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A dimensão axiológica da tipicidade

Agenda 18/04/2011 às 19:02

O fato típico penal, como temos sustentado, está inserido na realidade das relações sociais, e é deste contexto concreto, e não da abstração pura da legislação, que se busca o porquê da norma proibitiva.

A dimensão axiológica da tipicidade constitui, a partir deste entendimento, a inadequação social da conduta, por se dirigir contra o fim de proteção da norma penal; representa, assim, o caráter valorativo negativo do comportamento, na concreção das relações sociais (realidade). Como sustenta Baumann [01]: "A norma abstrata deve ser interpretada, ou seja, deve-se averiguar o sentido de seu conteúdo e depois há que examinar se a situação concreta se adapta a ela. Interpretar a norma e subsumir a situação são as tarefas principais do jurista".

É do enfrentamento entre o tipo (norma penal abstrata, o direito posto) e o caso concreto (fato), no contexto valorativo vigente (campo axiológico-social), que surge o juízo de subsunção – imputação plena -, isto é, a tipicidade em sua tríplice acepção.

Neste sentido, há sempre de existir uma identidade de desvalor entre a ação concreta e a abstração realizada pelo legislador quando da operação de seleção de comportamentos proibidos, da formulação dos tipos de injusto.

Ao contrário do que se possa supor, não defendemos a realização de uma pesquisa ou interpretação histórica a partir da vontade do legislador do tempo da elaboração da lei, para determinar a extensão de aplicabilidade da norma, pois, em virtude das discrepâncias existentes entre as distintas épocas, a adoção desta modalidade interpretativa, longe de solucionar problemas de subsunção, acarretaria outros, decorrentes da inegável transformação da sociedade e da evolução dos valores sociais. O que entendemos adequado é a verificação da similitude de (des)valoração em relação aos posicionamentos do legislador atual – teoria objetivista da interpretação -, ao qual cabe representar a sociedade contemporânea e positivar os seus valores, e que, mesmo não tendo sido o responsável pela elaboração da norma penal, a mantém como integrante do sistema, dirigida, por ser parte dele integrante, à busca de sua finalidade. Da adoção deste recurso podem ser destacadas duas vantagens: permite, por um lado, certa abertura do sistema penal, todavia sem violação à lei; por outro viabiliza certo controle da interpretação da vontade do legislador, pois este, a qualquer tempo, mediante modificações legislativas, pode revelar o equívoco do juízo quanto à valoração. Neste sentido o posicionamento de Chaïm Perelman: "É por essa razão que sugiro que o juiz, tendo de procurar na interpretação da lei a vontade do legislador, deveria entendê-la como sendo não a do legislador que votou a lei, principalmente se se trata de uma lei antiga, mas do legislador atual (...). Quando a vontade à qual alude é a do legislador atual, afirma uma hipótese cuja verdade pode ser controlada, pois, em caso de desacordo com o juiz, o legislador atual tem condições de se manifestar e votar uma lei interpretativa (...) ela transforma a busca da vontade do legislador em uma presunção suscetível de ser derrubada, em vez de fazer dela uma presunção irreversível, e, às vezes, nitidamente fictícia, pois escapa de qualquer controle efetivo. Essa concepção, que pode parecer paradoxal, foi confirmada por um célebre aresto da Corte Internacional de Justiça sobre a Namíbia (1971), cuja motivação declara expressamente que "um instrumento internacional deve ser interpretado dentro do contexto de todo o sistema legal que prevalece no momento da interpretação" (...) o juiz, procurando conformar-se à vontade da nação, há de conformar-se, em última análise, à vontade presumida do legislador atual". [02]

O legislador, ao elaborar e manter em vigor um tipo penal, não pretende "punir" todas as condutas que a ele encontrem subsunção nos aspectos objetivo e subjetivo, mas tem por fim evitar as condutas típicas desajustadas, ou seja, aquelas afastadas das relações sociais que se inserem no campo da normalidade da vida em comum. Inexistindo o "desajuste social" da ação, esta não será alcançada pelo tipo, por não haver, entre ambos, similitude axiológica.

Logo, a tipicidade axiológica delimita o sentido e alcance do tipo penal, impedindo a sua aplicação para hipóteses que não se ajustem ao objeto normativo de proteção, ou seja, configura as fronteiras da proibição.

O tipo penal delitivo, portanto, não é apenas prescritivo, mas é imperativo por ser axiológico e teleológico; a proibição não se esgota em si mesma, mas porta uma finalidade intrínseca, consistente em evitar que os bens jurídicos sejam colocados em risco em circunstâncias socialmente desaprovadas.

Como ensina Miguel Reale, toda norma jurídica pressupõe sempre uma tomada de posição perante determinados fatos sociais, em vista à realização de certos valores [03].

Se em todas as manifestações normativas há de se buscar o seu fim, que jamais pode ser anti-social [04], o caráter axiológico e teleológico da tipicidade penal faz-se mais premente, uma vez que se trata o direito criminal da forma mais severa de intervenção estatal nas relações humanas.

Visando excluir, desde logo, do âmbito penal, os comportamentos que, embora pertencentes ao cotidiano das relações sociais e considerados "normais" pela sociedade, subsumem-se, aparentemente, a tipos delitivos, elaborou Welzel o princípio da "adequação social", ou da "ação socialmente adequada" [05].

A razão de ser deste princípio é simples: se o legislador, ao criar os tipos de injusto, parte da experiência concreta das relações sociais e tem por fim elaborar os modelos de condutas desvaloradas socialmente, não se poderia pretender que os tipos fossem amplos a ponto de abranger comportamentos considerados corretos, ou, ao menos, tolerados pela sociedade.

Critica Claus Roxin o princípio da adequação social por entender que não oferece bases ou critérios seguros de interpretação, que podem ser substituídos por outros mais precisos, tais como os por ele formulados para a imputação objetiva do resultado [06].

A crítica, entretanto, a nosso ver, não merece guarida, pois além de ser ela própria imprecisa e genérica, baseia-se na incorreta confusão que decorre da teoria da imputação objetiva, ao englobar na imputação do resultado, do tipo objetivo (em princípio neutra), a tipicidade axiológica (valorativa). [07]

A busca pelo "fim" da norma, consistente em um terceiro limite, ao lado da tipicidade objetivo-material e da subjetiva, para a aplicação de um tipo penal a uma ação, é fruto de uma obrigatória interpretação teleológica e sistemática, pois, como ressalta Sebástian Soler [08]: "O conjunto de leis [evidentemente em sentido amplo] que integra a ordem jurídica deve ser entendido como composto por disposições reciprocamente coerentes, já que a lei não pode, ao mesmo tempo, definir um ato como devido e como indevido".

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O princípio da adequação social, que prega, em última análise, uma interpretação do fato – ação humana – sob o enfoque da ordem jurídica como um todo (ordem conglobada, na feliz expressão de Zaffaroni) [09], evita a quebra do próprio sistema jurídico, que não comporta contradições internas [10].

É no art. 5º da Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro, regra hermenêutica aplicável a todos os ramos de nosso Direito, que encontra a dimensão axiológica da tipicidade a sua fundamentação legal e seus critérios fundamentais, pois a menção aos "fins sociais" e ao "bem comum", como assinala Tércio, pressupõe uma unidade de objetivos do comportamento social do homem; postula-se que a ordem jurídica, como um todo, seja sempre um conjunto de preceitos para a realização da sociabilidade humana [11], de forma que, aquilo que não seja socialmente danoso ou intolerável, não possa ser proibido ou alcançado pelo mais drástico instrumento de intervenção nas relações sociais, o direito penal.

Esta fundamentação legal do princípio da adequação social, presente em nosso Direito, exclui a constante e persistente crítica à sua adoção, relativa à redução de segurança do direito penal pela sujeição deste às normas consuetudinárias. Com efeito, ainda que fluidos, os conceitos de "fins sociais" e "bem comum" podem ser extraídos não apenas dos costumes, mas da totalidade do ordenamento jurídico, especialmente das normas constitucionais, de suas garantias, fundamentos e objetivos. A mera incerteza ou "abertura" de um conceito – especialmente se estabelecido por norma de observância obrigatória -, quando passível de complementação e limitação por normas de direito posto, não pode fundamentar a sua não admissão como instrumento jurídico válido, a não ser que se pretenda conferir à disciplina do direito penal uma posição estanque, absolutamente apartada dos outros ramos do Direito – o que é evidentemente incorreto, pois contraria a própria idéia de ordenamento jurídico, que pressupõe uma interdependência e reciprocidade de informação entre as disciplinas – e da realidade, e ao julgador, como único instrumento de hermenêutica, a por muitas vezes insuficiente interpretação literal. Sobre estas cláusulas gerais, sustenta Nelson Nery Júnior: "normas orientadoras sob forma de diretrizes, dirigidas especialmente ao juiz, vinculando-o ao mesmo tempo em que lhe dão liberdade para decidir. As cláusulas gerais são formulações contidas na lei, de caráter significativamente genérico e abstrato, cujos valores devem ser preenchidos pelo juiz, autorizado para assim agir em decorrência da formulação legal da própria cláusula geral, que tem natureza de diretriz". [12]

Embora estas considerações tenham sido formuladas para o direito privado, nada obsta que sejam aplicadas, também, ao direito penal, na medida em que ao comportamento formalmente típico, pra que se caracterize a tipicidade plena, há de se adicionar a sua desvaloração social. Ao juiz penal, por força da unidade e coerência do sistema jurídico, também se impõem, na aplicação da lei, as diretrizes de se atender à finalidade social da norma jurídica e ao bem comum. Como sustenta Peter Häberle – embora no contexto da hermenêutica constitucional -, "a vinculação judicial à lei e a independência pessoal e funcional dos juízes não podem escamotear o fato de que o juiz interpreta a Constituição [e a lei, inclusive a penal] na esfera pública e na realidade. Seria errôneo reconhecer as influências, as expectativas, as obrigações sociais a que estão submetidos os juízes apenas sob o aspecto de uma ameaça à sua independência. Essas influências contêm também uma parte de legitimação e evitam o livre arbítrio da interpretação judicial". [13] Em suma, a interpretação da lei – e do tipo penal -, para encerrar legitimidade, deve atender às finalidades – e, portanto, expectativas – sociais, elemento teleológico que lhe confere razão de existência.

A interpretação teleológica e axiológica tem implicações extraordinárias, que não se resumem às hipóteses geralmente apresentadas (práticas religiosas, disputas esportivas, intervenções cirúrgicas, etc.), de pronta verificação ante a evidente inaplicabilidade da norma penal ao ato concreto.

De fato, serve o caráter axiológico da tipicidade para restringir a incidência da proibição penal aos atos que têm efetivamente, em si, um caráter negativo de valoração, e que se encerram no âmbito da tutela penal; obriga o juiz, assim, a analisar o fato não como uma unidade isolada, mas no contexto social em que é realizado, na realidade que o circunda. O Juiz deve buscar o verdadeiro sentido e alcance do texto legal, que não podem estar em desacordo com o fim colimado pela legislação, o bem social [14]. Deve apreciar, portanto, se a lesão material do bem da vida tutelado pelo tipo caracteriza, também, uma violação do valor que constitui o sentido, a razão de ser daquele tipo.

Isto porque: "Já os antigos juristas romanos, longe de se aterem à letra dos textos, porfiavam em lhes adaptar o sentido às necessidades da vida e às exigências da época. Não pode o direito isolar-se do ambiente em que vigora, deixar de atender às outras manifestações da vida social e econômica". [15]

Sempre, portanto, que a conduta, no contexto de sua realização, demonstrar-se eticamente aprovada ou ao menos tolerada, não se poderá pretender que seja alcançada por um tipo de injusto, pois ausente restará a finalidade, o elemento teleológico da norma penal proibitiva e prescritiva.

É por isso que preferimos, para denominar estas espécies de condutas, não alcançadas pelos tipos de injusto, a utilização da expressão "praticada em contexto social adequado", em substituição a "ação socialmente adequada", na medida em que o comportamento, isoladamente considerado, não porta, em regra, caráter axiológico, o qual apenas será aferido – e revelado – na concreção dos relacionamentos humanos.

Em conclusão, podemos afirmar, com amparo em Jiménez de Asúa [16], que se o direito penal é finalista e somente pode ser trabalhado com o método teleológico, teleológica há de ser também a interpretação das normas, pois se trata do critério mais adequado à descoberta da verdadeira vontade da lei; e, a partir dessa interpretação teleológica, somente será possível afirmar a lesividade de uma conduta quanto praticada em um contexto social desaprovado.


Notas

  1. Derecho Penal, p. 67.
  2. Lógica Jurídica. Pp. 206-07 e 242.
  3. Teoria Tridimensional do Direito, p. 101.
  4. Tércio Sampaio Ferraz Jr., Introdução ao Estudo do Direito, p. 265.
  5. Derecho Penal Aleman, p. 66 e ss..
  6. Derecho Penal, Parte General, Tomo I, p. 297.
  7. Para uma crítica da teoria da imputação objetiva de Claus Roxin, cf. o nosso Teoria da Imputação Objetiva: apontamentos críticos à luz do Direito Positivo Brasileiro, São Paulo: Malheiros Editores, 2007.
  8. Derecho Penal Argentino, p. 183.
  9. Adotamos, aqui, o conceito de ordenamento jurídico oferecido por Norberto Bobbio: "entidade unitária constituída pelo conjunto sistemático de todas as normas" (O Positivismo Jurídico – Lições de Filosofia do Direito, p. 197). Posicionamento semelhante é expresso por Baumann: "O fato (típico) não se mede exclusivamente com recurso às normas do direito penal, senão também à totalidade da ordem jurídica" (Derecho Penal, p. 170).
  10. Como sustenta Gustav Radbruch: "a vontade do legislador não é um meio, mas o fim e resultado da interpretação, a expressão da necessidade apriorística de uma interpretação sistemática e não contraditória da ordem jurídica total" (Filosofia do Direito, pp. 163/64).
  11. Introdução ao Estudo do Direito, p. 265.
  12. "Contratos no Código Civil". O Novo Código Civil – Estudos em Homenagem ao Prof. Miguel Reale, p. 408
  13. Hermenêutica Constitucional, pp. 31-32.
  14. Carlos Maximiliano, Hermenêutica e Aplicação do Direito, p. 129.
  15. Idem, p. 129.
  16. Princípios de Derecho Penal, p. 113.
Sobre o autor
Antonio Carlos Santoro Filho

Juiz de Direito em São Paulo (SP). Pós-graduado em Direito Penal. Autor de livros de Direito Penal, Processo Penal e Filosofia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTORO FILHO, Antonio Carlos. A dimensão axiológica da tipicidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2847, 18 abr. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18928. Acesso em: 22 nov. 2024.

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