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A proteção autoral das expressões culturais tradicionais e expressões do folclore

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04/06/2011 às 09:37
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3 O amparo legal das Expressões Culturais Tradicionais

Conforme exposto, as Expressões Culturais Tradicionais são criações coletivas que expressam os anseios, tradições, costumes e crenças de determinadas comunidades.

São diversos os motivos apresentados por especialistas para a proteção autoral dessas manifestações. Sendo os mais relevantes:

a. A comercialização dessas expressões culturais por grandes empresas e veículos de comunicação sem a devida partilha desse aproveitamento econômico com as comunidades em que eles tradicionalmente se desenvolveram.

b. Distorções das manifestações culturais, muitas vezes com ofensas às tradições locais e crenças religiosas das comunidades.

c. Fragilidade das expressões culturais tradicionais diante das influências externas, como os grandes veículos de comunicação em massa, e o iminente risco de degradação e desnaturação desse patrimônio cultural com a quebra dos laços de uma comunidade com seu passado.

Julia Elena Fortún, citada por Antonio Chaves, faz as seguintes considerações acerca do caráter marginal das ECT’s:

Se bem que relativamente efetivas no que se refere à proteção individual o autor identificado, porque esquecem, por exemplo, a do artista popular, de certo modo anônimo, que justamente por sua situação marginal e intercultural mereceria amplo respaldo? Por que se restringem em dar amparo unicamente aos cidadãos que contam com maiores possibilidades sócio-econômicas de ação e não aos milhares de criadores anônimos de nossas aldeias? Por que as Convenções Internacionais de proteção aos chamados "Patrimônios Culturais da Humanidade" se circunscrevem a assinalar pautas protetoras para bens culturais tangíveis e não para as criações artísticas que transcorrem no tempo e no espaço, mas não deixam de ser valores da criatividade do homem e patrimônio dos povos? Por que se olha com incrível passividade a apropriação indevida do folclore de grupos humanos de nossos paises e se amparam os usurpadores? [30]

O documento Model Provisions for national laws on the protection of expressions of folklore against illicit exploitaitions and other prejudicial actions produzido pela OMPI em parceria com a UNESCO, em 1982, apresenta as seguintes considerações acerca do amparo legal das manifestações folclóricas:

O desenvolvimento da tecnologia, especialmente nos campos da comunicação, está levando a uma exploração imprópria da herança cultural das nações. Expressões culturais tradicionais vêm sendo comercializadas, em escala global, sem se respeitar os interesses culturais e econômicos das comunidades de onde elas surgiram, e sem a distribuição de nenhum dos recursos que a exploração do folclore proporciona. Junto com a comercialização, essas expressões ainda sofrem distorções em ordem de corresponder ao que se acredita seja mais favorável à sua exploração comercial em larga escala. [31]

Nesse sentido Antonio Chaves ainda faz as seguintes considerações:

Há uma comunidade que o considera seu patrimônio e o cultiva com amor especial. As empresas de espetáculos, cinemas, empresas de televisão exploram o folclore em proporções gigantescas, enquanto a comunidade de origem é utilizada sem participar dos sucessos econômicos de sua arte. [32]

No documento The Protection of Tradicional Cultural Expressions / Expressions of Folklore na Overview of the Wipo IGC Draft Provisions, produzido pela OMPI, tem-se as seguintes considerações:

De um ponto de vista da propriedade intelectual a proteção das ECT’s integra a parte integral das políticas relacionadas à promoção e proteção da criatividade e inovação, desenvolvimento das comunidades e um estímulo da criatividade industrial como parte de um desenvolvimento econômico sustentável. No entanto, a proteção das expressões culturais tradicionais também toca em outras importantes áreas. Essas incluem a salvaguarda e preservação da herança cultural; liberdade de expressão; respeito pelos direitos, interesses e expectativas de comunidades indígenas e tradicionais; reconhecimento de leis consuetudinárias, protocolos e práticas; acesso ao conhecimento e ao cerne do "domínio público"; endereçamento de desafios de multiculturalismo; e, promoção da diversidade cultural, incluindo a variedade lingüística e acesso à diversificadas expressões culturais. [33]

Também são elencados como objetivos para a proteção das ECT’s:

i- Reconhecimento de valor

ii- Promoção do respeito

iii- Conhecimento das necessidades das comunidades

iv- Prevenção de uma má apropriação das ECT’s

v- Conceder poder às comunidades

vi- Apoiar práticas tradicionais e a cooperação comunitária

vii- Contribuir com a salvaguarda das culturas tradicionais

viii- Encorajar a inovação comunitária e a criatividade

ix- Promover a liberdade artística e intelectual, pesquisa e intercambio cultural em termos igualitários

x- Contribuir com a diversidade cultural

xi- Promover o desenvolvimento comunitário e legitimar atividades de troca

xii- Obstruir a utilização indevida de direitos de PI

xiii- Promover a certeza, a transparência e a confiança mútua. [34]

Em sentido mais amplo a proteção das ECT’s tem o objetivo de promover a diversidade cultural em um mundo cada vez mais padronizado, ameaçado pelo império dos veículos internacionais de comunicação. Acerca do conceito de diversidade cultural a importante Convenção sobre a proteção e promoção da Diversidade Cultural, realizada no âmbito da UNESCO e ratificada pelo Brasil através do Decreto Legislativo 485/2006 define:

Diversidade Cultural

"Diversidade cultural" refere-se à multiplicidade de formas pelas quais as culturas dos grupos e sociedades encontram sua expressão. Tais expressões são transmitidas entre e dentro dos grupos e sociedades. A diversidade cultural se manifesta não apenas nas variadas formas pelas quais se expressa, se enriquece e se transmite o patrimônio cultural da humanidade mediante a variedade das expressões culturais, mas também através dos diversos modos de criação, produção, difusão, distribuição e fruição das expressões culturais, quaisquer que sejam os meios e tecnologias empregados. [35]

Tais considerações oferecem um panorama acerca da necessidade de se criar mecanismos efetivos para a proteção e promoção das expressões culturais tradicionais e demonstram ainda a preocupação internacional no sentido de se preservar esse patrimônio cultural.

3.1 Propostas no âmbito nacional

As primeiras iniciativas nacionais no sentido de se buscar uma proteção das Expressões Culturais Tradicionais se deram na década de 1920, pelo gênio incansável do primeiro folclorista brasileiro, Mário de Andrade. No ano de 1928, em artigo publicado no Diário Nacional, o poeta e pesquisador da cultura popular brasileira, afirmou:

Nossa musica popular é um tesouro condenado à morte. A fonografia se impõe como remédio de salvação. A registração [sic] manuscrita é insuficiente porque dada a rapidez do canto é muito difícil escrevê-lo e as palavras que o acompanham. Tanto mais que a dicção e a entoação dos cantadores é extremamente difícil de ser verificada imediatamente com nitidez. [...] Não é possível num país como o nosso a gente esperar qualquer providência governamental nesse sentido. Cabe mais isso (como quase tudo) à iniciativa do povo. São as nossas sociedades que podem fazer alguma coisa para salvar esse tesouro que é de grande beleza e valor étnico inestimável. [36]

Na posição de diretor do Departamento de Cultura de São Paulo, atual Secretaria de Estado de Cultura, cargo que ocupou entre os anos de 1934 a 1937, Mário de Andrade viabilizou o patrocínio das ambiciosas Missões de Pesquisa Folclórica, que durante o ano de 1938 colheram centenas de fonogramas de manifestações como cocos, bumba-meu-boi, praiás, pajelancas, congadas, cantos de trabalho, toré, cabaçal, cantigas de roda, ladainhas, canções de carregadores de piano, cantos indígenas, tambor-de-criola, repentes entre outras dezenas de manifestações das regiões norte e nordeste do país.

Mesmo com um crescente interesse por parte de músicos, antropólogos, jornalistas e folcloristas, a proteção das ECT’s pouco tem caminhado no sentido de se criar uma tutela jurídica sui generis às manifestações tradicionais da cultura brasileira.

Antônio Chaves, em sua já citada obra Criador da Obra Intelectual, elenca algumas iniciativas nacionais desempenhadas no sentido de se proteger o folclore sob o aspecto jurídico.

A primeira proposta nesse sentido foi realizada por Edison Carneiro, Bráulio Nascimento e Maestro Aloysio de Alencar Pinto, em ofício dirigido à Comissão de Estudos Legislativos do Ministério da Justiça, na data de 31.10.1967.

No referido documento os autores reconhecem que a cultura tradicional não costuma fazer parte dos códigos de direito autoral, atribuindo isso ao fato de, já no século XIX, quando a proteção aos direitos de autor se tornou uma questão relevante no âmbito internacional, os países desenvolvidos, especialmente na Europa, já haviam recolhido e divulgado o seu folclore nacional, não havendo a necessidade de uma proteção jurídica específica.

Indicam que a apropriação indébita de temas folclóricos para fins de promoção, ou propaganda comercial, é "seu aspecto mais odioso" e que "se a lei não proibir de modo terminante, corremos o risco de que as formas literárias e musicais da cultura tradicional possam, com a cumplicidade dos poderosos meios de comunicação, (...) fixar-se na memória coletiva divorciados do seu conteúdo original". [37]

Propõem assim as seguintes disposições:

Art. Os temas e motivos literários e musicais de domínio público tradicional poderão ser utilizados no todo ou em parte por quem o queira, desde que autorizado pela Campanha de Defesa do Folclore Brasileira, do MEC, e pelo Conselho Nacional de Direitos de Autor e Conexos (CONDAC).

Art. Consideram-se de domínio público tradicional:

a)todos os temas e motivos literários e musicais do folclore braileiros, com exceção das letras de moda-de-viola e da poesia corrente da literatura de cordel e dos cantadores populares, que são de criação individual do artista;

b)todo material folclórico, coletado ou por coletar, divulgado ou por divulgar, constante de obras de especialistas, de instituições de pesquisa ou de pessoas de outro modo interessadas, desde que delas conste a declaração implícita de que faz parte do folclore brasileiro.

Art. A utilização de temas e motivos de domínio publico tradicional por órgãos culturais e de pesquisa, bem como por estudiosos da matéria é livre e gratuita. Se porém, a sua utilização se fizer com intuito de lucro, direto ou indireto, a autorização prevista só se fornecerá mediante retribuição á Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro, do MEC[...].

Art. A ninguém é licito apresentar-se como autor de temas e motivos de domínio publico tradicional, no todo ou em parte, para fins de propaganda comercial. [38]

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Apresenta ainda o Projeto Barbosa-Chaves, que continha a seguinte proposição:

Art. 59. Obras do folclore. As obras que recolhem tradições, letras ou acontecimentos populares conhecidos sob um nome característico pertencem ao domínio publico.

Parágrafo Único. Não é permitida a sua deformação ou utilização para fins de propaganda comercial. [39]

Ainda na data de 17.04.1974 o Deputado J. G, Araújo Jorge apresentou o Projeto de Lei n. 1.921, que "Preserva a inspiração e a beleza das composições musicais do nosso folclore, proibindo sejam as mesmas exploradas com letras ou adaptadas para fins comerciais" [40], e que foi mandado anexar ao Projeto n. 928, de 1972.

Mesmo tendo sua aprovação nas Comissões de Constituição e Justiça, pelo relator Luiz Henrique, e de Comunicação, pelo relator Humberto Lucena, foi rejeitada pela Comissão de Educação e Cultura, unanimemente. Tal rejeição se deu pela atribuição de "unilateralidade" do Projeto que "protege apenas as composições musicais, deixando fora as demais expressões da cultura popular que constituem a riqueza folclórica de um país". [41]

3.2 Propostas no âmbito internacional

Conforme anteriormente exposto, as discussões acerca da proteção autoral das ECT’s se iniciaram em meados do século XX, sendo sua aplicação ainda hoje carente de amparo legal.

As primeiras tentativas de se regular as criações do folclore foram feitas já no final da década de 60, e principalmente na década de 70, em países como a Tunísia (1967), Bolívia (1968), Chile (1970), Marrocos (1970), Algeria (1973), Senegal (1973), Kenya (1975), entre outros. [42]

José de Oliveira Ascensão, cita a seguinte passagem acerca da evolução dos debates internacionais sobre a proteção do folclore:

Os textos fundamentais sobre direito de autor não a contemplam [a proteção do folclore]. Já, porém, na revisão de 1967 da Convenção de Berna os países africanos, sobretudo, apresentaram propostas tendentes a incluir também na proteção da obra literária e artística estes elementos do seu patrimônio cultural. Queixavam-se eles das "rapinas" de que este era objeto. Os pesquisadores europeus e americanos faziam recolhas, principalmente dos cantares, que eram depois editadas em discos fonográficos e exploradas comercialmente, sem que os seus povos tivessem qualquer participação nos resultados obtidos.

Os países industrializados objetaram que a matéria não respeitava ao direito de autor, pois este supõe uma criação individualizada, um titular determinado a quem se pode atribuir a gestação da obra, enquanto que o folclore trazia uma manifestação genérica do espírito de um povo que exorbitaria da Convenção de Berna. Apesar de tecnicamente terem razão, não satisfaziam o interesse dos países implicados, que insistiram na sua pretensão. Acabou por se acordar numa vaga referência, à margem da Convenção. [43]

Em 1977 realizou-se a Primeira Conferência Continental de Direito de Autor, promovida pelo extinto Instituto Interamericano de Propriedade Intelectual – IIDA, onde se aprovaram três resoluções atinentes à matéria, quais são:

53. Que os organismos internacionais adotem fórmulas que protejam as expressões de arte folclórica dos povos como obras de criação coletiva.

54. Que se estude uma forma de participação da coletividade da qual se origina esse tipo de criação, quando haja exploração comercial por terceiros e que os países americanos considerem essa forma de proteção em suas legislações internas.

55. Que se estude uma forma de identificação da origem dessas obras, que tenha caráter obrigatório para todos aqueles que as divulguem. [44]

Felizmente, cada vez mais, a proteção autoral das Expressões do Folclore vem ganhando terreno dentro dos organismos internacionais. Dentre as organizações responsáveis pelo estudo dessa regulamentação destacam-se os fóruns da Organização Mundial da Propriedade Intelectual - OMPI, e da UNESCO havendo ainda uma série de agentes a nível continental, federal e regional que se dedicam ao assunto.

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Sobre o autor
Felipe Junqueira Gomide

Bacharel em Direito e Jornalismo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOMIDE, Felipe Junqueira. A proteção autoral das expressões culturais tradicionais e expressões do folclore. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2894, 4 jun. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19271. Acesso em: 22 nov. 2024.

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