RESUMO
O problema da informalidade e irregularidade das moradias urbanas brasileiras é grave e inconteste. O Poder Público, em razão da crescente e desordenada urbanização das cidades, não consegue exercer suas atividades e dispor seus serviços de maneira eficiente, enquanto isso a população permanece numa situação precária de inacessibilidade e insegurança. Como resultado do processo democrático e social do nosso país, bem como dos movimentos sociais organizados, a Constituição Federal de 1988 trouxe disposições acerca da política urbana e promoção da regularização fundiária nacional no intuito de promover o acesso à moradia digna e regular, bem como à cidade urbanizada e ambientalmente sustentável. Nesse sentido, destaca-se as diretrizes traçadas em âmbito nacional que atribui competências e responsabilidades aos agentes locais para a concretização da regularização fundiária, como exemplo demonstraremos o programa de regularização fundiária do município de Parnamirim, por meio do estudo dos instrumentos legais disponíveis, bem como das ações efetuadas através de seus órgãos competentes.
Palavras-chave: Irregularidade. Regularização. Direito. Urbanização. Moradia.
ABSTRACT
The problem of informality and irregularity of urban housing in Brazil is serious and undisputed. The government, due to the increasing urbanization of towns and unorganized, can be not perform their activities and provide its services efficiently, while the population that remains in a precarious situation of inaccessibility and insecurity. As a result of the democratic process and social development of our country and the organized social movements, the Constitution of 1988 brought about the policy provisions urban regularization of land tenure and national level to promote access to adequate housing and regular, and the urbanized and environmentally sustainable city. In this sense, the guidelines set up nationwide to assign powers and responsibilities to local staff for the completion of settlement land, as an example will demonstrate the program of regularization of the municipality of Parnamirim, through the study of the legal instruments available, and as the actions taken by their agencies.
Keywords: Irregularity. Regularization. Right. Urbanization. Housing.
1.INTRODUÇÃO
É notório que há nas cidades brasileiras uma marcante presença de moradias informais, irregulares, clandestinas e muitas vezes precárias. Infelizmente, no nosso país tal irregularidade se fez regra e não exceção, com milhões de habitantes excluídos do processo formal habitacional e sem acesso à mínima infraestrutura urbana. O crescimento desordenado das cidades fez com que a partir da década de 60 fosse possível verificar os efeitos nocivos dessa urbanização desigual, tendo como consequência a edição da Lei Federal nº 6.766/79 a fim de minimizar tais efeitos através da regularização do parcelamento do solo urbano. Em razão disso, desde a década de 80, movimentos sociais se mobilizam na luta pela reforma urbana a partir da construção de uma nova ordem jurídico-urbanística que tem como marco a Carta Magna de 1988, a qual trouxe um capítulo específico sobre a política urbana onde se reconhece o direito à regularização, à moradia e à cidade.
Em 2001, foi consolidado o Estatuto da Cidade, Lei nº 10.257/01, bem como a Medida Provisória nº 2.220/01, que estabeleceram os instrumentos jurídicos e urbanísticos basilares para reduzir o quadro de irregularidade fundiária existente no país, proporcionando a gestão democrática das cidades através do Plano Diretor Participativo, o qual tem como principal diretriz concretizar a função social da propriedade. Em 2003, o Governo Federal, por meio do Ministério das Cidades, formulou, pela primeira vez no país, uma política nacional de regularização fundiária de áreas urbanas com o intuito de apoiar ações dos diversos agentes públicos na promoção da regularização fundiária sustentável sendo editada em 2009 a Lei Federal nº 11.977 que tratou especificamente da matéria.
A regularização fundiária sustentável deve ser entendida como o processo pelo qual envolve a regularização não só urbanística, como também a ambiental, administrativa e patrimonial. A dimensão urbanística implica garantir a integração do assentamento à cidade formal melhorando as condições de infraestrutura urbana, acessibilidade, mobilidade e disponibilidade dos serviços públicos. A dimensão ambiental busca a melhoria das condições do meio ambiente, incluindo o saneamento, o controle de risco de desastres naturais, a preservação, a recuperação da vegetação e dos cursos d´água. A regularização administrativa e patrimonial trata do reconhecimento do direito à moradia, por meio de títulos registrados em Cartórios de Registro de Imóveis e de processos que assegurem a permanência da população nas áreas ocupadas, resultando na inserção desses assentamentos nos mapas e cadastros da cidade. Todas essas dimensões devem ser garantidas e combinadas nos programas municipais e estaduais de regularização fundiária. [01]
Nesse sentido, o Governo Federal elaborou o programa Papel Passado para fomentar os programas locais através da aplicação de recursos financeiros do Orçamento Geral da União por meio de transferência de recursos que se deu a partir de consulta pública onde foram selecionados os proponentes beneficiários considerando critérios conforme a magnitude do problema. Além disso, destacam-se as ações a fim de regularizar assentamentos em terrenos que constituem o patrimônio público da União, onde, por meio de convênios, prefeituras e governos estaduais receberam áreas sob o domínio da União, comprometendo-se regularizá-las em prol dos moradores, assim como terrenos pertencentes ao patrimônio da Rede Ferroviária Federal S.A. que se somaram ao Programa Habitar Brasil no intuito de contribuir com a resolução de conflitos fundiários urbanos e evitar tragédias associadas a processos violentos de despejos forçados.
É importante destacar que a viabilidade dessas ações, especialmente para a remoção dos obstáculos legais, necessita da efetiva cooperação dos diversos operadores do direito, tanto na esfera do Poder Judiciário com a promoção do acesso à justiça, como daqueles que trabalham na elaboração das leis no âmbito do Poder Legislativo para adequar os instrumentos legais aos propósitos estabelecidos na Constituição. Outro ponto importante e que precisa ser enfrentado é a diminuição dos custos e desburocratização do processo de regularização fundiária, sendo indispensável a colaboração dos tabeliães para garantir a gratuidade do primeiro registro de títulos advindos do processo de regularização fundiária em assentamentos ocupados por famílias de baixa renda, o que se efetivou a partir do convênio celebrado entre o Ministério das Cidades e a Associação dos Notários e Registradores do Brasil.
O presente trabalho tem por finalidade apresentar a evolução da estrutura legal do instituto da regularização no ordenamento jurídico nacional e os mecanismos que o município de Parnamirim/RN tem utilizado para efetivar o seu programa de Regularização Fundiária. Para isso, o desenvolvimento do estudo dar-se-á através da análise da matéria, partindo da perspectiva hierárquica do ordenamento jurídico, para isso, abordaremos inicialmente a regulamentação trazida pela Constituição Federal acerca do direito de propriedade e sua função social inserida no contexto nacional da regularização fundiária. Em seguida analisaremos o Estatuto da Cidade e sua importância norteadora para a elaboração das diretrizes municipais, bem como os instrumentos trazidos pela Lei nº 11.977/2009. Por fim, o estudo de caso específico que é a regularização fundiária no município de Parnamirim/RN.
Ao tratar do caso específico de Parnamirim, traremos informações sobre a legislação local que fundamenta o instituto da regularização fundiária do município, estudando as disposições encontradas em sua Lei Orgânica, seu Plano Diretor, na Lei Complementar que institui o sistema municipal de habitação e interesse social, sempre em consonância com a sistemática do ordenamento jurídico que dispõe sobre a matéria. Por fim, trataremos das atribuições e das ações específicas que a Secretaria Municipal de Habitação e Regularização Fundiária, como órgão municipal responsável pelo exercício do programa de regularização fundiária, vem exercendo e quais as perspectivas que o município busca atingir.
2.FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL
Dentre os direitos e garantias fundamentais elencados no rol do artigo 5º da Constituição Federal está a garantia institucional ao direito de propriedade em seu inciso XXII, com destaque à vinculação estabelecida no inciso seguinte de que a propriedade deverá atender a sua função social como estabelecimento da conformação ou limitação do direito. Além desses, temos o artigo 170 da CF, que ao tratar da ordem econômica, atenta para observação do princípio da função social da propriedade em seu inciso III. Nesse sentido, a Carta Magna prevê ainda a possibilidade de desapropriação em casos de necessidade de utilidade pública ou por interesse social, mediante prévia e justa indenização em dinheiro, segundo art. 5º, XXIV, ressalvados os casos nela previstos (arts. 184, caput, e 182, § 4º) nos quais é admissível o pagamento mediante títulos públicos.
Com efeito, é possível afirmar que não existe um conceito estático de propriedade, haja vista que a propriedade, enquanto instituto jurídico, visa promulgar um complexo normativo que assegure não só a existência, mas também a utilidade privada desse direito, o que pressupõe um conceito necessariamente dinâmico. Nesse passo, deve-se reconhecer que a garantia constitucional da propriedade está submetida a um intenso processo de relativização, devendo ser interpretada em conformidade com as disposições fixadas na legislação ordinária, observando especialmente o princípio da proporcionalidade e da ponderação.
Segundo Maria Helena Diniz (2009, p. 20), a propriedade seria o núcleo do sistema dos direitos reais, pois estaria caracterizada de acordo com a extensão de seus poderes e teria como caracteres jurídicos: a) oponibilidade erga omnes; b) seu titular possui direito de seqüela e de preferência; c) adere imediatamente ao bem corpóreo ou incorpóreo, sujeitando-o, de modo direto ao titular; d) obedece ao numerus clausus, pois é estabelecido pelo Código Civil e leis posteriores, não podendo ser criado por livre pactuação; e) é passível de abandono; f) é suscetível de posse; g) a usucapião é um dos seus meios aquisitivos. Dessa forma, o direito de propriedade se apresenta como um direito real, garantido constitucionalmente desde que atendida a sua função social, podendo ser considerado objeto de direito na medida em que se faz representar por um objeto capaz de satisfazer um interesse econômico, suscetível de gestão econômica autônoma e capaz de ser objeto de uma subordinação jurídica.
Pode ser objeto de propriedade tudo aquilo que dela não for excluído por lei, ou seja, os bens corpóreos móveis e imóveis. Como nosso estudo versa a respeito da regularização fundiária urbana, só nos interessa falar a respeito de bens imóveis urbanos como um núcleo mínimo de propriedade privada fundamental para a preservação da dignidade humana e de acesso material à moradia, segurança, patrimônio, saúde, lazer, meio ambiente, entre outros correlatos. Por isso, é essencial compreender a extensão do princípio da função social da propriedade no regime jurídico-constitucional como algo superior ao princípio da propriedade privada em prol de sua coletivização, a fim de torná-la mais associativa e construtiva, tutelando sua integridade jurídica a fim de tornar sua existência sensível ao impacto social do exercício dos poderes relativos ao domínio, ou seja, usar, gozar, dispor e reaver (art. 1228 do CC) [02].
Resumindo o pensamento acerca do princípio da função social da propriedade, Vladimir da Rocha França (1999, p. 12) aduz a possibilidade de coadunar a função social com a existência da propriedade privada e da livre iniciativa, desde que o direito de propriedade não sirva de instrumento de marginalização da maioria esmagadora do povo brasileiro. Dessa maneira, a atual sistemática da propriedade, apesar da previsão constitucional de observação de sua função social, induz necessariamente a instabilidade institucional e social brasileira, o que não significa dizer que ela deve ser suprimida, haja vista ser uma irrefutável fonte de riqueza. Entretanto, deve-se reconhecer que os princípios da função social da propriedade, bem como o da ordem econômica são essenciais à sua existência a fim de concretizar o bem-estar social exigido pela própria Constituição.
Portanto, para se realizar uma regularização fundiária que de fato atenda às necessidades da coletividade urbana, é fundamental que seja observado o princípio da função social da propriedade. Nesse passo, a Constituição Federal prevê em seus artigos 182 e 183, os quais tratam da Política Urbana, que o Poder Público Municipal deve executar uma política urbana, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, com o objetivo de ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais das cidades para garantir o bem-estar de seus habitantes. Nesse aspecto, traz ainda a obrigatoriedade da elaboração do Plano Diretor para as cidades com mais de vinte mil habitantes, a ser aprovado pela Câmara Municipal, como instrumento básico para a consolidação da política de desenvolvimento e expansão urbana em consonância com a função social da propriedade, sendo perfeitamente admitida a desapropriação de imóveis que não atendam ao princípio.
Observa-se também a previsão da Ação de Usucapião Especial Urbano como forma de aquisição originária da propriedade para atender a regularização fundiária da população de baixa renda que, ininterruptamente e sem oposição, possua como sua área urbana de até duzentos e cinqüenta metros quadrados, utilizando-a para fins de sua moradia ou de sua família, há mais de cinco anos, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural. Logo, a lei prevê requisitos específicos para se conferir o título de domínio ou a concessão de uso, conforme o caso, advertindo que os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião e que tal direito não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez. Presume-se, por conseguinte, o caráter social dos artigos e o princípio da boa-fé em relação à posse como sendo os fundamentos norteadores para a elaboração da Lei 10.257/2001 que estudaremos a seguir.
3.ESTATUTO DA CIDADE
O texto jurídico trazido pelo Estatuto das Cidades foi introduzindo no ordenamento jurídico brasileiro para regulamentar os artigos 182 e 183 da Constituição Federal estabelecendo as diretrizes gerais da política urbana a ser adotada pelos governos estaduais e municipais, expandindo as atribuições deste último, garantindo a participação democrática da população na tomada de decisões de interesse público, especialmente no que diz respeito à elaboração, implementação e avaliação do Plano Diretor da cidade.
As primeiras notícias do que viria a ser o Estatuto da Cidade datam de 1976 quando da elaboração do "anteprojeto de desenvolvimento urbano" desenvolvido pelo antigo Conselho Nacional de Política Urbana, órgão vinculado ao Ministério do Interior. [03] Entretanto, tal iniciativa não logrou êxito, pois o tratamento dado pela imprensa ao anteprojeto foi o de atribuir, às elites autoritárias e oligárquicas da época, a autoria e a intenção de regular uma das fontes de ganhos patrimoniais que é o solo urbano. Em razão disso, somente no decorrer dos anos 80 foi que emergiu uma proposta de reforma urbana baseada nos ideais reformistas dos anos 60, cujo principal objetivo seria a instituição de um novo padrão de política pública, orientado para instituir uma gestão democrática da cidade, fortalecer a regulação pública do dolo urbano, por meio da introdução de novos instrumentos de política fundiária e inverter as prioridades no tocante à política de investimentos urbanos que favoreça as necessidades coletivas de consumo das camadas populares.
Assim, o Estatuto da Cidade contém dois modelos de políticas urbanas. O primeiro é redistributivo, na medida em que pretende utilizar os recursos advindos da renda real gerada pela expansão urbana para financiar ações públicas que equalizem as condições habitacionais e urbanas da cidade, e é ainda, regulatório, pois visa submeter o uso e ocupação do solo urbano e sua valorização às necessidades coletivas, modelo que coaduna com o princípio da função social da propriedade. O segundo modelo é distributivo e se relaciona com a provisão de serviços habitacionais e urbanos, direta ou indiretamente, pelo Poder Público, como a promoção da regularização fundiária.
Como princípio, o Estatuto traz a justa distribuição dos benefícios e dos ônus decorrentes do processo urbanização, reafirmando a obrigatoriedade do Poder Público agir em favor do interesse coletivo para garantir que todos os cidadãos tenham acesso aos serviços, equipamentos e melhorias realizadas pela Administração, evitando a concentração de investimentos em determinados pontos da cidade em detrimento de outros que arcam somente com os ônus. Essa equalização promove também a recuperação de parcela da valorização imobiliária gerada pelos investimentos públicos em infraestrutura social e física, realizados com a utilização dos tributos recolhidos, com o intuito de adequar os instrumentos de política econômica, tributária e financeira e dos gastos públicos aos objetivos de desenvolvimento urbano.
Nesse sentido, a lei dispõe sobre a possibilidade de desapropriação de imóveis urbanos com pagamento de títulos, a ação de usucapião especial urbano atentando para o fato de se fazer coletivamente à medida que não seja possível identificar os terrenos ocupados por cada possuidor, do direito de superfície, do direito de preempção que confere ao Poder Público municipal a preferência para a aquisição de imóvel urbano, objeto de alienação onerosa entre particulares, acaso o imóvel esteja situado em área indispensável para a realização de ações de interesse da lei, sendo uma delas a regularização fundiária, conforme artigo 26, I. Tem-se ainda a disposição acerca da outorga onerosa do direito de construir, bem como a possibilidade de transferência desse direito, observando que não se trata de mitigar o direito relativo à propriedade privada e sim adequá-lo, conforme as necessidades urbanas, aos objetivos gerais do estatuto em prol do bem-estar social, partindo de um conjunto de intervenções consorciadas de todos os atores dessa transformação independentemente de serem agentes públicos ou privados.
Não obstante a previsão dessa atuação conjunta, o estatuto prioriza a atuação e a autonomia do Município, considerando que esta é a esfera de governo mais próxima do cidadão, cabendo ao mesmo promover o adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo, sendo competente para adotar as medidas que propiciem o desenvolvimento territorial sustentável. Deverá ainda o Município cumprir com sua política urbana através do Plano Diretor [04] possibilitando e garantindo o direito à moradia, aos serviços e equipamentos urbanos, ao transporte público, ao saneamento básico, à saúde, à educação, à cultura e ao lazer, ou seja, todos eles direitos intrínsecos aos que vivem na cidade a fim de atingir o pleno desenvolvimento das funções sociais da mesma, bem como da propriedade.
Assim, a regularização fundiária e urbanização de áreas ocupadas por população de baixo poder aquisitivo também estão previstas na lei, segundo artigo 2º, XIV do Estatuto, devendo o Poder Público municipal se responsabilizar pelo estabelecimento de normas especiais de urbanização, de uso e ocupação do solo e de edificação, conforme a situação sócioeconômica da população atendida de forma simplificada e participativa. Como o texto legal traz disposições muito amplas e generalizadas acerca dos instrumentos da política urbana, foi indispensável a elaboração de uma lei específica que regulamentasse o procedimento legal e adequado à real promoção da regularização fundiária urbana. Nesse passo, foi elaborada a lei federal que trata especificamente da matéria, conforme veremos a seguir.