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Eu tenho um sonho...

Agenda 23/12/1998 às 00:00
"I have a dream"
(Martin Luther King)

"Só o homem é o arquiteto de seu próprio destino"
(William James)




Há os que estudam direito e que têm como objetivo o sucesso profissional... Há os que estudam direito porque têm um sonho...Sim, eu tenho um sonho...

E nesse sonho está o Direito e a Justiça do Trabalho. Essa "justicinha", que simplesmente regula a relação capital-trabalho, relação esta sobre as quais se assentam tantas outras, tantas aspirações e que para muitas pessoas é sinônimo de "sobrevivência".

Christophe Dejours in A loucura do trabalho chama a atenção para o fato de que o trabalho contribui para a formação da personalidade, através da construção da auto-imagem, mostrando que ele não é fonte apenas de satisfação patrimonial, mas pode ser fonte de satisfação simbólica e emocional do trabalhador.

Num momento em que se discute o desmanche de direitos sociais e principalmente do direito do trabalho, que até hoje tem a marca da proteção patrimonialista do empregado na relação desigual que este mantém com o empregador, falar da ampliação da tutela do direito do trabalho para que ela possa abarcar o aspecto emocional e mental do trabalhador soa a utopia. Sim, eu tenho um sonho...

Um pronunciamento sobre o Dia do Trabalho dos Trabalhadores das Comunicações dos Estados Unidos deu ênfase à preocupação quanto a trabalhos significativos: "...as pessoas com menos de 30 anos de idade desejam trabalho que tenha significação e ofereça uma chance de crescimento pessoal..."

A melhoria do trabalho e a humanização do local de trabalho foram integradas na filosofia de administração de muitas companhias. Equipes de trabalho semi-autônomo foram formadas. Salários mais altos foram concedidos com base em testes de eficiência e não de descrição de trabalho. Livros de ponto substituíram os relógios de ponto, símbolos infernais de desumanização e de falta de confiança. Linhas de montagem foram divididas em grupos menores. Muitas empresas estavam fazendo experiências com "horário flexível", um procedimento que permite aos empregados escolherem seu horário de trabalho, dentro de certos limites.

Há a necessidade de um novo paradigma, em que o trabalho seja um veículo para a transformação. Através do trabalho estamos plenamente engajados na vida. O trabalho pode ser aquilo a que Milton Mayerhoff chamou "o outro eu apropriado", o que nos exige, o que nos preocupa. Ao atender à vocação - a chamada, o apelo daquilo que necessitamos fazer - criamos e descobrimos significado, único para cada um de nós e sempre em mutação.

A significação pode ser descoberta e expressa em qualquer atividade humana: limpeza, ensino, jardinagem, carpintaria, negócios, cuidados com crianças, direção de táxis. E dentro dessa perspectiva o trabalhador cria uma nova atitude que modifica a própria experiência do trabalho cotidiano. O trabalho se torna um ritual, um jogo, uma disciplina, uma aventura, um aprendizado, até uma arte, à medida que nossa percepção se modifica. A tensão do tédio e a tensão do desconhecido, as duas causas de sofrimento relacionadas com o trabalho, são transformadas. Uma qualidade mais fluente de atenção nos permite a realização de tarefas que antes nos pareciam repetitivas ou desagradáveis. A monotonia diminui, do mesmo modo que a dor se aplaca quando abandonamos uma resistência fútil a ela.

Sim, eu tenho um sonho...Um sonho em que os estudos da psicologia na área do trabalho possam mostrar os caminhos a serem seguidos na implantação de meios que possam tornar o local de trabalho em fonte de satisfação simbólica e emocional, diminuindo o sofrimento, a carga de medo e ansiedade relacionada a algumas tarefas e a falta de "sentido" que permeia hoje o mundo do trabalho. Um sonho em que o direito busque a tutela de outros aspectos implicados na relação de trabalho e force a realização desse "sonho".

Christophe Dejours in A loucura do trabalho aponta as causas da insatisfação e de desestruturação psíquica do trabalhador. Há a insatisfação em relação ao conteúdo significativo da tarefa e quanto ao conteúdo ergonômico desta (as exigências da tarefa, ou a "carga de trabalho" é o que se denomina conteúdo ergonômico). A organização do trabalho, concebida por um serviço especializado da empresa, estranho aos trabalhadores, choca-se frontalmente com a vida mental, e mais precisamente, com a esfera das aspirações, das motivações e dos desejos. Via de regra, quanto mais a organização do trabalho é rígida, mais a divisão do trabalho é acentuada, menor é o conteúdo significativo do trabalho e menores são as possibilidades de mudá-lo. Correlativamente, o sofrimento aumenta. A insatisfação proveniente de um conteúdo ergonômico (este entendido como adaptação homem-máquina) inadaptado à estrutura da personalidade também é fonte de sofrimento. Os efeitos desta carga e o sofrimento estão no registro mental e se ocasionam desordens no corpo, não são equivalentes às doenças diretamente infligidas ao organismo pelas condições de trabalho. O conflito não é outro senão o que opõe o homem à organização do trabalho (na medida em que o conteúdo ergonômico do trabalho resulta da divisão do trabalho).

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O autor analisa ainda o impacto da "ansiedade" no local de trabalho, agrupando-a sob diferentes itens:

1. Ansiedade relativa à degradação do equilíbrio psicoafetivo e do funcionamento mental: a primeira resulta da desestruturação das relações psico-afetivas espontâneas com os colegas de trabalho, de seu envenenamento pela discriminação e suspeita, ou de sua implicação forçada nas relações de violência e de agressividade com a hierarquia. A necessidade de descarregar a agressividade provoca a contaminação das relações fora da fábrica, e em particular, das relações familiares. O segundo tipo de ansiedade diz respeito à desorganização do funcionamento mental: é o sentimento de esclerose mental, de paralisia da imaginação, de regressão intelectual, de despersonalização, proveniente de um esforço para manter os comportamentos condicionados.

2. Ansiedade relativa à degradação do organismo: as más condições de trabalho colocam o corpo em perigo de duas maneiras: risco de acidente de caráter súbito e de grave amplitude (queimaduras, ferimentos, morte), doenças profissionais ou de caráter profissional, aumento do índice de morbidade, doenças psicossomáticas. Nas condições de trabalho é o corpo que recebe o impacto, enquanto na organização do trabalho o alvo é o funcionamento mental. A ansiedade é a sequela psíquica do risco que a nocividade das condições de trabalho impõe ao corpo.

3. Ansiedade gerada pela "disciplina da fome": apesar do sofrimento mental que não pode mais ser ignorado, os trabalhadores continuam em seus postos de trabalho expondo seu equilíbrio e seu funcionamento mental à ameaça contida no trabalho, para enfrentar uma exigência ainda mais imperiosa: sobreviver. Ansiedade da morte a que alguns autores deram o nome de "disciplina da fome".

Sim, eu tenho um sonho...Um sonho em que o Direito do Trabalho desça o seu olhar para esses outros aspectos da relação de trabalho e possa contribuir para a formação de um mundo do trabalho mais humano, o que significará um mundo mais humano, tal a força e o significado da relação de emprego.

Eu sonho com um mundo onde a "prevenção" seja a palavra de ordem, onde a humanização seja um objetivo em si mesmo e em que não apenas o aspecto patrimonialista seja o foco de tutela do Direito do Trabalho, e não apenas a indenização seja o objeto de ações trabalhistas, e não apenas a remuneração e seus desdobramentos sejam o conteúdo principal de uma norma coletiva de trabalho. Eu sonho com um mundo onde o trabalho seja o espaço para a criatividade, para a superação de desafios, para o auto-desenvolvimento e a criação pelo trabalhador de uma auto-imagem mais satisfatória. Eu sonho com um mundo onde a cooperação e a sinergia substituam a mortal competitividade, que envenena todos os relacionamentos, contaminando-os e despersonalizando-os. Eu sonho com um mundo onde o trabalho tenha signficação e não seja apenas sinônimo de alienação, de desconexão e desconforto.

E agora até mesmo essa singela tutela patrimonialista do Direito do Trabalho é alvo do desmanche neo-liberal...Estamos voltando ao tempo da barbárie? A barbárie evoca sempre o desenfreado, a ultrapassagem de um limite, ou seja, o gozo às custas do outro: a escravidão, o assassinato, o estupro, a segregação...Não precisamos de mais polícia, mas talvez apenas de uma nova organização social. Não precisamos de mais Códigos ou de mais uma Declaração de Direitos do Homem, mas apenas de pessoas que ousem concretizá-la...Talvez a Magistratura Trabalhista não tenha ainda percebido o alcance de seu papel e de sua tarefa. Talvez ela não tenha percebido que também pode e deve acalentar esse sonho, uma vez que seu saber é ao mesmo tempo um saber técnico e um saber político...Sim, eu tenho um sonho... "Vejo através dos olhos e não com eles", disse William Blake.



BIBLIOGRAFIA

DEJOURS, Christophe. A loucura do trabalho: estudo de psicopatologia do trabalho. Tradução de Ana Isabel Paraguay e Lucia Leal Ferreira. São Paulo: Cortez-Oboré, 1987.
FERGUSON, Marilyn. A conspiração aquariana. Tradução de Carlos Evaristo M.Costa. Rio de Janeiro: Record, 3ª edição.
Sobre a autora
Scheilla Regina Brevidelli

acadêmica de Direito na USP, servidora da Justiça do Trabalho, psicóloga

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BREVIDELLI, Scheilla Regina. Eu tenho um sonho.... Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 3, n. 27, 23 dez. 1998. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1944. Acesso em: 24 nov. 2024.

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