4 Inclusão e exclusão energética
O que chama a atenção nesse cenário atual da política energética global é que, independentemente das opções políticas possíveis, o desenvolvimento das tecnologias de produção alternativa de energia implica em uma descentralização radical da geração de energia e, por isso, uma pluralização da matriz energética nacional e mundial. Constitui-se, assim, um sistema complexo de produção, transporte, distribuição e consumo de energia, que ultrapassa os tradicionais modelos jurídicos de definição normativa das condições de inclusão/exclusão energética. Se antes a inclusão energética exigia a observância de regras jurídicas oficiais para a participação em uma rede pública de distribuição de energia, agora a inclusão energética exige a observância de regras não oficiais, criadas de modo descentralizado, no âmbito de organizações não-estatais transnacionais – como por exemplo algumas cooperativas de economia solidária e grupos de empresas ou condomínios industriais com auto-suficiência energética.
Enquanto um sistema de produção dependia da energia centralizada na rede pública de distribuição, com os avanços das tecnologias de produção alternativa de energia essa dependência tende à diminuição. E isso significa uma exigência de se ultrapassar a observação da produção oficial do Direito da Energia pelo Estado, para observar também a produção espontânea de normas nesses sistemas periféricos ao sistema energético central do Estado. Em outras palavras, na medida em que os processos produtivos da sociedade estão fortemente conectados à disponibilidade energética, a descentralização da produção energética cria possibilidades de transnacionalização dos processos produtivos. Para o Direito da Energia, isso significa a exigência de um cruzamento da linha de fronteira que separa o direito Estatal do direito criado espontaneamente em setores não-estatais, que possivelmente apresenta-se em relação de concorrência com o direito oficial dos Estados-nação.
Essa descentralização da relação de inclusão/exclusão energética produz, também, uma descentralização dos modos de relacionamento da sociedade com os recursos naturais. E isso significa que o conceito de energia se torna uma peça teórica chave para a observação do modo através do qual a sociedade contemporânea se relaciona com o seu ambiente. Quando toda a energia disponibilizada para o consumo estava centralizada em uma rede pública de distribuição, as novas tecnologias de produção de energia só poderiam ser pensadas enquanto fossem compatíveis com essa rede pública (Scheer, 2000, p. 214). Um projeto de geração de energia limpa, por exemplo, só seria viável na medida em que a tecnologia resultante fosse compatível com a rede pública. Mas na medida em que a legislação autoriza a autoprodução de energia em sistemas privados, abre-se a possibilidade de se pensar no desenvolvimento de novas tecnologias limpas de produção de energia, não mais dependentes da compatibilidade com a rede pública de distribuição.
Os impactos disso são enormes: na economia, os fatores de produção clássicos – capital e trabalho – ganham outro sentido: capital tecnológico e energia. E agregando-se a esses fatores de produção a informação e os recursos naturais, o foco da observação econômica os processos sociais comunicativos se desloca, do lucro, para as condições de possibilidade da sustentabilidade dos processos mesmos. Isso significa uma mudança de visão a respeito do sentido do desenvolvimento. A economia de mercado, ligada aos processos produtivos de organizações empresariais, passa a constituir uma sensibilidade cognitiva à questão da energia. E a energia não pode, nesse contexto, ser entendida como algo desconectado da tecnologia e dos recursos naturais. Pois os limites da geração de energia são limites tecnológicos e ambientais. Um território que dispõe de condições ambientais favoráveis à geração de energia – como é o caso do território brasileiro e da América Latina em geral – só poderá conquistar autonomia energética se dispor, também, de tecnologia. E do mesmo modo, um território que dispõe de tecnologia para geração de energia – como é caso da Europa ocidental – só poderá conquistar autonomia energética se dispor, também, de recursos ambientais.
Por isso que inclusão energética pressupõe disponibilidade tecnológica. E também por esse motivo, a disponibilidade ambiental para a geração de energia não significa nada enquanto não se dispõe, também, de tecnologia [04]. Em outras palavras, não existe autonomia energética enquanto não existir autonomia tecnológica. A potência cafeeira e açucareira do Brasil do Século XIX não difere muito, desse ponto de vista, do otimismo da opinião pública a respeito das possibilidades de geração de energia a partir da biomassa e de outras fontes alternativas de energia. Energia e tecnologia são, portanto, conceitos inseparáveis no contexto atual da política energética mundial. Alguns fornecem os recursos naturais disponíveis, outros exploram economicamente esses recursos e ditam as regras. Os que fornecem acabam se submetendo às exigências, tecnologicamente justificadas, dos que detêm a tecnologia. A diferença entre a situação de um e do outro está, portanto, no domínio da tecnologia. E para isso o direito presta uma importante contribuição: é ele que garante o direito de propriedade das tecnologias, na forma das patentes, distinguindo entre proprietários e não-proprietários, vale dizer, entre inclusão e exclusão no sistema de produção-transmisão-distribuição-consumo de energia.
5 Energia e tecnologia
A expressão "energia" tem muitos sobrenomes. Os quais se expandem inclusive para completar referências de sentido no âmbito da comunicação religiosa, das chamadas parapsicologias e de inúmeras outras referências esotéricas do conceito. Desde o que ocorre no Sol até o que ocorre dentro de um chuveiro elétrico, a energia está na base de referência da construção dessas explicações científicas. E trata-se de um conceito que se utiliza em diversos contextos comunicativos. Desde a energia do amor para contextos interpessoais, até a energia elétrica para contextos de mercado, de engenharia, de tecnologia e etc. Pode-se falar, então, de um denominador em comum? Pode-se observar um único conceito de energia a partir dessa diversidade de referências?
Seguindo o script teórico de Niklas Luhmann, pode-se utilizar o cálculo da forma de Spencer Brown (1979) e perguntar pelo re-entry (o fundamento paradoxal) da forma em si mesma [05]. Pode-se perguntar, por exemplo, o que fica excluído quando se faz referencia à energia (forma de diferença) e o que sobra quando se aplica essa forma em si mesma (re-entry). Se a energia for colocada como diferença da estagnação, por exemplo, pode-se ver que na re-entry dessa forma se encontra o paradoxo da energia estar fundamentada na natureza – a energia existe ontologicamente na natureza, no sol, nos relâmpagos de uma tempestade, na força cinética, eletrostática e etc. – e, ao mesmo tempo, estar fundamentada na necessidade humana. Buscar um fundamento aqui, então, só pode apontar para Deus ou para a natureza como dádiva.
Por isso, seguindo a matemática da forma de Spencer Brown, pretendemos colocar a energia como diferença da tecnologia. Com efeito, a forma "energia/tecnologia" parece ser o modo mais adequado para se observar a atual dinâmica comunicativa da energia da sociedade contemporânea. Energia e tecnologia são os dois lados de uma mesma forma de diferença, são os dois lados de um paradoxo autoconstitutivo. Pois para produzir energia é necessário dispor de tecnologia. Mas ao mesmo tempo só se dispõe de tecnologia quando já se tem energia. A energia pressupõe tecnologia, que por sua vez pressupõe energia. A questão do início ou do fim desse cálculo auto-indicativo – a auto-recursão "energia/tecnologia" – se resolve com o conceito de autopoiese: ocorre o que ocorre, sem uma origem absoluta ou uma finalidade necessária.
O paradoxo da energia então é resolvido, no direito, através da transcendentalização econômica do "bem" energia. Em outros termos, para o direito, o fundamento da energia está na referência às necessidades básicas de subsistência da humanidade, ou seja, a energia tem um fundamento econômico. Do mesmo modo, o paradoxo da energia se resolve, no sistema econômico, através da transcendentalização ecológica da energia. Para a economia, o fundamento da energia está na referência ecológica, quer dizer, na referência à continuidade/descontinuidade das operações econômicas. A energia serve, assim, de fundamento econômico para o Direito da Energia e, ao mesmo tempo, de fundamento ecológico para a economia. Por isso a energia constitui um elo de ligação entre direito, economia e ecologia, quer dizer, constitui um medium de comunicação, que recepciona formas de acoplamento estrutural.
E ultrapassando as referências aos sistemas jurídico e econômico, pode-se observar como o sentido da energia se constitui de modo diferente conforme se passa de um sistema de referência para outro. Assim, do ponto de vista da ecologia, o sentido da energia já aparece sob a distinção entre sobrevivência e decadência. Uma decisão ecológica, orientada cognitivamente (hetero-referência) à energia, não vê a energia tal como o sentido que a ela se atribui no campo da economia ou do direito. Enquanto na contextura jurídica a energia é um bem juridicamente tutelado como uma questão de interesse público, na economia a mesma energia aparece como um elemento externo ao sistema econômico (pagamento/não-pagamento), que deve ser levado em consideração a partir de uma relação entre custo e oportunidades. E a mesma energia, do ponto de vista da ciência, aparece já sob o sentido constituído sob o código "verdade/falsidade". A "policontexturalidade" [06] está nisto: dependendo do sistema/função a partir do qual se observa a energia, o seu sentido muda. E muda de modo contingente, quer dizer, os diversos sentidos possíveis da energia não são necessariamente incompatíveis entre si e, ao mesmo tempo, são igualmente fundamentais. A questão então é: como o Direito da Energia pode se organizar na forma de princípios que lhe garantam autonomia e, ao mesmo tempo, sensibilidade a essa multiplicidade de referências sociais possíveis?
6 Princípios do Direito da Energia
O direito precisa de princípios. Se ele não os encontra em semânticas sociais consolidadas, ele os cria nas práxis mesma das decisões judiciais. Prestando contas a Kurt Gödel, pode-se definir um princípio como uma referência externa que serve para resolver um problema de referência interno. A incompletude do teorema exige um ir além, exige um transcendentalizar-se, exige um suplemento ou uma Différend no sentido de Derrida (2004, p. 203; 2007, p. 109). No âmbito do direito, essa gödelização do paradoxo da auto-referência é algo normal: instituem-se princípios do mesmo modo que a lógica clássica institui o terceiro excluído. Mas ao fazer isso, o terceiro excluído já passa a ser incluído, quer dizer, já passa a constituir-se na forma de um paradoxo que exige uma constante busca de referências exteriores, uma constante energia de assimetrizações, de desdobramentos do paradoxo. Ao se pensar em princípios, portanto, não nos referimos simplesmente àquilo que o direito positivo mesmo institui como princípios, mas sim àquilo que as decisões jurídicas mesmas dão como um suposto inquestionado de validade universal. Por isso que a pergunta por princípios jurídicos deve ser, em última análise, uma pergunta pelo contra o quê se usam princípios.
Nessa perspectiva, um breve retrospecto semântico de princípios atribuídos pela doutrina jurídica especificamente ao Direito da Energia – quer dizer: sem correspondentes nos demais ramos do direito – pode ser encontrado somente a partir de 1900. Em um contexto de liberalismo econômico e político, Pippia (1900, p. 320) pensou em um princípio específico para reger o Direito da Energia: "Un primo principio dev’essere proclamato in modo solenne ed indubbio: quello dell’abolizione di ogni monopolio, dell’assoluta nulità di ogni concessione esclusiva e privilegiata". Para Pippia, a energia elétrica apresenta uma imensa utilidade social e por isso se deveria favorecer a descentralização, limitando a aglomeração de várias pessoas a um só estabelecimento. Só assim os benefícios da energia elétrica poderiam ser distribuídos, não ficando submetidos aos caprichos do concessionário: "Il principio della libertà dell’industria e dei commerci deve, in materia di elettricità, essere affermato senza riserve nè restrizioni. Dalla concorrenza deli impianti elettrici, dal loro evolutivo e progrediente svolgimento devono trarsi i massimi benefici per l’economia publica e la prosperità nazionale" (Pipia, 1900, p. 321). Esse movimento foi semelhante no Brasil do início do Século XX, no qual não havia monopólio na geração e distribuição de energia, embora houvesse um monopólio no consumo da energia pelo Estado [07].
Outro princípio, no contexto da doutrina jurídica brasileira da década de sessenta, pode ser lido em Vilhena (1968), quando propõe a tutela da não-interrupção do fornecimento regular de energia ao consumidor. No mais, as autodescrições do Direito da Energia não se preocuparam muito com a construção de princípios próprios durante o Século XX. A preocupação estava ligada mais à questão da autonomia disciplinar baseada em temáticas relacionadas à energia do que em princípios próprios [08]. Assim, apesar das divergências teóricas na organização das subdivisões, a unidade do Direito da Energia e, por isso, a sua identidade disciplinar no campo jurídico, ficava garantida pela referência àquela base unívoca de sentido que desempenhava a semântica da tecnologia (Álvares, 1968; Feitosa, 1972). E desse modo, as autodescrições do Direito da Energia possibilitaram a colocação de si mesmas em uma forma seletiva e ao mesmo tempo abrangente, capaz de incluir conceitos que vão desde "um conjunto de regras que disciplinam os resultados tecnológicos de aplicação da eletricidade ao meio social" (Álvares, 1974a, p. 158), até a articulação de relações como esta: "direito e energia são suportes do trabalho tecnológico e econômico no contexto grandioso da siderurgia, nenhum dispensando o outro" (Álvares, 1974b, p. 59).
Uma solução elegante como esta esconde o fato de, no fundo, haver um deslocamento do âmbito de referência, da energia, para os resultados tecnológicos. O que chama a atenção é que, apesar disso, nem a energia, nem a tecnologia são objetos do Direito da Energia. Mas sim o resultado tecnológico do uso da energia na sociedade. Observa-se claramente que, para driblar a auto-referência da relação "energia/tecnologia", essas descrições criam um suposto inquestionado de que a forma jurídica seria o mecanismo de ontologização do objeto tecnológico [09]. Só atualmente é que podemos extrair, a partir de uma comparação entre as expectativas semanticamente consolidadas no campo da energia e as correspondências normativas em outras áreas do direito, a existência de princípios específicos do Direito da Energia. Assim, além dos princípios da continuidade, modicidade tarifária e adequação do serviço, comum a todos os serviços públicos concessionados (art. 175 da Constituição Federal e 22 do Código do Consumidor) [10], podemos também inferir alguns princípios específicos do Direito da Energia, como por exemplo os princípios da segurança no aprovisionamento energético, eficiência energética, não-retrocesso na utilização de tecnologias, acesso universal à rede de distribuição de energia, além do princípio da liberdade energética (no sentido de liberdade de escolha do fornecedor).
Cada um desses princípios estabelece uma mediação entre as operações auto-referenciais do sistema jurídico e uma contextura do ambiente social. A segurança no aprovisionamento energético, por exemplo, estabelece uma mediação comunicativa ente direito e ecologia, a eficiência energética conecta o direito à economia da sociedade, o não-retrocesso na utilização de tecnologias acopla o direito ao sistema científico, o acesso universal à rede de distribuição de energia permite a entrada de referências políticas no direito e, por fim, a liberdade energética oportuniza a conexão das decisões jurídicas sobre energia/tecnologia com a semântica jurídica da sociedade moderna. Além desses princípios, na comunicação da União Europeia aparece também uma referência a sistemas de organização, a qual é realizada através do princípio da descentralização da produção e unificação do mercado energético.
Naturalmente, a constituição desses princípios jurídicos – que, gize-se, servem para tornar decidíveis as decisões que, sem eles, não seriam possíveis –, pressupõe como pano de fundo uma sociedade mundial organizada na forma da diferenciação funcional (Luhmann, 2007, p. 589; Luhmann & De Giorgi, 2003, p. 302). Somente uma sociedade funcionalmente diferenciada disponibiliza contextos de decisão diferentes e, ao mesmo tempo, igualmente essenciais.