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Uso de tornozeleira eletrônica é apenas o recomeço.

Do controle do corpo ao controle da alma; do controle da alma ao controle do corpo, da moral, do caráter, da dignidade e de todo resto

Agenda 07/07/2011 às 17:43

O próprio Estado pratica bullying ao fazer com que os presos em regime semi-aberto utilizem tornozeleiras eletrônicas em suas saídas. Não se trata de objetos pequenos e discretos, mas extremamente visíveis (propositadamente), de modo que inibem o usuário de sair em público, para não ser vítima de preconceitos, discriminação ou de nova criminalização, porque sempre será visto como criminoso em potencial. Ou o fim da tornozeleira é fazer o controle de uma prisão domiciliar?

A ressocialização, mito incrustado na doutrina penal, conquanto raramente admitido como projeto fracassado (se é que alguma vez na história fez parte de um verdadeiro projeto, senão de segregação e de separação de uns poucos – "pessoas de bens" – de outros tantos?), prevista como um dos fins da pena é ideia que se renova com modelos diferentes. Se a prisão acaba por entregar ao indivíduo o dever de "emenda", em ambiente completamente promíscuo e desagregador, servindo de levante a revolta e estrangulamento definitivo do pouco que ainda possa restar no seu caráter, sendo por isso instrumento para justificar os nossos preconceitos e a mística inefável de uma sociedade perfeita, dá-se agora ao condenado certa autonomia, desde que este não peça de nós outros aceitação.

A tornozeleira é aparentemente forma mais digna de cumprimento da pena, conquanto não se possa esquecer que toda segregação de liberdade atinge a dignidade. Não existe dignidade "meia-boca" – é transformar o ser humano num animal rastreado. O fim é segui-lo passo a passo até o abatedouro, ou num veículo de carga vigiado por radar, com rotas e horários previamente estabelecidos. E qualquer mudança de itinerário importará no acionamento de alerta e ordem de captura.

Seja no imaginário do animal rastreado, seja na perspectiva do veículo com GPS – bens de posse de algum ser humano –, haverá sempre a certeza de que numa questão de tempo, o monitorado será trancafiado novamente em virtude de algum deslize, fato que servirá para justificar a incapacidade ressocializadora do condenado.

Não se trata de políticas ou doutrinas equivocadas, porém de ações certeiras para fins não propriamente declarados. Desde que o Estado assumiu o monopólio do poder punitivo, tem enfrentado o dilema da sanção, não obstante seja clara a importância deste controle como forma não exatamente de apaziguamento de conflitos sociais, mas de retenção de muitas das demandas e insurgências em face da subjugação de uns pelos outros. Ao final, vale a força daqueles que definem as linhas políticas de comando.

Nesta perspectiva, Focault (Vigiar e Punir) ao levantar o histórico da pena de prisão, salienta que quando a prisão passou a ser modalidade de punição por excelência, apenas houve uma mudança do modo de dominação sobre o outro. Abandonamos o suplício do corpo, com o descarte das penas corporais (morte, decapitação de membros) e sacrifícios físicos (açoites, apedrejamento e outros), para introduzir o suplício da alma. Esta transformação não se deu por piedade, mas pela necessidade da força de trabalho de corpos não mutilados e que poderiam perfeitamente ser úteis (utilitarismo), sobretudo com organização e definição dos limites dos territórios nacionais.

Estes ideários não coincidem exatamente com o advento do capitalismo e do vigor da revolução industrial, tudo isso há pouco mais de 2 séculos, mas são decorrentes deles.

Estabelecidos estes modos político e econômico, encontramo-nos agora diante de um novo passo. Não precisamos mais preservar corpos inoperantes, improdutivos, verdadeiros estorvos numa economia que se quer dinâmica, em que o ente humano não é a premissa principal. A preservação dos corpos destes "indivíduos indesejáveis" ao atual modelo de produção já não seria necessária, sobretudo porque constituem apenas encargos frente a um Estado que se propõe ser mínimo e não intervencionista. Porém, vimo-nos atualmente acossados pela consciência dos mandos humanistas que justificaram no passado a mudança de paradigma. Embora estes indivíduos sejam "elementos descartáveis" e sem valor diante deste modelo econômico globalizador, de enormes avanços tecnológicos, e que pouca (ou nenhuma) serventia reserva às pessoas desqualificadas, não se pode simplesmente destruí-los fisicamente, mesmo que o abandono e a repulsa social sejam fatos escancarados e ainda que liberta nossa consciência.

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Diante desta nova realidade, mantemos a alma dos rejeitados sobre dominação, mas acrescentamos também o domínio da moral. Exigimos do indivíduo um padrão de conduta – e não precisa estar criminalizada – uniforme, desrespeitando o pluralismo e as opções pessoais. O indivíduo já não é punido pelo que faz, mas pelo que é, desde que a sua forma de ser não corresponda àquela engendrada por quem faz as escolhas.

E se isso não bastar, o direito penal está aí para bem servir. A cada dia é instrumento que se agiganta, servindo para separação das "pessoas de bem" (melhor, "de bens"), num ato maniqueísta que exige para sua conformação a previsão da existência de "pessoas do mal" (melhor, "sem bens"). Trata-se velhas concepções, veladas, que se perpetuam desde a instituição da pena de prisão como ferramenta útil ao Estado. É a forma de dominação sem culpa, diante de um pacto social firmado por alguns que se disseram representante de todos e de todas as gerações (passadas e futuras), porque para todos os efeitos a responsabilidade pela na adaptação ao modelo social é exclusiva do infrator.

Só que isto onera, sobretudo nos dias atuais em que o sistema punitivo se expande avassaladoramente. O Estado mínimo não pode lançar mão de seus recursos com aqueles que não servem ao padrão de desenvolvimento econômico. É necessário controlar mais e mais eficazmente, conquanto com menor custo.

Nisso, o método de controle pela tornozeleira é um novo grande achado, porque, ao tempo em que pode ampliar a possibilidade deste controle, com o argumento de asseguramento de dignidade ao indivíduo, tem-se a perspectiva de redução de custos. Tudo não passa da simples difusão de seu uso, tornando o sistema paulatinamente mais barato e, porquanto, mas factível ao sistema penal, sempre carente de recursos.

Não existem olhares puros quando a retina espelha cifrões e poder. É necessário atentar para o fato de que tudo pode ser apenas mais um passo de um projeto mais audacioso. Acostumamos fácil com a tecnologia, e seus avanços, não nos importando com os objetivos sublineares e seus efeitos. O que aparentemente é algo auspicioso, logo logo traduzirá no novelo que envolverá a todos com a maior naturalidade, introduzindo chips subcutâneos (estes sim, imperceptíveis), e por isso com a possibilidade de maior ampliação. Talvez caminhemos, num futuro não tão longínquo, para imposição de chips em todo ser humano nascido com vida, no qual se constarão todos os dados de sua identificação, que sequer o identificado saberá. Este mesmo acervo mnemônico servira para registro das ocorrências policiais, dos desvios de conduta, do descumprimento dos preceitos morais, para localização do inadimplente e de seus bens, para controle de migração, registro de pontos no local de trabalho, etc.

Eventuais antecedentes criminais e todo proceder contrário ao repertório de restrições, com os elementos subjetivos sobre o indivíduo (legítimo direito penal do autor) serão anotados mesmo a distância, bastando que as centrais de controle atualizem os dados que serão automaticamente registrados on line no chips do usuário, sem que sequer tome conhecimento desta atualização. Caso deseje sair de sua situação, devera dirigir-se a tais centrais para obter uma folha corrida (após pagar as devidas taxas, porque o modelo também visará, óbvio, lucratividade), ou, por senha (desde que se tenha assinatura mensal, com débito direto no cartão de crédito, ou no seu chip), acessar seu acervo na internet.

Alguns, com senhas especiais, terão autorização para bisbilhotar todo e qualquer indivíduo, seja para montagem de dossiês, para vazamento para a imprensa (com as regras de sempre de preservação da fonte e direito a informação), ou, mesmo quando sem autorização, nas velhas praticas da arapongagem, com triagens não autorizadas, até que, por algum motivo, sejam validadas.

Nos locais de acesso público, o indivíduo passará por leitores magnéticos e ópticos que farão o reconhecimento e o encaminhará, conforme sua classificação, como já se faz nas grandes propriedades rurais de criação de animais rastreados, para os espaços sociais que lhe são reservados. A simples tentativa de invasão de espaço que não é seu acionará alarmes, na velocidade necessária para interceptar a tempo o invasor.

É este o futuro que nos aguarda. Uma incidência cada vez mais acentuada das regras punitivas e de controle social, com ganhos aos grandes conglomerados tecnológicos internacionais que os confabularão e explorarão, vendendo informações no mercado clandestino e vigiando diuturnamente todos nós.

Quem serão os controladores de todo este sistema e mecanismo? Os de sempre, com toda certeza. Os donos do poder econômico, que têm à sua frente, como testa de ferro, o poder político.

Sobre o autor
Denival Francisco da Silva

mestre em Direito pela UFPE, professor da Universidade Católica de Goiás (UCG), juiz de Direito em Goiânia (GO)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Denival Francisco. Uso de tornozeleira eletrônica é apenas o recomeço.: Do controle do corpo ao controle da alma; do controle da alma ao controle do corpo, da moral, do caráter, da dignidade e de todo resto. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2927, 7 jul. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19496. Acesso em: 22 nov. 2024.

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