Nas justificativas da Crítica da Razão Pura (de 1781) Kant faz a defesa da crítica enquanto faculdade da razão, e define o Iluminismo como uma época de crítica dos valores e das instituições. Constata que naqueles tempos "a religião, por sua santidade e a legislação, pela sua magestade", queriam os dois escapar de qualquer apreciação crítica racional; e considera que exatamente por quererem essa isenção é que levantavam contra elas "justificadas suspeitas". Finalmente, termina esse seu raciocínio considerando que justamente por este privilégio forçado é que a religião e a legislação não podiam, em seu tempo, "aspirar ao sincero respeito", pois este "a razão só concede a quem pode sustentar o seu livre e público exame."
Seria ótimo que estivéssemos vivendo um clima otimista como aquele do Iluminismo; mas apesar do ceticismo que nos domina, não podemos deixar de perceber que estamos em processo de mudança de paradigmas; mudança esta que novamente submete ao crivo racional da crítica valores e instituições.
Acontece que nesses mais de dois séculos decorridos entre a constatação de Kant e os dias atuais, observamos com facilidade que a religião terminou , querendo ou não, sendo submetida ao crivo da crítica ; e hoje é universalmente aceita como um valor já não mais tão absoluto. Perdeu um pouco da sua santidade, talvez, mas em contrapartida ganhou um pouco mais de respeito, exatamente na medida em que se tornou matéria de adesão ao invés de objeto de imposição. Não só as crenças se tornaram mais livres , como também o próprio homem; que já não é mais execrado ao se confessar sem crenças. Entretanto a legislação, representada hoje pelo sistema judicário, sobretudo aqui no Brasil continua encastelada atrás das barricadas da magestade, tentando fugir ao "livre e público exame" exigido por Kant e pela razão.
Dois fatos recentes , ocorridos em duas esferas do judiciário , se somam a uma infinidade de outros que apontam para a urgência desse Poder fazer sua auto-crítica, pois a faculdade da razão com a qual nascemos todos já o critica à sua revelia e já exige um controle externo do judiciário, a ser conduzido pela sociedade à qual deveria servir.
O primeiro desses fatos é a liminar concedida por um juiz paulista impedindo à população o uso de um adesivo com o qual os paulistanos pretendiam expressar o seu repúdio ao comportamento dos maus vereadores, que votaram e encerraram a CPI da corrupção dos fiscais antes do final das investigações e justamente por isto. Esse juiz não levou em conta que não se cala sentimento nem se muda pensamento por meio de liminar, e fez pouco caso do princípio constitucional de liberdade de expressão.
No segundo caso, a recente decisão do Ministro Sepúlveda Pertence que certamente ficará na história: a CPI dos bancos não pode quebrar o sigilo bancário do ex-presidente do Banco Central.
"Qual é o medo? Que a investigação revele um escândalo ainda maior?" é a pergunta que acode a todos. "Por que o STF quer impedir a plena apuração dos motivos da indignação que nos invade cada vez que a CPI do sistema financeiro avança?" São perguntas que qualquer pessoa com um mínimo de bom senso faz. Nos dois casos nós, população, sentimos vergonha. Nos dois casos, nós, população, somos tentados a fazer uma só leitura: "a corrupção é protegida pelo judiciário, que é o guardião da impunidade".
Não nos interessam as filigranas jurídicas por onde escapam esses tecnocratas do judiciário, que se especializam nas "saídas" quando deviam defender o justo. Mas claramente percebemos os artifícios de que se valem. E os repudiamos. E esse repúdio começa a se estender, perigosa e infelizmente, a todo o judiciário. E ameaça a dura conquista das liberdades democráticas que esse poder deveria defender, mas que amordaça.
O Brasil debate agora o esboço da reforma do Judiciário elaborada pelo tucano Aloysio Nunes Ferreira. "A montanha pariu um rato", diria Otto Guerra, um jurista de quem tenho saudades. Depois de tanto barulho, e depois que a sociedade viu impotente e indignada como é que o "controle interno" do judiciário "pune" seus membros transgressores nas revelações trazidas à luz pela CPI que investiga aquele sistema, não surgiu nesse projeto de reforma nada que represente uma mudança de fundo. Apenas algumas maquiagens de forma. E sobretudo, nada sobre um controle externo do judiciário verdadeiramente isento, a ser exercido pela sociedade.
Estamos convivendo com a difícil situação de descrença nas instituições, as quais idealmente deveriam catalisar e realizar os anseios do povo que representam, mas que na realidade defendem apenas seus próprios e mesquinhos interesses. Nada mais justo que nós, povo traído, tenhamos pelo menos alguma forma de controle sobre essas instituições.
Nada mais oportuno que essa "faxina" comece pelo judiciário. Schopenhauer lamentava "a velha luta daqueles que vivem para a coisa com aqueles que dela vivem", e o sistema judiciário, sendo composto por homens, não pode fugir a essa condição intrínseca . Mas podem e devem aqueles que dentro dele vivem para o seu engrandecimento não mais tolerarem as ações daqueles que , colocando sua capacidade de julgar à serviço da política e de outros interesses, dele vivem. Não que seus principais males tráfico de influência, corrupção e nepotismo sejam privativos seus, nem que dentro desse sistema não possamos apontar pessoas verdadeiramente dignas que o engrandecem. Felizmente ainda as temos, e felizmente estes são ainda numerosos. A estes presto minha homenagem, com a certeza de que um controle externo não os importuna porque o controle interno da sua própria dignidade já conduz seus atos.
Contudo, se o judiciário é por definição aquele poder moderador dos excessos do executivo e do legislativo, deve vigiar seus próprios excessos para ter a necessária autoridade moral para cumprir a sua função. Somente então poderá aspirar àquele "sincero respeito que a razão só concede a quem pode sustentar o seu livre e público exame".