1 – INTRODUÇÃO
O presente trabalho foi elaborado no intuito de se aprofundar o conhecimento a respeito das práticas restaurativas como forma diversa para a aplicação da justiça estatal, hoje fundada numa justiça retributiva-punitiva.
O modelo tradicional de justiça penal (retributivo-punitivo) tem sofrido, ao longo dos anos, diversas críticas por parte da doutrina e de algumas Jurisprudências mais vanguardistas, tendo como exemplo decisões da Suprema Corte Canadense.
Diante das diversas críticas encontradas, busca-se o aprofundamento no modelo de justiça restaurativa, como forma de solução alternativa dos conflitos advindos de infrações a Lei e à convivência social.
De modo a alcançar a melhor compreensão do tema proposto, acreditamos numa evolução sistemática do raciocínio, de tal forma que o presente trabalho vem exposto numa ordem onde em um primeiro momento se expõem conceitos e delimitações básicas às práticas restaurativas, englobando os modelos existentes e as formas de resolução dos litígios. Em um segundo momento apresentam-se alguns modelos de justiça presentes pelo mundo. Busca-se a todo tempo apresentar um ponto de vista comparativo entre as práticas e modelos existentes.
2 – DEFINIÇÕES PARA A REALIZAÇÃO DE UMA PRÁTICA RESTAURATIVA.
Com as crescentes práticas criminosas existentes no mundo, e com o número cada vez maior de sistemas carcerários que apresentam uma superlotação sistemática e notória, a doutrina e jurisprudência começaram a apresentar uma série de críticas ao sistema penal hodierno (modelo retributivo-punitivo) que culminaram num movimento crescente por práticas de aplicação penal diversas do modelo tradicional.
A crítica a respeito do sistema tradicional é muito forte no caráter ressocializador da pena, bem como na ineficácia, quase sempre, de prevenção da reincidência. O sistema penal hodierno, junto a uma imprensa livre e por vezes sem controle, tornam o ofensor como bem explana Daniel Achutti, em uma imagem encarnada do mal(Achutti, 2009, p. 18). Ademais, o modelo retributivo atual acaba por esquecer-se do papel desempenhado pela vitima, principal atingida pela prática delituosa, o que demonstra uma ineficácia do fim de um processo penal justo.
A reflexão sobre o modelo tradicional de justiça penal e de processo penal como um todo, levam a conclusões de que se trata de um modelo histórico falho, remontando o seu nascimento, com promessas não cumpridas, como a suposta função intimidatória das penas e a ressocialização, como já dito, encontrando-se, por um lado, falido.
Todavia, quando tratamos da falência desse modelo punitivo centrado na pena de prisão como principal instrumento de resposta ao delito, não se está referindo a uma falência recente. A decadência e crise da utilização da prisão como pena remontam ao seu próprio nascimento. Já em Foucault no inicio do século XIX, momento em que a pena de prisão elevou-se a condição de meio de punição mais usado, sendo aplicada à quase totalidade dos crimes cometidos, substituindo duas outras formas anteriormente utilizadas: o suplício e as penas proporcionais aos crimes, o sistema mostrou-se problemático.
"Tal sistema ‘penitenciário’ (prisão) se afirma no início do século XIX, quase como à revelia da teoria e do sistema penais, ainda dominados pela noção de crime como perigo público. Forma-se aquilo a que Foucault chama, nesse momento, de a ‘sociedade punitiva’, um tipo de sociedade na qual o aparelho de Estado desempenha as funções corretivas, paralelamente a outras, ditas ‘penitenciárias’, representadas pelas práticas de aprisionamento" (Pallamolla, 2009, p. 30).
É certo, ainda, que a prática da justiça restaurativa não apresenta uma solução final acabada aos problemas de aplicação de uma justiça penal, contudo revela um amadurecimento de práticas que envolvem todas as figuras atuantes numa situação de ocorrência de um delito, quais sejam ofensor, vítima, comunidade em geral, Estado, familiares, amigos, dentre outras figuras intervenientes que ajudam numa solução do litígio recompensadora e apaziguadora.
2.1 - UMA BREVE EVOLUÇÃO HISTÓRICA PARA A FORMAÇÃO DO MODELO DE JUSTIÇA RESTAURATIVA.
Para uma melhor conceituação do tema, devemos evoluir o pensamento até uma formação conceitual básica. Neste sentido, partimos de Leonardo Sica [01]e Mylène Jaccound [02], que em trabalhos apartados, trouxeram um panorama amplo e bem resumido da evolução histórica até os dias de hoje, passando por marcos teóricos da justiça restaurativa tal como Howard Zehr [03].
As práticas restaurativas são atuações sociais que remontam a antiguidade, sendo uma forma de solução de litígios das sociedades comunais. Em virtude de seu modelo de organização social, as sociedades pré-estatais européias e as coletividades nativas, tais como os aborígenes e maoris, privilegiavam as práticas de regulamento social centradas na manutenção da coesão do grupo, aonde o interesse coletivo superava o interesse individual, tendo a infração à norma uma solução rápida e no intuito de restabelecer a ordem social da coletividade.
Neste sentido, é possível se afirmar que as práticas restaurativas remontam tempos remotos já havendo vestígios das práticas nos códigos de Hammurabi (1700 a.C.) e de Lipit-Ishtar (1875 a.C.) que prescreviam medidas de restituição para os crimes contra os bens; bem como nos códigos Sumeriano (2050 a.C.) e o de Eshunna (1700 a.C.) previam a restituição nos casos de crimes de violência (Van Ness & Strong, 1997). (Jaccound, 2005, p. 164)
Contudo, os modelos de justiça restaurativa são concepções modernas remontando o século XX. Sendo certo, que a justiça restaurativa é um movimento novo que surgiu frente às criticas do sistema penal hodierno (retributivo-punitivo).
Para chegarmos à definição culminada na Resolução da ONU 2002/12 partimos de uma delimitação das práticas em termos de justiça penal propostos nos trabalhos de Eglash (1975). Eglash considerou a aplicabilidade de três modelos de justiça: uma justiça distributiva, que seria centrada no tratamento do delinqüente; uma justiça punitiva, centrada no castigo; e, por fim, uma justiça recompensadora, centrada na restituição. (Jaccound, 2005, p. 166)
Em 1990, Horwitz publica um trabalho no qual apresenta quatro estilos principais de controle social, cada um centrado em prejuízos, responsabilidades, metas e soluções específicas.
Ainda em 1990, Howard Zehr publica Changing Lenses, um livro decisivo na eclosão da justiça restaurativa como paradigma que marca uma ruptura com o modelo retributivo. Neste livro, que se tornou um clássico, Zehr sugere a existência de dois modelos de justiça fundamentalmente diferentes: o modelo retributivo e o modelo restaurador. (Jaccound, 2005, p. 166)
Alguns anos depois, em 1993 Lode Walgrave no trabalho intitulado Au-delà de la rétribution et de la réhabilitation : la réparation comme paradigme dominant dans l’intervention judiciaire contre la délinquance des jeunes [04] propôs uma síntese, que ainda hoje é referência freqüente para a definição da justiça restaurativa. De acordo com o autor, a justiça é marcada por três tipos principais de direito: o direito penal, o reabilitador e o direito restaurativo (ver Walgrave, 1993, p.12). (Jaccound, 2005)
No sentido deste pensamento nota-se que o direito restaurador adota os erros causados pela infração como posição de referência ou ponto de partida, enquanto o direito penal se apóia na infração, e o reabilitador sobre o indivíduo delinqüente. Neste tocante, aquele que irá mais ser utilizado para esse estudo é o direito reparador, que tem como objetivo anular os erros praticados obrigando os devidos responsáveis a reparar os prejuízos causados pela prática ofensiva.
2.2 - OS TRÊS MODELOS DE PRÁTICAS RESTAURATIVA
Seguindo referida corrente, podemos identificar três modelos dentro da justiça restaurativa. Assim, levemos em conta o exemplo de um professor que veja seu carro destruído (pneus furados), no estacionamento público da universidade, por um estudante insatisfeito com uma nota atribuída a seu exame. As duas partes concordam em se encontrar para uma sessão de mediação. No decorrer do encontro, as trocas entre o estudante e o professor podem ser direcionadas para:
1. o reparo dos danos (consertar ou compensar pelos danos causados aos pneus do auto). E aqui adotamos um modelo de direito reparador. Este primeiro modelo adota as conseqüências como ponto de partida de sua ação, em referência ao direito reparador de Walgrave, no qual a responsabilidade é mais única e utiliza-se da comunicação entre as partes (mediação) ou um processo de arbitragem como meio de atingir os objetivos reparadores;
2. a resolução do conflito (resolver o conflito ligado à atribuição de uma nota ruim ao exame) ;
3. a conciliação e a reconciliação (recuperar a harmonia e a boa compreensão que prevaleciam antes do evento entre o estudante e o professor). (Jaccound, 2005, p. 168)
Nestes dois últimos modelos, o ponto de partida é menor para as conseqüências que para o conflito subjacente ao gesto causador dos danos; por conseguinte, a responsabilidade tem mais oportunidade de ser compartilhada pelas duas partes; o processo privilegiado é centrado na comunicação. Portanto, a partir do exemplo podemos orientar a aplicação da justiça restaurativa de três formas distintas, que podem, contudo, ser cumuladas.
Como forma de demonstrar o colocado, apresentamos o seguinte quadro esquemático, apresentado por Mylène Jaccound (Jaccound, 2005, p. 168), como forma de exemplificar o que será exposto na seqüência, veja:
Evoluindo o raciocínio poderemos formar três modelos de aplicação da justiça restaurativa.
Modelo centrado nas finalidades
O primeiro modelo é um Modelo centrado nas finalidades. A doutrina possui muitos partidários desta variedade na qual a justiça restaurativa está direcionada para a correção das conseqüências.
O que marca o modelo é que as finalidades restaurativas são centrais e prioritárias frente aos processos utilizados para se atingir o fim. Este modelo se enquadra dentro do que Walgrave chama de a perspectiva máxima da justiça restaurativa [05]. (Jaccound, 2005) Sendo os processos secundários, torna-se possível aceitar que processos diversos dos processos de Justiça Restaurativa num âmbito penal, tal como a arbitragem faça parte do arsenal de meios disponíveis à justiça restaurativa para atingir suas finalidades. É neste modelo que se pode pôr em questão, por exemplo, as sanções restaurativas impostas por um juiz no caso em que uma das partes recusa participar de uma negociação ou quando uma das partes é desconhecida, está ausente ou morta.
É certo, ainda, que outra parte da doutrina recusa a aceitação que somente as finalidades restaurativas conceituem uma prática de Justiça Restaurativa, isso porque uma decisão imposta por um Juiz, na qual haja a reparação da vítima pelo dano sofrido, sem que haja a participação por meio de dialogo das partes não corresponderá a uma forma de Justiça Restaurativa. O modelo centrado nas finalidades é uma aplicação tendente às correntes abolicionistas.
Temos como exemplo de aplicabilidade prática desse modelo centrado nas finalidades o modelo Neo Zelandês para adultos do programa TeWhanau Awhina, que abordaremos melhor adiante, mas que mostra um processo que visa somente às finalidades, isso porque é possível que a vítima ou a família dela, sequer compareça às seções, estando somente a comunidade e o ofensor, contudo pelas finalidades restaurativas, acaba-se por enquadrar no primeiro modelo. (Maxwell, 2005)
Modelo centrado nos processos
Um segundo modelo seria aquele em que se considera que as finalidades restaurativas são secundárias e que na verdade são os processos que definem o modelo de justiça restaurativa. Nesta concepção, todo o processo fundamentado sobre a participação (seja das partes ligadas pela infração, ou, seja por toda a comunidade circunvizinha) se insere no modelo de justiça restaurativa. Assim, embora as finalidades ligadas aos processos negociados sejam de cunho retributivo, somente o fato de que haja as negociações, as consultas ou os envolvimentos é suficiente para que alguns considerem que suas práticas façam parte de um modelo de justiça restaurativa. (Jaccound, 2005, p. 171)
Ora, é certo que referido modelo sofre grandes críticas da doutrina, em especial a abolicionista, uma vez que um processo na qual as partes acordem pela pena de prisão ou mesmo por penas humilhantes ao ofensor (por exemplo: um caso Canadense aonde o grupo de sentença chegou à conclusão que a pena ideal seria os ofensores utilizarem uma camisa com os dizeres: "eu sou ladrão") não cumprirão com a finalidade ressocializadora, e irá desvirtuar com os princípios fundadores da justiça restaurativa. Como bem cita Mylène Jaccound "Uma justiça participativa ou comunitária é uma justiça restaurativa se, e somente se, as ações expandidas objetivam a reparação das conseqüências vivenciadas após um crime."(Jaccound, 2005, p. 171)
Modelo centrado nos processos e nas finalidades
Por fim, outra corrente doutrinaria define que uma justiça será considerada restaurativa se observarmos formas de processos negociados e tivermos finalidades restaurativas. Este terceiro modelo adota uma visão mais restrita da justiça restaurativa.
Isto impõe à mesma, condições (meios negociáveis e finalidades restaurativas) que concentram todas as possibilidades de serem aplicadas a situações que requeiram boa vontade de ambas as partes no que diz respeito à infração. Porém, introduzir a boa vontade como critério absoluto de encaminhar os casos aos programas restaurativos, conduz inevitavelmente a confinar a justiça restaurativa à administração de infrações sumárias o que, evidentemente, reduz seu potencial de ação. Este terceiro modelo corresponde ao que Lode Walgrave (1999 e 2003) designa através da perspectiva minimalista ou diversionista (no sentido de encaminhamento alternativo) e se inscreve nas práticas de mecanismos civis e não de mecanismo jurídicos.(Jaccound, 2005, p. 171)
Neste tocante, aderimos à opinião da referenciada autora que diz que o segundo modelo apresentado é aquele que mais se afasta dos princípios trazidos para a Justiça restaurativa. Isso porque, uma justiça participativa e comunitária somente terá um caráter restaurativo se objetivarem como resultado da reunião conciliadora a reparação para as partes dos danos sofridos com o evento. Neste sentido, um circulo restaurativo somente se enquadrará numa perspectiva de justiça restaurativa se as decisões tomadas forem no sentido de se adotar medidas restaurativas, até porque se a decisão recomendar o encarceramento ou medidas vexamosas para o ofensor (como no caso de uma decisão no Canadá em que o circulo decidiu para que os ofensores utilizassem uma camisa com os dizeres "eu sou ladrão") o modelo não será de justiça restaurativa.
A partir da doutrina acima exposta podemos observar duas tendências, uma maximalista e uma minimalista ou "diversionista do sistema penal" (Walgrave, 1999). A tendência diversionista propõe que a justiça restaurativa seja uma alternativa ao sistema de justiça estatal e se vê limitada a processos de mecanismos não jurídicos ou de mecanismos civis. Dessa forma, só se concebe que sejam convocados voluntários para os processos, ou seja, tem que haver o consensualismo das partes ligadas ao crime ou ao conflito para que o processo de justiça restaurativa seja aplicado. Como se percebe os promotores dessa tendência estimam que o estado deve ser afastado da administração desses processos.
De outro lado, temos a perspectiva maximalista, que tem L. Walgrave (1999) como um de seus adeptos, considera que o modelo restaurativo é uma nova proposta que vem para alterar de forma substancial o modelo retributivo-punitivo que adotamos atualmente, e para cumprir melhor o seu objetivo deve integrar o sistema de justiça estatal. De acordo com ele (Walgrave, 1999), se restringirmos os processos restaurativos a processos estritamente voluntários poderíamos diminuir o campo de aplicação da justiça restaurativa a pequenas causas. Para que a justiça restaurativa amplie seu campo de ação a delitos mais graves, é necessário, de acordo com a autora (Jaccound, 2005), aceitar que os processos possam ser impostos, sobretudo sob a forma de sanções restaurativas. Os minimalistas contestam esta orientação sob o pretexto de que o impacto dos processos restaurativos é reduzido se as partes não forem voluntárias e se elas não puderem negociar os modos de reparação no ambiente de encontros diretos.
Especifiquemos que a perspectiva minimalista é, atualmente, dominante, embora certas iniciativas restaurativas sejam aplicadas dentro do sistema penal (por exemplo, as sanções restaurativas, as reuniões entre as vítimas e os detentos nas prisões adotados nos EUA).
2.3 - OS CONCEITOS DE JUSTIÇA RESTAURATIVA
Como podemos notar, a justiça restaurativa tende a promover uma intensificação do papel comunitário na promoção da segurança, podendo assumir um duplo papel: em primeiro lugar, pode ser a destinatária das políticas de reparação e de reforço do sentimento de segurança coletivo e, em segundo nível, a comunidade pode ser ator social de um percurso de paz, que se funda sobre ações reparadoras concretas das conseqüências do crime (CERETTI & MANNOZZI, 2000). É por isso que costuma falar-se em neighbourhood justice (EUA) ou giustizia del vicinato (Itália), para destacar que a justiça restaurativa procura gerir o aspecto relacional do crime, sobretudo com a mediação. (Sica, 2006, pp. 6-7)
Outra boa e concentrada noção está na decisão de 04 de julho de 2002, do Conselho da União Européia, que por iniciativa do Reino da Bélgica criou uma Rede Européia de Pontos de Contacto Nacionais para a Justiça restaurativa [06].
A partir dos modelos e perspectivas podemos passar a uma fase adiante no entendimento desta forma de promoção de Justiça que é a preocupação de se formar uma conceituação correta para esse recente modelo.
O que é certo é que procurar um conceito unívoco e simples poderia proporcionar uma visão um tanto reducionista desta nova forma de promoção da justiça, cuja riqueza, está justamente na flexibilidade e ajustabilidade aos diferentes cenários sociais em que podemos aplicá-la. Dessa forma, exibirmos um conceito como o mais correto ou o mais próximo do certo é contrário ao pensamento aqui formulado. Assim, buscamos algumas definições legais, e algumas conceituações genéricas acerca da Justiça restaurativa, de forma a não reduzir o potencial alargador que possuí.
Neste sentido, nos dizeres de Mylène Jaccound "A justiça restaurativa é uma aproximação que privilegia toda a forma de ação, individual ou coletiva, visando corrigir as conseqüências vivenciadas por ocasião de uma infração, a resolução de um conflito ou a reconciliação das partes ligadas a um conflito."(Jaccound, 2005)
Agregando e sistematizando diversas tendências, o Departamento de Justiça do Ministério da Justiça do Canadá elaborou um documento referencial [07], no qual define que "justiça restaurativa é uma abordagem do crime focada em curar as relações e reparar o dano causado pelo crime aos indivíduos e às comunidades".
Na França, Aertsen e Peters (AERTSEN & PETERS, 2003) afirmam que a justiça restaurativa surge de uma nova abordagem da delinqüência: vem para substituir a reação judiciária repressiva e (neo)retributiva e/ou o modelo de reabilitação (BONAFÉ-SCHMITT, 2003, p. 29) e, no mais, não pode ser considerada somente como um movimento que se posiciona atrás ou em oposição ao atual sistema penal; ele, de pouco em pouco, manifesta o objetivo de integrar-se a uma nova visão do sistema de administração da justiça penal, de modo a modificar o alcance e os fundamentos deste sistema. (Sica, 2006, p. 7)
Como forma dogmática de aproximação das diversas perspectivas demonstradas, entendemos por bem utilizar o conceito legal trazido pela Resolução 2002/12 da Organização das Nações Unidas:
significa qualquer processo no qual vítima e o ofensor, e, quando apropriado, quaisquer outros indivíduos ou membros da comunidade afetados por um crime, participam ativamente na resolução das questões oriundas do crime, geralmente com a ajuda de um facilitador. Os processos restaurativos podem incluir a mediação, a conciliação, a reunião familiar ou comunitária (conferencing) ou círculos decisórios (sentencing circles).Processo restaurativo
A respeito do conceito legal, entendemos ser correta a formulação de uma crítica pontual. Notamos nos conceitos legais visualizados, em leis, projetos de lei, e na referida Resolução que se utiliza sempre o termo "crime" de forma strictu sensu, o que não deveria ocorrer.Isso porque, cada ordenamento jurídico promove uma apreciação da infração na lei com graus diferentes, de acordo com a aceitabilidade social daquela conduta, e na medida desta aceitabilidade se impõe a sanção; por exemplo, no ordenamento Brasileiro temos a "contravenção penal" e as chamadas infrações penais de menor potencial ofensivo, definidas pelas Leis 9.099/95 e 10.259/01, práticas essas que não são qualificadas como crime strictu sensu, sendo um "crime latu sensu", se assim podemos dizer.
Dessa forma, há outras praticas criminosas na qual podemos utilizar o método restaurativo para apaziguamento do conflito social. Observa-se, ainda, que por referidas situações serem mais brandas e menos lesivas à sociedade, é possível que a prática restaurativa seja bem mais eficaz do que o sistema retributivo-punitivo. Assim, acreditamos que se deve aplicar o termo conflito penal, delito, ato delituoso ou mesmo na utilização do termo crime, que seja frisado o caráter latu sensu designando a infração ao ordenamento jurídico.
É interessante notar que a própria Resolução 2002/12 da Organização das Nações Unidas busca uma definição para o que seja resultado restaurativo. Sendo que assim se definiu:
Resultado restaurativo
significa um acordo construído no processo restaurativo, que incluem respostas e programas tais como reparação, restituição e serviço comunitário, objetivando atender as necessidades individuais e coletivas, e a devida responsabilidades das partes, bem como assim promover a integração da vítima e do ofensor.Observa-se que a definição proposta pela Resolução acaba por deixar um pouco de lado a autonomia estatal para punibilidade do crime, possuindo assim essa decisão um caráter mais restitutivo-integrador do que retributivo-punitivo.
Nota-se na Resolução, ainda, que há uma preocupação marcante quanto às garantias das partes, expressa por disposições como aquelas do artigo 13 (a) e (b): de acordo com a lei nacional as partes devem ter o direito a uma assistência legal adequada em relação ao procedimento restaurativo e, antes de firmarem um acordo, ambas devem estar informadas de seus direitos, da natureza do processo e das conseqüências daquela sua decisão. Essa já é uma prática comum nos programas que aplicam a Justiça Restaurativa uma vez que para que se obtenha a participação voluntaria das partes, é necessário supri-las de informação acerca do procedimento que irá se instaurar, sendo certo que essa voluntariedade é um dos requisitos para que haja o procedimento.
A Resolução se encerra com uma saving clause: "23. Nenhum destes princípios básicos pode afetar quaisquer direitos de ofensor ou vítima, estabelecidos na lei nacional ou em lei internacional aplicável."
A União Européia também veio se manifestar acerca da aplicabilidade da justiça restaurativa pelos países membros através da Recomendação do Conselho da Europa nº R (99) 19, onde se disciplinou o "uso da mediação em problemas penais como opção flexível, compreensiva, problem-solving, participativa, e complementar ou alternativa ao sistema tradicional criminal". Nesse âmbito a UE deixou em aberto a forma de aplicação da justiça restaurativa pelos países-membros bem como o momento em que deva ocorrer e o modelo a ser seguido, uma vez que a justiça restaurativa poderá ser complementar ou alternativa ao sistema tradicional criminal (retributivo-punitivo).
Apesar da abertura proposta pela Recomendação, a doutrina tem entendido que há certa inviabilidade de obter, hoje, um sistema com aplicação da Justiça Restaurativa completamente afastado do sistema tradicional criminal, devendo numa primeira fase ser utilizado de forma complementar ao sistema tradicional. (Pallamolla, 2009)
Outra questão relevante no âmbito da UE é a Decisão marco do Conselho da União Européia de 2001 (2001/220/JAI) referente ao estatuto da vítima no processo penal. Em seu art. 10 a decisão estabelece diretrizes para os Estados Membros sobre mediação penal (PALLAMOLLA, 2009). Referida Decisão marco trata acerca de outra problemática doutrinária moderna que é a questão da vitimização no processo penal.