Sumário. Introdução: sanções e limitações judiciais impostas à União nos Juizados Especiais Federais; 1. Realização do cálculo dos valores da condenação como obrigação do Juízo e impossibilidade de acolhimento do cálculo apresentado pelo autor por mera presunção: prerrogativas da Fazenda Pública, deveres e responsabilidades normativas dos magistrados e peculiaridades dos Juizados Especiais; 2. Necessidade do contraditório prévio: ciência do cálculo às partes deve ser feita antes da sua análise judicial; 3. Apresentação e impugnação do cálculo depois da efetiva formação do título executivo judicial: efetividade e economia processuais, hermenêutica sistemática do ordenamento jurídico, normas cogentes específicas e ponderação de princípios; 4. Delimitação do âmbito de atuação dos sujeitos processuais na realização, impugnação e análise dos cálculos: impossibilidade de imputar ao ente público réu a atribuição de calcular os valores devidos ao autor; 5. Conclusão: momento processual adequado para apresentação e eventual impugnação do cálculo, nos Juizados, surge apenas quando formado o título executivo judicial; em todo caso, a realização do cálculo é obrigação do Juízo, devendo haver intimação das partes do cálculo realizado pela Contadoria antes da análise judicial
Introdução: sanções e limitações judiciais impostas à União nos Juizados Especiais Federais
Conforme artigo 2º da Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995, o rito processual nos Juizados Especiais orientar-se-á pelos critérios da oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade. A teor do artigo 1º da Lei nº 10.259, de 12 de julho de 2001, estes mesmos princípios orientam os Juizados Especiais Federais.
Baseados nestes princípios do subsistema processual, principalmente no princípio da celeridade, os magistrados que atuam nos Juizados vêm, pontualmente, fazendo releituras de figuras jurídicas tradicionais, criando novas situações e limitações, procedimentais e materiais.
Certo que o direito não é estanque, pelo contrário, é processo contínuo de adaptação e mudança, um constante devir heraclitano. Contudo, no âmbito do direito positivo, da dogmática jurídica, conjunto teórico e epistemológico dominante, este processo de alteração, ao menos no âmbito das fontes de direito estatais, é controlado e organizado. Há normas, regras ou princípios, que devem ser respeitadas no processo de construção e evolução do ordenamento jurídico estatal. Trata-se de imposição para manutenção da racionalidade do sistema.
Nada obstante as regras rígidas que visam dar racionalidade ao sistema, delimitando sua própria evolução, no processo dos Juizados, conforme adiantado, os magistrados têm, data venia, ultrapassado os limites da criação judicial, gerando normas pretensamente justificadas nos princípios específicos dos Juizados, mas, na verdade, originadas de solepcismos apenas aparentemente científicos.
Baseados na maior liberdade judicial existente no rito dos Juizados e adotando a celeridade radical como princípio norteador, os magistrados criam novos ônus processuais e materiais, alterando o fluxo do procedimento, à revelia de normas legais e constitucionais.
Disseminada esta forma de atuação judicial, os entes públicos litigantes, e esta análise restringe-se à União [01], pessoa jurídica de direito público da administração direta, tendem a ser os mais prejudicados, pois todas as prerrogativas que lhes são próprias, reflexo do princípio constitucional da isonomia, acabam sendo restringidas ou mesmo ignoradas. As prerrogativas da União e mesmo o interesse público, dado o cuidado com que o sistema jurídico resguarda-o, são vistos como obstáculos ao rápido deslinde do processo.
Levando-se em consideração que, nos Juizados, há jurisprudência sedimentada sobre parte considerável das questões de mérito discutidas, a forma de cálculo de eventuais valores a restituir, principalmente nos casos de indébitos tributários, onde os cálculos são complexos, acaba se tornando, muitas vezes, a questão de maior controvérsia nos autos. Ainda que a questão jurídica de fundo esteja pacificada, cabendo aplicar o silogismo simples, o cálculo, em cada caso, é específico, dependente das circunstâncias concretas e específicas.
Como a análise dos cálculos acaba adquirindo importância primordial, sendo ponto potencial de controvérsia, para conceder maior rapidez ao processo, as decisões judiciais, na tentativa de afastar discussões, sem, no entanto, resolvê-las, acabam distorcendo as normas processuais que disciplinam a confecção e análise dos cálculos do processo, ignorando, quando inconvenientes, as prerrogativas normativas da Fazenda Pública em Juízo e as normas que disciplinam o desenvolvimento procedimental.
Neste panorama, há decisões judiciais antecipando a discussão dos cálculos para o início do processo, quando sequer existe um título executivo, ainda que seja necessário, para este fim, impor à União uma sanção judicial desarrazoada e ilegal:
"Cite-se a Fazenda Nacional para que, no prazo de 30 (trinta) dias, ofereça contestação e/ou apresente proposta de conciliação, bem como se manifeste acerca do cálculo apresentado, sob pena de acolhimento em caso de procedência." [02]
Ainda, para conceder maior rapidez aos processos, há decisões acolhendo o cálculo da Contadoria sem a prévia intimação das partes. O cálculo é feito e juntado ao processo sem a ciência de qualquer das partes, nem do réu nem do autor, que são intimados do cálculo junto com a decisão que já o acolheu. Portanto, apenas depois de acolhidos, as partes são intimadas dos cálculos realizados sem a sua ciência ou participação; ou seja, as partes não são intimadas da juntada ao processo do cálculo realizado pela Contadoria Judicial, que é documento novo nos autos, mas apenas do seu acolhimento, sem prévio contraditório [03].
Também são comuns decisões judiciais impondo ao ente público, parte ré, a obrigação de efetuar o cálculo dos valores da condenação, em uma inversão do ônus processual ordinário, que imputa tal providência ao autor, transferindo ao ente público litigante uma obrigação que, por lei (artigo 52 da Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995), é do Juízo:
"[...]
Transitada em julgado a presente ação, apresente a União, no prazo de 30 (trinta) dias, cálculo dos valores a serem restituídos à parte autora." [04]
Eis alguns exemplos do efetivo procedimento que se desenvolve nos Juizados Especiais Federais, que ultrapassam as molduras normativas pressupostas, afastando-se, assim, do devido processo legal.
Feitas as devidas contextualizações, o objetivo deste trabalho é demonstrar as incongruências, desarrazoabilidades e prejuízos originados da estrutura radicalmente célere dos Juizados combinada com o excesso de volitismo dos magistados, explicitadas em decisões judiciais que ignoram as regras e os princípios que possam limitar o suposto objetivo primeiro da atuação jurisdicional: a prestação de um serviço rápido - ainda que superficial ou equivocado.
Restará demonstrando que o tratamento dado aos cálculos nos Juizados Especiais Federais, em regra, está baseado apenas no arbítrio do próprio magistrado, na sua suposta autorictas – na verdade, excessiva potestas, não encontrando suporte no ordenamento jurídico, que precisa ser analisado como um sistema, não como um agregado.
Por fim, será analisado o momento processual adequado para apresentação e impugnação dos cálculos nos Juizados, bem como a atuação dos sujeitos processuais em cada fase do procedimento, levando em consideração as normas gerais, bem como aquelas específicas dos Juizados.
1.Realização do cálculo dos valores da condenação como obrigação do Juízo e impossibilidade de acolhimento do cálculo apresentado pelo autor por mera presunção: prerrogativas da Fazenda Pública, deveres e responsabilidades normativas dos magistrados e peculiaridades dos Juizados Especiais
O cálculo apresentado pelo autor, junto com a petição inicial, deve ser, sempre, analisado pelo magistrado, que pode utilizar, para subsidiar sua decisão, o órgão técnico do Juízo. Parece uma conclusão óbvia, mas, na tentativa de tornar ainda mais célere um processo que já é, naturalmente, célere, há decisões acolhendo, sem análise, o cálculo do valor da causa, juntado com a inicial, em caso de não impugnação específica pela Fazenda Pública no prazo da contestação, transformando-o, por presunção judicial, em cálculo do valor da condenação.
A questão se torna ainda mais séria porque o valor da condenação acaba quantificado e determinado ainda na fase inicial do processo, quando sequer existe um título executivo que ofereça os parâmetros para a realização do cálculo. Assim, a sentença, sem qualquer análise real, por mera presunção decorrente da não impugnação específica na contestação, transforma o valor da causa, trazido pelo autor, em valor da condenação, com evidente prejuízo ao interesse público e à verdade material.
Neste capítulo, demonstrar-se-á a ilegalidade, a inconstitucionalidade e a falta de razoabilidade destas decisões, uma das quais, concretamente, citada na introdução deste trabalho.
A competência dos Juizados Especiais Federais abrange as causas de competência da Justiça Federal (artigo 109, I a XI, Constituição Federal) em matéria de natureza cível, desde que o valor da causa seja de até 60 (sessenta) salários mínimos. Conforme artigo 3º da Lei dos Juizados Federais (Lei nº 10.259, de 12 de julho de 2001), compete ao Juizado Especial Federal processar, conciliar e julgar causas de competência da Justiça Federal até o valor de sessenta salários mínimos, bem como executar as suas sentenças.
No processo civil ordinário, a competência fixada em razão do valor da causa é relativa, mas, nos Juizados, esta competência é absoluta. O artigo 3º, § 3º, da citada lei, assim dispõe: "No foro onde estiver instalada Vara do Juizado Especial, a sua competência é absoluta".
Como se trata de competência absoluta, para que essa seja fixada, o valor da causa, essencial em qualquer petição inicial, torna-se ainda mais importante no processo dos Juizados.
Contudo, o valor da causa, essencial para fixação da competência, não se confunde com o valor da condenação, apurado depois de transitada em julgado a decisão condenatória.
O cálculo juntado pelo autor com a petição inicial, que embasa o seu pedido no processo, tem o claro objetivo de fixar a competência do Juizado, que é absoluta. Cabe ao magistrado planicial controlar o valor da causa, o que passa pela apresentação, junto com a petição inicial, de demonstrativo de cálculo, ainda que simplificado, do conteúdo econômico do pedido.
As Turmas Recursais do Rio Grande do Sul, no Enunciado nº 1, da Primeira Sessão Administrativa, realizada em 04.07.2006, esclareceram:
"Enunciado nº 1: O valor da causa deve ser controlado pelo juiz de 1º grau, podendo este exigir que à parte autora apresente demonstrativo de cálculo, ainda que simplificado, do conteúdo econômico de sua pretensão. Não havendo retificação de ofício ou impugnação específica deste valor, está preclusa a questão, mesmo que, posteriormente, se constate o excesso ao teto de 60 (sessenta) salários mínimos, fixada está a competência do Juizado Especial Federal (JEF), para processo e julgamento."
A parte inicial do Enunciado nº 1, destacada acima, coincide com a tese aqui defendida (ainda que a parte final do enunciado, data venia, esteja equivocada, pois o artigo 39 da Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995, dispõe de forma expressa: "É ineficaz a sentença condenatória na parte que exceder a alçada estabelecida nesta Lei"). O enunciado, no seu início, esclarece qual a função do demonstrativo de cálculo juntado pelo autor, com a petição inicial: demonstrar o valor da causa, fixando a competência absoluta do Juizado.
A apresentação de demonstrativo de cálculo junto com a petição inicial é requisito para analisar a competência absoluta do Juizado, distinguindo-se do valor da condenação, que pressupõe, conforme será explicado, a existência de um título executivo judicial.
O valor da condenação depende da extensão efetiva da própria condenação, o que passa, obrigatoriamente, pela análise do título judicial.
Portanto, o cálculo que embasa o valor da causa deve ser analisado como referencial para fixação da competência dos Juizados; por outro lado, o valor da condenação, quantificação pecuniária efetiva dos valores que devem ser pagos pelo sucumbente nas demandas pecuniárias, depende da extensão do título executivo judicial.
Nada obstante a finalidade precípua do cálculo juntado com a inicial, há decisões judiciais, conforme exposto, pretendendo transformar, sem análise, o valor da causa em valor da condenação, determinando o acolhimento arbitrário do cálculo do autor, no caso de ausência de impugnação específica da parte ré, União, no prazo ordinário para apresentação da contestação.
Em primeiro lugar, a imposição de uma sanção processual por decisão judicial, sem autorização legal, viola o princípio constitucional da legalidade.
"Problema igualmente relevante coloca-se em relação às decisões judiciais que, por falta de fundamento legal, acabam por lesar relevantes princípios da ordem constitucional.
Por exemplo, uma decisão judicial que, sem fundamento legal, afete situação individual, revela-se igualmente contrária à ordem constitucional, pelo menos ao direito subsidiário da liberdade de ação (Auffanggrundrecht).
Se se admite, como expressamente estabelecido na Constituição, que os direitos fundamentais vinculam todos os poderes e que a decisão judicial deve observar a Constituição e a lei, não é difícil compreender que a decisão judicial que se revele desprovida de base legal afronta algum direito individual específico, pelo menos o princípio da legalidade." [05]
Viola, ainda, o princípio constitucional da separação de poderes, na medida em que o Poder Judiciário, ao inovar na legislação processual, assume uma competência que é reservada ao Poder Legislativo.
A competência da União para legislar sobre direito processual (artigo 22, I, CF) é, por óbvio, legislativa, submetendo-se ao devido processo legislativo. O Judiciário, ao inovar no ordenamento processual, desvinculando-se das normas legais superiores, transborda os limites de sua competência constitucional, violando o princípio da separação de poderes.
Além disso, o magistrado, antes de acolher qualquer alegação da parte, tem o dever de analisá-la, conforme artigo 131 do Código de Processo Civil, que exige a explicitação dos motivos que formaram o convencimento judicial, o que passa pela análise das alegações das partes: "O juiz apreciará livremente a prova, atendendo aos fatos e circunstâncias constantes dos autos, ainda que não alegados pelas partes; mas deverá indicar, na sentença, os motivos que Ihe formaram o convencimento."
A análise do cálculo pelo magistrado, antes de acolhê-lo, é dever legal. E não se diga que a análise do cálculo pelo Juízo, nos casos em que o ente público não o impugnou de forma específica, ocasionaria discriminação ou atuação parcial. Tal afirmação ignoraria normas e princípios processuais que regem a atuação da Fazenda Pública em Juízo, consubstanciados em prerrogativas concretas e específicas. Não que o magistrado tenha o dever de atacar o cálculo, ou de rechaçá-lo em defesa da Fazenda Pública (do interesse público); deve, contudo, antes de acolher determinado cálculo, manifestar-se sobre sua correição, podendo, depois de analisá-lo, acolhê-lo ou rejeitá-lo, de forma parcial ou integral, mas sempre fundamentadamente.
O magistrado tem o dever de analisar a veracidades das alegações da parte. Acatar, ter com verdadeira, determinada alegação de uma das partes, sem sequer analisá-la, colide frontalmente com o princípio da verdade material, ocasionando uma situação potencial de prejuízo para uma parte e benefício para outra, o que não condiz, ao menos em tese, com a cogente imparcialidade pretoriana.
O acolhimento judicial, sem análise, de determinada alegação de umas das partes, acaba gerando potencial situação de desequilíbrio processual, que aproveita a uma das partes, prejudicando a outra. Desequilíbrio, repita-se, em potencial prejuízo a uma das partes, e consequente benefício de outra, em razão de atuação parcial do magistrado. O princípio da imparcialidade judicial é indissociável do princípio da verdade material: eis a única inferência possível.
Não se está defendendo que o magistrado deva obrigatoriamente atacar ou afastar o cálculo do autor, não. Pode até acolhê-lo, parcial ou integralmente, mas tem que analisá-lo previamente, sob pena de acolher, ao menos em tese, cálculo equivocado, falso ou mesmo fraudulento. A atuação imparcial do magistrado passa pela análise da veracidade, da correição, da higidez, das alegações expostas por cada uma das partes.
Excepcionalmente, porém, é possível que a alegação de uma das partes no processo seja acatada por simples presunção, sem que haja qualquer mácula ao princípio da imparcialidade judicial, desde que haja autorização legal clara e expressa.
As normas que autorizam o acolhimento de alguma alegação da parte por presunção são normas de exceção. Tais presunções criam situações excepcionais, que limitam o princípio da verdade material e o direito de defesa. As normas que as regem, excepcionais, são de interpretação literal e estrita:
"O Código Civil explicitamente consolidou o preceito clássico – Exceptiones sunt strictissima interpretationis (‘interpretam-se as exceções estritissimamente’) – no art. 6º da antiga Introdução, assim concebido: ‘A lei que abre exceção a regras gerais, ou restringe direitos, só abrange os casos que especifica’". [06]
Em continuação, tem-se que:
"O processo de exegese das leis de tal natureza é sintetizado na parêmia célebre, que seria imprudência elimina sem maior exame – interpretam-se restritivamente as disposições derrogatórias do Direito comum.
[...]
Quanta dúvida resolve, num relâmpago, aquela síntese expressiva - interpretam-se restritivamente as disposições derrogatórias do Direito comum!
Responde, em sentido negativo, à primeira interrogação: o Direito Excepcional comporta o recurso à analogia? Ainda enfrenta, e com vantagem, a segunda: é ele compatível com a exegese extensiva? Neste último caso, persiste o adágio em amparar a recusa;
[...]
Restrições ao uso ou posse de qualquer direito, faculdade, faculdade ou prerrogativa não se presumem; é isto que o preceito estabelece. Devem ressaltar dos termos da lei, ato jurídico, ou frase de expositor.
Cumpre opinar pela inexistência da exceção referida, quando esta se não impõe à evidência, ou dúvida razoável paira sobra a sua aplicabilidade a determinada hipótese." [07]
São exemplos destas normas excepcionais aquelas que tratam dos efeitos da revelia.
Quando o réu não responde ao chamamento judicial, deixando de apresentar sua defesa no processo, em princípio, presumir-se-ão verdadeiros os fatos alegados pelo autor na inicial. Assim, pela presunção que exsurge com a decretação da revelia, é possível que o magistrado acolha, por presunção, os fatos alegados pelo autor. Esclareça-se, contudo, que mesmo o acolhimento formal, por presunção, dos fatos alegados pelo autor, em razão da decretação da revelia, vem sendo relativizado, em prol do princípio da verdade material, que deveria ser o vetor axiológico supremo da tábua processual:
"[...] o efeito material da revelia, a presunção de veracidade dos fatos narrados pelo autor, não é absoluto.
‘[...] a presunção de veracidade decorrente da revelia não é absoluta. Se há elementos nos autos que levem a conclusão contraria não está o juiz obrigado a decidir em favor do pedido do autor. Na pratica o que ocorre é que a falta de contestação e a consequente confissão ficta esgotam o tema probatório, de modo que, de regra, a conseqüência é a sentença favorável ao demandante.‘ [03] (GRECO FILHO, Vicente. Direito processual civil brasileiro. Volume II. São Paulo, Saraiva, 2006, p. 142.)
O Superior Tribunal de Justiça tem jurisprudência consolidada no sentido de que:
‘A presunção de veracidade dos fatos afirmados na inicial, em caso de revelia, é relativa, devendo o juiz atentar para a presença ou não das condições da ação e dos pressupostos processuais e para a prova de existência dos fatos da causa. Desse modo, pode extinguir o feito sem julgamento de mérito ou mesmo concluir pela improcedência do pedido, a despeito de ocorrida a revelia.’ [04] (SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. 4ª Turma. Recurso Especial nº 211851-SP. Relator: Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira. Decisão unânime. Brasília, 10.08.1999. DJ: 13.09.1999. Disponível a partir de <http://www.stj.jus.br/webstj/Processo/Justica/> Acesso em 8 de agosto de 2010.)
Portanto, mesmo configurada a revelia, é possível, ao menos em tese, uma sentença desfavorável ao autor." [08]
No procedimento dos Juizados, há regra específica explicitando os efeitos da revelia:
"Da Revelia
Art. 20. Não comparecendo o demandado à sessão de conciliação ou à audiência de instrução e julgamento, reputar-se-ão verdadeiros os fatos alegados no pedido inicial, salvo se o contrário resultar da convicção do Juiz."
Observe-se que a própria Lei dos Juizados Especiais, ao impor a decorrência material dos efeitos da revelia ao réu, deixa expressa a limitação: "salvo se o contrário resultar da convicção do juiz" (art. 20). Deste modo, relativiza a produção dos efeitos da revelia, tendo por princípio a busca da verdade material.
Em todo caso, sendo ré a Fazenda Pública, não há que se falar no efeito material da revelia: presunção de veracidade dos fatos alegados pelo autor.
O efeito material do princípio da revelia não se aplica à Fazenda Pública em razão da indisponibilidade do interesse público, conforme regra do artigo 320, II, do Código de Processo Civil, e da proibição ordinária de o presentante da Fazenda, confessar, em Juízo, fatos relacionados ao processo [09].
Ainda que a lei específica dos Juizados não excepcione de forma expressa os efeitos da revelia em face da Fazenda Pública, as normas do CPC, neste caso, devem ser aplicadas ao processo nos Juizados Especiais, sendo tal conclusão imposta pelo sistema jurídico, tanto pela aplicação subsidiária do CPC no subsistema dos Juizados quanto pelo fundamento constitucional que embasa as prerrogativas dos entes públicos em Juízo.
A lei específica dos Juizados determina a aplicação subsidiária do CPC, de forma específica, nos seus artigos 30, 52 e 53, mas não impede a aplicação subsidiária em outros casos. Não impede e nem poderia impedir, porque a lei criadora dos Juizados, ao estabelecer um subsistema processual civil, restou vinculada, ao menos de forma subsidiária, naquilo que for compatível, ao sistema processual civil ordinário.
"Em país onde o direito é codificado, é natural que os Códigos constituam a matriz dos ramos jurídicos a que são destinados, valendo como substrato jurídico-positivo dos institutos pertencentes a cada um deles. Assim é o Código de Processo Civil, encarregado de reger o processo civil ordinário, que ele disciplina de modo direto, mas também responsável, como fonte subsidiária, como complementação das normas processuais residentes em diplomas específicos. [...] Ele não tem aplicação direta nas áreas específicas do direito processual cobertas por outras leis [...] como no processo dos juizados especiais. [...] sua aplicação subsidiária é contudo uma necessidade, porque nenhuma das leis processuais específicas existentes no país contém a disciplina integral e auto-suficiente do processo a que se destina." [10]
Além disso, a lei posterior e especial revoga a lei geral anterior, mesmo sem explicitação, no que lhe for incompatível. Sendo o CPC norma geral, mantém sua vigência e aplicação no procedimento dos Juizados, no tocante a todas as questões que não foram expressamente reguladas pela lei específica. Assim, as normas do CPC não revogadas pela lei especial, no subsistema que ela disciplina, continuam vigentes.
"O Código de Processo Civil é norma geral processual de direito público e, assim, pode ser aplicado subsidiariamente a toda e qualquer norma processual especial, como de fato pode-se observar nas decisões de vários juízes que entendem que é possível a concessão de liminares nos juizados especiais e que os Embargos de Declaração, em matéria cível, quando protelatórios acarretarão para o embargante a sanção prevista no art. 538, parágrafo único, do CPC.
Dado o exposto, a aplicação subsidiária do CPC é viável em relação à Lei nº 9.099/95, quando forem compatíveis, observando-se os princípios norteadores da lei específica." [11]
Considerando reiterada jurisprudência neste sentido, na consolidação dos enunciados jurídicos cíveis e administrativos realizado pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (Aviso TJ nº 29, de 03 de agosto de 2005), ficou consignada a seguinte conclusão:
"ENUNCIADOS JURÍDICOS CÍVEIS
1 - LEI N.º 9099/95 - C.P.C.
1.1 - APLICABILIDADE
Há aplicação subsidiária do CPC à Lei n.º 9099/95 em tudo que for compatível com as normas específicas ou princípios norteadores do microssistema dos Juizados Especiais Cíveis."
Por fim, quando a questão tem relação direta com normas constitucionais, como é o caso do princípio da isonomia, considerando-se que as prerrogativas processuais da União concretizam o princípio constitucional da igualdade, a incidência das normas do Código de Processo Civil torna-se indiscutível.
As normas sobre a revelia contidas no CPC, não colidentes com a norma do artigo 20 da lei especial, continuam válidas. Como a norma do artigo 20 da lei especial trata da revelia de forma sucinta, apenas enunciando o que se entende por revelia, a aplicação das normas do CPC sobre o assunto é ampla, incluindo as exceções aos seus efeitos.
Portanto, impositiva a incidência das normas que prevêem as prerrogativas da Fazenda Pública também no procedimento dos Juizados.
"Assim, para efeitos de Juizados Federais, estão excluídos os mencionados efeitos para as demandas de qualquer natureza que envolvam a Fazenda Pública Federal ou em que sejam partes pessoas jurídicas de direito público, e as demandas que envolvam as coisas postas fora do comércio.
Diga-se o mesmo sobre os direitos metaindividuais, que se tornam
indisponíveis, diante das relações no plano material e dos interesses
envolvidos, tais como os coletivos e os difusos. Consideram-se, ainda, nessa categoria, os direitos da personalidade (v.g., nome, honra, imagem)." [12]
Em conclusão, seja no procedimento comum seja no procedimentos dos Juizados, a Fazenda Pública não se submete aos efeitos da revelia nem ao ônus da impugnação específica dos fatos expostos na inicial.
"A peculiaridade da Fazenda Pública como ré está na sua não-sujeição ao ônus da impugnação especificada dos fatos.
Cabe ao réu – na dicção do art. 302 do CPC – manifestar-se precisamente sobre os fatos narrados na petição inicial, presumindo-se verdadeiros os fatos não impugnados. Tal presunção não se opera, se não for admissível, a respeito dos fatos não impugnados, a confissão (CPC, art. 302, I). Ora, já se viu que o direito da Fazenda Pública é indisponível, não sendo admissível, no tocante aos fatos que lhe dizem respeito, a confissão.
Assim, mesmo que não impugnado especificamente determinado fato, deve o autor comprová-lo, pois a ausência de impugnação não fará com que se opere a presunção de veracidade prevista no caput do art. 302 do CPC. Na verdade, sendo a ré a Fazenda Pública, incide a exceção contida no inciso i do referido art. 302, não estando sujeita ao ônus da impugnação especificada dos fatos." [13]
As prerrogativas processuais da Fazenda Pública, no caso, são, além de politicamente necessárias e justificadas, plenamente constitucionais.
"A Constituição Federal enuncia a igualdade de todos perante a lei. O princípio da igualdade tem um conteúdo político e ideológico, evitando que a lei origine privilégios desarrazoados ou perseguições pessoais. Contudo, conforme lição de Aristóteles, o princípio da igualdade não confere tratamento completamente idêntico a todas as pessoas, devendo levar em consideração as diversidades e especificidades de cada um. (CUNHA, Leonardo José Carneiro da. A fazenda pública em juízo. São Paulo: Dialética, 2009. p. 31.)
‘Vale dizer: o direito deve distinguir pessoas e situações distintas entre si, a fim de conferir tratamentos normativos diversos a pessoas e a situações que não sejam iguais.
[...]
Por isso mesmo pode, a lei --- como qualquer outro texto normativo --- sem violação do princípio da igualdade, distinguir situações, a fim de conferir a um tratamento diverso do que atribui a outra. Para que possa fazê-lo, contudo, sem que tal violação se manifeste, é necessário que a discriminação guarde compatibilidade com o conteúdo do princípio.’ (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Plenário. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3305. Relator: Ministro Eros Grau. Decisão unânime. Brasília, 13.9.2006. DJ: 24.11.2006. Disponível a partir de < http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=2244969>)
A medida do tratamento desigual e a escolha do fator de distinção são questões que ensejariam um tratado. Como o presente trabalho não tem este objetivo, tentaremos expor o problema de forma sintética. Celso Antonio Bandeira de Mello propõe os seguintes questionamentos:
‘[...] qual o critério legitimamente manipulável, sem agravos à isonomia, que autoriza distinguir pessoas e situações em grupos apartados para fins de tratamentos jurídicos diversos? Afinal, que espécie de igualdade veda e que tipo de desigualdade faculta a discriminação de situações e de pessoas, sem quebra e agressão aos objetivos transfundidos no princípio constitucional da isonomia?’ (MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade. Malheiros. São Paulo. pág. 11.)
Conforme voto do Ministro Eros Grau no precedente citado (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Plenário. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3305. Relator: Ministro Eros Grau. Decisão unânime. Brasília, 13.9.2006. DJ: 24.11.2006. Disponível a partir de <http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=2244969>):
‘Procurando dar resposta à indagação à respeito de quais situações e pessoas podem ser discriminadas sem quebra e agressão aos objetivos transfundidos no princípio constitucional da isonomia, a jurisprudência do Tribunal Constitucional alemão toma como fio condutor o seguinte: "a máxima da igualdade é violada quando para a diferenciação legal ou para o tratamento legal igual não seja possível encontrar uma razão razoável, que surja da natureza da coisa ou que, de alguma forma, seja compreensível, isto é, quando a disposição tenha de ser qualificada de arbitrária’.
[...]
E os seguintes fatores devem ser considerados: a) razoabilidade da discriminação, baseada em diferenças reais entre as pessoas ou objetos taxados; b) existência de objetivo que justifique a discriminação; c) nexo lógico entre o objetivo perseguido e a discriminação que permitirá alcançá-lo.’
Celso Antonio Bandeira de Mello, em obra citada, conclui que a constitucionalidade das diferenciações legais depende, de início, da existência de justificativas razoáveis e objetivas. Alem disso, necessário que a distinção normativa seja razoável, proporcional e que os meios legalmente escolhidos sejam adequados à finalidade perseguida. Em conclusão semelhante, tem-se que:
‘A desigualdade na lei se produz quando a norma distingue de forma não razoável ou arbitrária um tratamento específico a pessoas diversas. Para que as diferenciações normativas possam ser consideradas não discriminatórias, torna-se indispensável que exista uma justificativa objetiva e razoável, de acordo com critérios e juízos valorativos genericamente aceitos, [...] devendo estar presente uma razoável relação de proporcionalidade entre os meios empregados e a finalidade perseguida, sempre em conformidade com os direitos e garantias constitucionalmente protegidos. Assim, os tratamentos normativos diferenciados são compatíveis com a Constituição Federal quando verificada a existência de uma finalidade razoavelmente proporcional ao fim visado.’ (MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada: e legislação constitucional. São Paulo: Atlas, 2003. p. 181).
Deste modo, a análise da legitimidade da discriminação passa pela análise da proporcionalidade da medida adotada em relação à finalidade pretendida e aos demais valores sacrificados. (JENSEN, Geziela; SGARBOSSA, Luís Fernando. Análise da constitucionalidade das ações afirmativas em face do princípio isonômico através do princípio da proporcionalidade. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1309, 31 jan. 2007. Disponível em: http://jus.com.br/revista/texto/9446)
Neste ínterim, em razão do interesse público que tutela e de especificidades inerentes a sua organização burocrática, é forçoso concluir que a Fazenda Pública ocupa posição distinta daquela ocupada pelos particulares. Ao litigar em juízo, os presentantes da Fazenda Pública estão defendendo o erário:
‘Ora, no momento em que a Fazenda Pública é condenada, sofre um revés, contesta uma ação ou recorre de uma decisão, o que se estará protegendo, em última análise, é o erário. É exatamente essa massa de recurso que foi arrecadada e que evidentemente superar, aí sim, o interesse particular.’ (MORAES, José Roberto de. Prerrogativas processuais da fazenda pública. In: Direito processual público: a fazenda pública em juízo. SUNDFELD, Carlos Ari; BUENO, Cássio Scarpinella. (coords.). São Paulo: Malheiros, 2000, p. 69.)
Necessário destacar, ainda, a dificuldade dos Procuradores na obtenção de elementos de defesa para resguardar o interesse público dos entes que presentam. (ARAGÃO, Egas Dirceu Moniz de. Comentários ao código de processo civil. Vol. II. Rio de Janeiro: Forense, 1990, p. 158.)
‘[...] a Fazenda Pública e o Ministério Público, pela relevância, multiplicidade e complexidade de suas funções, necessitam, em bem da própria coletividade, em bem do interesse público, que se lhes dê mais tempo para a defesa dos seus interesses em juízo. Dependem elas de informações dos mais variados departamentos, divisões, seções, de pareceres de seus técnicos, de autorizações de seus dirigentes.’ (SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhas de direito processual civil. Vol. I.. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 294.)
A Fazenda Pública, e em especial a Fazenda Nacional, por sua importância na estrutura administrativa, tem prerrogativas que a diferenciam do particular litigante.
‘À Fazenda Pública e ao Ministério Público atribui o Código, aqui e ali, vantagens sobre o litigante particular: [...]. Trata -se de diretriz tradicional no direito brasileiro, criticada por alguns, mas justificada, ao menos em princípio, pelas próprias peculiaridades dos referidos entes. Até certo ponto, é razoável considerar que a desigualdade formal, aí, espelha uma desigualdade substancial e, por conseguinte, a rigor não se choca – mas, ao contrário, se harmoniza – com o postulado da igualdade.’ (MOREIRA, José Carlos Barbosa. Temas de direito processual. Terceira Série. São Paulo: Saraiva: 1984, p. 44-45.)
Em razão da burocracia inerente às atividades dos entes públicos, as prerrogativas legais criadas em seu favor são constitucionais, efetivando o princípio da igualdade, já que isonomia, conforme exposto, também é tratar desigualmente os desiguais. (MACHADO, Antonio Cláudio da Costa. Código de processo civil interpretado. Barueri: Manole, 2009, p. 211.)
‘Além de estar defendendo o interesse público, a Fazenda Pública mantém uma burocracia inerente à sua atividade, tendo dificuldade de ter acesso aos fatos, elementos e dados da causa. O volume de trabalho que cerca os advogados públicos impede, de igual modo, o desempenho de suas atividades nos prazos fixados para os particulares.’ (CUNHA, op. cit., p. 33.)
[...]
Como decorrem da proteção ao interesse público e são fundamentadas nas especificidades da natureza, organização e finalidades do Estado, as prerrogativas diferenciam-se dos privilégios, instituídos para proteção de interesses pessoais, sendo exceção ao regime comum da igualdade, já que, por vezes, o interesse do indivíduo deve ceder ao interesse social. (GRINOVER, Ada Pelegrini. Os princípios constitucionais e o código de processo civil. São Paulo: José Bushatsky, 1975, p. 30 e ss.)
‘De certo, as razões existentes para justificar as prerrogativas são fortes o suficiente para conferir que a desigualdade legal inserta do ordenamento jurídico teve por fundamento igualar, em tempo real, as partes no processo. E, evidentemente, não se precisa vivenciar o problema internamente para entender que a defesa da Fazenda Pública, em razão da complexa organização da máquina administrativa, sufocada, ainda, pelas sujeições legais e regulamentares, impõe tempo superior ao conferido ao particular. Se a lei não lhe conferisse prazo em quádruplo para contestar e em dobro para recorrer seria impossível reunir todos os elementos jurídicos necessários à fabricação da peça processual pelos representantes judiciais da União, Estados, Municípios, Distrito Federal, suas autarquias e fundações públicas, fato que somente viria prejudicar a sociedade, eis que reiteradas perdas judiciais, a nível orçamentário, podem representar sério risco fiscal.’ (LVARES, Maria Lúcia Miranda. A Fazenda pública tem privilégios ou prerrogativas processuais? Análise à luz do princípio da isonomia. Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 426, 6 set. 2004. Disponível em: http://jus.com.br/revista/texto/5661)
Para José de Albuquerque Rocha (ROCHA, José Albuquerque da. O estado em juízo e o princípio da isonomia. Fortaleza: Revista Pensar, 1995, p. 35-37), ‘o Estado apresenta uma estrutura sem paralelo no mundo das organizações, que se manifesta na grande intensidade de seu poder onipresente e na existência de um colossal aparato burocrático [...]’:
‘Assim, os poderes processuais diferenciados dispensados ao Estado em juízo, longe de determinar um privilegio, realizam, ao contrário, uma situação de substancial paridade, já que, em tese, são instrumentos indispensáveis ao seu adequado aparelhamento para a defesa do interesse público, qualificado pela Constituição como prioritário, justamente, por exprimir interesses abrangentes da sociedade, ao contrário do privado que, de regra, só leva em conta conveniências particulares, segmentadas e dependentes.’
Em outras palavras:
‘[...] os privilégios processuais [...] tornam evidente que a Fazenda Pública, em todos os momentos processuais alberga um interesse público, daí porque goza de um tratamento diverso dos particulares. Tal desigualdade, ao contrário do que pareça, resulta necessariamente do princípio constitucional da igualdade; a desigualdade não é repelida; o que se rechaça é a desigualdade injustificada, carente de conexão lógica para a realização do fim jurídico buscado, sobretudo quando este fim jurídico e estes privilégios têm lugar reservado no ordenamento processual vigente.’ (MELO FILHO, Álvaro. O princípio da isonomia e os privilégios processuais da fazenda pública. In: Revista de Processo, n. 75, julho/setembro de 1994. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994, p. 167-187.)
Assim, a realização efetiva do princípio da igualdade, com a distinção de tratamento diferenciado aos desiguais, aliada ao fato de ser a Fazenda Pública defensora do interesse público, justifica as prerrogativas das pessoas jurídicas de direito público, garantindo, pois, sua constitucionalidade (CUNHA, op. cit., p. 35.). [14]
Como consequência destas prerrogativas, que concretizam o princípio constitucional da igualdade, o efeito material da revelia não se estende à Fazenda Pública nos Juizados, o que afasta a possibilidade de presunção de veracidade dos fatos alegados pelo autor em caso de não impugnação específica.
E nem se tente afastar as prerrogativas processuais da Fazenda Pública, no caso, sob a alegação de que o efeito material da revelia aplicar-se-ia apenas aos fatos, e o cálculo não seria um fato.
Realmente, a presunção de veracidade decorrente da revelia aplica-se apenas aos fatos, não ao direito, porque o direito, as alegações de direito, sempre, devem ser analisadas pelo magistrado.
A presunção de veracidade criada pela revelia atinge apenas os fatos, não o direito. Desta forma, ainda que se trate de réu revel, o magistrado tem que analisar as alegações de direito. A presunção de verdade restringe-se apenas aos fatos alegados pelo autor, não se estendendo às questões jurídicas, que devem ser examinadas pelo magistrado em toda sua extensão e profundidade.
No caso ora em análise, se o cálculo for entendido como um fato, poder-se-ia pensar em acolhê-lo, sem análise, apenas no caso de revelia do particular, não da Fazenda Pública, porque o efeito material da revelia a ela não se aplica: a presunção restaria afastada por ser réu o ente público, e os cálculos deveriam ser analisados judicialmente, ainda que não fosse impugnado de forma específica.
Por outro lado, se o cálculo não for analisado como questão de fato, sendo, portanto, considerado questão de direito, aí nem em princípio se poderia falar no efeito material da revelia, porque a presunção de veracidade só atinge os fatos, nunca o direito. O magistrado, mesmo que decretada a revelia, não poderia acolher sem análise o cálculo, porque o direito, sempre, deve ser examinado em profundidade e extensão.
Em conclusão, quer seja considerado alegação de fato quer seja considerado alegação de direito, o cálculo apresentado pelo autor, nos processos em que é ré a Fazenda Pública, sempre deve ser analisado pelo magistrado, inexistindo qualquer possibilidade de acolhimento por presunção.
Assumindo o risco de ser, e sendo, tautológico: se o cálculo for considerado fato, os efeitos da revelia, em tese aplicáveis, não poderiam ser aplicados em razão da qualidade da parte ré, Fazenda Pública, situação pessoal que afasta a presunção de veracidade dos fatos alegados pelo autor. Se o cálculo não é fato, se é alegação de direito, sequer seria possível falar em presunção de veracidade ou certeza, porque alegação de direito nunca se presume, cabendo ao magistrado, em todos os casos, analisá-la e decidi-la.
Na verdade, não se pode analisar o cálculo em um processo sob o enfoque excludente do dilema shakespeariano. Essa não é a questão. O cálculo nem é, apenas, fato, nem, apenas, direito: cálculo envolve fato e direito. O cálculo envolve fato porque tem como ponto de partida elementos de fato. Em uma ação de repetição de indébito, por exemplo, o autor alegará que pagou o valor "R$X"; alegando, pois, que pagou determinado valor certo e determinado. Se foi recolhido realmente "R$X", como alega o contribuinte, ou "R$Y" (ou "R$Z", ou "R$W", etc.) é questão de fato. Trata-se de alegação de fato, em princípio, acompanhada de prova documental.
Então, os pontos de partida para realização do cálculo são alegações de fato, que devem ser examinadas. Ao decidir o caso, mesmo que o ente público não impugne de forma específica, cabe ao magistrado analisar, materialmente, os dados de fato originais do cálculo, pelas razões expostas de forma suficiente neste arrazoado: ausência dos efeitos da revelia, desnecessidade de impugnação específica e princípio da verdade material.
Em um segundo momento, o cálculo envolve direito, porque o método de cálculo, incluindo os índices de atualização, a forma em si, os coeficientes adequados, é questão disciplinada por normas jurídicas legais e jurisprudenciais. O método adequado de cálculo, na sua plenitude, por envolver questões jurídicas, deve ser analisado pelo magistrado em todas as suas nuanças, porque o direito, como dito, não se presume.
Portanto, cálculo envolve fato e direito, alegações fáticas e jurídicas. Tratando-se de processo em que é parte ré a Fazenda Pública, o magistrado tem o dever irrenunciável de analisar, sem presunção, todas as alegações de fato e de direito: em conclusão, deve analisar o cálculo, integralmente, antes de acolhê-lo.
Ressalte-se que tal procedimento é essencial para que o magistrado proclame sentença com valor certo e determinado. Certo que o momento processual adequado para quantificação precisa do valor da condenação, conforme será exposto em futuro tópico deste trabalho, só ocorre depois da perfectibilização do título. Contudo, pretendendo, na sentença, quantificar com exatidão o valor da restituição, o magistrado não pode se furtar da análise do cálculo.
E não há que se falar em preclusão, ainda que a União não impugne o cálculo de forma específica no prazo da contestação.
Só teria sentido falar-se em preclusão se a Fazenda Pública tivesse o ônus processual da impugnação especifica dos fatos expostos na inicial. A suposta presunção de veracidade dos fatos alegado pelo autor e não impugnados especificamente pelo réu seria uma consequência do princípio da revelia, que autorizaria a preclusão: as partes, quando particulares, por sofrerem o ônus da impugnação específica, devem impugnar, na contestação, de forma detalhada, todas as alegações de fato expostas pelo autor, sob pena de tais alegações serem tidas, por presunção, como verdadeiras.
A Fazenda Pública, porém, não sofre o ônus da impugnação especificada. As normas que tratam da preclusão, que limitam o direito de defesa, são de interpretação estrita, conforme também exposto. Inexiste norma que imponha à União, na contestação, o ônus da impugnação específica do cálculo juntado pelo autor com a inicial, sob pena de acolhimento. Não existe nem poderia existir, porque violaria o princípio da indisponibilidade e da supremacia do interesse público. A preclusão, a perda de uma faculdade processual, por limitar o direito da parte, tem que estar prevista em norma legal expressa, não podendo decorrer do solepcismo judicial, ainda que pautado no princípio da celeridade. A decisão judicial, ao instituir um ônus processual sem respaldo em norma jurídica superior, conforme exposto, viola o princípio constitucional da legalidade.
Poder-se-ia falar em preclusão no tocante à juntada de novo documento depois de apresentada a contestação, mas não da impugnação em si.
Por outro lado, e tal ponto é importante, ainda que se admitisse a preclusão, a conclusão não seria pelo acolhimento, sem análise, do cálculo do autor. Ora, eventualmente, apenas para argumentar, ainda que se entenda ter ocorrido a preclusão, a conclusão seria a de que o ente público não poderia mais discutir o cálculo, mas o magistrado continuaria possuindo o dever de analisá-lo.
Mesmo que se admitisse a preclusão, a conclusão seria a de que o ente público não mais poderia impugnar o cálculo, mas tal não livraria o magistrado do dever de analisá-lo antes de acolhê-lo ou rejeitá-lo. Eventual omissão do presentante do ente público não desincubiria o magistrado de cumprir o seu dever legal.
O fato de um presentante da União não impugnar um ponto específico não autoriza seja presumida a confissão, porque o presentante não tem autorização para confessar: o interesse público, reitere-se, é indisponível.
Vou além: salvo se houver autorização normativa expressa, ainda que um presentante da Fazenda Pública concorde de forma explícita com o pedido do autor, o magistrado tem o dever de analisar as alegações apresentadas, em razão da indisponibilidade do interesse público. Portanto, mesmo uma eventual renúncia expressa dos presentantes dos entes públicos seria totalmente limitada, não havendo, nem em tese, que se falar em renúncia, reconhecimento ou concordância tácita ou presumida.
Em todo caso, efetivamente não existe preclusão. A questão tem que ser analisada levando em consideração as prerrogativas processuais da Fazenda Pública e as normas específicas dos Juizados.
Mesmo que o presentante da União não impugne de forma específica uma questão determinada, tal questão não restará incontroversa. O ponto continuará controvertido: primeiro, porque o presentante da Fazenda Pública não tem autorização genérica para confessar nem de forma expressa, muito menos de forma tácita ou presumida; depois, porque o ente público tem a prerrogativa de apresentar contestação de forma genérica, o que, por si só, torna controvertida toda a demanda. A contestação de todo o pedido, ainda que de forma genérica, prerrogativa do ente público, torna controvertida toda a demanda, o que inclui, obviamente, os cálculos apresentados pelo autor.
O cálculo apresentado contra a Fazenda Pública deve ser sempre analisado pelo magistrado, antes de eventual acolhimento, porque nem fato nem direito se presumem contra a Fazenda Pública: ambos, sempre, devem ser analisados pelo magistrado!
O magistrado tem que cumprir seus deveres legais, analisando as alegações do autor, acolhendo, ou não, de forma fundamentada, os cálculos apresentados. Acolher, simplesmente, sem fundamentação e por presunção, o cálculo do autor é forma de desincubir-se de uma responsabilidade legal, ignorando, potencialmente, possíveis equívocos, erros e mesmo fraudes.
Analisando e acolhendo, ou não, o cálculo, de forma fundamentada, o magistrado efetivamente decide, deixando claro que o cálculo está certo ou errado e assumindo a posição de decidibilidade que lhe é própria. O magistrado pode, deste modo, acolher, até mesmo de forma integral o cálculo do autor, se for o caso, mas o acolherá porque o analisou e o considera correto, porque coincidiu com o cálculo feito pelo Juízo, não simplesmente porque deseja conceder maior celeridade ao processo.
E nem se compare o acolhimento do cálculo do autor, por presunção, na sentença, com o acolhimento do cálculo do autor, na execução de sentença contra a Fazenda Pública no processo comum, em caso de não oposição de embargos no prazo de (30) trinta dias.
Realmente, no processo comum, na execução por quantia certa contra a Fazenda Pública, caso não opostos embargos de devedor no prazo legal, o juiz, desde logo, requisitará o pagamento do valor pretendido pelo autor. Ocorre que tal conclusão, requisição do pagamento como consequência da não oposição de embargos, decorre de norma legal constante no Código de Processo Civil:
"Art. 730. Na execução por quantia certa contra a Fazenda Pública, citar-se-á a devedora para opor embargos em 10 (dez) dias; se esta não os opuser, no prazo legal, observar-se-ão as seguintes regras:
[...]
I - o juiz requisitará o pagamento por intermédio do presidente do tribunal competente;"
A norma prevê, de forma clara, a consequência da inércia da Fazenda Pública. Se o ente público não opuser embargos à execução, o juiz poderá requisitar o pagamento dos valores da condenação, com base no inciso I do artigo 730 do CPC. A expedição de requisição de pagamento, na fase de execução do processo comum, caso não sejam opostos embargos pela Fazenda Pública, decorre, portanto, de regra legal expressa. Se não houvesse tal disposição legal, incabível seria essa conclusão.
Nos Juizados, inexiste norma que determine a mesma consequência, requisição de pagamento com base no cálculo do autor, em caso de não impugnação do cálculo pela União no prazo da contestação. Não há nenhuma norma legal que autorize o acolhimento, por presunção, do cálculo juntado pelo autor, no caso de não impugnação específica, principalmente quando se considera que o cálculo inicial justifica o valor da causa, não o valor da condenação, que depende da amplitude do título judicial.
Portanto, qualquer decisão que conclua pela possibilidade de acolhimento do cálculo do valor da causa, como parâmetro da condenação, como consequência da não impugnação específica do ente público, terá por base apenas uma premissa de vontade arbitrária, não uma norma superior.
Aliás, nos Juizados, diferentemente do que ocorre no processo comum, nem na fase de execução é possível a expedição de requisição de pagamento com base no cálculo do autor, por mera presunção de concordância da Fazenda Pública, no caso de não impugnação. É que, no procedimento dos Juizados Especiais, baseada em sistemática diversa daquela do processo comum, há regra legal determinando expressamente que, na execução de sentença, os cálculos de conversão de índices, de honorários, de juros e de todas as parcelas da condenação serão efetuados por servidor judicial (artigo 52, II, da Lei nº 9.099/95).
Portanto, nos Juizados, a norma legal determina que cabe ao servidor judicial (Contador Judicial) a atribuição de realizar o cálculo dos valores da condenação. Observe-se a amplitude da norma, que determina o cálculo de conversão de índices, juros e "outras parcelas" da condenação. Em conclusão, considerando a diferenciação das premissas, deve ser afastada qualquer analogia com a norma do artigo 730 do CPC.
O Juízo tem a atribuição legal de calcular os valores da condenação em qualquer fase processual na qual este cálculo seja realizado, na fase de execução de sentença ou em fase processual anterior. Ora, a finalidade da norma é clara: conceder maior segurança na fixação dos valores pecuniários da condenação, atribuindo tal providência ao órgão técnico do Juízo, colaborador do processo que age de forma técnica e imparcial. Se a norma é aplicável na execução do julgado, do mesmo modo deve ser aplicada quando o magistrado antecipa a quantificação do título judicial para o momento de prolação da sentença, proferindo decisão com valor certo e preciso.
Nestes casos, ao quantificar com exatidão o título, o magistrado prejudica qualquer discussão futura sobre os valores da condenação, porque profere decisão com valor determinado, bastando a atualização monetária dos seus termos, em futura execução de sentença.
Assim, como os cálculos são decididos na sentença, o Juízo tem o dever (a norma "determina") de analisar todas as parcelas do cálculo, não podendo delegar a obrigação legal nem a ela renunciar.
É dever do Juízo, nos Juizados, a realização do cálculo em sua integralidade, independente do momento processual no qual os analise. A realização do cálculo, antes de eventual acolhimento do demonstrativo apresentado pelo autor, é dever inescusável do juiz, antes ou depois da sentença.
Em todo caso, entende-se que a quantificação exata do valor da condenação, em caso de procedência do pedido, deve ser diferida para momento posterior à sentença, quando o título executivo judicial, se for o caso, estará pronto para ser cobrado, depois do seu trânsito em julgado.