SUMÁRIO: 1. Introdução. 2.Aspectos Constitucionais. 3. Natureza jurídica dos atos de polícia judiciária. 4. Legislação ordinária. 5. Limites. 6. Conclusões
1. Introdução
Neste breve estudo procuraremos analisar, em um primeiro momento, sob o prisma das disposições constitucionais e da legalidade, a manutenção do "poder correcional" sobre as atividades da polícia judiciária, atribuído, na Comarca de São Paulo, ao Departamento de Inquéritos Policiais e Corregedoria da Polícia Judiciária (DIPO) e, nas Comarcas do interior, aos respectivos Juízes Corregedores da Polícia Judiciária.
Em um segundo momento, concluindo-se pela manutenção de tal poder, mesmo após o advento da Constituição Federal de 1988, buscaremos traçar os limites para o exercício de tal atribuição, a fim de adequá-la ao modelo de Estado – democrático e de Direito – constituído pela Lei Fundamental, seus fundamentos e objetivos.
A questão é tormentosa e suscita controvérsias, de forma que procuraremos, tanto quanto possível, expor os argumentos levantados para sustentar cada posicionamento, a fim de chegarmos à conclusão – que reputamos - juridicamente mais adequada e compatível com a tutela dos direitos e garantias fundamentais.
Iniciaremos o estudo, por isso, pela exposição das normas constitucionais federais que tratam direta ou indiretamente do tema, buscando realizar interpretação sistemática.
A seguir nos dedicaremos à exposição do quanto previsto na Constituição do Estado de São Paulo e, a partir da conceituação de "atos de polícia judiciária", concluir pela sua submissão, ou não, à correição pelo Poder Judiciário.
No item seguinte apresentaremos alguns tópicos da legislação federal ordinária que embasam – e delineiam a esfera de atuação – do poder correcional do Poder Judiciário sobre os atos de polícia.
Por último, são destacadas as questões que não se inserem na competência da Corregedoria Permanente e que fixam, ainda que de forma fluida, a sua esfera de atuação.
A exposição não pretende ser definitiva e muito menos esgotar o tratamento do tema, mas tão-somente contribuir, ainda que reconhecidamente em pequeno grau, para a solução dos problemas atinentes à matéria.
2. Aspectos Constitucionais
A Constituição Federal, em seu art. 144, § 4º, dispõe que, ressalvada a competência da União, incumbem às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, as funções de polícia judiciária e apuração de infrações penais, exceto as militares.
Com fulcro neste dispositivo já se decidiu que: "Não está o Juiz do DIPO investido, portanto, de poder para apurar, numa fase preliminar, a ocorrência de infrações penais, em procedimento similar a de um juizado de instrução, que não está agasalhado em nosso sistema jurídico". [01]
A conclusão poderia ser correta se a norma referida atribuísse à polícia civil exclusividade para a apuração de fatos delituosos – o que não fez – e não constituísse parte integrante do ordenamento [02] constitucional, cuja interpretação não pode se limitar à literalidade dos dispositivos, exigindo, para tanto, a compreensão sistemática e teleológica, em conjunto, portanto, com os direitos individuais estabelecidos.
Com efeito, excluir-se do Poder Judiciário, simplesmente, qualquer possibilidade de atuação efetiva ante aos eventuais abusos perpetrados por policiais, no exercício ou em decorrência de suas funções, fulmina uma série das garantias estabelecidas pelo art. 5º, da Constituição Federal, impedindo a concreção dos valores erigidos à categoria de fundamentais pelo constituinte.
A possibilidade de averiguação e apuração pelo Poder Judiciário de ilícitos penais porventura praticados por policiais, ao reverso, vai ao encontro dos fundamentos constitucionais da dignidade humana [03] e da cidadania [04], na medida em que confere não apenas limite, mas especialmente correção a eventual desvio do exercício do poder de polícia judiciária conferido aos órgãos de segurança pública.
Não são poucos os dispositivos constitucionais que respaldam a tese acima esboçada e, ainda que de forma implícita, legitimam a intervenção do Poder Judiciário, mediante a Corregedoria da Polícia Judiciária, à apuração de ilícitos penais perpetrados por membros da polícia civil, não constituindo atribuição privativa deste órgão da segurança pública o exercício de tal atividade.
De início, neste diapasão, cabe ressaltar o direito de petição, garantido pelo inciso XXIV, alínea a, do art. 5º, da C.F.,que assegura a todos o direito de reclamar aos Poderes Públicos contra ilegalidades ou abuso de poder.
Verificado ato ilegal e abusivo por parte de integrantes da polícia, apto a violar bens jurídicos de alguém, ao prejudicado se possibilita, por força de previsão constitucional, o "direito de petição" aos Poderes da República, inclusive ao Judiciário, para que o ato abusivo ou ilegal seja cessado, apurado e, posteriormente, punido.
Ora, sentido algum haveria em se possibilitar o exercício do direito de petição ao Poder Judiciário contra atos da polícia e, concorrentemente, excluir-se deste Poder qualquer possibilidade de apuração por se considerar como único órgão com atribuição para tanto a própria Polícia Civil. A garantia fundamental, nestas condições, perderia toda a substância e passaria a constituir mera declaração formal, vazia de cor e conteúdo.
Poder-se-ia objetar ao argumento supracitado que o direito de petição, na hipótese, seria cabível somente em relação ao Poder Executivo – e seus órgãos -, único com atribuição para apurar eventual fato ilícito.
A objeção, no entanto, seria falaciosa, pois a garantia representada pelo "direito de petição" é complementada, à evidência, por aquela prevista pelo inciso XXXV, do art. 5º, da C.F., o qual estabelece que "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de direito".
Assim, contra ilegalidade ou abuso de poder por parte de policiais civis, cabe a qualquer do povo o "direito de petição" – que pode ser interpretado ou denominado, também, como de representação ou de impulso – ao Poder Judiciário, para que, no exercício de sua função correcional, aprecie a lesão ou ameaça de direito, não apenas individual – imediata -, mas da sociedade como um todo – mediata -, já que o exercício irregular da atividade policial violenta o bem jurídico "segurança".
A afirmação de que a subtração do Poder Judiciário da possibilidade de apuração de ilícitos penais cometidos por policiais civis não representa exclusão da apreciação de lesão ou ameaça de direito, "porque se está frente à uma fase pré-processual, que não é a sua" (sic.) [05], não pode, data vênia, ser admitida, pois a Constituição Federal não prescreve que a tutela de direitos somente se dará após a instauração da relação jurídica processual.
Ao contrário, visando a evitar os abusos de policiais – entre outros - e espancá-los, quando presentes, prevê, no inciso LXII, do art. 5º, que "a prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre serão comunicados imediatamente ao juiz competente"; em seu inciso LXV, "que a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária"; no inciso LXVIII, do mesmo artigo, que se concederá "habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder".
Se todos estes dispositivos conferem ao Juiz o dever de apreciar e afastar a restrição indevida a direitos individuais, atribuem-lhe também, para que seja possível a plena consecução desta função garantista, o poder de averiguar e apurar as circunstâncias da realização dos atos de polícia judiciária.
A Constituição Federal, portanto, embora não preveja de forma expressa a correição dos atos de polícia judiciária pelo Poder Judiciário, não a exclui; ao contrário, de forma implícita a acolhe, como instrumento para a realização dos direitos e garantias individuais.
3. Natureza jurídica dos atos de polícia judiciária
Dispõe o art. 125, § 1º, da Constituição Federal, que: "A competência dos tribunais será definida na Constituição do Estado, sendo a lei de organização judiciária de iniciativa do Tribunal de Justiça".
A Constituição do Estado de São Paulo, em seu art. 77, reza que compete ao Tribunal de Justiça, por seus órgãos, o exercício do controle sobre atos e serviços auxiliares da Justiça.
A regulamentar a disposição constitucional estadual – tendo sido por ela recepcionado – encontra-se, primeiro, o Código Judiciário do Estado de São Paulo (Decreto-lei complementar n. 3/69), ainda em vigor, que conta com a seguinte redação, em seu artigo 50: "a correição permanente consiste na atividade fiscalizadora dos órgãos da justiça sobre todos os seus serviços auxiliares, a Polícia Judiciária e os presídios, e será exercida nos termos do regimento próprio".
Por fim, no que concerne ao Departamento de Inquéritos Policiais e Corregedoria da Polícia Judiciária da Capital (DIPO), a Resolução n. 11/85, do Conselho Superior da Magistratura do Estado de São Paulo, em seu art. 2º, inciso II, prescreve que lhe compete "proceder as atividades inerentes à Corregedoria da Polícia Judiciária no âmbito da Capital".
Este aparato normativo legitima, a nosso ver, a função correcional – e investigatória – desempenhada pela Corregedoria da Polícia Judiciária, pois sendo a polícia judiciária serviço auxiliar da Justiça, sujeita-se ao seu controle e fiscalização, que não pode se resumir a mera função formal de verificação – extrínseca - de regularidade de atos, mas, como já afirmado, destina-se à concreção dos fundamentos constitucionais e preservação dos direitos e garantias individuais.
Poder-se-ia argumentar que a polícia judiciária, subordinada administrativa, hierárquica e disciplinarmente ao Poder Executivo, não estaria sujeita ao controle ou correição da Corregedoria do Judiciário, uma vez que não se trataria de serviço auxiliar da Justiça.
O eventual argumento, contudo, não merece acolhida.
Com efeito, constituem atos de polícia judiciária aqueles destinados à formação da opinio delictis do órgão acusador, mas não só, pois, em variadas hipóteses, não se limita a caracterizar a justa causa para a instauração da relação jurídica processual, pois traz em seu bojo verdadeiro acervo probatório, colhido antecipadamente – apreensões, laudos de exames de corpo de delito, outras perícias, reconstituição, etc. -, que se destina à formação do convencimento do juiz.
Os atos de polícia judiciária, portanto, embora tenham como destinatário primeiroo titular da ação penal, são dirigidos, principalmente, ao Poder Judiciário, na medida em que o auxiliam na realização de suas finalidades – justiça –, bem como dos fins do processo. [06]
Estas características conferem à Polícia Judiciária o caráter de órgão auxiliar da Justiça – o que se denota, aliás, de sua denominação. [07]
Neste sentido o posicionamento de Eduardo Espínola Filho: "No sistema jurídico [adotado em nosso país], a polícia tem por fim, não só prevenir os delitos, não só evitar que os delinqüentes fujam à ação da justiça, mas também auxiliar a ação judiciária na investigação dos indícios e provas do crime; exercendo as funções da segunda espécie, a polícia é judiciária, ora agindo por si, como no caso da prisão em flagrante, ora sob determinação judicial, como no caso da prisão preventiva". [08]
Logo, os atos de polícia judiciária, a par de sua natureza administrativa e da não subordinação hierárquica ou disciplinar de seus agentes ao Poder Judiciário, caracterizam-se como serviços auxiliares da Justiça, por terem como escopo – já que o inquérito não existe como fim em si mesmo – viabilizar a realização de atividade típica deste Poder.
E, tratando-se de serviço auxiliar, deve se sujeitar à fiscalização do Judiciário, que, como tal, exerce o poder para apuração de fatos, em procedimento correcional. [09]
4. Legislação Ordinária e Poder Correcional
Além dos fundamentos já expostos, não se pode deixar de considerar que uma série de dispositivos da legislação ordinária confere ao Juiz a possibilidade, quer de apuração de fatos, independentemente de participação policial – o que exclui a tese de exclusividade da polícia judiciária para os atos de investigação -, quer de fiscalização, de mão própria, da atividade policial.
Somente a título de ilustração, de início cabe ressaltar a previsão constante da Lei de Prisão Temporária.
Com efeito, dispõe o art. 2º, § 3º, da Lei 7.960 de 21 de dezembro de 1989, que: "o juiz poderá, de ofício, ou a requerimento do Ministério Público e do advogado, determinar que o preso lhe seja apresentado, solicitar informações e esclarecimentos da autoridade e submetê-lo a exame de corpo de delito".
Deste dispositivo depreende-se que ao Juiz, ao deferir a prisão temporária, concede-se o poder de aferir – apurar, investigar – a lisura dos atos policiais quanto ao cumprimento da medida privativa de liberdade, não apenas com efeito preventivo, como também para proporcionar a punição dos responsáveis por eventual incursão em abuso de poder, em afronta aos direitos e garantias individuais. Assim não fosse e não haveria sentido em se conferir ao Juiz a possibilidade de determinar a sujeição do preso a exames de corpo de delito, sua apresentação em Juízo – e conseqüente oitiva – e requisição de informações e esclarecimentos por parte da Autoridade Policial; e, como é cediço, a lei não contém palavras ou disposições inúteis, de forma que o poder judicial de apuração das circunstâncias de cumprimento da prisão temporária não pode, simplesmente, ser desconsiderado.
Neste sentido o posicionamento adotado por Arthur Pinto de Lemos Júnior, em brilhante artigo sobre o tema: "forçoso reconhecer que a apuração levada a efeito pelo DIPO decorre da própria Lei de Prisão Temporária – Lei n. 7.960/89: o parágrafo 3º, do art. 2º recomenda a submissão do preso a exame médico, relativo ao dia da entrada e saída do cárcere. Como já escreveu o procurador de justiça, Dr. Roberto Calderano, "se assim não fosse, não haveria razão para os presos passassem por exames físicos, realizados por médicos legistas oficiais"". [10]
A Lei de Execução Penal também legitima, a nosso ver, o poder de investigação – correcional - da Corregedoria da Polícia Judiciária.
Com efeito, o art. 66, incisos VI e VII, da Lei de Execuções Penais (Lei 7.210/84), prevê que compete ao Juiz das Execuções zelar pelo cumprimento da pena e da medida de segurança, tomar providências para o adequado funcionamento dos estabelecimentos penais e, quando o caso, promover a apuração da responsabilidade.
Denota-se, pois, que incumbe ao Juiz das Execuções não apenas a prática de atos jurisdicionais, mas também de natureza administrativa, inclusive investigatória, quando houver indícios – ou notícias – de violação a direitos dos presos, seja em razão de deficiências materiais – o que pode, inclusive, levar à interdição do estabelecimento, nos termos do inciso VIII, do mesmo artigo -, seja em decorrência de abuso de poder dos agentes públicos.
O mesmo poder-dever é atribuído ao Judiciário em relação aos presos provisórios, por força do disposto no parágrafo único, do art. 2º, da Lei de Execução Penal, sendo de rigor anotar que, na Comarca de São Paulo, incumbe ao DIPO a fiscalização – correição – sobre as carceragens das Delegacias de Polícia – em princípio destinadas, apenas, para presos em trânsito – e cadeias públicas que abriguem – ou que se destinam a abrigar - apenas presos não julgados sequer em primeira instância – não sujeitos a execução provisória.
Ora, se ao Poder Judiciário impõe-se a fiscalização e apuração de irregularidades cometidas durante o cumprimento da pena e se tal disposição aplica-se, também, aos presos provisórios, conclui-se que decorre da própria lei o seu poder de investigação – nesta hipótese específica, portanto, explícito – a respeito de abusos contrários aos direitos dos custodiados.
Entendimento contrário, como bem anotado pelo Desembargador Adilson de Araújo, então Juiz Assessor da Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo, em seu já citado parecer, criaria "situação de desigualdade para os presos provisórios recolhidos em Distritos Policiais ou Casas de Detenção, que não pode ser reconhecida face do que dispõe o art. 5º, caput, da Magna Carta (...). Se o juiz tem poder correcional sobre presídios, por que não tê-lo sobre Delegacias de Polícia, nas quais, sabidamente, são encarceradas pessoas sem título executório (presos provisórios)?"
A Lei de Execução Penal, portanto, objetivando acautelar os direitos e garantias individuais, também ampara a atividade investigatória do Juiz Corregedor da Polícia Judiciária.
Por fim, ainda como fundamento à atividade investigatória do Judiciário – e inexistência de exclusividade, para tanto, da Polícia Civil -, podemos citar o art. 307, do Código de Processo Penal, que disciplina o instituto da voz de prisão.
Nos termos do citado dispositivo: "Quando o fato for praticado em presença de autoridade, ou contra esta, no exercício de suas funções, constarão do auto a narração deste fato, a voz de prisão, as declarações que fizer o preso e os depoimentos das testemunhas, sendo tudo assinado pela autoridade, pelo preso e pelas testemunhas e remetido imediatamente ao juiz a quem couber tomar conhecimento do fato delituoso, se não o for a autoridade que houver presidido o auto".
Indubitável que esta norma processual obriga a Autoridade Policial e permite à Autoridade Judiciária que, diante de infração penal praticada contra ela ou na sua presença, não apenas dê voz de prisão ao infrator, mas também lavre o respectivo auto.
Ora, o auto de prisão em flagrante, conforme ressalta Heráclito Antonio Mossin, "é forma inicial de inquérito policial (art. 8º, c.c. o art. 304, § 1º, do CPP)" [11], ou seja, concretiza ato investigatório destinado à formação do convencimento do Ministério Público – titular da ação penal – e produção de elementos probatórios que propiciarão a consecução das finalidades do processo penal, de forma que, mais uma vez, presente se encontra no ordenamento a possibilidade de exercício, pelo Juiz, de atos de apuração de fatos delituosos antes da instauração da relação jurídica processual.
Observa-se, pois, que a legislação ordinária [12], se interpretada de forma sistemática e teleológica, como instrumento para a concretização e preservação dos direitos e garantias individuais, legitima, por um lado, a prática de atos de apuração por parte do Juízo Corregedor da Polícia Judiciária, e, por outro, afasta eventual pretensão de exclusividade da polícia civil quanto aos atos de investigação.