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Ativismo judicial

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Agenda 10/07/2011 às 16:59

3. O ATIVISMO JUDICIAL EM OUTROS PAÍSES

O ativismo Judicial não é um fenômeno praticado apenas pelo judiciário brasileiro. Todos os autores que discutem o tema apontam que, em algum momento, tanto países da América Latina quanto países europeus, praticaram em maior ou menor intensidade o ativismo judicial. Luis Roberto Barroso aponta os seguintes casos na América:

De fato, desde o final da Segunda Guerra Mundial verificou-se, na maior parte dos países ocidentais, um avanço da justiça constitucional sobre o espaço da política majoritária, que é aquela feita no âmbito do Legislativo e do Executivo, tendo por combustível o voto popular. Os exemplos são numerosos e inequívocos. No Canadá, a Suprema Corte foi chamada a se manifestar sobre a constitucionalidade de os Estados Unidos fazerem testes com mísseis em solo canadense. Nos Estados Unidos, o último capítulo da eleição presidencial de 2000 foi escrito pela Suprema Corte, no julgamento de Bush v. Gore. Em Israel, a Suprema Corte decidiu sobre a compatibilidade, com a Constituição e com atos internacionais, da construção de um muro na fronteira com o território palestino. A Corte Constitucional da Turquia tem desempenhado um papel vital na preservação de um Estado laico, protegendo-o do avanço do fundamentalismo islâmico. Na Hungria e na Argentina, planos econômicos de largo alcance tiveram sua validade decidida pelas mais altas Cortes. Na Coreia, a Corte Constitucional restituiu o mandato de um presidente que havia sido destituído por impeachment. Todos estes casos ilustram a fluidez da fronteira entre política e justiça no mundo contemporâneo. [30]

Vanice Regina Lírio do Valle relata alguns casos de ativismo na Europa

se é certo que, no terreno do direito em geral, a tradição germânica repousa em uma premissa de um sistema normativo racional, dedutivo, vinculado à jurisprudência dos conceitos, não é menos certo que a interpretação constitucional culminou por determinar ao Tribunal Constitucional outras aproximações do Texto Fundamental, a partir das premissas de sua unidade estrutural, e de seu compromisso em estabelecer uma ordem de valores objetiva, instrumental à garantia de um núcleo fundamental de direitos (...).

É de Donald Kommers a síntese de estratégias adotadas pela suprema corte, na Alemanha, destinadas a suavizar o impacto político de suas decisões, que pudessem, em alguma medida, traduzir uma interferência na atuação anterior do legislador. São provimentos ou cunhos admonitório, em que o legislador é advertido das deficiências (omissões ou incompreensões dos reais limites constitucionais) de sua própria atuação para corrigi-la diretamente pelo exercício da função legislativa; ou aquele em que a corte sustenta a constitucionalidade da norma, mas adverte o legislador que esse mesmo texto normativo virá a ser revogado, salvo atuação legislativa retificadora (...). [31]

No mesmo sentido, discorre Gilmar Mendes:

A Corte Constitucional prevista na Lei Fundamental somente foi instituída dois anos após com a edição da Lei de 12 de março de 1951.

Imediatamente após a instituição do Tribunal começou a luta da Corte Constitucional pelo seu status. A insuficiente regulamentação de diferentes questões de índole organizatória levou o Bundesverfassungsgericht a encaminhar, em 21 de março de 1952, documento aos órgãos superiores federal, no qual destacava suas qualidades de corte judicial e de órgão constitucional dotado de elevada autoridade. Nesse documento solicitava-se a imediata alteração do regime jurídico em vigor. A legitimidade desse documento foi contestada por Thoma, em parecer solicitado pelo governo federal. As objeções contra esse documento não impediram, todavia, que o Tribunal acabasse por fazer valer as suas exigências [32].

Não raro reconhece a Corte que a lei ou a situação jurídica não se tornou "ainda" inconstitucional, conclamando o legislador a que proceda - às vezes dentro de determinado prazo à correção ou adequação dessa "situação ainda constitucional (...)" [33]


4. CRÍTICAS AO ATIVISMO JUDICIAL

As principais críticas ao ativismo judicial residem nos argumentos de que os juízes e Tribunais, incluindo os Tribunais Constitucionais, não teriam legitimidade democrática para, em suas decisões, insurgirem-se contra atos legalmente instituídos pelos poderes eleitos pelo povo. Surge, então, o denominado contramajoritarismo, que é a atuação do poder judiciário atuando ora como legislador negativo, ao invalidar atos e leis dos poderes legislativos ou executivos democraticamente eleitos, ora como legislador positivo – ao interpretar as normas e princípios e lhes atribuírem juízo de valor. Os críticos argumentam também que há intromissão do poder judiciário nos demais poderes da república, ferindo de morte o princípio da separação e harmonia entre os poderes, bem como o estado democrático de direito e a democracia.

"Como é possível que um minúsculo grupo de juízes, que não são eleitos diretamente pela cidadania (como o são os funcionários políticos), e que não estejam sujeitos a periódicas avaliações populares (e, portanto gozam de estabilidade em seus cargos, livre do escrutínio popular) possam prevalecer, em última instância, sobre a vontade popular? [34]

Faustino da Rosa Júnior assim se posiciona:

Na verdade, um magistrado só apresenta uma legitimidade legal e burocrática, não possuindo qualquer legitimidade política, para impor ao caso concreto sua opção político-ideológica particular na eleição de um meio de efetivação de um direito fundamental. Sucede que, em nosso sistema, os magistrados não são eleitos, mas sua acessibilidade ao cargo dá-se por meio de concursos públicos, o que lhes priva de qualquer representatividade política para efetuar juízos desta magnitude. Ademais, por sua própria formação técnica e atuação no foro, é evidente que os magistrados são incapazes de conhecerem as peculiaridades concretas que envolvem a execução de políticas públicas que visam a realizar concretamente direitos fundamentais pela Administração Pública.

Dessa forma, efetua-se uma "politização" do Judiciário, uma vez que os magistrados passam a efetuar, fundados na distorcida prerrogativa do chamado "controle difuso", inadequado a países de sistema romano-germânico, juízos eminentemente políticos. Surge o chamado "juiz político", que concretiza políticas públicas de forma descomprometida, uma vez que não é responsabilizado pelo cumprimento da alocação de recursos efetuada pelos orçamentos e planos plurianuais, nem goza de qualquer espécie de representatividade política, ou mesmo compromisso político-partidário e/ou com algum programa de governo específico [35].

Na opinião da socióloga Maria Alice Rezende, as democracias contemporâneas sofreram diversas mudanças nas últimas décadas, e a judicialização seria uma modificação positiva:

Nos últimos 60 anos, portanto em consonância com a Declaração de Direitos Humanos, a democracia passou a ser identificada com acesso generalizado a direitos de cidadania. Hoje, ela está identificada com a fruição plena de uma cesta básica de direitos. Não se trata de pensar a democracia contemporânea, marcada pelo processo de judicialização, como uma alternativa à democracia representativa. Ela se soma aos efeitos e às mutações dessa democracia nos últimos anos. A virtude da judicialização não é o papel proeminente dos magistrados, mas sim a educação cívica, a discussão pública sobre direitos. A lei não pode ser apenas o braço que pune, mas deve também acolher, para ajustar, as desigualdades originadas pela globalização [36].

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Para analisar as teses contrárias ao ativismo judicial, mister se faz analisar cada um dos institutos mencionados.

4.1. Contramajoritarismo

O termo countermojoritarian difficulty foi utilizado ineditamente por Alexander Bickel, na obra The least dangerous branch. [37] Trata-se, em tese, da impossibilidade de tribunais ou órgãos não eleitos democraticamente invalidarem decisões de órgãos eleitos por eleições populares. Diante deste raciocínio, o STF não poderia declarar inconstitucionalidade de leis, visto que seus membros não foram eleitos pelo povo.

4.2. Legitimidade contramajoritária

A legitimidade contramajoritária encontra-se baseada em dois fundamentos: um jurídico e outro filosófico. O fundamento jurídico é decorrente da própria constituição a qual lhe atribui este poder. Logo, ao interpretarem e fazerem valer as cláusulas abertas e princípios constitucionais, os juízes e tribunais estão, em verdade, garantindo a vontade soberana do povo, que em assembléia nacional constituinte assim lhes determinou.

Inobstante, conforme ensinamento de Barroso deve-se acrescentar à justificativa jurídica a justificação filosófica:

A justificação filosófica para a jurisdição constitucional e para a atuação do Judiciário na vida institucional é um pouco mais sofisticada, mas ainda assim fácil de compreender. O Estado constitucional democrático, como o nome sugere, é produto de duas idéias que se acoplaram, mas não se confundem. Constitucionalismo significa poder limitado e respeito aos direitos fundamentais. O Estado de direito como expressão da razão. Já democracia significa soberania popular, governo do povo. O poder fundado na vontade da maioria. Entre democracia e constitucionalismo, entre vontade e razão, entre direitos fundamentais e governo da maioria, podem surgir situações de tensão e de conflitos aparentes.

Por essa razão, a Constituição deve desempenhar dois grandes papéis. Um deles é o de estabelecer as regras do jogo democrático, assegurando a participação política ampla, o governo da maioria e a alternância no poder. Mas a democracia não se resume ao princípio majoritário. Se houver oito católicos e dois muçulmanos em uma sala, não poderá o primeiro grupo deliberar jogar o segundo pela janela, pelo simples fato de estar em maior número. Aí está o segundo grande papel de uma Constituição: proteger valores e direitos fundamentais, mesmo que contra a vontade circunstancial de quem tem mais votos.

(...) para assegurar a legitimidade e a racionalidade de sua interpretação nessas situações, o intérprete deverá, em meio a outras considerações: (i) reconduzi-la sempre ao sistema jurídico, a uma norma constitucional ou legal que lhe sirva de fundamento – a legitimidade de uma decisão judicial decorre de sua vinculação a uma deliberação majoritária, seja do constituinte ou do legislador [38].

Assim, a jurisdição constitucional atuando contra majoritariamente, está na verdade, funcionando como guardiã da própria democracia. Não se pode conceber democracia como mera participação dos cidadãos em pleitos eleitorais, como bem salienta Jonatas Luiz Moreira de Paula, apoiado em Norberto Bobbio:

democracia pressupõe não só a distribuição de poderes, mas igualdade entre os cidadãos membros da sociedade, seja em oportunidade, seja em condições. A despeito de a democracia referir-se à idéia de igualdade, fato inegável é que ela assenta-se sobre uma base social complexa e pluralista [39]·.

Portanto, enquanto os demais poderes se legitimam com o resultado das eleições, o poder judiciário se legitima na medida em que suas decisões são no sentido de alcançar os objetivos previstos na constituição, aprovados em Assembléia Nacional Constituinte.

4.3. Politização, ativismo judicial e democracia

Os limites deste trabalho não permitem aprofundar o debate sobre a democracia em todas as suas vertentes, ante a sua pluralidade de sentido e controvérsia, mas faz-se necessário uma breve análise deste instituto.

A palavra democracia tem sua origem na Grécia Antiga, vem da palavra grega "demos" que significa povo. (demo=povo e kracia=governo). Daí porque hoje na maioria das vezes entendemos a democracia apenas no célebre conceito de Lincoln – o governo do povo, pelo povo e para o povo -, ou simplesmente, resumindo-a as eleições diretas para os cargos políticos.

Este sistema de governo foi desenvolvido em Atenas (uma das principais cidades da Grécia Antiga), como um sistema ideal de governo em oposição ao sistema aristocrático. Esta democracia clássica fundava-se na idéia de que o governo é o próprio povo (demos), sem qualquer intermediação. Esse modelo tinha como premissa o princípio da ‘isonomia’, segundo o qual os cidadãos tinham peso político idêntico, independentemente de suas posições sociais.

Porém ao longo do tempo foi sofrendo transformações e adaptações, adequando-se à realidade e contextos históricos particulares. Aquele modelo de democracia direta surgida na Grécia foi substituído pela democracia representativa, na qual o povo elege os seus representantes, somente vindo a exercê-la diretamente, em raríssimas ocasiões, como nos plebiscitos e referendos.

Explicar a "democracia" é muito difícil, por tratar-se de um conceito não unívoco, podendo ser analisada sob diversos vetores, mas podemos apontar alguns princípios e práticas presentes nos regimes democráticos que o diferencia de outras formas de governo.

A democracia baseia-se nos princípios do governo da maioria, respeitando os direitos individuais e os direitos das minorias. A democracia sujeita os governos ao Estado de Direito e assegura que todos os cidadãos recebam a mesma proteção legal e que os seus direitos sejam protegidos pelo sistema judiciário. Os governos democráticos exercem a autoridade por meio da lei e estão eles próprios sujeitos aos constrangimentos impostos pela lei. Nas democracias, é o povo quem detém o poder soberano sobre o poder legislativo e o executivo.

Segundo Robert Alexy [40], a proposição "Todo o poder estatal provém do povo", exige conceber não só o parlamento como, ainda, o tribunal constitucional como representação do povo. O parlamento representa o cidadão politicamente; o tribunal constitucional, argumentativamente.

(...) Com isso, deve ser dito que a representação do povo pelo tribunal constitucional tem um caráter mais idealístico de que aquela pelo parlamento. O cotidiano da exploração parlamentar contém o perigo que maiorias imponham-se desconsideradamente, emoções determinem o ocorrer, dinheiro e relações de poder dominem e simplesmente sejam cometidos erros graves. Um tribunal constitucional que se dirige contra tal não se dirige contra o povo, mas, em nome do povo, contra seus representantes políticos [41].

Luana Paixão Dantas do Rosário [42] assevera que a expansão do âmbito de atuação do Poder Judiciário, bem como sua politização, não são contrárias à Democracia, mas estão em consonância com ela, com o seu conteúdo e os seus princípios. Ressalta que as relações entre direito e política na dimensão constitucional criam um novo espaço aberto ao ativismo positivo de agentes sociais e judiciais na produção da cidadania:

O constitucionalismo liberal preza pela defesa do individualismo racional, a garantia limitada dos direitos civis e políticos e clara separação dos poderes; o constitucionalismo democrático prioriza os valores da dignidade humana e da solidariedade social, a ampliação do âmbito de proteção dos direitos e redefinição das relações entre os poderes do estado [43].

A legitimidade democrática do Judiciário pode ser compreendida pelo viés do discurso, pela realização da finalidade ou conteúdo da democracia, os Direitos Fundamentais, ou pelo viés da participação direta do cidadão no Poder Judiciário, considerado como espaço político. Deste modo, pode ser compreendida pela idéia de legitimidade discursiva, da participação política e da representatividade discursiva [44].

"É preciso não esquecer que a crescente busca, no âmbito dos tribunais, pela concretização de direitos individuais e/ou coletivos também representa uma forma de participação no processo político" [45]:

A politização do Judiciário - para utilizar corrente expressão doutrinária, embora esta expressão possa dar a entender que signifique conferir natureza de político a algo que não tivesse essa natureza originariamente, o que seria um grave equívoco – possibilita a construção da Democracia, porque torna este um importante nível de acesso do cidadão às instâncias do poder. Dessa forma, possibilita-se, na sociedade plural, que grupos não possuidores de representatividade, influam nas decisões políticas. Isto não enfraquece a Democracia representativa, antes, a complementa ao contemplar os princípios democráticos. [46]

"Os métodos de atuação e de argumentação dos órgãos judiciais são, como se sabe, jurídicos, mas a natureza de sua função é inegavelmente política" [47]

Outra vez recorreremos aos ensinamentos de Luis Roberto Barroso.

(...) o Judiciário tem características diversas da dos outros Poderes. É que seus membros não são investidos por critérios eletivos nem por processos majoritários. E é bom que seja assim. A maior parte dos países do mundo reserva uma parcela de poder para que seja desempenhado por agentes públicos selecionados, com base no mérito e no conhecimento específico. Idealmente preservado das paixões políticas, ao juiz cabe decidir com imparcialidade, baseado na Constituição e nas leis. Mas o poder de juízes e tribunais, como todo poder em um estado democrático, é representativo. Vale dizer: é exercido em nome do povo e deve contas à sociedade [48]

Em sentido contrário, Daniel Sarmento diz que há uma tensão potencial entre o constitucionalismo e a democracia.

Há uma tensão potencial entre o constitucionalismo e a democracia. De forma bem esquemática, a democracia identifica-se com o governo do povo, postulando o predomínio da vontade da maioria, enquanto o constitucionalismo preocupa-se com a limitação ao exercício do poder, estabelecendo barreiras para o exercício da soberania popular (...)

Embora na visão contemporânea do Estado Democrático de Direito, democracia e constitucionalismo sejam corretamente vistos como valores complementares e sinérgicos, é preciso dosar com cuidado os ingredientes desta fórmula. Limitações exageradas ao poder podem asfixiar a soberania popular e comprometer e autonomia política do cidadão, coautor do seu destino coletivo. Mas também uma "democracia" sem limites tenderia a pôr em risco os direitos das minorias, além de outros valores essenciais, que são pressupostos para a própria continuidade da empreitada democrática. (...) [49]

O autor refuta a tese de que a Constituição é, por definição, a expressão da soberania do povo, e que não haveria qualquer obstáculo democrático à imposição pela constituição de limites ao legislador sob dois argumentos: um temporal - no qual discute até que ponto é legítimo que uma determinada geração, sob determinado contexto histórico, adote decisões que irão vincular gerações futuras, em cenários muitos diferentes - e outro semântico – ante as prescrições constitucionais vagas, como dignidade da pessoa humana; igualdade, solidariedade social e moralidade administrativa, cita como exemplo a discussão sobre pesquisas com células-tronco, cujo princípio da dignidade da pessoa humana que era utilizado tanto pela corrente favorável quanto por aquela que se opunha a tais pesquisas. [50]

Cumpre destacar que o autor não nega a legitimidade das constituições, nem sua garantia pelo judiciário, apenas demonstra que há tensão entre democracia e constitucionalismo.

Luiz Verneck Vianna [51] afirma que, na cena contemporânea do Ocidente, não se pode mais compreender a democracia sem levar em conta as profundas transformações por que tem passado, desde o segundo pós-guerra, as relações entre os sistemas do direito e da política. Com efeito, a consagração do modelo do constitucionalismo democrático, impondo a fórmula do judicial review afetou o princípio da soberania da maioria, cujas manifestações legislativas se tornam passíveis de controle por parte do juiz nos casos em que não estão condizentes com o texto constitucional ou com os princípios que os informam.

4.4. Ativismo judicial e a separação dos poderes

4.4.1. Origem da separação dos poderes

A teoria da separação dos poderes brotou ainda na antiguidade, nas manifestações de Aristóteles ao tratar, na obra A Política, da existência de três poderes. Para Aristóteles, a concentração do poder político nas mãos de um só homem, "sujeito a todas as possíveis desordens e afeições da mente humana", era inconveniente, distinguindo, pois, três funções do estado: o deliberativo, o executivo e o judiciário. O primeiro encarregado de deliberar sobre os negócios do Estado, entregue a uma assembléia, que era dotada de competência para decidir sobre a paz e a guerra, estabelecer ou romper alianças, e ainda, fazer ou revogar leis. O segundo exercido pelas magistraturas governamentais teria prerrogativas e atribuições a determinar em cada caso, e por fim, o terceiro órgão de uma constituição, para Aristóteles, é o que administra a justiça.

Foi John Locke, entretanto que, na era moderna, formulou a primeira construção sistemática de uma teoria da separação dos poderes, dividindo-os em Legislativo, Executivo e Federativo. Ao primeiro, competia elaborar as leis que disciplinariam o uso da força na comunidade civil; ao segundo, aplicar as leis aos membros da comunidade; e ao terceiro, o desempenho da função de relacionamentos com outros estados.

John Locke considerava o legislativo como o poder supremo, ao qual os outros dois poderes se subordinavam, sendo que o legislativo se submetia apenas ao poder do povo. Para ele, o poder executivo e o poder federativo deveriam ser exercidos pela mesma pessoa. O essencial era a separação entre legislativo e executivo.

Embora tenha surgido da antiguidade, esta teoria somente foi acolhida pelo mundo moderno após a sistematização de Montesquieu, em sua obra O Espírito das Leis.

Para Montesquieu,

quando na mesma pessoa ou no mesmo corpo de magistratura o poder legislativo está reunido ao poder executivo, não existe liberdade, pois pode-se temer que o mesmo monarca ou o mesmo senado apenas estabeleçam leis tirânicas para executá-las tiranicamente. Também não haverá liberdade se o poder de julgar não estiver separado do poder legislativo e do executivo. Se estivesse ligado ao poderlegislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário, pois o juiz seria legislador. Se estivesse ao poder executivo, o juiz poderia ter a força de um opressor. Tudo estaria perdido se o mesmo homem ou o mesmo corpo dos príncipes ou dos nobres, ou do povo exercesse esses três poderes. O de fazer as leis, o de executar as resoluções públicas e o de julgar os crimes ou as divergências dos indivíduos.". [52]

Assim, baseado na realidade política da França daquela época, Montesquieu propôs a separação dos poderes a fim de controlar o poder do soberano, tendo como objetivo a liberdade:

encontra-se a liberdade política unicamente nos estados moderados. Porém ela nem sempre existe nos estados moderados: só existe nesses últimos quando não se abusa do poder; mas a experiência eterna mostra que todo homem que tem o poder é tentado a abusar dele; vai até onde encontra limites (...). Para que não se possa abusar do poder é preciso que, pela disposição das coisas, o poder freie o poder. [53]

"O autor tinha os olhos postos na realidade política francesa, dentro da qual era ardoroso defensor do liberalismo contra o absolutismo monárquico do Ancien Regime" [54]. Por conseguinte, esta teoria visava a combater o poder político e não a uma técnica de organização racional das funções públicas. É o que nos ensina Hans Kelsen na obra Teoria geral direito e do estado. (...) "A significação histórica do princípio chamado separação de poderes encontra-se precisamente no fato de que ele opera antes contra uma concentração que a favor de uma separação de poderes"(...). [55]

No mesmo sentido, o Ministro Cezar Peluso, no julgamento da Adin 3367, traz os ensinamentos de Tércio Sampaio Ferraz Junior.

Montesquieu, na verdade, via na divisão de poderes muito mais um preceito de arte política do que um princípio jurídico. Ou seja, não se tratava de um princípio para a organização do sistema estatal e de distribuição de competências, mas um meio de se evitar o despotismo real. "(...) Nesse sentido, o princípio não era de separação de poderes, mas de inibição de um pelo outro de forma recíproca." [56]

E prossegue o eminente ministro Cezar Peluso em seu voto:

A matriz histórica da separação dos poderes há de ser, pois, reconduzida, no contexto da causa, ao alcance de instrumento político que lhe emprestava o autor que a consagrou como teoria: conter o poder, para garantir a liberdade. É esta a razão por que, em coerência com seus pressupostos teóricos e objetivos práticos, MONTESQUIEU jamais defendeu a ideia de uma separação absoluta e rígida entre os órgãos incumbidos de cada uma das funções estatais [57].

Também o Ministro Eros Grau, em seu voto no julgamento da Adin nº 3367, assim se posicionou: "O que importa verificar, inicialmente, na construção de Montesquieu, é o fato de que não cogita de uma efetiva separação de poderes, mas sim de uma distinção entre eles, que, não obstante, devem atuar em clima de equilíbrio" [58].

Este é o entendimento do mestre José Joaquim Gomes Canotilho.

Hoje, tende a considerar-se que a teoria da separação dos poderes engendrou um mito. Consistiria este mito na atribuição a Montesquieu de um modelo teórico reconduzível à teoria da separação dos poderes rigorosamente separados: o executivo (o rei e seus ministros), o legislativo (1ª câmara e 2ª câmara, câmara baixa e câmara alta) Cada poder recobriria um função própria sem qualquer interferência dos outros. Foi demonstrado por Eisenmann que esta teoria nunca existiu em Montesquieu: por um lado reconhecia-se ao executivo o direito de interferir no legislativo porque o rei gozava do direito de veto; em segundo lugar, porque o legislativo exerce vigilância sobre o executivo na medida em que controla as leis que votou, podendo exigir aos ministros conta da sua administração; finalmente, o legislativo sobre o judicial quando se trata de julgar os nobres pela Câmara dos Pares, na concessão de anistias e nos processos políticos que deviam ser apreciados pela Câmara alta sob acusação da Câmara baixa [59]

Dalmo de Abreu Dallari relata que os três poderes que compõem o aparato governamental dos estados contemporâneos, sejam ou não definidos como poderes, estão inadequados para a realidade social e política do nosso tempo, assim se justificando.

(...) Isso pode ser facilmente explicado pelo fato de que eles foram concebidos no século dezoito, para realidades diferentes, quando se imaginava o "Estado Mínimo", pouco solicitado, mesmo porque só uma pequena parte das populações tinha a garantia de seus direitos e possibilidade de se exigir que eles fossem respeitados. Esse desajuste, sob certos aspectos, é ainda mais acentuado quanto ao judiciário (...) [60]

Sobre o autor
Vicente Paulo de Almeida

Servidor Público

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALMEIDA, Vicente Paulo. Ativismo judicial. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2930, 10 jul. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19512. Acesso em: 23 dez. 2024.

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