade à Constituição, notadamente em tema de garantias individuais, como obtempera Mendes (2007; p. 117):
Portanto, o legislador não está apenas autorizado a fixar limites para determinados direitos individuais, como também está obrigado a observar rigorosamente os limites estabelecidos pela Constituição para imposição de restrições ou limitações.
Essa ressalva ao exercício do Poder Público sucede do fato de que os direitos fundamentais constituem verdadeiros direitos de defesa do indivíduo contra interferências arbitrárias de quaisquer dos poderes republicanos. O teor de direito fundamental insere-se no núcleo imutável da Constituição, que nas palavras de Gilmar Mendes constituem "garantia de eternidade", afinal, a ordem jurídica existe para consagrar em última instância a dignidade da pessoa humana, exercitada por intermédio de seus princípios instrumentais ou princípios agentes. E o pleno do STF mostrou exatamente a preocupação com mitigação de direitos fundamentais.
Se é fato inconteste que os direitos fundamentais não possuem eficácia absoluta, por outro lado, não menos certo é que suas restrições também não podem ser absolutas, especialmente quando se relacionam com norma de eficácia inferior. Pensar que a vedação à liberdade provisória tem caráter absoluto e decorre do art. 5º, XLIII, importa afastar a técnica da ponderação dos direitos fundamentais conforme o caso, para aplicar tais direitos sob forma de regra de aplicação cogente, algo que se afigura como improvável para a moderna hermenêutica constitucional.
3.3 A aplicação da Teoria dos Motivos Determinantes aos diplomas que vedam a liberdade provisória
Segundo a teoria geral do processo, a sentença ou acórdão são compostos dos seguintes elementos: relatório, fundamentação e dispositivo. De todos os elementos mencionados, de acordo com a teoria clássica, o único sobre o qual incidem os efeitos da coisa julgada material é o dispositivo, que carrega a deliberação do órgão jurisdicional. O provimento jurisdicional emana uma norma individual aplicada ao caso concreto oriunda da norma geral, que é a lei reguladora daquele direito levado à tutela estatal. De modo que todo o exposto refere-se à aplicação incidental, ou seja, do caso em exame, das normas jurídicas.A partir de então, em sede de relação processual incidental, surgiu a teoria da eficácia preclusiva das razões determinantes da sentença, segundo a qual as razões formadoras da convicção do magistrado, que conduziram ao teor do dispositivo, também são albergadas sob o manto da coisa julgada, que nada mais é do que uma qualidade que imuniza os efeitos da decisão judicial de nova rediscussão em processo futuro, visando conferir segurança jurídica à prestação jurisdicional. Tal formulação decorreu da insuficiência de instrumentos capazes de convolar o espírito da norma individual decorrente da sentença ou acórdão.No controle abstrato de leis, procedido pelo Supremo Tribunal Federal nas ações direta de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade, a atuação da Excelsa Corte reveste-se de maior profundidade, pois se presta a examinar a adequação da norma impugnada à Constituição Federal. Essa tarefa infere uma interpretação sistemática da norma perante a organicidade de todo o ordenamento, submisso à concretização da vontade da Constituição Federal. Assim sendo, as decisões do STF possuem eficácia erga omnes, ou seja, incidem indistintamente sobre todos os jurisdicionados pela lei brasileira, além de ostentar caráter vinculante sobre todos os órgãos e agentes públicos bem como sobre a produção normativa futura, a partir dos fundamentos determinantes da decisão do STF.
A Compreensão do alcance das decisões proferidas em ações declaratórias de inconstitucionalidade depende diretamente da aferição das razões que conduziram a Suprema Corte a tal orientação. Essa missão torna-se impossível apenas da leitura apartada do dispositivo do acórdão. Por isso, a fundamentação utilizada pelo STF é imprescindível para a percepção e efetividade da transcendência dos motivos determinantes, haja vista que os seus efeitos serão potencializados em todo o ordenamento, já que o controle concentrado trata da aplicação virtual da norma. Nesse sentido, preleciona Barroso (2007. p. 184):
Por essa linha de entendimento, tem sido reconhecida eficácia vinculante não apenas à parte dispositiva do julgado, mas também a dos próprios fundamentos que embasaram a decisão. Em outras palavras: juízes e tribunais devem acatamento não apenas à conclusão do acórdão, mas igualmente às razões de decidir.
Aceita tal premissa, surge uma questão de notável relevo para evitar a disseminação de insegurança jurídica: Toda a fundamentação integra a coisa julgada? É de se esclarecer de antemão que, como se depreende do próprio nome, o que paira além da circunscrição da própria decisão são as razões determinantes que conduziram ao teor da parte dispositiva. Nada mais. De fato, a discussão doutrinária a esse respeito é bastante intensa, contudo, o intuito dessa contribuição acolhida pela jurisprudência, de raízes germânicas, é resguardar a integridade do texto constitucional e a incolumidade da ordem jurídica, da reiteração desnecessária de normas substancialmente idênticas àquela já declaradas ofensivas à Constituição pela Excelsa Corte, como ensina Mendes (1999; p. 2):
A doutrina constitucional alemã há muito vinha desenvolvendo esforços para ampliar os limites objetivos e subjetivos da coisa julgada no âmbito da jurisdição estatal (Staatsgerichtsbarkeit). Importantes autores sustentaram, sob o império da Constituição de Weimar, que a força de lei não se limitava à questão julgada, contendo, igualmente, uma proibição de reiteração (Wiederholungsverbot) e uma imposição para que normas de teor idêntico, que não foram objeto da decisão judicial, também deixassem de ser aplicadas por força da eficácia geral. Essa concepção refletia, certamente, a idéia dominante à época de que a decisão proferida pela Corte teria não as qualidades de lei (Gesetzeseigenschaften), mas, efetivamente, a força de lei (Gesetzeskraft). Afirmava-se inclusive que o Tribunal assumia, nesse caso, as atribuições do Parlamento ou, ainda, que se cuidava de uma interpretação autêntica, tarefa típica do legislador.
Deste feita, o efeito vinculante conferido ao conteúdo da decisão em sede de controle abstrato tem dois destinatários imediatos: os tribunais, que devem observar sua extensão, aplicando-a todos os diplomas legais existentes que sejam incompatíveis com suas prescrições, e o Poder Legislativo, a quem se impõe a observância da limitação material a partir da interpretação que o tribunal conferiu à Constituição.A fim de melhor precisar os motivos determinantes, a doutrina pátria e a jurisprudência do próprio Supremo Tribunal Federal cunharam uma divisão bastante elucidativa para os fundamentos da decisão, dividindo-os em: 1) RATIO DECIDENDI, que corresponde aos fundamentos determinantes da deliberação da Corte, nos quais constam as razões jurídicas que ensejaram a decisão de validade ou invalidade de determinada norma legal; e 2) OBITER DICTUM, que corresponde a fundamentação acessória do julgamento, veiculando os argumentos usados de passagem, de menor envergadura, que fomentam as razões que alicerçam a decisão, de modo que a sua função é estimular a delimitação da ratio decidendi, haja vista que só esta última possui eficácia vinculante. Nesse diapasão, calha novamente lançar mão do magistério de Mendes (1999; p. 4):
Problema de inegável relevo diz respeito aos limites objetivos do efeito vinculante, isto é, à parte da decisão que tem efeito vinculante para os órgãos constitucionais, tribunais e autoridades administrativas. Em suma, indaga-se, tal como em relação à coisa julgada e à força de lei, se o efeito vinculante está adstrito à parte dispositiva da decisão (Urteilstenor; Entscheidungsformel) ou se ele se estende também aos chamados fundamentos determinantes (tragende Gründe), ou, ainda, se o efeito vinculante abrange também as considerações marginais, as coisas ditas de passagem, isto é, os chamados obiter dicta. Enquanto em relação à coisa julgada e à força de lei domina a idéia de que elas hão de se limitar à parte dispositiva da decisão (Tenor; Entscheidungsformel), sustenta o Bundesverfassungsgericht que o efeito vinculante se estende, igualmente, aos fundamentos determinantes da decisão (tragende Gründe). Segundo esse entendimento, a eficácia da decisão do Tribunal transcende o caso singular, de modo que os princípios dimanados da parte dispositiva (Tenor) e dos fundamentos determinantes (tragende Gründe) sobre a interpretação da Constituição devem ser observados por todos os tribunais e autoridades nos casos futuros.
Cumpre observar ainda que, como não poderia deixar de existir no direito brasileiro, há ainda um problema de ordem material a ser solvido para a plenitude da eficácia vinculante das decisões proferidas em sede de controle concentrado nas ações diretas de inconstitucionalidade. De acordo com o art. 52, X da Constituição, compete ao Senado Federal "suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal." Esse preceito encontra-se totalmente obsoleto, conquanto inspirado em um modelo de separação dos poderes que não espelha os ideais divulgados pela nova Constituição. As decisões do STF vinculam o Poder Legislativo, ao qual incumbiria apenas a tarefa administrativa de remoção da eficácia do ato normativo invalidado pela Excelsa Corte. Malgrado buscar funcionar como um salutar mecanismo de sistema de freios e contrapesos entre os poderes, tal norma é extremamente contraproducente e burocrática, principalmente se verificarmos a tônica que o constituinte deu ao controle concentrado de constitucionalidade, onde novamente citamos Mendes (2007; p. 271):
A Constituição de 1988 reduziu o significado do controle de constitucionalidade incidental ou difuso, ao ampliar, de forma marcante, a legitimação para a propositura da ação direta de inconstitucionalidade (CF, art. 103), permitindo que, praticamente, todas as controvérsias constitucionais relevantes sejam submetidas ao Supremo Tribunal federal mediante processo de controle abstrato de normas.
Após essas extensas considerações acerca da teoria dos motivos determinantes no direito pátrio, é momento de demonstrar que as razões destacadas para declaração de inconstitucionalidade da vedação apriorística à liberdade provisória na ADI 3112 devem repercutir sobre todas as normas em que se verifique a mesma ofensa ao direito fundamental à liberdade. O pleno do STF entendeu que a vedação absoluta à concessão de liberdade provisória, por mais grave que sejam os delitos cominados, viola insofismavelmente a Constituição brasileira escorando o decisum da seguinte forma: Inicialmente, o art. 21 do estatuto do desarmamento inverte a presunção de não culpabilidade do acusado, que é direito fundamental e inalienável. Nesta senda, modifica a estrutura vigente das regras do devido processo legal, conferindo um tratamento desigual na incidência de determinados tipos penais.A corte foi categórica ao asseverar que o texto constitucional não autoriza a prisão decorrente de lei (obrigatória), destituída de ordem fundamentada exarada por autoridade judiciária competente, sob pena de ofensa também aos princípios do contraditório e da ampla defesa, todos impregnados de uma notável carga de fundamentalidade.A decisão buscou condicionar essas espécies de vedação às regras processuais ordinárias, instituídas conforme os princípios constitucionais, dentre os quais a presunção de inocência e o direito à liberdade, que só podem sofrer mitigações de acordo com interesses processuais a par da demonstração empírica de razões acautelatórias, verificadas e declinadas pela autoridade judiciária. Assim, o que é realmente vedado é a legislação ordinária, sob o argumento de resguardar a segurança e a incolumidade pública, estabelecer formas de inutilizar direitos fundamentais, que compõem a dignidade da pessoa humana e dão sustentáculo ao Estado democrático de direito. De modo, que é inegável a aplicação dos citados fundamentados às disposições vedatórias contidas na lei do crime organizado, na lei de lavagem de capitais e mesmo na lei de tóxicos, para os que insistem não considerar a vedação à liberdade provisória para crimes hediondos revogada por influxo da lei 11.464.