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Tratados internacionais de meio ambiente: estatura no ordenamento jurídico brasileiro

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Agenda 16/07/2011 às 09:50

Os tratados internacionais de meio ambiente, ao protegerem o direito humano ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, apresentam estatura supralegal no ordenamento jurídico brasileiro.

RESUMO

O trabalho propõe-se a abordar a temática ambiental no cenário internacional. Inicia-se por demonstrar como a evolução da questão ambiental está intrinsecamente relacionada com o direito internacional. Passa-se à avaliação do enquadramento do direito ao meio ambiente equilibrado como direito internacional, o que se afigura como premissa para determinar o status dos tratados internacionais sobre a matéria. Passa-se a uma abordagem da evolução da norma constitucional e da jurisprudência brasileiras acerca do posicionamento dos tratados internacionais e dos tratados internacionais de direitos humanos no ordenamento jurídico. Conclui-se, afinal, que os tratados internacionais de meio ambiente, ao protegerem o direito humano ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, apresentam estatura supralegal no ordenamento jurídico brasileiro.


ABSTRACT

Arouses the discussion on whether international treaties boarding the right to a balanced environment should be considered as human right laws. As so, analyses the evolution on jurisprudence and constitutional commands on the internalization of human right treaties in the Brazilian law system. Concludes that environmental international treaties are referred to a supralegal statue in the Brazilian system.

PALAVRAS-CHAVE: Tratados internacionais; meio ambiente; direitos humanos; incorporação de tratados; hierarquia de tratados; Direito Constitucional; Direito Ambiental.

KEY-WORDS: International treaties; environment; human rights; Constitution; environmental law, integration of treaties.

SUMÁRIO: Introdução: meio ambiente e globalização . 1. Direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado: direito humano?. 2. Tratados internacionais de meio ambiente. 3. Internalização dos tratados internacionais de direitos humanos. 3.1. Antecedentes à Constituição Federativa de 1988. 3.2. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (redação originária). 3.3. Emenda Constitucional n. 45/2004. 3.4. Recurso Extraordinário 466.343. Conclusão. Bibliografia


INTRODUÇÃO: meio ambiente e globalização

"A escolha é nossa: formar uma aliança global para cuidar da Terra e uns dos outros, ou arriscar a nossa destruição e a da diversidade da vida."

(Carta da Terra)

A globalização é uma realidade presente, que se manifesta em todos os campos da vida social, política, jurídica, econômica e cultural, com um intercâmbio crescente de mercadorias, capitais, informações e idéias entre os países [01]. Na aldeia global, diminuem-se as distâncias geográficas e temporais de forma pronunciada. Lamounier se refere à globalização como a reorganização das estruturas políticas e o aumento dos fluxos comerciais e financeiros, configurando uma situação de crescente interdependência mundial, no contexto da aceleração do desenvolvimento tecnológico [02].

Como se pode observar, vivencia-se, na verdade, uma nova visão do mundo, uma Weltanschauung, em que se rompem fronteiras, não somente geográficas, mas também políticas, econômicas, sociais, culturais e jurídicas. Assim é que, no convívio deste mundo que se unifica, são crescentes as preocupações com temas comuns à toda "aldeia global", como direitos humanos e ecologia.

Nesse contexto, o meio ambiente é um tema global por excelência, já que a natureza é uma só e pertence a todos os habitantes do planeta [03]. O meio ambiente acaba por tangenciar os interesses de todos. Inclusive, nessa esteira, foi no meio internacional que o movimento ambiental foi gestado. A Revolução Industrial, com suas intensas emissões de gases poluentes, serviu de primeiro alerta à preocupação com o fator ambiental. Seguiu-se a previsão de Malthus de que o crescimento demográfica, em progressão geométrica, não seria acompanhado da curva de crescimento da produção de alimentos. Esses fatores levaram a sociedade a se preocupar com questões ambientais ao lado do anseio pelo crescimento e desenvolvimento econômico. No final do século XIX, o movimento ambiental consolida-se nos Estados Unidos e na Europa.

Durante as décadas de 1940 e 1950, houve repercussão internacional da questão da poluição, o que ensejou a criação de diversos órgãos ambientais relevantes de alcance internacional, tais quais as organizações não-governamentais International Union for Conservation of Nature (UICN) e o World Wildlife Fund (WWF).

Nesse sentido, verifica-se que o movimento ambiental já se havia difundido quando, em 1972, consagrou-se o tema ambiental na Conferência de Estocolmo. O tratado ali fomentado revestiu-se de especial destaque em face dos seguintes fatores:

a) número de países representados;

b) abrangência do tema ambiental;

c) ingresso da agenda ambiental no cenário internacional e no cenário político interno; e

d) a formalização do primeiro direito fundamental difuso, qual seja, o direito ao meio ambiente equilibrado.

Desde então, o tema ambiental vem sendo objeto de diversos acordos internacionais, o que evidencia a natureza global da matéria. O maior benefício que se extrai desses tratados internacionais é a contribuição para a conscientização da opinião pública e da classe política e a internalização da agenda ambiental.

Nesse ponto, importa revisitar a forma de internalização dos referidos tratados no direito brasileiro e apontar qual o nível hierárquico que ele ocupa no ordenamento jurídico pátrio.

Destarte, o objetivo deste trabalho é partir do questionamento se os tratados de direito ambiental se equiparam aos tratados de direitos humanos. Para tanto, impende enfrentar o questionamento se o direito ao meio ambiente equilibrado se amolda ou não no conceito de direitos humanos. Passa-se, pois, a analisar a evolução doutrinária e jurisprudencial sobre a incorporação de tratados de direitos humanos no ordenamento jurídico brasileiro e a evolução constitucional pertinente à matéria.


1. DIREITO AO MEIO AMBIENTE EQUILIBRADO: direito humano?

"A idéia dos direitos humanos é, assim, tão antiga como a própria história das civilizações, tendo logo se manifestado, em distintas culturas e em momentos históricos sucessivos, na afirmação da dignidade da pessoa humana, na luta contra todas as formas de dominação e exclusão e opressão, e em prol da salvaguarda contra o despotismo e a arbitrariedade, e na asserção da participação na vida comunitária e do princípio da legitimidade."

(Augusto Cançado Trindade)

Os direitos humanos representam o conjunto de direitos e faculdades que garantem a dignidade da pessoa humana e se beneficiam de garantias internacionais institucionalizadas [04]. Percebe-se, pois, que o conceito de direitos humanos está estritamente vinculado a propiciar a dignidade da pessoa humana.

Conferir a determinado direito a estatura de direito humano importa em lhe conceder todas as garantias institucionais próprias dos direitos humanos. Em face dos efeitos concretos que gera, a questão ultrapassa o mero debate acadêmico. E com a ascensão da questão ambiental no mundo jurídico, o direito ao meio ambiente não escapou da polêmica sobre sua inclusão ou não como direito humano.

Ora, também o meio ambiente ecologicamente equilibrado guarda estreita relação com a saúde, o bem-estar da população, o oferecimento de recursos para o incremento tecnológico, o desenvolvimento sócio-econômico, com a garantia a moradia em locais adequados. Garantir o meio ambiente significa garantir vida digna.

Com esse raciocínio, é inegável que o direito ao meio ambiente reveste-se da estatura de direito humano e serve a assegurar o direito fundamental à vida [05].

Assim, o direito ao meio ambiente equilibrado exsurge, no âmbito dos direitos humanos, como um direito novo [06], de terceira geração, vinculado ao princípio da fraternidade e destinado ao gênero humano como um todo [07].

Na linha desse pensamento, o Tribunal Europeu de Direitos Humanos já se posicionou no sentido de que graves afrontas ao meio ambiente podem afetar o bem-estar de uma pessoa [08]. E do assunto emanam as recentes discussões acerca dos refugiados ambientais [09].

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O tema também foi enfrentado pela jurisprudência pátria. O julgamento, ainda em 2005, da medida cautelar na ação direta de inconstitucionalidade n. 3.450-1 [10] foi o primeiro que expressamente abordou a questão, cujo ementa, em parte, se transcreve:

MEIO AMBIENTE - DIREITO À PRESERVAÇÃO DE SUA INTEGRIDADE (CF, ART. 225) - PRERROGATIVA QUALIFICADA POR SEU CARÁTER DE METAINDIVIDUALIDADE - DIREITO DE TERCEIRA GERAÇÃO (OU DE NOVÍSSIMA DIMENSÃO) QUE CONSAGRA O POSTULADO DA SOLIDARIEDADE - NECESSIDADE DE IMPEDIR QUE A TRANSGRESSÃO A ESSE DIREITO FAÇA IRROMPER, NO SEIO DA COLETIVIDADE, CONFLITOS INTERGENERACIONAIS - ESPAÇOS TERRITORIAIS ESPECIALMENTE PROTEGIDOS (CF, ART. 225, § 1º, III) - ALTERAÇÃO E SUPRESSÃO DO REGIME JURÍDICO A ELES PERTINENTE - MEDIDAS SUJEITAS AO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA RESERVA DE LEI - SUPRESSÃO DE VEGETAÇÃO EM ÁREA DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE - POSSIBILIDADE DE A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA, CUMPRIDAS AS EXIGÊNCIAS LEGAIS, AUTORIZAR, LICENCIAR OU PERMITIR OBRAS E/OU ATIVIDADES NOS ESPAÇOS TERRITORIAIS PROTEGIDOS, DESDE QUE RESPEITADA, QUANTO A ESTES, A INTEGRIDADE DOS ATRIBUTOS JUSTIFICADORES DO REGIME DE PROTEÇÃO ESPECIAL - RELAÇÕES ENTRE ECONOMIA (CF, ART. 3º, II, C/C O ART. 170, VI) E ECOLOGIA (CF, ART. 225) - COLISÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS - CRITÉRIOS DE SUPERAÇÃO DESSE ESTADO DE TENSÃO ENTRE VALORES CONSTITUCIONAIS RELEVANTES - OS DIREITOS BÁSICOS DA PESSOA HUMANA E AS SUCESSIVAS GERAÇÕES (FASES OU DIMENSÕES) DE DIREITOS (RTJ 164/158, 160-161) - A QUESTÃO DA PRECEDÊNCIA DO DIREITO À PRESERVAÇÃO DO MEIO AMBIENTE: UMA LIMITAÇÃO CONSTITUCIONAL EXPLÍCITA À ATIVIDADE ECONÔMICA (CF, ART. 170, VI) - DECISÃO NÃO REFERENDADA - CONSEQÜENTE INDEFERIMENTO DO PEDIDO DE MEDIDA CAUTELAR. A PRESERVAÇÃO DA INTEGRIDADE DO MEIO AMBIENTE: EXPRESSÃO CONSTITUCIONAL DE UM DIREITO FUNDAMENTAL QUE ASSISTE À GENERALIDADE DAS PESSOAS.

Consagrou-se, assim, posicionamento que já vinha sendo tomado na doutrina constitucionalista, conforme pincelado supra [11], e ambiental [12].

Corrobora, ainda, com o entendimento o fato de a Constituição Federal ter assegurado o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado de forma inovadora no artigo 225 [13]. Não só aí se consagrou o direito ao meio ambiente, mas em outros dispositivos concernentes à ordem econômica, à política urbana, ao desenvolvimento agrário e ao direito de propriedade.

Desta feita, depreende-se que o direito ao meio ambiente equilibrado reveste-se da roupagem de direito humano, dado a relação que aquele apresenta para a garantia de uma vida digna. Nesse sentido também conclui Mazzuoli [14], com arrimo em que o direito ao meio ambiente equilibrado, apesar de não constar da Declaração de Direitos Humanos de 1948, integra o bloco de constitucionalidade dos textos constitucionais contemporâneos. Os direitos consagrados naquele texto somente são alcançados com a plena realização dos princípios protetores do meio ambiente.

Não obstante o inegável vínculo entre a dignidade da vida humana e o direito ao meio ambiente equilibrado há de se atentar que o reconhecimento da estatura de direitos humanos confere uma visão eminentemente antropocêntrica do tema. Há que se atentar para que referida visão não deturpe o incremento e medidas de proteção ambiental que nem sempre tem um fim imediato na melhoria da vida humana.


2. TRATADOS INTERNACIONAIS DE MEIO AMBIENTE

" ...os direitos do homem nascem como direitos naturais universais, desenvolvem-se como direitos positivos particulares, para finalmente encontrarem sua plena realização como direitos positivos universais"

(Noberto Bobbio)

O plano internacional sempre esteve em estreita relação com o direito ambiental. Inicialmente figurou como motor a que os Estados incorporassem o tema nos ordenamentos pátrios, ocasião em que o direito ambiental se esgotava no campo da jurisdição estatal. Posteriormente, o titular do direito ambiental passou a ser a comunidade internacional, através da celebração de inúmeras convenções internacionais referentes ao meio ambiente. Referidos compromissos, contudo, carecem de instrumentos de coerção. Nesse diapasão, há quem sustente que o direito ambiental caminha para uma feição planetária, com a imposição coercitiva de normas ambientais por uma autoridade ambiental mundial [15]. A expansão justifica-se com a coincidência do âmbito da problemática com o da sociedade.

Referida tendência leva, inevitavelmente, à discussão, que vem sendo capitaneada pelo novo direito internacional, acerca da repaginação do conceito de soberania [16].

A universalização do tema ambiental também se reflete na jurisprudência de tribunais internacionais, na irrupção de uma governança global e na legislação, esta através da incorporação crescente do tema em tratados internacionais.

Os acordos internacionais de meio ambiente, em face da crescente complexidade e dependência técnica do tema, apresentam características formais peculiares. As regras ambientais tangenciam temas como crescimento econômico, desenvolvimento social, tecnologia, comércio, e são positivadas em tratados em que predominam outros tantos objetos protegidos. Assim, as normas internacionais de direito ambiental tem institucionalização deveras difusa.

Ademais, em matéria ambiental, em regra, as convenções-quadro inauguram um ajuste guarda-chuva sobre o tema, que será pormenorizado nas convenções das partes e em protocolos.

Cabe aqui mencionar os mais relevantes tratados internacionais que cuidam do direito ambiental e que demonstram a estreita relação entre o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e o seu papel na garantia de vida digna à humanidade.

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Os primeiros ajustes internacionais sobre o tema estavam revestidos de um viés eminentemente econômico ou desenvolvimentista. Ou seja, a preocupação com o meio ambiente era um meio com vistas à garantia de algum recurso ou atividade econômica. Nesse contexto, vislumbram-se diversos ajustes com enfoque na atividade pesqueira e na poluição, tais quais a Convenção sobre Pesca no Atlântico Norte (1959) e a Convenção Internacional sobre Responsabilidade Civil por Danos Causados por Poluição por Óleo (1969), respectivamente.

A Conferência de Estocolmo (1972), convocada pela Organização das Nações Unidas, figurou como o primeiro evento com enfoque predominantemente ambiental e estabeleceu um marco no alerta da sociedade global aos problemas enfrentados pelo meio ambiente e gerados pela atividade humana. Como resultado da Conferência, foi firmada a Convenção da Declaração sobre o Meio Ambiente Humano.

Seguiram-se as tratativas de outros ajustes na esfera internacional, contemplando diferentes aspectos da proteção ao meio ambiente. Destacam-se a Convenção sobre Comércio Internacional de Espécies de Flora e Fauna Selvagens em Perigo de Extinção – CITES (1973), a Convenção sobre Poluição Transfronteiriça (1979), a Convenção de Viena para a Proteção da Camada de Ozônio (1985), o Protocolo de Montreal sobre as Substâncias que Esgotam a Camada de Ozônio (1987), a Convenção sobre Controle de Movimentos Transfronteiços de Resíduos Perigosos (Convenção da Basiléia, 1989).

A Organização das Nações Unidas (ONU) convocou, com vistas a reproduzir o sucesso da Conferência de Estocolmo, a Conferência do Rio de Janeiro, que veio a ser realizada em 1992. Precedeu-a, por solicitação da ONU à Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, a elaboração do relatório intitulado Nosso Futuro Comum ou, como ficou mais conhecido, relatório Brundtland (1987). O documento, revestido de uma visão positiva, apresentou o conceito de desenvolvimento sustentável e apontou a necessidade de moldar o crescimento sócio-econômico visado com a proteção ao meio ambiente. A Rio-92, como ficou conhecida a Conferência das Nações Unidas, envolveu Estados, terceiro setor e comunidades nas discussões sobre meio ambiente.

Da Conferência resultaram a Agenda-21, como plano de ação para o alcance do desenvolvimento sustentável, a Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), a Convenção-Quadro sobre mudanças climáticas.

Desse breve relatório, verifica-se que a temática ambiental tem sido objeto de constante abordagem em tratados internacional. O princípio 24 da Declaração de Estocolmo reconhece a importância do tema na seara internacional e preceitua que "a cooperação através de convênios multilaterais ou bilaterais (...) é essencial para efetivamente controlar, prevenir, reduzir e eliminar os efeitos desfavoráveis ao meio ambiente(...)".

Ademais, tendo em vista que o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado tem estatura de direitos humanos, os tratados internacionais que tratem do tema tangenciam a temática dos direitos humanos. Nas palavras de Soares [17], "as normas de proteção ambiental têm sido consideradas como um complemento aos direitos do homem, em particular o direito à vida e à saúde humana".

Definir se referidos acordos multilaterais, ao tratar de meio ambiente, se qualificam ou não como tratados de direitos humanos, deveria caber à ordem internacional. Com essa medida, privilegia-se a expansão do conceito de direitos humanos e se importa a interpretação que os tribunais internacionais tem conferido ao tema. Caso a atividade fosse atribuída ao âmbito interno, a interpretação sobre tratados internacionais seria limitado a acompanhar os posicionamentos pátrios e não permitiria a expansão da rede de proteção que o cenário internacional defere aos direitos humanos [18].


3. INTERNALIZAÇÃO DOS TRATADOS INTERNACIONAIS

O conflito entre as normas internacionais e a ordem interna tem sido debatido desde a celebração dos primeiros tratados internacionais. O tema é abordado em duas correntes doutrinárias: o dualismo e o monismo.

A teoria dualista posiciona-se no sentido de não haver conflito possível entre o ordenamento interno e a ordem jurídica internacional. Pressupõe que ocupam esferas apartadas, sem intersecção possível [19] e que o direito firmado na esfera internacional só é incorporado no ordenamento jurídico interno através de uma lei.

Por sua vez, o monismo jurídico percebe o ordenamento jurídico como uma unidade [20], razão pela qual exsurge a necessidade de coordenação entre as normas internacionais e as normas oriundas do ordenamento interno. No conflito entre normas oriundas do jus gentium e normas do direito interno, a teoria monista dá ensejo ao surgimento de duas correntes: a que advoga a predominância do direito internacional e a que se posiciona pela prevalência do direito interno.

3.1 ANTECEDENTE À CONSTITUIÇÃO DE 1988

Quando se trata de conflito entre norma internacional e direito infraconstitucional, o monismo jurídico, com prevalência do direito internacional, é prevalente na doutrina brasileira [21]. A teoria restou consagrada no artigo 98 do Código Tributário Nacional [22].

No entanto, não foi esse o entendimento que restou sufragado na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, quando, no Recurso Extraordinário n. 80.004, afastou a aplicação da Convenção de Genebra frente ao Decreto-lei n. 427/69, afirmando o preceito deste, em contradição com aquela, do registro obrigatório da Nota Promissória em repartição fazendária.

O posicionamento foi confirmado em decisões posteriores, sob o fundamento de que se deve dar prevalência à soberana vontade do povo, manifestada na aprovação, pelo Congresso Nacional, da legislação interna. Nesse sentido, consolidou-se a orientação moderada do monismo, no sentido de que o tratado internacional se incorpora com a mesma qualificação da norma infraconstitucional. No conflito entre eles, pois, devem-se aplicar as regras comuns de resolução, como os princípios lex posterior derrogat priori e lex specialis derrogat generalis.A regra, inicialmente, somente não se aplicaria aos tratados fiscais e de extradição, os quais exigiriam denúncia formal das partes para deixarem de ser cumpridos [23].

3.2 CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988 (REDAÇÃO ORIGINÁRIA E OS TRATADOS DE DIREITOS HUMANOS)

O advento, em 1988, da Constituição da República Federativa não pôs fim aos diferentes posicionamentos jurídicos acerca dos conflitos entre o direito das gentes e as normas internas. No entanto, uma vez que já se consolidara o entendimento de que os tratados internacionais incorporam-se ao direito interno com status infraconstitucional, esse posicionamento continuara a ser aplicado. A definição foi, inclusive, incorporada na ordem constitucional que previu o controle de constitucionalidade sobre tratados internacionais.

Importa esclarecer que o Direito Internacional dos Direitos Humanos visa a garantir uma maior proteção aos indivíduos. Nesse passo, utiliza-se de seu mais poderoso instrumento – os tratados – para forçar os Estados respeitar a dignidade da pessoa humana. Afigura-se coerente, portanto, que seja conferida primazia à norma mais favorável ao indivíduo, seja ela interna ou cristalizada em tratados internacionais. Caberá, contudo, a cada Carta Fundamental especificar como será o tratamento conferido aos tratados de direitos humanos, mormente quando estes conflitem com outras normas de cunho constitucional.

A Constituição de 1988 inovou ao positivar norma referente aos tratados de direitos humanos, estabelecendo que os direitos decorrentes dos acordos internacionais não seriam excluídos dos direitos e garantias expressos na Constituição [24].

O dispositivo foi objeto de acalourados debates e de posicionamentos doutrinários e jurisprudenciais controvertidos e bastante abalizados. A discussão gravitava em torno da hipótese de que, com referida norma, fosse automaticamente conferido status constitucional aos tratados de direitos humanos firmados pelo Brasil. Com isso, passariam a ter tratamentos distintos os acordos internacionais. Se o objeto do tratado se referisse a direitos humanos, teria status constitucional. Caso contrário, o tratado seria incorporado com status infraconstitucional e com paridade de hierarquia entre as leis ordinárias ou complementares, a depender do tema.

No âmbito do direito internacional, o status constitucional dos tratados internacionais de direitos humanos é aduzido por Trindade. Para o jurista, o posicionamento fortalece o sistema de proteção, reduz conflitos entre instrumentos e lhes garante melhor coordenação [25].

Na seara do direito constitucional, advogam a roupagem constitucional automática dos tratados de direitos humanos Piovesan [26] e Ingo Wolfgang Sarlet [27]. Piovesan sustenta que os direitos humanos contemplados em tratados incrementam o catálogo constitucional através da força expansiva do valor da dignidade da pessoa humana. A leitura do §2º do artigo 5º da Constituição Federal leva a essa conclusão permeada pelo princípio da máxima efetividade das normas constitucionais e com aportes da doutrina da constituição aberta de Häberle e Paulo Bonavides [28].

Sarlet [29], por sua vez, também traz influxos da teoria da constituição aberta para defender a automática inclusão no rol constitucional dos direitos humanos objetos de tratados internacionais. Busca arrimo, ainda, na distinção entre as normas de cunho material constitucional e aquelas só formalmente constitucionais. Naquelas estariam enquadrados os acordos internacionais de direitos humanos. Também este último elemento reforça a mesma conclusão a que chega Canotilho [30].

O debate acerca do aparente conflito entre norma plasmada na Constituição (artigo 5º, inciso LXVII) e o Pacto San José da Costa Rica (1992) acelerou a demanda por um posicionamento sobre a matéria. Até então, tinha-se a impressão de que coincidiam os catálogos constitucional e do direito internacional e que a questão apresentava apenas problematização teórica [31]. A judicialização da questão, contudo, aflorou a necessidade prática de enfrentar o tema.

A norma constitucional permite a prisão civil em duas situações, quais sejam do devedor de pensão alimentícia e do depositário infiel. O Pacto San José da Costa Rica, do qual o Brasil é signatário e que foi ratificado após a promulgação da Constituição, por sua vez, limita a prisão civil a uma única situação, a do devedor de pensão alimentícia. Nesse ponto, questionava-se, então, se o ordenamento jurídico ainda permitiria a prisão civil do depositário infiel.

Levada a quizila ao Supremo Tribunal Federal, não se verificou a existência de um posicionamento consolidado quanto ao tema do status dos tratados internacionais de direitos humanos. No precedente HC 72.131, levado a julgamento em 1995, ainda pendente de publicação, decidiu-se pelo status legal das normas internacionais de direitos humanos. No mesmo sentido sobreveio o julgamento do HC 73.044 e a ADI 1480. O Ministro Maurício Corrêa vai buscar na supremacia do poder constituinte o argumento para fundamentar a impossibilidade de que tratado internacional prevalece sobre a vontade soberana do povo. No mesmo sentido, o Ministro Celso de Mello aponta para a impossibilidade de elastecer a interpretação do §2º do artigo 5º da Constituição Federal, a fim de conferir status constitucional automático aos tratados internacionais de direitos humanos. Baseia-se, ainda, no argumento de tratados não poderiam restringir a atividade do Poder Legislativo a temas permitidos pelo próprio texto constitucional. Com isso, entendeu-se que o Pacto San José da Costa Rica não suplantaria a Constituição Federal no ponto em que permite a prisão civil do depositário infiel. No entanto, não restou bem delineado qual o efetivo efeito que o status legal do tratado internacional teria sobre as leis ordinárias que tratavam, à época, do assunto. Teria o tratado internacional, por ser norma posterior de mesma hierarquia, revogado o Decreto-Lei n. 911 e o artigo 1287 do Código Civil?

No sentido afirmativo, decidiu o Superior Tribunal de Justiça em algumas das demandas que lhes chegaram sobre o tema. Novamente apreciando a questão, o Supremo Tribunal Federal esclareceu que as normas internas que preconizavam a prisão do depositário fiel seriam normas gerais, não afastadas pelo tratado internacional. O RE 206.482 consignou o posicionamento da Corte Constitucional sobre o tema e reafirmou o status legal dos tratados de direitos humanos no ordenamento jurídico pátrio.

A crítica que se pode fazer ao entendimento consolidado no Supremo Tribunal Federal no sentido da legalidade dos tratados internacionais de direitos humanos é que a conclusão consignada nos votos não contempla o enfrentamento da redação do artigo 5º §2º da Constituição e apresenta uma desnecessária conflituosidade entre o Direito Interno e o Direito Internacional.

O Ministro Sepúlveda Pertence, no julgamento do RE 79.785, que tratava do reconhecimento ou não, no direito pátrio, à garantia do duplo grau de jurisdição encartado no Pacto San Jose da Costa Rica, mas não plasmado na Constituição, ventila a tese de considerar os tratados de direitos com status de supralegalidade. A outorga da força supralegal implica em que os direitos contemplados nos tratados tem aplicação imediata, até mesmo contra lei ordinária.

Mello [32], por sua vez, ante a redação do dispositivo inédito na Constituição, adota o entendimento de que tratados internacionais de direitos humanos adquiririam status supraconstitucional quando as garantias e direitos neles assegurados se afigurassem mais benéficos do que aqueles da Carta Constitucional.

3.3 EMENDA CONSTITUCIONAL N. 45/2004

"§ 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais"

(artigo 5º, Constituição Federal de 1988)

Em meio a toda essa celeuma de posicionamentos doutrinários e jurisprudenciais acerca do status dos tratados internacionais de direitos humanos, o poder constituinte derivado editou a Emenda Constitucional n. 45, no final do ano de 2004. Referida alteração introduziu um parágrafo do artigo 5º que prevê a possibilidade de que, se observado o procedimento de reforma constitucional, os tratados de direitos humanos seriam considerados como emendas constitucionais.

Com o advento do referido dispositivo, doutrinadores de escol passaram a entender que se tinha posto uma pá de cal nas discussões acerca da roupagem de que se revestiriam os tratados internacionais de direitos humanos. O status constitucional somente seria concedido àqueles que tenham observado o procedimento próprio para aprovação de emenda constitucional [33]. Com isso, os tratados seriam material e formalmente constitucionais.

A contrario sensu da redação do §3º do artigo 5º da Constituição Federal, os tratados que não observem o iter procedimental não serão revestidos de envergadura constitucional.

A inovação foi seguida de muitas dúvidas na doutrina. O dispositivo teria o condão de constitucionalizar tratados pretéritos? Os tratados de direitos humanos teriam que ser aprovados sob o procedimento de emendas constitucionais?

O dispositivo passou a desmembrar o tratamento conferido aos tratados de direitos humanos. Aqueles que observassem o iter procedimental das alterações constitucionais seria revestido, por óbvio, de estatura constitucional. Os demais, seria relegados a resvalar na celeuma acerca do seu status, se legal ou supralegal.

A inovação, ademais, figura um tanto inócua em termos práticos, já que a conclusão ali preceituada se infere da própria aplicação do §2º do artigo 60 da Carta Constitucional.

Desta feita, o novel dispositivo não conseguiu estancar as diversas correntes acerca da real estatura dos tratados de direitos humanos no ordenamento jurídico brasileiro. No entanto, para alguns juristas [34] afastou a possibilidade de considerá-los automaticamente incorporados ao catálogo constitucional. Restaria, portanto, possibilidade de enquadrá-los com status legal ou supralegal

3.4 RECURSO EXTRAORDINÁRIO N. 466.343

"(...) uma abordagem hermenêutica fundada em premissas axiológicas que dão significativo realce e expressão ao valor ético-jurídico – constitucionalmente consagrado – da prevalência dos direitos humanos permitirá, a esta Suprema Corte, rever a sua posição jurisprudencial quanto ao relevantíssimo papel, à influência e à eficácia das convenções internacionais sobre direitos humanos no plano doméstico (...)"

(trecho do voto do Ministro Celso de Mello no julgamento do RE 466.343)

A mutação constitucional é mecanismo pelo qual a Constituição transmuda-se sem que se altere o seu texto expresso. O instituto está associado à plasticidade de que se revestem as normas constitucionais [35]. Não se concebe que a Constituição seja imutável, ante a democracia e a vontade soberana mutável do povo. Nesse sentido, a Suprema Corte foi agente de transformações constitucionais substancias no que toca à incorporação dos tratados internacionais de direitos humanos.

Assim é que o julgamento do Recurso Extraordinário RE 466.343, revisitando a questão da prisão civil do depositário infiel, reacendeu a discussão acerca do status de incorporação dos tratados de direitos humanos na ordem jurídica interna. Em 03 de dezembro de 2008, o Supremo Tribunal Federal reviu seu posicionamento anterior e conferiu aos tratados de direitos humanos um regime jurídico diferenciado. A decisão da Corte, contudo, não foi unânime quanto à hierarquia do regime aplicável aos tratados de direitos humanos. A tese majoritária entendeu que estes revestem-se de status supralegal, que teria influência derrogatória e inibitória com relação a outras normas do ordenamento jurídico interno. No entanto, restaram vencidos os Ministros Celso de Mello, Cesar Peluso, Ellen Grace e Eros Grau, que votaram no sentido da hierarquia constitucional dos tratados de direitos humanos.

A discussão enfrentada demonstra, portanto, que a Emenda Constitucional n. 44/2004 não suplantou os debates sobre a matéria e a existência de entendimentos controversos quanto à estatura dos tratados de direitos humanos no ordenamento pátrio. Ao contrário, demonstrou que poderá subsistir a prevalência do status constitucional, o que importaria em reconhecer tratados de direitos humanos materialmente constitucionais e aqueles material e formalmente constitucionais. A vencer, no futuro, esta tese, a diferença entre referidas hierarquias refletirá tão somente na denúncia dos tratados, possível no primeiro caso e inviável quando o tratado tenha sido aprovado nos termos do §3º do artigo 5º da Constituição, sob pena de afrontar cláusula pétrea [36].

Sobre a autora
Alice Serpa Braga

Procuradora Federal lotada na Procuradoria Federal Especializada junto ao IBAMA-Sede. Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Ceará.Especialista em Direito Constitucional pela Unisul/LFG.Mestranda em Direito e Políticas Públicas pelo Centro Universitário de Brasília. Ex-Procuradora do Estado de Goiás.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BRAGA, Alice Serpa. Tratados internacionais de meio ambiente: estatura no ordenamento jurídico brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2936, 16 jul. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19556. Acesso em: 22 dez. 2024.

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