Trata-se o presente de sucinto estudo sobre as cláusulas restritivas atuantes face ao direito das sucessões, mormente junto aos bens da herança legítima.
INTRÓITO
Como muito se sabe, a herança legítima é assegurada aos herdeiros necessários em sua plenitude, presumindo a lei ser essa a vontade tácita do de cujus, razão de tamanha proteção. Entretanto, dispõe o código de 2002 de causas que restringirão mesmo a legítima: as chamadas cláusulas restritivas, presentes tanto na sucessão legítima quanto na testamentária.
Poderá o testador, destarte, impor cláusulas que vão desde a partilha prévia da herança até aquelas tais em que o bem herdado por sucessor ficará restrito a alienações e demais ônus, reais ou não. Seriam os casos das cláusulas de inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade, presentes, ainda, em nosso direito sucessório. Também seria exemplo a sub-rogação de restrições, analisada em propício momento.
Desde tempos remotos, os países da Europa Ocidental já vinham dispondo em seus direitos codificados sobre a possibilidade de o testador impor restrições à herança. Contudo, a parte tocante à legítima ficaria livre de condições ou encargos, sob a influência do direito romano, no qual a herança legítima ou legal, após aberta a sucessão, era praticamente intocável. [01]
O direito brasileiro inovou ao dispor de cláusulas restritivas até mesmo quanto à legítima. O Código Civil de 1916 apresentava a possibilidade de criação dessas cláusulas restritivas por parte do testador, em seu artigo 1.676, sem muitas ressalvas. A crítica que se fazia, à época, era que tal imposição unilateral por parte do testador prejudicaria a liberalidade peculiar dos bens de herança, em detrimento aos herdeiros. Além disso, mesmo diante da efemeridade da medida, um bem da legítima clausulado de inalienabilidade restaria retirado do comércio [02], o que prejudicaria a função social da propriedade e o intuito natural do direito das sucessões.
Pensando dessa forma é que o novo Código Civil, sob a coordenação do saudoso mestre Miguel Reale, manteve a possibilidade de instituição das cláusulas restritivas, mas sob condições expressas. A grande inovação seria a do artigo 1.848, ipsis litteris:
"Salvo se houver justa causa, declarada no testamento, não pode o testador estabelecer cláusula de inalienabilidade, impenhorabilidade, e de incomunicabilidade, sobre os bens da legítima".
A regra, doravante, é a vedação do estabelecimento de tais cláusulas, que somente serão aceitas quando imanadas de justa causa, declarada em testamento, com o mérito analisado por juiz de direito. Óbvio que a questão suscitará dúvidas na práxis jurídica, em vista de sua subjetividade, pois que desde Aristóteles, na associação do estudo jurídico com o filosófico, não se achou a definição exata de causa justa, ou de injusta, cabendo ao julgador, no caso, a resolução de tal desafio.
Outra proibição é a de conversão dos bens da legítima em outros de espécie diversa, conforme dispõe o § 1º do artigo 1.848, não se aceitando sobre eles, analogicamente, a imposição de fideicomisso.
Interessante dizer que a imposição de cláusulas restritivas está amenizada com a justa causa apenas em relação à legítima, ope legis, podendo estar presentes restrições na parte disponível da herança, junto à sucessão testamentária, ao bel-prazer do testador, bem como nos casos de doação, dispensando-se a causa justa e a análise do juiz.
Ademais, como regra de transição, dispõe o artigo 2.042 que, caso a sucessão seja aberta após um ano da entrada em vigor do novo Código, deverá ser apresentada a justa causa para a aceitação da cláusula restritiva, conforme o artigo 1.848. Aberta a sucessão antes de tal prazo, prosseguir-se-á consonante o disposto no antigo Código, sem a necessidade de apresentação de justa causa.
A seguir, passa-se à análise das peculiaridades e os efeitos de tais cláusulas.
1.1 - DA PARTILHA PRÉVIA DOS BENS DA HERANÇA
É garantido ao testador o direito de, em vida, partilhar previamente os bens do acervo, contanto que não prejudique a legítima, nos moldes do artigo 2.014 do Código Civil, in verbis:
"Pode o testador indicar os bens e valores que devem compor os quinhões hereditários, deliberando ele próprio a partilha, que prevalecerá, salvo se o valor dos bens não corresponder às quotas estabelecidas".
Vê-se claramente, portanto, a liberdade de o testador poder indicar previamente o modo através do qual se partilhará seu patrimônio, após sua morte, respeitados os valores dedicados à sucessão legítima, na esfera de cinqüenta por cento. Também será válida a partilha feita por ascendente, em ato inter vivos ou em testamento, desde que também não saia a legítima desfalcada, tudo conforme o artigo 2.018 do novo Código.
É importante salientar, como obtempera o saudoso Washington de Barros Monteiro, que o cônjuge meeiro em casamento contraído sob a comunhão universal de bens tem preferência na partilha, visto que metade de todos os bens do de cujus é seu, a título de meação. [03] O juiz poderá barrar a partilha feita pelo falecido quando no caso em tela, pelos motivos supramencionados.
1.2 - CLÁUSULA DE INALIENABILIDADE
Havendo justa causa, analisada pelo juiz, será aceita a cláusula restritiva sobre os bens da herança.
A cláusula de inalienabilidade tem como efeito a vedação de alienação, qualquer que seja, do bem da herança. O herdeiro, portanto, não possuirá a propriedade plena sobre o bem gravado, haja vista poder apenas exercer o jus utendi e o jus fruendi, mas não o jus disponendi. Entretanto, tal restrição não atingirá os frutos e rendimentos do bem gravado de inalienabilidade, na lição de Carlos Roberto Gonçalves [04], à qual nos filiamos.
A restrição poderá ser total, atingindo todos os bens, ou todas as pessoas, ou parcial, quando se restringe a alienação apenas para determinada pessoa, ou sobre determinado bem. Ademais, jamais poderá exceder, em tempo, a vida do herdeiro. Dessa forma, o bem que o sucessor herdou, após a morte deste, ficará livre de qualquer restrição. [05]
Essas disposições se aplicam a quaisquer cláusulas restritivas, proibindo-se que uma restrição a bens seja perpétua, o que favorece a dilatação do princípio da função social da propriedade, em uma aplicação teleológica da lei civil, corroborando o entendimento majoritário dos tribunais. [06]
Importante destacar o artigo 1.911 do Código Civil, segundo o qual:
"A cláusula de inalienabilidade, imposta aos bens por ato de liberalidade, implica impenhorabilidade e incomunicabilidade".
Desta forma, basta gravar o bem de inalienabilidade para que se lhe imponha impenhorabilidade e incomunicabilidade, analisadas a seguir. Contudo, o contrário não será verdadeiro.
Essa disposição legal, que há tempos já vinha sendo aplicada através dos tribunais, viria a dar origem ao apelido comezinho de "cláusulas três irmãs", referindo-se à inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade. O motivo, a nosso ver, é clarividente: bastasse a imposição de inalienabilidade ao bem para que o mesmo se tornasse impenhorável e incomunicável.
1.3 - CLÁUSULAS DE IMPENHORABILIDADE E INCOMUNICABILIDADE
A cláusula de impenhorabilidade visa impedir constrições judiciais sobre o bem gravado, relativas a execução, dívidas, entre outros. Dessa forma, o bem gravado não poderá ser alvo dos credores do sucessor, no que concerne à medida processual da penhora.
Importante ressaltar que a cláusula de impenhorabilidade poderá atingir o bem independentemente de estabelecimento de cláusula de inalienabilidade, haja vista se tratar de cláusula desacompanhada. Assim, bem gravado de impenhorabilidade poderá ser alienado, mas bem inalienável jamais poderá ser penhorado, conforme artigo 1.911 [07]. A mesma independência também se dá ao bem incomunicável.
No que concerne à clausula de incomunicabilidade, viria esta a impedir que o bem gravado, de propriedade exclusiva do herdeiro, viesse a se comunicar com a pessoa de seu cônjuge, em razão de contraírem casamento. Assim, bens restringidos dessa forma (ou os sub-rogados em seu lugar) não entrariam na comunhão, qualquer que seja o regime de bens, entrando na qualidade de bens de propriedade particular do sucessor.
Ademais, conforme entende a doutrina, os frutos e rendimentos do bem gravado de impenhorabilidade também serão impenhoráveis, visto tal cláusula a eles se estender, diferentemente do que ocorre com a restrição de inalienabilidade, onde os frutos e rendimentos do bem gravado seriam alienáveis [08]. Malgrado não haja posição expressa da doutrina, entendemos que a incomunicabilidade de um bem também se estende aos seus frutos e rendimentos.
1.4 - A SUB-ROGAÇÃO DAS RESTRIÇÕES
Há, ainda, a possibilidade de se sub-rogar as restrições ou ônus, alienando-se os bens clausulados e convertendo-se o produto em outros bens, que ficarão gravados no lugar daqueles. Entretanto, deverá tal alienação vir precedida de justa causa e autorização judicial, na forma do artigo 1.848, em seu § 2º.
Obviamente que deverá se fazer, para tanto, a avaliação tanto do bem gravado quanto do que se sub-rogará em seu lugar, devendo este ser de igual ou maior valor que aquele, para fins de requisito para autorização do magistrado. [09]
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, v. 7: direito das sucessões. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil, v. 6. 35 ed. Atualização de Ana Cristina de Barros Monteiro França Pinto. São Paulo: Saraiva, 2003.
REALE, Miguel. O Projeto do novo código civil. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 1999.
RODRIGUES, Silvio. Direito civil, v. 7. 25 ed. Atualização de Zeno Veloso. São Paulo: Saraiva, 2002.
Notas:
- Francisco de Paula Lacerda de Almeida, apud Carlos Roberto Gonçalves, Direito Civil Brasileiro, v. VII, 2009, p. 189.
- Silvio Rodrigues, Direito Civil, v. 7, 2002, p. 129.
- Curso de Direito Civil, v. 6, 2003, p. 111-112.
- Carlos Roberto Gonçalves, op. cit., p. 193.
- Idem, Ibidem, p. 191-192.
- STJ, REsp 80.480-SP, 4ª T., rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, publicado no DJU em 24-6-1996, p. 22769.
- STJ - RECURSO ESPECIAL: REsp 226142 MG 1999/0070903-9. Rel. Min. Barros Monteiro - Publicação: DJ 29.05.2000 p. 160.
- Op. cit., p. 193.
- Carlos Roberto Gonçalves, op. cit., p. 194.