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Violência urbana e o acesso à Justiça

Agenda 06/04/1997 às 00:00

Mesmo o problema da violência urbana a que se pretende compreender em face do acesso à justiça, não o podemos iniciar sem antes discorrer em poucas linhas sobre a vocação humana de "ser social".

Na pré-história da evolução, os protótipos biológicos do atual fenótipo humano, uniam-se para defender-se das hostilidades ambientais (geológicas, climatológicas, fauna etc.) já que o estágio tecnológico nesta fase era incipiente, isto é, não se conseguia dominar a natureza como se faz hoje, por exemplo pela biotecnologia e engenharia genética. Diga-se de passagem que o "quantum" energético gasto pelo homem para suprir as necessidades diárias era bem menor do que na atualidade, pois as suas prioridades vitais eram básicas (busca de alimentos, defender-se do frio e dos animais ferozes). Sente-se por este pequeno opúsculo, que o sentimento de bem-estar, de procurar cada um o que lhe compete, mesmo que estivesse revestido de uma forma egoística, de JUSTIÇA, sempre esteve presente nas aspirações humanas.

Já nos tempos mosaicos, ao homem sempre foi ofertado o princípio de que é um ser social, criado para viver em contato com o outro, relacionando-se diretamente com o semelhante no mecanismo e na dinâmica da vida coletiva. Os "Dez Mandamentos" codificados por Moisés, mostram- nos bem isso: "Não roubar"(do próximo); "Não matar" ( o próximo); "Não cometer adultério" (a esposa ou ao esposo). Logo, exalta-se que a figura do "outro", do "próximo" sempre há que estar envolvendo a vida humana em todas as suas matizes e, mais uma vez, o sentido de JUSTIÇA.

Para não deixar de citar, para não sermos levianos e irresponsáveis, o próprio Jesus Cristo, recodificou os "Dez Mandamentos" em um só de caráter universal e intemporal: "Amar ao próximo como a si mesmo. Aí está toda a lei e os profetas".(Mateus, cap. XXII, vv. 34 a 40). De outra faceta, o Mestre quis nos dizer que devemos fazer aos outros o que gostaríamos que nos fizessem, isto é, cumprindo esta Lei estaremos contribuindo para a JUSTIÇA. De que forma? Quando trabalharmos, ( a sociedade civil e os poderes públicos) efetivamente para o fortalecimento da família, dando-lhe as condições de satisfazer os requisitos básicos de sua constituição, tais sejam: sistema de saúde eficiente, rede escolar atenta para a educação permanente das crianças e para a realidade em que estão inseridas, remuneração salarial efetiva e digna do trabalho dos pais, proteção da família e de "nossas crianças", disseminação da verdadeira democracia, isto é, a Democracia Social que tem como finalidade precípua proteção dos direitos humanos primordiais, em outras palavras, propiciar a todos os membros da coletividade acesso àqueles bens retrocitados que têm direito naturalmente, aí estaremos fazendo JUSTIÇA.

Do ponto de vista "biológico" da vida social, podemos compará-la a um grande laboratório aonde estão se realizando experiências com o grau de agressividade dos animais. Enquanto os ratos do laboratório estiverem bem alimentados, protegidos e aquecidos, é muito improvável que darão guarida ao instinto animal de sobrevivência, isto é, lutar para satisfazer as necessidades básicas. Mas, quando a alimentação escasseia, quando o equilíbrio do pequeno ecossistema no qual estão inseridos começa ser ameaçado por falta de calor, comida, água, o que ocorrerá? Logicamente que o instinto de preservação, de luta do mais forte em detrimento dos mais fracos, será a base da "dinâmica vital" de nossos ratos, e só os mais fortes sobreviverão, surgindo assim o fenômeno da seleção natural das espécies.

Por analogia, queremos crer que vivenciamos o mesmo fenômeno em nossa vida social. Qual o conjunto de valores sociais que temos à nossa frente? Modelo de consumo desenfreado, busca do bem-estar a todo custo, isto é, parece que o homo sapiens ainda não mudou sua filosofia de "vir a ter" em detrimento do "vir a ser". Estamos imersos em um "laboratório", aonde há a manipulação na divulgação de informação, aonde as instituições oficiais faliram, pois não conseguirem promover o "feedback" dos problemas sociais, aonde há o etnocídio cultural com a perseguição e discriminação das minorias marginalizadas, sem deixar de salientar a forma seletiva e racional do sistema vigente como um todo, incentivando a pobreza material/moral, e o que é mais trágico, a pobreza psíquica, aonde o dito "cidadão" assume a posição de inferioridade, de incapacidade intelectiva, de eterno dependente do poder público e das entidades filantrópicas. Mesmo nessa paisagem acima colocada, temos que inserir a busca pela JUSTIÇA, pois não devemos esquecer que também nos momentos de transição histórica, de caos social, surgem as grandes idéias e os movimentos revolucionários, como a Revolução Francesa, buscando a IGUALDADE, LIBERDADE, FRATERNIDADE.

Chegamos no ponto de iniciarmos a análise, se bem que superficialmente, das causas da Violência Urbana, ou melhor, busca da satisfação das necessidades a qualquer preço.

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Teria causas puramente biológicas? Em fatores sócio-econômicos? Como deixa de ser "energia potencial" para tornar-se em "energia explosiva", desencadeando a instabilidade e o medo? É possível combatê-la sem utilizar de seu próprio expediente?

"Na verdade, os distúrbios urbanos conjugam forças distintas: a revolta das minorias pelas desigualdades raciais e a revolta dos pobres contra a miséria e a deterioração de suas condições de vida; para expressarem a sua revolta, esses grupos sociais utilizam o único meio de que dispõem (veremos mais adiante porque é o único), perturbar a ordem pública pela ação direta e violenta. Além disso, suas reivindicações são as mesmas de todos os desfavorecidos: pedem trabalho, escolas dignas, moradia decente a preços acessíveis, acesso aos serviços públicos.

"É fácil interpretar essa violência coletiva que vem de baixo como o sintoma de uma crise de valores morais e dos males patológicos das classes mais desfavorecidas, ou como sendo um anúncio de um grave perigo a ordem estabelecida, isto é, na realidade é uma reação sociológica, e sobretudo lógica, à violência institucionalizada infligida aos desfavorecidos por um conjunto de transformações econômicas e políticas que se fortalecem umas às outras. Essas transformações criaram um verdadeiro abismo entre as classes, com o estímulo das discriminações raciais e étnicas, produzindo uma ruptura entre os pobres e os ricos, excluindo os primeiros totalmente da economia e da sociedade"( Loic J. D. Wacquant, sociólogo francês que trabalha na Universidade de Harvard, pesquisou a desigualdade racial nos EUA e fez estudos sobre a pobreza humana).

A violência imposta do alto manifesta-se essencialmente de três maneiras: aumento do desemprego (como corolário, misérias materiais e morais); exílio nos bairros lúgubres, afastados (ficando a mercê, principalmente as crianças, sob o jugo de toda forma de criminalidade, como por exemplo, das gangues de adolescentes que assolam todos os núcleos urbanos do mundo); discurso cada vez mais hostil aos marginais ( pela mídia, fortalece-se o crime organizado, pois cada vez que é enfatizado nos meios de comunicação, na realidade está-se disseminando a prática de atos atentadores à moral e ao ordenamento jurídico).

Há que se frisar a causa mais aterradora da violência urbana vinda do alto, é aquela que se explica pelo ENFRAQUECIMENTO DOS CANAIS TRADICIONAIS DA CONTESTAÇÃO POLÍTICA DO PODER PELOS MAIS POBRES. Como já mencionamos anteriormente, e fica a nível de reflexão ao leitor: Se cada um, tivéssemos vivenciado um clima de hostilidade material (frio; fome; pés descalços; solidão e humilhação; na infância, dor no coração nas festas natalinas pela ausência de uma mesa básica de víveres), miséria moral (carência de valores elevados e espiritualizantes), se tivéssemos batido nas portas pedindo um prato de comida ao irmãozinho mais novo e, recebido como resposta um não; e, convivendo com notícias de corrupção de bilhões de dólares do erário, aonde os infratores de colarinho branco ainda possuem os princípios do devido processo legal, do contraditório e da legalidade a seu favor, pois são princípios processuais de ordem constitucional! E os elencados nos artigos 1º, 3º da Constituição Federal também não o são? (cidadania, dignidade da pessoa humana, valores sociais do trabalho, construção de uma sociedade justa, livre e solidária , erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais, são letra morta? Será que estaríamos na posição que ocupamos se tivéssemos passado por algumas das experiências acima? Cabe a cada um responder com sinceridade e com coragem...

Agora, leitor paciencioso, vamos meditar sobre o elo existente entre violência urbana e o acesso a justiça. A primeira denota um rol de iniquidades, injustiças, desrespeito à pessoa humana. Na segunda está a proteção aos princípios seguradores individuais e coletivos ( vide Constituição Federal, artigos 1º e 3º). Pois muito bem, é sobejamente sabido que temos duas Constituições vigentes no País. Uma escrita pelos "melhores representantes do povo", e a outra, consuetudinária refletindo o estado caótico vigente.

Bem, mas para termos o direito de pedir JUSTIÇA em face da violência urbana, é necessário em primeira mão contribuir para uma estrutura social básica e sólida, na qual o sentimento histórico, natural, instintivo de "querer o que nos compete" se faça presente. Não estamos aqui proclamando, por vias demagógicas, que os cidadãos tenham posições hipócritas e além de suas capacidades psíquicas de relacionamento com o "outro", tal como gostaríamos que assumissem perante nós mesmos.

Queremos é enfatizar o repensar o sistema como um todo, isto é, o papel que estamos representando está contribuindo (pequenamente pelo menos) para a paz social? Nós, sociedade civil, fazemos a nossa cota de doação humanitária a que nos afeta pelas leis da vida? ... Constantemente, em nossas vidas íntimas precisamos de muletas psíquicas (um amigo, um conselho, conscientização de novos valores etc.) para galgarmos os ideais superiores dentro do dinamismo da energética mental. Por analogia, também precisamos criar as alavancas detonadoras de utopias (gérmens de realidades futuras), de uma sociedade melhor, mais "respirável" para todos os que a integram, tais sejam: a) procura do auto-conhecimento — basicamente, conhecimento do dinamismo interno das emoções, fobias, estrutura da mente, fortificação da vontade, em suma, racionalização das emoções e ideais; b) valorização do instituto familiar — ter-se como parâmetro social a própria família, pois o exercício da paz e justiça começam dentro do lar, isto é, como desejarmos a paz mundial se não a cultivamos dentro de quatro paredes com meia dúzia de pessoas? Como querer combater o tráfico de drogas e entorpecentes, se costumeiramente os pais são os primeiros traficantes dos filhos desde a mais tenra idade, colocando a "espuminha" da cerveja na boca da criança? E como não dizer do fumo? Como entender nossos filhos se os deixamos no "diálogo" com a televisão? c) procura do equilíbrio na vida de relação — como lutarmos pela JUSTIÇA se não respeitamos os companheiros no trânsito, denotando agressividade? Nas filas dos supermercados e instituições financeiras, transmitindo impaciência? d) fortalecimento da distribuição dos bens da vida primordiais — não deixando doentes morrerem a mingua nas portas dos hospitais, amparo a velhice com uma aposentadoria digna e assistência médica, escolas eficientes com professores dignificados pelo seu trabalho; d) combate à corrupção — que é o cancro da sociedade, o que mina os poderes constitucionalmente instalados deixando os cidadãos ao desamparo e ao desalento, formando grupos de minorias marginalizadas, aumentado o ônus e o peso ao poder público; e) celeridade da tutela jurisdicional do Estado — para não termos uma prestação estatal inócua e vazia, não respondendo tempestivamente ao adágio: "cumpre ao Estado-Juiz dizer a lei ao caso concreto."

Amigos leitores, enquanto não lutarmos individualmente e coletivamente para fincarmos as bases de uma nova Sociedade, JUSTIÇA, FRATERNIDADE, LIBERDADE, SOLIDARIEDADE servirão somente para divagações filosóficas nas academias...

Sobre o autor
Luiz Tadeu Martins de Oliveira

professor de Direito na Socigran (Sociedade de Ensino Civil da Grande Dourados)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Luiz Tadeu Martins. Violência urbana e o acesso à Justiça. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 2, n. 10, 6 abr. 1997. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1956. Acesso em: 24 nov. 2024.

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