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A proteção autoral das expressões culturais tradicionais e expressões do folclore

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Agenda 04/06/2011 às 09:37

4 A ATUAÇÃO DA UNESCO

Disposições Tipo para as Leis Nacionais – 1982

Em 24 de abril, de 1973, o governo da Bolívia enviou um memorando ao Diretor Geral da UNESCO requisitando que a entidade verificasse a possibilidade de se produzir um instrumento internacional para a proteção do folclore, na forma de um protocolo para ser anexado à Convenção Universal de Copyright (Universal Copyright Convention).

Em atendimento a esse pedido o secretariado da UNESCO fez um estudo sobre a plausibilidade de se produzir um documento para a proteção do folclore em âmbito internacional. Em 1977 o Diretor Geral da UNESCO reuniu um Comitê de Peritos para a Proteção Legal do Folclore, que chegou ao consenso de que seria necessário um exame completo dos diversos problemas expostos.

Verificada a necessidade de um amplo estudo sobre o assunto que abordasse questões de identificação, conservação de material, preservação, bem como aspectos sociológicos, psicológicos, etnológicos, políticos e históricos, foi formado no ano de 1980, um grupo de trabalho composto por dezesseis peritos de diferentes países, reconhecidos pela UNESCO e pela OMPI.

Desses encontrou ficou reconhecido que: (i) uma adequada proteção legal para as expressões de folclore seria desejável; (ii) tal proteção poderia ser promovida em âmbito nacional através de provisões modelo para as legislações; (iii) tais provisões deveriam ser formuladas de modo a serem utilizadas tanto por países onde não se verificava nenhuma legislação especifica sobre o assunto, bem como por paises onde a legislação existente poderia ser desenvolvida; (iv) o modelo de provisões deveria pavimentar um caminho para a proteção sub-regional, regional e internacional das expressões culturais tradicionais. [45]

Com o desenvolver desse trabalho o Comitê de Peritos Governamentais para a Proteção das Expressões de Folclore (IGC) elaborou, em 1982, um importante documento acerca da proteção autoral das expressões culturais tradicionais, o primeiro relativo ao assunto, chamado Model Provisions for national laws on the protection of expressions of folklore against illicit exploitaitions and other prejudicial actions. [46]Tal documento apresentou as seguintes considerações acerca da proteção das ECT’s:

Considerando que o folclore constitui uma parte essencial do patrimônio vivo da nação desenvolvido e perpetrado pelas comunidades no seio da nação;

Considerando que a disseminação das diversas expressões do folclore pode conduzir a um aproveitamento indevido do patrimônio cultural da nação;

Considerando que todo abuso de natureza comercial ou outra ou toda desnaturação do folclore é prejudicial aos interesses culturais e econômicos da nação;

Considerando que as expressões do folclore em tanto que constituem uma manifestação da criatividade intelectual merecem beneficiar de uma proteção que se inspira da que é concedida às obras literárias e artísticas[...]; [47]

Em seu artigo primeiro o relatório estabelece o principio da proteção das expressões culturais tradicionais, no âmbito do país aderente. O artigo segundo define o folclore como o conjunto do patrimônio artístico tradicional desenvolvido e perpetuado por uma comunidade do país e relaciona as seguintes expressões protegidas do folclore:

i)as expressões verbais, tais como, contos populares, poesia popular e enigmas;

ii)as expressões musicais, tais como, canções populares e música instrumental;

iii)expressões pela ação, tais como, danças folclóricas, jogos, formas artísticas e rituais;

sejam elas materializadas em suportes ou não, e ainda:

a)produções da arte popular, em particular: desenhos, pinturas, entalhos, esculturas, cerâmica, terracota, mosaicos, trabalhos em madeira e metal, joalheria, tapetes e roupas;

b)instrumentos musicais;

c)formas arquitetônicas. [48]

O terceiro artigo diz respeito às utilizações submetidas à autorização, quando feitas com intenção de lucro fora de seu contexto tradicional:

i)toda publicação, reprodução, e toda distribuição de exemplares de expressões de folclore;

ii)toda recitação, representação ou execução pública, toda transmissão por fio ou sem fio e qualquer outra forma de comunicação ao público de expressões de folclore. [49]

O artigo quarto indica as exceções às disposições do artigo anterior:

i)utilização a titulo de ensino;

ii)utilização a titulo de ilustração de uma obra original de um autor desde que a extensão dessa utilização seja compatível com os bons costumes;

iii)empréstimos de elementos de expressão do folclore para a criação de uma obra original de um autor, desde que esta utilização seja compatível com os bons costumes. [50]

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Diversas são as disposições que se seguem incluindo-se a relação de infrações, busca e apreensão, prescrição, sanções civis, autoridades, jurisdição competente, interpretação e proteção das expressões do folclore estrangeiro.

Em posterior reunião do mesmo Comitê, realizada no mesmo ano de 1982, em Paris, foram delimitadas as seguintes recomendações para salvaguarda desse patrimônio:

1.seja estabelecido na Unesco um registro internacional dos bens culturais folclóricos e que seja elaborado um modelo de sistema de indexação e colocado à disposição dos Estados-membros;

2.a Unesco proporcione uma assistência intelectual e técnica aos países em desenvolvimento para que estes se aparelhem com os materiais de registro necessários (magnetofones, cassetes, vídeo) à coleta de manifestações ou expressões folclóricas;

3.a Unesco favoreça a formação de pessoal especializado no setor de pesquisa, da coleta, da transcrição e do arquivamento dos elementos do folclore e no quadro da ajuda proporcionada aos países menos desenvolvidos do ponto de vista tecnológico, considere a possibilidade de organizar programas de formação nas vizinhanças que se aproximem o mais possível das condições ás quais o pesquisador deve enfrentar no terreno antes que daquelas que conhece o formador;

4.os Estados-membros atualizem sistemas de identificação e de recenseamento a fim de dispor de um documento de classificação dos dados do folclore;

5.os Estados-membros estabeleçam inventários tão completos quanto possível das manifestações ou expressões folclóricas; [51]

Seguem outras 23 recomendações acerca da conservação e análise das Expressões Culturais Tradicionais, bem como sua preservação, valorização e reativação.

As dificuldades técnicas e jurídicas em abordar a proteção das Expressões de Folclore explicam por que a UNESCO optou por não tratar do assunto por meio de uma Convenção, mas sim por meio de simples recomendações. Até onde se saiba o referido Modelo de Provisões não foi adotado pelos países membros.

Recomendações sobre a Salvaguarda da Cultura Tradicional e do Folclore - 1989

Em 1989, na 31ª Conferência Geral, seguindo o trabalho iniciado com as Disposições-Tipo para as Leis Nacionais foram elaboradas as Recomendações sobre a Salvaguarda da Cultura Tradicional e do Folclore.

Nestas recomendações ficaram decididos critérios para a definição, identificação, conservação, preservação, disseminação e proteção do patrimônio imaterial. Nelas se destacaram "a natureza específica e a importância da cultura tradicional e popular como parte integrante do patrimônio cultural da cultura vivente" e reconheceram a "extrema fragilidade de certas formas da cultura tradicional e popular e, particularmente, aos aspectos correspondentes às tradições orais e o perigo de que esses aspectos se percam". Também enfatizaram que se trata de uma cultura dinâmica "dado ao seu caráter evolutivo, o que nem sempre permite uma proteção direta", mas que deve ser protegida com eficácia. [52]

Foi recomendado que Estados-membros mantivessem os testemunhos vivos ou passados destas culturas.

A cultura tradicional e popular se traduz em manifestações da criatividade intelectual individual ou coletiva, merece uma proteção análoga à que se outorga às produções intelectuais. Uma proteção dessa índole é indispensável para desenvolver, perpetuar e difundir em maior medida este patrimônio, tanto no país como no estrangeiro, sem atentar contra os interesses legítimos. [53]

De acordo com a Recomendação, não eram apenas os produtos culturais que mereciam a proteção, mas também os produtores e portadores da tradição. Proteger os portadores requeria enfrentar problemas como os de definição da titularidade, da exploração comercial da capacidade criativa, da reparação no caso de apropriação indevida, etc. Por isso não foi feita uma recomendação explícita sobre a proteção aos portadores do conhecimento, e sim às obras. [54]

Declaração Universal sobre Diversidade Cultural – 2001

Em 2001, mais de 10 anos após a publicação das Recomendações para Salvaguarda do Folclore, a UNESCO produziu a Declaração Universal Sobre a Diversidade Cultural. No referido documento a UNESCO apresenta 12 artigos que buscam atentar para o importante papel da diversidade cultural em um mundo globalizado.

No artigo 1º ficou disposto o seguinte entendimento sobre diversidade cultural:

A cultura adquire formas diversas através do tempo e do espaço. Essa diversidade se manifesta na originalidade e na pluralidade das identidades que caracterizam os grupos e as sociedades que compõem a humanidade. Fonte de intercâmbios, de inovação e de criatividade, a diversidade cultural é tão necessária para o gênero humano como a diversidade biológica para os organismos vivos [...], constitui o patrimônio comum da humanidade e deve ser reconhecida e consolidada em beneficio das gerações presentes e futuras. [55]

Nos seguintes artigos a Declaração expõe a importância da diversidade, no sentido de se assegurar os direitos humanos e culturais, bem como a circulação de bens e mercadorias de cunho diversificado. Assevera que as políticas culturais devem "criar condições propícias para a produção e a difusão de bens e serviços culturais diversificados, por meio de indústrias culturais que disponham de meios para desenvolverem-se nos planos local e mundial". [56]

Propõe ainda que os Estados "respeitando suas obrigações internacionais" devem "definir sua política cultural e aplicá-la, utilizando-se dos meios de ação que julgue mais adequados, seja na forma de apoios concretos ou de marcos reguladores apropriados". [57]

Em 2002, tal compreensão foi reafirmada, na Declaração de Istambul pela Terceira Mesa Redonda de Ministros de Cultura. Segundo esse documento, o patrimônio cultural intangível

constitui um conjunto de práticas vivas e constantemente recriadas, conhecimentos e representações, que capacita os indivíduos e comunidades de todos os níveis a expressar sua concepção de mundo através de sistemas de valores e padrões de ética. [58]

Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial – 2003

Ambas as Declarações de 2001 e 2002 serviram de base, para no ano de 2003, na 32ª Reunião da UNESCO, realizada em Paris, finalmente ser aprovada uma Convenção sobre o assunto.

A Convenção buscou concretizar medidas "que visam garantir a viabilidade do patrimônio cultural imaterial, tais como a identificação, a documentação, a investigação, a preservação, a proteção, a promoção, a valorização, a transmissão [...] deste patrimônio"." [59]

No seu artigo 2º ficou definido o "Patrimônio Cultural Imaterial" como:

as práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas - junto com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais que lhes são associados - que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural. Este patrimônio cultural imaterial, que se transmite de geração em geração, é constantemente recriado pelas comunidades e grupos em função de seu ambiente, de sua interação com a natureza e de sua história, gerando um sentimento de identidade e continuidade e contribuindo assim para promover o respeito à diversidade cultural e à criatividade humana. [60]

É especialmente importante o conceito de "Patrimônio Cultural Imaterial", no que concerne à proteção das Expressões Culturais Tradicionais. Tais expressões integram claramente o universo do patrimônio cultural imaterial, conforme demonstra o artigo 2º da Convenção:

O "patrimônio cultural imaterial", conforme definido no parágrafo 1 acima, se manifesta em particular nos seguintes campos:

a) tradições e expressões orais, incluindo o idioma como veículo do patrimônio cultural imaterial;

b) expressões artísticas;

c) práticas sociais, rituais e atos festivos;

d) conhecimentos e práticas relacionados à natureza e ao universo;

e) técnicas artesanais tradicionais. [61]

Por meio do instrumento ficou estabelecido junto à UNESCO um Comitê Intergovernamental para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, além de se prever a criação de uma Lista Representativa do Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade, e um Fundo comum, para políticas no sentido de se promover a salvaguarda desse patrimônio.

Convenção Sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais – 2005

Finalmente, na 33ª Conferência Geral das Nações Unidas, realizada em 2005, foi celebrada a Convenção Sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, ratificada pelo Brasil pelo Decreto Legislativo 485/2006.

A Convenção é o mais importante instrumento acerca da proteção da diversidade cultural, que envolve questões como o amparo das Expressões Culturais Tradicionais.

No artigo 1º são apresentados os seguintes objetivos:

Os objetivos da presente Convenção são:

(a) proteger e promover a diversidade das expressões culturais;

(b) criar condições para que as culturas floreçam e interajam livremente em benefício mútuo;

(c) encorajar o diálogo entre culturas a fim de assegurar intercâmbios culturais mais amplos e equilibrados no mundo em favor do respeito intercultural e de uma cultura da paz;

(d) fomentar a interculturalidade de forma a desenvolver a interação cultural, no espírito de construir pontes entre os povos;

(e) promover o respeito pela diversidade das expressões culturais e a conscientização de seu valor nos planos local, nacional e internacional;

(f) reafirmar a importância do vínculo entre cultura e desenvolvimento para todos os países, especialmente para países em desenvolvimento, e encorajar as ações empreendidas no plano nacional e internacional para que se reconheça o autêntico valor desse vínculo;

(g) reconhecer natureza específica das atividades, bens e serviços culturais enquanto portadores de identidades, valores e significados;

(h) reafirmar o direito soberano dos Estados de conservar, adotar e implementar as políticas e medidas que considerem apropriadas para a proteção e promoção da diversidade das expressões culturais em seu território;

(i) fortalecer a cooperação e a solidariedade internacionais em um espírito de parceria visando, especialmente, o aprimoramento das capacidades dos países em desenvolvimento de protegerem e de promoverem a diversidade das expressões culturais. [62]

Nos artigos que se seguem buscam-se estimular medidas no sentido de se proteger e promover as expressões culturais, desenvolver a educação e a conscientização públicas, encorajar a participação da sociedade civil, promover a cooperação internacional, entre outras.

Com relação às medidas de proteção e promoção da diversidade cultural, que poderão ser adotadas pelos países em âmbito nacional, estão elencadas no artigo sexto da Convenção:

(a) medidas regulatórias que visem à proteção e promoção da diversidade das expressões cultuais;

(b) medidas que, de maneira apropriada, criem oportunidades às atividades, bens e serviços culturais nacionais – entre o conjunto das atividades, bens e serviços culturais disponíveis no seu território –, para a sua criação, produção, difusão, distribuição e fruição, incluindo disposições relacionadas à língua utilizada nessas atividades, bens e serviços; [...]

(g) medidas para encorajar e apoiar os artistas e todos aqueles envolvidos na criação de expressões culturais; [...] [63]

Nesses três itens, em especial o primeiro, que cita as "medidas regulatórias", podemos vislumbrar um estímulo a medidas como a proteção autoral das ECT’s, que caracteriza sem dúvida um dos seus aspectos mais carentes de amparo legal.

A Convenção se destaca entre as convenções ligadas a questões de patrimônio, na medida em que se concentra na diversidade das expressões culturais postas em circulação e compartilhadas por meio de atividades, bens e serviços culturais. Por isso, ela complementa o conjunto de instrumentos jurídicos desenvolvidos pela UNESCO para promover a diversidade criadora.

No entanto, ainda não se verificou uma menção direta e explícita por parte das Convenções da UNESCO acerca da proteção autoral das Expressões Culturais Tradicionais. Seus dispositivos costumam apresentar menções mais genéricas, que mesmo sendo relevantes nesse processo não trazem a objetividade necessário para essa demanda específica.

Sobre o autor
Felipe Junqueira Gomide

Bacharel em Direito e Jornalismo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOMIDE, Felipe Junqueira. A proteção autoral das expressões culturais tradicionais e expressões do folclore. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2894, 4 jun. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19271. Acesso em: 29 dez. 2024.

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