2. AS LACUNAS DO DIREITO
2.1. O Problema das Lacunas
O problema das lacunas, conforme já dito alhures, surge devido à impossibilidade de previsão pelo legislador dos casos concretos que poderão ocorrer. O juiz, no ato de subsunção da norma ao fato, às vezes se depara com a falta da premissa maior (norma), e pelo imperativo da proibição do non liquet, se vê obrigado a decidir um litígio posto sob sua apreciação, mesmo ausente disposição legislativa regulamentadora do caso em questão. O termo lacuna então designa "os possíveis casos em que o direito objetivo não oferece em princípio uma solução" (DINIZ, 2003, p. 436).
Engisch (2001) diz que lacuna "se trata de uma incompletude insatisfatória no seio do todo jurídico" (ENGISCH, 2001, p.276). Ferraz Jr. (2003) explica que quando Engish assim conceitua o termo lacuna, quer dizer que esta "expressa uma falta, uma insuficiência que não devia ocorrer, dentro de um limite". (FERRAZ JR. 2003, p. 219).
Diante desses casos que carecem de previsão legal, surgem questões prático-teóricas no sentido de que "se o comportamento que não está previsto expressamente, que nem é proibido nem obrigatório, está automaticamente permitido? Existe um âmbito de comportamentos não jurídicos?" (DINIZ, 2003, p. 433).
2.2. Existência e constatação das lacunas
A questão das lacunas está intrinsecamente ligada ao modo de concepção do ordenamento jurídico, conforme explicitado por Diniz (2003). Nesse sentido, segundo a mencionada autora, a doutrina se divide em duas correntes: uma que considera o ordenamento como um todo orgânico completo suficiente para disciplinar qualquer conduta fática, negando, portanto a existência de lacunas; outra que considera que, devido o dinamismo da vida social, é impossível o sistema prever todos os comportamentos tendo em vista a rapidez de sua transformação, aceitando, então, a existência de lacunas.
Ferraz Jr. (2003) mostra que alguns autores afirmam ser a incompletude do sistema uma ficção prática, como consideram os positivistas; outros, porém, consideram a completude uma ficção prática.
Kelsen (1998), ao considerar o ordenamento um sistema jurídico completo, afirma que este, quando não prevê uma norma jurídica singular regulamentadora em um caso concreto, qualifica a conduta de forma negativa, ou seja, por meio de uma norma que diz que "o que não é juridicamente proibido, é permitido". Segundo o autor,
uma ordem jurídica pode sempre ser aplicada por um tribunal a um caso concreto, mesmo na hipótese de essa ordem jurídica, no entender do tribunal, não conter qualquer norma geral através da qual a conduta do demandado ou acusado seja regulada de modo positivo, isto é, por forma a impor-lhe o dever de uma conduta que ele, segundo a alegação do demandante privado ou do acusador público, não realizou. Com efeito, neste caso, a sua conduta é regulada pela ordem jurídica negativamente, isto é, regulada pelo fato de tal conduta não lhe ser juridicamente proibida e, neste sentido, lhe ser permitida. (KELSEN, 1998, p. 171).
Trata-se então de uma ficção prática, pois é o legislador conferindo ao juiz no caso concreto, poder para a fixação de norma jurídica individual, quando a norma geral por ele elaborada for insatisfatória diante às peculiaridades do caso.
O legislador pode ser levado a utilizar esta ficção pela idéia de que a aplicação da norma geral por ele estabelecida possa conduzir a um resultado insatisfatório em certas circunstâncias por ele não previstas nem previsíveis e de que, por isso, é aconselhável conferir poder ao tribunal para, em tais casos, em vez das normas gerais que predeterminam o conteúdo da sua decisão, fixar o próprio tribunal uma norma jurídica individual, por ele criada, adaptada às circunstâncias pelo legislador não previstas. (KELSEN, 1998, p. 173).
Nesse patamar, infere-se que Kelsen (1998) considera que não existem lacunas no ordenamento, pois, no processo decisório em que ausente norma singular disciplinadora da conduta, o magistrado encontra solução na própria ordem jurídica, visto que esta é um todo fechado e completo.
A aplicação da ordem jurídica vigente não é, no caso em que a teoria tradicional admite a existência de uma lacuna, logicamente impossível. Na verdade, não é possível, neste caso, a aplicação de uma norma jurídica singular. Mas é possível a aplicação da ordem jurídica - e isso também é aplicação do Direito. (KELSEN, 1998, p.172)
É assim também o pensamento de Engisch (2001), tendo em vista que também considera o todo jurídico como sistema harmônico e completo, sendo composto não só por atos normativos legislativos, mas também por normas consuetudinárias.
O conceito de lacuna jurídica, na verdade, entrelaça-se com o próprio conceito de Direito. Se ao falarmos do Direito apenas pensarmos no direito legislado, lacuna jurídica é o mesmo que lacuna da lei. Mais exactamente, falaremos de uma lacuna da lei sempre que desta se não conseguir retirar, através da interpretação (no sentido atrás explicitado) qualquer resposta para uma questão jurídica que temos de pôr. Se, pelo contrário, ao falarmos de direito pensarmos no direito positivo na sua totalidade, o qual, além de direito legislado, também abrange o direito consuetudinário, então só teremos lacunas quando nem a lei nem o direito consuetudinário nos dêem uma resposta a uma questão jurídica. (ENGISGH, 2001, p. 277).
Outros doutrinadores, como Diniz (2003), por exemplo, defendem o caráter lacunoso do Direito, pois considera o sistema jurídico conforme o pensamento de Miguel Reale, composto por três dimensões: normativa, fática e axiológica. Assim, conforme a mencionada autora,
se se conceber o sistema jurídico como aberto e incompleto, revelando o direito como uma realidade complexa, contendo várias dimensões, não só de avaliação em que os fatos e as situações jurídicas devem ser entendidas como um entralaçamento entre a realidade viva e as significações do direito, no sentido de que ambas se pretendem uma a outra, temos um conjunto contínuo e ordenado que se abre numa desordem, numa descontinuidade, apresentando um vazio, uma lacuna, por não conter solução expressa para determinado caso. (DINIZ, 2003, p.435).
Dessa forma, discorda das correntes que sustentam a completude do ordenamento, baseado no principio de que "tudo o que não é proibido é permitido", pois entende que "esse princípio não constitui uma norma jurídico-positiva, não conferindo, portanto, direitos e obrigações a ninguém, sendo assim um mero enunciado lógico, inferido da análise do sistema normativo." (DINIZ, 2003, p. 436). Conclui que "o direito deve ser considerado sob o prisma dinâmico, em constante mutação, sendo assim, lacunoso, no nosso entendimento". (DINIZ, 2003, p. 439)
O próprio ordenamento jurídico brasileiro reconhece o sistema como lacunoso. O art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil, ao estabelecer que, "quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito" (BRASIL, 1942), faz menção a possibilidade da imprevisão legislativa, ou seja, da hipótese de se ocorrerem casos para os quais não haja solução no ordenamento jurídico.
A constatação da lacuna, de acordo com Diniz (2003), "resulta de um juízo de apreciação, porém o ponto decisivo não é a concepção que o magistrado tem da norma de direito, nem tampouco sua Weltanschauung, do conteúdo objetivo da ordem jurídica, mas o processo metodológico por ele empregado" (DINIZ, 2003, p. 447).
Disso resulta, portanto, que se faz necessária a legitimidade da determinação e natureza dos métodos empregados como instrumentos de colmatação de lacunas, pois, segundo Diniz (2003), "os mecanismos de constatação de lacunas são, concomitantemente, de integração" (DINIZ, 2003, p. 448), tendo em vista que são correlatas a constatação e a colmatação das lacunas.
3. INTEGRAÇÃO DO DIREITO
Já dissemos alhures que a constatação e a integração do direito são correlatas. Constatada uma lacuna, cabe ao magistrado utilizar-se dos meios de integração para supri-la, em virtude da proibição do non liquet, princípio que veda a abstenção de uma decisão pelo juiz diante de um caso colocado sob sua apreciação.
Os meios de integração do direito são "instrumentos técnicos à disposição do intérprete para efetuar o preenchimento ou colmatação da lacuna" (FERRAZ JR., 2003, p. 299).
3.1. Auto-integração e hetero-integração
Bobbio (1999) explica que Carnelutti divide integração em duas terminologias distintas: a hetero-integração e auto-integração. Segundo ele, o primeiro método consiste na integração operada através do: a) recurso a ordenamentos diversos; b) recurso a fontes diversas daquela que é dominante (identificada, nos ordenamentos que temos sob os olhos, com a Lei). O segundo método consiste na integração cumprida através do mesmo ordenamento, no âmbito da mesma fonte dominante, sem recorrência a outros ordenamentos e com o mínimo recurso a fontes diversas da dominante". (BOBBIO, 1999, p. 146/147).
A hetero-integração, portanto, ocorre quando se busca recursos de preenchimento de lacunas fora do ordenamento jurídico, e a auto-integração quando a resposta para a omissão legislativa se encontra no próprio ordenamento jurídico.
A hetero-integração, conforme exposto por Bobbio (1999) se consistia na utilização do Direito Natural, quando o Direito positivo era lacunoso, sendo que o primeiro é imaginado como sistema jurídico perfeito, sendo reconhecida a natureza imperfeita do segundo.
Com relação a hetero-integração, ou seja, a busca de recursos a fontes jurídicas diversas das dominantes do ordenamento, cuja fonte predominante é a Lei, assume três formas, na concepção de Bobbio (1999): costumes, equidade e doutrina. Quanto a auto-integração, o mesmo autor sustenta que esta se divide em analogia e princípios gerais de Direito, como serão demonstrados especificamente cada um mais tarde.
Ferraz Jr. (2003), por sua vez, distingue os instrumentos de integração em quase-lógicos e institucionais.
Os primeiros são aqueles que exigem alguma forma de procedimento analítico, como é o caso da analogia, da indução amplificadora e da própria interpretação extensiva. Os segundos buscam apoio na concepção de instituição, como é o caso dos costumes, dos princípios gerais de direito, da equidade. (FERRAZ JR., 2003, p.300)
Conclui Ferraz Jr. (1999) que caso sejam expressamente previstos pelo ordenamento jurídico, estes instrumentos adquirem o status de norma, ocasião em que não há que se falar em lacuna ou preenchimento, como ocorre no ordenamento brasileiro, no art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil, prevendo que, "quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito" (BRASIL, 1942). Portanto, quando o juiz recorre a estes meios para a solução do litígio posto sob sua apreciação, o juiz está recorrendo ao próprio ordenamento jurídico, pois há neste caso autorização expressa para isto.
3.2. Analogia
A analogia é o primeiro instrumento auto-integrador ao qual o juiz recorre diante de uma lacuna. Originariamente, como explicado por Bobbio (1999), o termo fora encontrado denominação de paradigma no Organon de Aristóteles, mais tarde traduzido para o latim como exemplum. Conforme exemplificado pelo Filósofo, "a guerra dos focenses contra os tebanos é um mal; a guerra dos atenienses contra os tebanos é semelhante à guerra dos focenses contra os tebanos; a guerra dos atenienses contra os tebanos é uma mal" (ARISTÓTELES apud BOBBIO, 1999, p.152).
Consiste-se então a analogia em "aplicar, a um caso não contemplado de modo direto ou específico por uma norma jurídica, uma norma prevista para uma hipótese distinta, mas semelhante ao caso não contemplado" (DINIZ, 2003, p.448).
Conceitualmente, conforme exposto por Ferraz Jr. (2003), não há consenso entre juristas e lógicos sobre uma definição precisa de analogia, afirmando também que este problema conceitual reside-se no fato da imprecisão da determinação das relações essenciais ou de semelhança entre os supostos fáticos.
Diniz (2003) afirma que a analogia é procedimento quase-lógico, envolvendo duas fases, como constatação por meio da comparação no campo empírico de que há semelhança entre os fatos-tipos diferentes, e um juízo de valor que demonstra a relevância das semelhanças em detrimento das diferenças, tendo em vista uma decisão perseguida. É quase-lógico no sentido de que não se trata de um processo estritamente analítico, porque pressupõe um juízo empírico de constatação da semelhança que, conforme assevera Ferraz Jr. (2003), "exige valoração, o que torna o procedimento de menor rigor formal. Daí a idéia de que é quase-lógico." (FERRAZ JR. 2003, p.302).
Bobbio (1999) sustenta a analogia deve utilizar o silogismo como forma de determinação e constatação das semelhanças, e conclui que para fazer a atribuição ao caso não-regulamentado das mesmas conseqüências jurídicas atribuídas ao caso regulamentado semelhante, é preciso que entre os dois casos exista não uma semelhança qualquer, mas uma semelhança relevante, é preciso ascender dos dois casos a uma qualidade comum a ambos, que seja ao mesmo tempo a razão suficiente pela qual ao caso regulamentado foram atribuídas aquelas e não outras conseqüências. (BOBBIO, 1999, p. 153)
Para o mencionado autor, essa razão suficiente para a constatação da semelhança relevante entre os casos, é a ratio legis, ou seja, "é necessário que os dois casos, o regulamentado e o não-regulamentado tenham em comum a ratio legis" (BOBBIO, 1999, p. 154). Assim é o brocardo latino: ubi eadem legis ratio, ibi eadem legis dispositio.
3.3. Costumes
O costume é, conforme entendimento de Ferraz Jr. (2003), "uma forma típica de fonte do direito nos quadros da chamada dominação tradicional no sentido de Weber. Baseia-se, nesses termos na crença e na tradição, sob a qual está o argumento de algo deve ser feito, e deve sê-lo porque sempre o foi." (FERRAZ JR. 2003, p. 241). Para Bobbio (1999), costume é uma das formas assumidas pela heterointegração, recorrendo-se a ele como fonte subsidiária da lei. Para Diniz (2003), costume "é outra fonte supletiva, seja ele decorrente da prática dos interessados, dos tribunais e dos jurisconsultos, seja secundum legem, praeter legem, contra legem" (DINIZ, 2003, p. 457). Entretanto, somente poderá se recorrer a ele quando esgotadas as hipóteses legais de preenchimento de lacunas.
Parece mais adequada a definição de Diniz (1997), que entende por costume "uma norma que deriva da longa prática uniforme ou da geral e constante repetição de dado comportamento sob a convicção de que sua obrigatoriedade corresponde a uma necessidade jurídica" (DINIZ, 1997, p. 96).
Extrai-se desse conceito dois elementos, como explicita Ferraz Jr. (2003), a saber, o uso continuado e a convicção de obrigatoriedade, e a presença dessas duas características que distingue o simples uso, do costume propriamente dito.
Costuma-se distinguir o costume em contra legem, praeter legem e secundum legem.
Costume contra legem é aquele que contraria leis expressas, ou seja, conforme Ferraz Jr. (2003), normas derivadas da norma-origem com força própria e efeitos revogatórios. A doutrina tende a rejeitar a possibilidade da utilização do costume contra legem, tendo em vista que, conforme o art. 2º da Lei de Introdução ao Código Civil, uma lei somente poderá ser revogada por outra.
Costumes praeter legem são aqueles que "disciplinam matérias que a lei não conhece" (FERRAZ JR., 2003, p. 243). Esse é o costume utilizado na supressão das lacunas do direito.
Costume secundum legem é aquele que coincide com a lei.
3.4. Princípios gerais de direito
Os princípios gerais de direito são "cânones que não foram ditados, explicitamente, pelo elaborador da norma, mas que estão contidos de forma imanente ao ordenamento jurídico" (DINIZ, 2003, p. 458).
Como ensina Jeanneau
os princípios não existem por si só, manifestando-se apenas no ato de aplicação do Direito ao caso concreto. Isto significa que, muitas das vezes, os princípios gerais de direito estão implícitos no ordenamento jurídico, e ao se deparar com uma lacuna no direito o magistrado utiliza-o como instrumento de colmatação, dando-lhe, dessa forma, concretude.
Ferraz Jr. (2003) afirma que os princípios gerais do direito são reminiscência do direito natural como fonte. Segundo ele,
há autores que os identificam com este, outros que os fazem repousar na equidade, enquanto sentimento do justo concreto.[...] De qualquer modo,, ainda que se entenda que possam ser aplicados diretamente na solução de conflitos, trata-se não de normas, mas de princípios" (FERRAZ JR. 2003, p. 247)
Conceitualmente, princípio pode ser definido como "diretriz para a integração de lacunas estabelecida pelo próprio legislador, mas é vago em sua expressão, reveste-se de caráter impreciso, uma vez que o elaborador da norma não diz o que se deve entender por princípio" (DINIZ, 2003, p. 459).
Não obstante muitas vezes encontrarem-se implícitos na ordem jurídica, por vezes é encontrado também de forma expressa. Como exemplo disso, encontra-se o princípio da legalidade, consubstanciado no art. 5º da Constituição da República de 1988, dizendo que "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude de lei".
Sua função como meio de integração do Direito vem estabelecida no art. 4º da LICC, e será utilizada quando o uso da analogia e dos costumes não se mostrar a forma mais adequada para a colmatação da lacuna.