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A proteção autoral das expressões culturais tradicionais e expressões do folclore

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Agenda 04/06/2011 às 09:37

5 A PROTEÇÃO NO ÂMBITO DA OMPI

Fundada oficialmente no ano de 1967, mas tendo suas raízes no século XIX, com o United International Bureaux for the Protection of Intellectual Property [64], a Organização Mundial da Propriedade Intelectual – OMPI, é desde 1974 a agência especializada da Organização das Nações Unidas – ONU - para assuntos relacionados à Propriedade Intelectual.

Com 184 países membros é o principal fórum mundial para assuntos relacionados aos Direitos Autorais. Inicialmente lideradas pela UNESCO, as discussões acerca da proteção autoral das expressões culturais tradicionais passaram no final do século XX, a ser guiadas por especialistas da OMPI, que atualmente realizam um amplo trabalho no sentido de se promover a proteção legal das ECTs.

As missões internacionais de averiguação

Nos anos de 1998 e 1999 a Organização promoveu uma ampla consulta dos agentes envolvidos com as ECTs, tais como, comunidades tradicionais, povos indígenas, ONGs, representantes governamentais, acadêmicos e membros do setor privado para identificar as necessidades e expectativas dos detentores das expressões culturais tradicionais. Com base nesse trabalho de campo foi preparado um amplo documento que apresenta de modo didático as expectativas desses agentes culturais ao redor do mundo. As missões organizadas pela OMPI foram separadas em: Missões do Pacífico Sul, Missões do Leste e Sul Africanos, Missões do Sul da Ásia, Missões da América do Norte, Missões da América Central, Missões do Leste Africano, Missões aos Países Árabes, Missões da América do Sul (Bolívia), Missões da América do Sul (Peru), Missões dos Paises do Caribe. O referido trabalho, foi publicado no ano de 2001, sob o nome de Intellectual Property Needs and Expectations of Tradicional Knoledge Holdes – WIPO Report on Fact-Finding Missions on Intellectual Property Traditional Knowledge [65] (1998-1999).

No sítio virtual [66] da organização é possível ter acesso à integra do documento, que apresenta as necessidades e expectativas de diversas comunidades tradicionais ao redor do mundo. Referido trabalho serviu como base para os peritos da OMPI iniciarem um amplo projeto de reconhecimento das expressões culturais tradicionais como objetos de proteção nos Direitos de Autor.

A atuação do IGC – elaboração do Projeto de Disposições

No ano de 2001 foi formado, no âmbito da OMPI, o Intergovernmental Committee on Intellectual Property and Genetic Resources, Traditional Knowledge and Folklore, [67] responsável por centralizar as ações relativas à proteção, tanto dos Conhecimentos Tradicionais, quanto das Expressões Culturais Tradicionais.

Esse grupo vem desenvolvendo desde então, em parceria com representantes dos diversos países-membros da OMPI, e organizações como Organização Regional Africana para a Propriedade Intelectual (ARIPO), União Africana (AU), Common Wealth Secretariat (COMSEC), Council of Europe (CE), European Commission (EC); Food and Agriculture Organization of the United Nations (FAO), Escritório Europeu de Patentes (EPO), Eurasian Patent Organization (EAPO), International Union for the Protection of New Varieties of Plants (UPOV), South Center, United Nations Conference on Trade and Development (UNCTAD), e a Organização Mundial do Comércio (OMC) um estudo profundo acerca da proteção das ECT’s.

Referido trabalho está em andamento desde 2001 e tem como principal objetivo a conclusão de um Projeto de Disposições para uma proteção reforçada tanto dos Conhecimentos Tradicionais, como das Expressões Culturais Tradicionais. Tal Projeto apresenta uma completa legislação para a proteção tanto das Expressões Culturais Tradicionais, quanto dos Conhecimentos Tradicionais, onde se encontram Objetivos, Princípios Gerais Orientadores, além de onze dispositivos já formulados referentes à proteção das Expressões Culturais Tradicionais, e quatorze relativos à proteção dos Conhecimentos Tradicionais.

A primeira versão publicada do Projeto de Disposições foi concluída na Sexta Sessão do IGC, em março de 2004, com base no material desenvolvido na suas cinco sessões anteriores. Então, o Comitê iniciou um processo aberto de discussão acerca do Projeto de Disposições. Durante os meses de novembro de 2004, à fevereiro de 2005, referentes à Sétima e Oitava Sessões do IGC, foi realizada a primeira etapa de discussões. Diversos Estados-Membros, entre os quais o Brasil, comunidades indígenas e grupos tradicionais de variadas regiões do mundo, bem como entidades da sociedade civil, e muitos outros interessados submeteram mais de 200 páginas de comentários acerca do Projeto, que foram analisados pelo IGC e levadas em conta para a publicação de uma versão revisada e atualizada do Projeto de Disposições.

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A versão revisada circulou entre os participantes do debate, e acrescentada de alterações levou à publicação da versão mais recente do Projeto, finalizada em Dezembro de 2006, na Décima Sessão do IGC.

A última Sessão do Comitê (décima quarta) foi realizada entre 29 de junho e 3 de julho de 2009, contando com a presença de um grande leque de agentes tais quais representantes de países como Algéria, Argentina, Austrália, Áustria, Azerbaijão, Bangladesh, Bélgica, Bolívia, Bostwana, Brasil, Burundi, Cambodia, Camarões, Canadá, Chile, China, Colômbia, Congo, Republica Checa, Republica Democrática do Congo, Costa Rica, Cuba, Dinamarca, Djibouti, Equador, Egito, Salvador, Etiópia, Fiji, Finlândia, França, Alemanha, Gana, Grécia, Guatemala, Guiné, Haiti, Hungria, Índia, Indonésia, Irã, Iraque, Irlanda, Israel, Itália, Jamaica, Japão, Jordânia, Kênia, Lesoto, Lituania, Luxemburgo, Malásia, México, Montenegro, Marrocos, Namíbia, Nepal, Holanda, Nova Zelândia, Nicarágua, Niger, Nigéria, Noruega, Oman, Paquistão, Paraguai, Peru, Filipinas, Polônia, Portugal, Coréia do Sul, Romênia, Rússia, Arábia Saudita, Senegal, Sérvia, Cingapura, Eslováquia, África do Sul, Espanha, Sri Lanka, Sudão, Suécia, Suíça, Tailândia, Tunísia, Turquia, Uganda, Grã-Bretanha, Estados Unidos da América, Iemên, Zâmbia, Zimbabwe e a União Européia, além de diversas entidades governamentais e ONG’s internacionais.

Mesmo havendo em andamento um processo internacional de debate acerca do Projeto de Disposições, consta do sítio virtual da OMPI que os princípios e objetivos traçados já estão sendo utilizados em nível regional e federal ao redor do mundo.

O Projeto de Disposições acerca da proteção das Expressões Culturais Tradicionais [68]

O anteprojeto do referido documento faz primeiramente uma série de considerações acerca da necessidade de se criar mecanismos para a proteção das ECT’s, sendo apontado como extremamente relevante o papel da propriedade intelectual nesse sentido.

Com relação à proteção das Expressões Culturais Tradicionais o Projeto de Disposições apresenta 13 Objetivos, 09 Princípios Gerais Orientadores, além de 11 artigos específicos para dar suporte legal à tutela autoral das Expressões do Folclore. Todos devidamente comentados pelo Comitê Intergovernamental.

Objetivos [69]

Nos comentários aos Objetivos apresentados no Projeto o Comitê Intergovernamental (IGC) ressalta-se que a proteção das ECT’s não deve ser tratada como uma finalidade em si mesma, mas sim devem servir como um instrumento para a promoção dos indivíduos e comunidades envolvidos, resguardando os interesses nacionais, regionais e internacionais acerca da diversidade cultural.

Nos treze objetivos elencados apresentam-se questões como o reconhecimento de valor da herança cultural das comunidades tradicionais, a promoção do respeito aos indivíduos membros dessas comunidades, a prevenção contra uma utilização prejudicial das ECT’s, a capacitação dos grupos envolvidos, o apoio à cooperação comunitária e às práticas costumeiras, a contribuição à diversidade cultural, a salvaguarda das culturas tradicionais, entre outros.

Referidos Objetivos poderiam ser utilizados como preâmbulo para as leis nacionais ou outros instrumentos.

Princípios Gerais Orientadores [70]

Em nove "Princípios Gerais Orientadores" o Comitê buscou trazer pontos relevantes a serem levadas em conta na aplicação concreta do uso dos direitos autorais. Tais princípios referem-se a questões como a necessidade de se respeitar as aspirações e expectativas das comunidades, o equilíbrio nas relações entre aqueles que produzem, resguardam e desenvolvem as manifestações e os beneficiários dessas, o respeito aos acordos regionais e internacionais, o principio da compreensão e flexibilidade na aplicação prática da tutela autoral, o princípio do reconhecimento da natureza especifica e da características culturais intrínsecas da expressões, o princípio da complementaridade com a proteção dos conhecimentos tradicionais, o princípio do respeito aos direitos e obrigações da comunidades tradicionais e grupos indígenas, princípio do respeito aos hábitos de transmissão cultural, e, por fim, o princípio da eficiência e acessibilidade às medidas legais de proteção.

Tais pontos são importantes dado o caráter peculiar das expressões culturais tradicionais, que surgem no seio de comunidades e grupos que não estão necessariamente inseridos em um contexto de modernidade, nem tampouco familiarizados com as ferramentas e instrumentos tecnológicos e jurídicos que lhes possibilitariam exercer uma efetiva tutela autoral das suas manifestações.

Disposições Substantivas (artigos) [71]

Em onze artigos o Comitê buscou dar uma expressão legal concreta aos princípios que regem a matéria, sendo o principal foco das discussões acerca do tema.

Segue uma breve apresentação desses dispositivos.

Artigo 1 – O objeto de proteção

No primeiro artigo buscou-se delimitar os termos Expressões Culturais Tradicionais, ou Expressões de Folclore. Ambos são entendidos como sendo intercambiáveis, cabendo aos organismos regionais optar por um ou outro termo. Tais expressões incluem os bens materiais e imateriais em que a cultura tradicional é expressa, comunicada ou manifestada. Três foram os critérios apontados para se caracterizar as ETC’s: devem ser produtos da atividade criativa intelectual, seja essa individual ou coletiva; devem ser característicos da identidade cultural e social de comunidades específicas, e por fim, devem ser desenvolvidos, utilizados ou mantidos pelas comunidades, ou por indivíduos, que de acordo com as práticas costumeiras do grupo, tenham essa responsabilidade.

Artigo 2 – Os beneficiários

Em relação aos beneficiários o artigo segundo dispõe que as medidas de proteção devem ser tomadas em benefício das comunidades tradicionais em que as manifestações são desenvolvidas, em acordo com suas práticas e costumes. Nos comentários indica-se que o termo comunidade (community) é abrangente o suficiente para incluir os indivíduos de todo um país, sendo nesses casos considerado um patrimônio nacional.

Artigo 3 – Atos de apropriação indébita (Escopo da proteção)

Esse artigo atribui três diferentes graus de proteção às ECT’s. Tais graus de proteção iriam variam conforme sejam as expressões registradas, não registradas, ou ainda, de cunho secreto. A proteção estipulada deveria garantir às comunidades que suas manifestações culturais não fossem indevidamente disseminadas, reproduzidas, ou ainda modificadas e distorcidas sem o devido consentimento, garantindo também os direitos de nomeação à autoria, e à retribuição pecuniária pela sua exploração lícita.

Artigo 4 – Gestão de Direitos

O quarto dispositivo diz respeito à gestão dos direitos relativos às expressões tradicionais. As autorizações prévias para exploração das ECT’s, quando necessárias (de acordo com o grau de proteção mencionado no artigo anterior), deverão ser feitas diretamente com as comunidades, ou por agência que atuaria nesse sentido, em nome das comunidades, sendo isso determinado pela legislação de cada país.

Artigo 5 – Exceções e Limitações

As exceções e limitações à proteção autoral são colocadas no sentido de se garantir que as expressões culturais possam continuar se desenvolvendo livremente no âmbito das comunidades; bem como garantir sua utilização a titulo de ensino, pesquisa não comercial e estudo privado, crítica ou análise, exploração pelos meio lícitos, atividades jornalísitcas, gravações para arquivos não comerciais de salvaguarda da herança cultural, e eventuais exceções.

Artigo 6 – Prazo de Proteção

De acordo com esse dispositivo o prazo de proteção das ECT’s deveria durar por quanto tempo elas atendam às condições estabelecidas no artigo primeiro. Havendo ainda termos de proteção específicos para expressões registradas, ou, de cunho secreto.

Artigo 7 – Formalidades

O sétimo artigo garante como princípio geral que a proteção das ECT’s não deve se sujeitar a nenhuma formalidade, sendo, no entanto, o registro, uma ferramenta que traria maior segurança à sua proteção. No caso de registro da expressão os conseqüentes direitos de propriedade industrial pertenceriam à comunidade.

Artigo 8 – Sanções, Recursos e Exercício de Direitos

O dispositivo referente às sanções civis e penais para casos de descumprimento da lei não foi formulado, mas recomenda-se aos países interessados que sejam eficazes no sentido de se garantir o seu estrito cumprimento.

Artigo 9 – Medidas Transitórias

Nesse dispositivo, também não formulado, recomenda-se que sejam adotadas medidas no sentido de se garantir um prazo razoável, bem como o respeito aos direito adquiridos, para o bom cumprimento da lei. Diz respeito especialmente à retroatividade, ou seja, ao caráter ex-tunc, ex-nunc, ou ainda intermediário da lei, não havendo nenhuma disposição sobre qual deve ser o critério adotado.

Artigo 10 – Relação com outras formas de proteção

De acordo com esse artigo a proteção autoral não deverá suplantar as demais medidas de proteção já existentes, tanto de cunho de propriedade intelectual, quanto demais medidas de salvaguarda do patrimônio cultural.

Artigo 11 – Proteção Regional e Internacional

O último dispositivo trata da proteção regional e internacional do folclore. Pelos seus termos está proteção internacional deverá ser alcançada sempre em consonância com o tratamento específico adotado pelos diversos países.

Considerações

A última reunião do Conselho Intergovernamental – IGC (14ª Sessão) se deu entre 29 de junho e 03 de julho de 2009, e contou com três representantes brasileiros, sendo um do Ministério de Relações Exteriores, um do Ministério de Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior e um especialista no Instituto Nacional da Propriedade Industrial. Note-se que o Ministério da Cultura, um dos principais interessados na proteção autoral do folclore, curiosamente não tinha representantes na reunião.

As atas das referidas reuniões do Comitê, bem como o acesso ao Projeto de Disposições comentado podem ser acessado através do sítio virtual da OMPI: www.wipo.int.

Tais artigos apresentam uma boa referência para um projeto de proteção legal, e poderiam ser tidos como base para a elaboração de um projeto de Lei que concretize a proteção autoral das Expressões Culturais Tradicionais.

Sobre o autor
Felipe Junqueira Gomide

Bacharel em Direito e Jornalismo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOMIDE, Felipe Junqueira. A proteção autoral das expressões culturais tradicionais e expressões do folclore. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2894, 4 jun. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19271. Acesso em: 9 mai. 2024.

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