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Da incompatibilidade da Lei Maria da Penha com o instituto da suspensão condicional do processo

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Agenda 05/07/2011 às 18:09

4.Da constitucionalidade do artigo 41 e da inaplicabilidade da Lei 9099/95, aos casos de crimes de violência doméstica e familiar contra a mulher

Primeiro há que se reafirmar que o artigo 41 da Lei 11.340/2010 não atenta contra o princípio da igualdade, inserto no artigo 5º, inciso I, da Constituição Federal, vez que tal igualdade foi ali inserida como um objetivo a ser alcançado, sendo inquestionável as desigualdades existentes entre homens e mulheres, constituindo a Lei Maria da Penha, em uma autêntica medida de ação afirmativa que visa restabelecer a igualdade material entre gêneros, tais como outras já tão conhecidas, como a reserva de vagas para serem ocupadas por deficientes físicos, a reserva de percentual de candidaturas políticas a serem ocupadas por mulheres nos partidos, o próprio Estatuto do Idoso, da Criança e do Adolescente e tantas outras normas que possuem a intenção clara de diminuir as diferenças e suprimir as desigualdades reais constatadas estatisticamente.

Tampouco há qualquer dissonância entre o artigo 41 e o disposto no artigo 98, inciso I, da Constituição Federal, que assim dispõe:

Art. 98 - A União, no Distrito Federal e nos Territórios, e os Estados criarão:

I - juizados especiais, providos por juízes togados, ou togados e leigos, competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo, mediante os procedimentos oral e sumaríssimo, permitidos, nas hipóteses previstas em lei, atransação eo julgamento de recursos por turmas de juízes de primeiro grau;

O legislador foi muito claro ao determinar que leis infraconstitucionais estabelecessem as hipóteses em que a transação penal e demais institutos despenalizadores seriam possíveis, e o artigo 41, estatuiu que independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei nº 9.099/1995 nos crimes de violência doméstica e familiar contra a mulher, sem fazer qualquer exceção, mesmo que as penas previstas para tais crimes estejam dentro do parâmetro que as definam como infrações penais de menor potencial ofensivo.

Ademais, recorda-se que o advento da Lei 9.099/1995, desencadeou diversas polêmicas quanto à incidência dos novos institutos despenalizadores na Justiça Militar, até que o legislador pátrio, demonstrando sua real intenção, editou a Lei 9.839/1999 que, acrescentando o art. 90-A a Lei 9.099/95, vedou expressamente a sua aplicação no âmbito da Justiça Militar, ainda que a pena máxima prevista para as infrações não sejam superiores há dois anos, por possuírem procedimento próprio e especial, tal qual a Lei 11.340/2006 conferiu aos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher.

Um possível argumento no sentido de que a competência dos Juizados Especiais Criminais seria de natureza constitucional não pode ser admitido, vez que ficou a cargo de lei infraconstitucional a definição das infrações de menor potencial.

Além disso, considerar que crimes de violência doméstica e familiar contra a mulher possam ser definidos como infrações de menor potencial ofensivo ou sujeitas aos institutos despenalizadores da Lei 9.099/95, atenta contra o bom senso e dignidade da pessoa humana, sobre o que gostaria de abrir um parêntese para consignar a opinião abalizada dos estudiosos mencionados anteriormente, que bem relatam a espécie de tratamento dispensada às mulheres vítimas nos Juizados Especiais Criminais:

Carmen Campos e Salo de Carvalho, em obra já mencionada, nos trás importantes esclarecimentos: "Criada para julgar os crimes de menor potencial ofensivo e tendo como paradigma o comportamento individual violento masculino (Caio contra Tício), a Lei 9.099/95 acabou por recepcionar não a ação violenta e esporádica de Tício contra Caio, mas a violência cotidiana, permanente e habitual de Caio contra Maria, de Tício contra Joana. Assim, os crimes de ameaças e de lesões corporais que passaram a ser julgados pela "nova" Lei são majoritariamente cometidos contra as mulheres e respondem por cerca de 60% a 70% do volume processual dos Juizados... No entanto, esse ‘desvelamento’ da violência doméstica não contribuiu para minimizá-la ou para encontrar outras formas diversas de tratamento preventivo ou repressivo. Sem observar a predominância histórica do paradigma masculino que se infiltrou na nova Lei, a maioria dos juristas, inclusive número expressivo da crítica jurídica, acabou por não considerar em suas análises tais implicações. A mais importante deriva do fato de que, em se tratando de violência de gênero, o pólo passivo (da relação penal material) é composto majoritariamente de mulheres. Assim, a exclusão da análise de gênero sobre a Lei 9.099/95 impossibilitou compreender as diferenças da incidência do controle formal sobre as mulheres.

No entanto, ao excluírem esse recorte de gênero, acabam reduzindo a complexidade da análise e sofrem o que se poderia denominar "complexo de gênero" ou "complexo de misoginia". A categoria "gênero", ao maximizar a compreensão do funcionamento do sistema penal, social e político, desvela a aparência de neutralidade e de imparcialidade ("assepsia jurídica") e o tecnicismo dogmatizante com o qual se formulam os discursos jurídicos e cujo resultado é ofuscar e legitimar a visão predominantemente masculina.

Nota-se, pois, no que tange à fenomenologia da violência tratada pela Lei 9.099/95, que não se trata de ofensas comuns, mas dessa forma específica de violência dirigida contra as mulheres. Imprescindível, porém, antes da avaliação do problema propriamente dito, apontar algumas questões preliminares acerca da violência doméstica contra as mulheres. Entende-se por violência doméstica aquelas condutas ofensivas realizadas nas relações de afetividade ou conjugalidade hierarquizadas entre os sexos, cujo objetivo é a submissão ou subjugação, impedindo ao outro o livre exercício da cidadania. A violência doméstica contra as mulheres é, portanto, uma forma de expressão da violência de gênero".

Portanto, em se tratando de violência de natureza específica de gênero, não podemos admitir que o operador jurídico repita os mesmos equívocos da época em que tais casos eram atribuídos aos Juizados Especiais Criminais, considerando, por exemplo, passível de suspensão condicional do processo os crimes cuja pena mínima seja igual ou inferior a um ano, pois assim agindo, não estaríamos levando em conta a peculiaridade e potencialidade da ofensa, passando a simplesmente medi-la pela quantidade da pena cominada. Tal critério afronta a LMP e desrespeita a valoração normativa do bem jurídico tutelado e, se aplicado indistintamente aos casos de violência doméstica, implica na negação da tutela jurídica aos direitos fundamentais das mulheres.

Assim, o artigo 41 encontra seu fundamento de validade nos princípios fundamentais estatuídos pela Constituição Federal de 1988, nada possuindo de inconstitucional, sendo vedado, portanto para os crimes de violência doméstica e familiar, TODOS os institutos despenalizadores da Lei n.º 9.099/1995, tais como transação penal, suspensão condicional do processo, composição civil dos danos com causa de extinção de punibilidade, lavratura de termo circunstanciado, exigindo-se a lavratura de auto de prisão em flagrante, se for o caso e instauração do respectivo inquérito policial.

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Aliás, se fosse intenção do legislador que se continuasse aplicando os institutos despenalizadores previstos na Lei do Juizado Especial Criminal aos delitos de violência doméstica e familiar, inclusive a exigência de representação nos crimes de lesão corporal, o teria feito expressamente, como o fez no Estatuto do Idoso(Lei Nº 10.741, de 1º de Outubro de 2003), cujo artigo 94, assim dispõe: "Aos crimes previstos nesta Lei, cuja pena máxima privativa de liberdade não ultrapasse 4 (quatro) anos, aplica-se o procedimento previsto na Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995, e, subsidiariamente, no que couber, as disposições do Código Penal e do Código de Processo Penal"

Nos casos de contravenções penais praticadas com violência doméstica e familiar contra a mulher, como o artigo 41 fala de crimes, continuam permitidos alguns dos institutos despenalizadores da Lei n.º 9.099/1995, tais como a transação penal e a lavratura de termo circunstanciado, que deverá, no entanto, ser encaminhado ao órgão jurisdicional com competência para o julgamento dos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher( juizados de violência doméstica ou varas especializadas), sendo vedada a remessa para os Juizados especiais criminais, bem como, por determinação expressa do artigo 17 desta Lei, a aplicação de penas pecuniárias ou cestas básicas.


5.Da incompatibilidade da Lei Maria da Penha com o instituto da suspensão condicional do processo

Como já afirmamos, para fins de efetivo cumprimento de seu desiderato, a Lei Maria da Penha vedou a aplicação dos institutos despenalizadores do Juizado Especial Criminal nos crimes cometidos com violência doméstica e familiar contra a mulher, tendo em conta seu objetivo de efetivo enfrentamento da questão de gênero, diante do comprovado fracasso da justiça penal consensuada para tais casos.

Fosse para se continuar admitindo tais institutos,porque uma lei mais rigorosa, como pretende ser a Lei 11.340/2006? Se a forma procedimental do juizado estivesse satisfatória, poderíamos ter continuado com ela.

Indago: Qual a importância de se instaurar inquéritos policiais e se ofertar denúncias se ao final haveremos de conceder ao réu, desde que o mesmo aceite (a vítima não é sequer ouvida), a suspensão condicional do processo? Torna-se absolutamente inócua a aplicação da LMP desta maneira, deixando-se os crimes sem resposta, os agressores sem castigo e as vitimas sem voz.

A Lei 11.340/2006 criou procedimento próprio e especial para análise e julgamento dos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher.

Confiram novamente o teor do Art. 41: "Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995".

Vê-se claramente que o dispositivo não fez qualquer exceção, mesmo que a pena prevista para tais crimes esteja dentro dos parâmetros que as definiriam como infrações penais de menor potencial ofensivo ou passíveis de suspensão condicional do processo, já que a intenção do legislador foi ressaltar a importância de cada um dos casos de violência doméstica, que não poderiam mais ser nivelados a partir de números, tendo como "critério" apenas a quantidade de pena máxima e mínima prevista.

A Suspensão Condicional do Processo, introduzida pelo artigo 89 da Lei nº 9.099/95, diferenciou-se dos demais institutos previstos na mesma Lei, em decorrência de seu raio de aplicabilidade, qual seja, nos crimes cuja pena mínima fosse igual ou inferior a um ano, nos casos abrangidos ou não pela lei mencionada. (norma de cunho geral).

Contudo, a Lei Maria da Penha, que entrou em vigor em 2006, dispôs de forma diversa, estatuindo claramente em seu artigo 41, que nos crimes de violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena cominada, estariam vedados TODOS os institutos despenalizadores da Lei nº 9.099/95, dentre os quais a suspensão condicional do processo.

Em se tratando de violência de natureza específica de gênero, não podemos admitir que o operador jurídico repita os mesmos equívocos da época em que tais casos eram atribuídos aos Juizados Especiais Criminais, considerando-os passíveis de suspensão condicional do processo, pois assim agindo, não estariam levando em conta a peculiaridade e potencialidade das ofensas, passando a simplesmente medi-las pela quantidade da pena cominada. Tal critério afronta a própria razão de existir da LMP e desrespeita a valoração normativa do bem jurídico tutelado e, se aplicado indistintamente aos casos de violência doméstica, implicará na negação da tutela jurídica aos direitos fundamentais das mulheres.

E não é só a suspensão condicional do processo que está proibida, o artigo 41 veda a aplicação nos crimes de violência doméstica e familiar, de TODOS os institutos despenalizadores da Lei n.º 9.099/1995, tais como: transação penal, composição civil dos danos como causa de extinção de punibilidade e lavratura de termo circunstanciado.

Ressaltando-se que o princípio da especialidade deixa claro que a lei de natureza geral, por abranger ou compreender um todo, é aplicada tão-somente quando uma norma de caráter mais específico sobre determinada matéria não se verificar no ordenamento jurídico vigente.

Nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, a lei de índole específica sempre será aplicada em prejuízo daquela que foi editada para reger condutas de ordem geral.

Aliás, a lei antiviolência doméstica é muito clara ao estabelecer que: "Art. 4º  Na interpretação desta Lei, serão considerados os fins sociais a que ela se destina e, especialmente, as condições peculiares das mulheres em situação de violência doméstica e familiar’’.

Como bem esclarece Amini Haddad ao comentar tal artigo no livro Direitos Humanos das Mulheres, escrito com nossa co-autoria : "A Lei de Introdução [08] ao Código Civil ressalta a necessidade do cumprimento das chamadas "vocações legais". Ou seja, em toda tarefa interpretativa, dever-se-á observar a finalidade da norma ao preenchimento dos campos sociais nos quais ela se insere.

A Lei Maria da Penha trouxe outro acréscimo à condição interpretativa: a situação peculiar das mulheres em situação de violência doméstica e familiar.

Isso significa que ao aplicar a lei, deverá o magistrado observar todas as medidas mais eficazes possíveis à realidade da vítima de violência doméstica, fazendo valer, inclusive ex officio, vias de proteção, nos estritos limites do art. 19, §1º. da Lei 11.340/06.

De igual forma, deverá o Juiz estar atento às dificuldades psicológicas vivenciadas pela vítima (ex. baixa auto-estima, depressão, sentimentos de inferioridade ou culpa etc), para aplicabilidade da diretriz do art. 9º., §1º. da Lei 11.340/06.

Assim, às vezes, as audiências deverão ser suspensas, com o não acatamento, pelo Magistrado (art. 158, parágrafo único do CPC) de acordos extremamente prejudiciais à mulher, afinal, dever-se-á buscar a efetivação de diretrizes capazes de minorar os prejuízos já sofridos pela mesma, ofensivos, inclusive, à sua dignidade. Os danos podem ser de ordem patrimonial ou familiar. Como exemplo podemos citar acordos aonde a vítima vem a perder a guarda dos filhos, maximizando, ainda mais, a sua angústia. Os prejuízos de ordem patrimonial podem decorrer nos acordos onde a mulher abre mão de sua parcela de direito, inclusive de ordem patrimonial. Por isso, a lei inclui a necessidade dos pareceres multidisciplinares à apreciação das formulações pretendidas e ocorrências dos autos (art. 30 da Lei 11.340/06).

Nessa diretriz, procura-se alcançar o equilíbrio através de procedimentos viáveis à identificação da problemática vivenciada intramuros, apresentando a sua magnitude em observância das Declarações Internacionais à concreção dos direitos humanos.

Destarte, chegamos a um denominador comum para o direito: é ciência social, hermenêutica, comportamental e axiológica que, como todas as demais esferas científicas, busca, permanentemente, a verdade, através da interpretação de fatos, axiologicamente considerados, originando uma norma que pode ser explicativa e/ou comportamental.

Essa exposição de Bonavides muito reflete do seu outro livro, Curso de Direito Constitucional, onde se observa uma forte tendência em se considerar legítimo e constitucional a atuação do Juiz para realizar a Justiça, buscando-se sempre os valores constitucionalmente assegurados.

Ou seja, para Bonavides, o Juiz não está preso à lei mas, sim, aos valores constitucionais e aos princípios do direito, sobressaindo-se, como formulação máxima, a dignidade da pessoa humana.

Deste modo, ocorre uma constitucionalização do processo e uma procedimentalização da Constituição Federal, afinal, em uma Constituição extremamente garantista, o processo é a própria concreção do seu conteúdo no mundo humano, fazendo valer os seus ditames na esfera da vida comum". [09]

Já o Art. 13 da Lei Maria da Penha determina: "Ao processo, ao julgamento e à execução das causas cíveis e criminais decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher aplicar-se-ão as normas dos Códigos de Processo Penal e Processo Civil e da legislação específica relativa à criança, ao adolescente e ao idoso que não conflitarem com o estabelecido nesta Lei".

Assim, o procedimento comum é aplicado a todas as causas para as quais a lei não previu uma forma especial.

O critério simplesmente numérico, consubstanciado na quantidade de pena mínima prevista em lei para a aplicação da suspensão condicional do processo é inviável para os crimes de violência doméstica e familiar contra a mulher, tendo sido por tais razões vedados pelo legislador, e não poderia ser diferente porque a violência doméstica, por se tratar de comportamento reiterado e cotidiano, carrega consigo grau de comprometimento emocional que impede as mulheres de romper a situação violenta. A noção de sujeitar tais crimes a transação penal ou a suspensão condicional do processo ignora a escalada da violência e seu verdadeiro potencial ofensivo.

Inúmeros estudos têm demonstrado que a maioria dos homicídios cometidos contra as mulheres ocorrem após a separação. Nesses casos, as histórias se repetem: inúmeras tentativas de separação, seguidas de agressões e ameaças, culminam em homicídio. O que ressalta a necessidade do rigor e aplicação efetiva da Lei Maria da Penha antes que o pior ocorra, ou seja, nos casos de ameaça e lesão corporal leve, que são a grande maioria dos casos que chegam aos juizados e varas especializadas, que merecem análise atenta e providências sérias, efetivas e urgentes.

Julgarmos tais graves delitos a categoria dogmática de crimes sem importância e por isso mesmo sujeitos a transação penal ou a suspensão condicional do processo não incorpora o comprometimento emocional e psicológico e os danos morais advindos de relação marcada pela habitualidade de violência, negando-se seu uso como mecanismo de poder e de controle sobre as mulheres.

Entendimento diverso atenta claramente contra o princípio da especialidade, base da norma processual penal brasileira, aliás, tal princípio na verdade, evita o bis in idem, pois determina que haverá a prevalência da norma especial sobre a geral.

Nos casos em que se detecta um possível o conflito aparente de normas, alguns elementos essenciais devem estar presentes, tais como a unidade do fato e a multiplicidade de leis que poderiam ser aplicadas ao mesmo caso concerto. Não obstante, sabemos que só uma delas poderá ser efetivamente aplicada, justamente em razão da existência de princípios [10], que suprimirão por completo qualquer dúvida quando do enquadramento da norma ao fato.

Assim, o princípio da especialidade deixa claro que a lei de natureza geral, por abranger ou compreender um todo, é aplicada tão-somente quando uma norma de caráter mais específico sobre determinada matéria não se verificar no ordenamento jurídico. Em outras palavras, a lei de índole específica sempre será aplicada em prejuízo daquela que foi editada para reger condutas de ordem geral.

O legislador criou a figura das leis penais e processuais especiais, cujo teor rege determinadas condutas, seja em razão de sua maior gravidade, seja pela menor intensidade do fato, mas, desde que mereçam um tratamento diferenciado. É o caso da Lei Maria da Penha, que dispõe acerca de ritos procedimentais específicos para os delitos praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher. A norma penal especial se evidencia a partir da combinação entre os elementos da lei geral e novos elementos, estes, por sua vez, chamados de especializantes.

Ademais, reza o art. 6º  da LMP que: "A violência doméstica e familiar contra a mulher constitui uma das formas de violação dos direitos humanos".

O conhecimento da evolução histórica dos direitos humanos torna possível a compreensão a partir de uma seqüência uniforme e de fundamentação: a dignidade humana (centro e fundamento de todo e qualquer direito fundamental).

Afinal, a Lei 9.099/95, com a identificação da supracitada violência como de menor potencial ofensivo (art. 61), mostrou-se inteiramente ineficaz para os casos hoje atrelados à competência da novel disciplina normativa. Assim, o ataque desprovido da seriedade temática, à denominada Lei Maria da Penha, mostra-se débil. Aliás, este diploma mostra-se visivelmente hábil à evolução do direito na perspectiva dos direitos fundamentais, não podendo, ocorrer omissão do Estado, para as mazelas que, verdadeiramente, assolam o cidadão no mundo: a violência doméstica, familiar ou afetiva.

As gerações de direitos humanos, assim, não expressam qualquer hierarquia, mais sim maximizam a compreensão do valor supremo de cada direito descrito fundamental, suas bases e razão primeira: o respeito à condição humana.

Amini Haddad, no livro já mencionado assevera: "Como os direitos humanos são concebidos como fundamentos às diretrizes do Estado e suas manifestações normativas, resta-nos observar que os mesmos direcionam uma metodologia interpretativa, calcada na elementar do desenvolvimento e benefícios humanitários decorrentes da norma". [11]

Ademais a L.M.P revigorou o papel da vítima, tentando recuperar sua capacidade de fala, resultado impossibilitado pela natureza da suspensão condicional do processo, que tecnicamente ouve apenas o autor do fato delituoso, como se só ele interessasse para o Poder Judiciário,em completa dissonância com a proteção dos direitos humanos das mulheres, contrariando o que reza o art. 6º  da LMP , demonstrado que a resposta do Poder Público operaria de forma inversa ao interesse primordial de proteção às vítimas desejado pela Lei.

O encontro da vítima e do autor do fato, segundo a concepção legislativa, possibilita o diálogo sobre o problema e, conseqüentemente, a mudança de atitudes por parte do agressor pela assunção da responsabilidade pelo seu comportamento.

A realidade é que os institutos despenalizadores,desvirtuados pelos operadores jurídicos, criaram a idéia generalizada de que seria fundamental se chegar ao acordo, seja para diminuir o volume dos processos, seja pela impaciência dos agentes públicos em verificar as causas que deflagraram o conflito, acabando por fazer imperar o princípio do in dubio pro transação penal, na feliz expressão de Bogo Chies.

Aplicarmos aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher os institutos despenalizantes da Lei 9.099/95 seria o mesmo que redefinir os delitos em razão da pena cominada e não do bem jurídico tutelado, e demonstrarmos que não compreendemos novamente a natureza diferenciada da violência doméstica.

Essa (in) compreensão jurídica teria como conseqüência a banalização da violência de gênero, tanto pelo procedimento inadequado como pelas condições impostas e na maioria das vezes não fiscalizadas na suspensão condicional do processo e transação penal. As possibilidades de escuta da vítima mostrar-se-iam falaciosas devido à diminuição ou nulificação de sua intervenção, principalmente da suspensão condicional do processo.

Para o agressor tal suspensão seria tida como uma reprimenda? Tal interpretação diminui a importância real de tais delitos dentro da família, desestimulam as vítimas de denunciarem e minimizam o sofrimento das agredidas, razão pela qual entendo que tal entendimento revela, por parte dos operadores jurídicos um pragmatismo irresponsável. Ora, a delinqüência ocorre quando um ato vulnera algum valor. No momento que a vulnerabilidade é subsumida em uma espécie de "impunidade disfarçada em números", que na realidade equiparam infrações absolutamente díspares, desaparece a função do Direito estatal enquanto interdito.

Assim, de que adianta uma lei mais rigorosa, estatuída exatamente para assim sê-lo, se seus operadores a auto-suprimem, em face da grande probabilidade de todos não mais a cumprirem, logo, não será mais "lei" e a impunidade que se avizinha em crimes de tamanha relevância, cometidos em tão imensa quantidade tornar-se-á o produto de uma pasteurização das transgressões domésticas.

Sobre a autora
Lindinalva Rodrigues Dalla Costa

Promotora de Justiça do MPMT. Autora do livro Direitos Humanos das Mulheres, Juruá Editora, 2007 e outras obras. Especialista na área de enfrentamento dos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, pedofilia e abuso sexual

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COSTA, Lindinalva Rodrigues Dalla. Da incompatibilidade da Lei Maria da Penha com o instituto da suspensão condicional do processo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2925, 5 jul. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19477. Acesso em: 22 nov. 2024.

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