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A análise sistemática da sucessão do cônjuge e do companheiro na perspectiva civil-constitucional

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Agenda 21/07/2011 às 15:43

5.DA SUCESSÃO DO CÔNJUGE

5.1.CONSIDERAÇÕES PRÉVIAS

A CF/88 garante o direito de herança em seu art. 5º, inciso XXX, do Título II, concernente aos direitos e garantias fundamentais. O reconhecimento da sucessão mortis causa constitui um corolário da garantia do direito à propriedade privada (CF/88, art. 5º, caput, XXII e XXIII). Argumenta-se também que a inexistência do direito de herança numa sociedade em que não impera um integral coletivismo da propriedade levaria a um consumo desenfreado, desestimulando a poupança. Ademais, é essencialmente necessária para certeza no tempo quanto ao adimplemento das obrigações.

Sucessão, na etimologia jurídica, conduz sentido de substituição, compreendendo-se a vinda de coisa ou de pessoa para colocar-se no lugar, ou na posição ocupada por outra, investindo-se na mesma situação jurídica, que mantinha a outra coisa, ou a outra pessoa.

E, assim, sucessão pode definir-se como a transmissão de bens (sentido objetivo) e de direitos (sentido subjetivo) de uma pessoa a outra, em virtude da qual esta última, assumindo a propriedade dos mesmos bens e direitos, pode usufruí-los, dispô-los e exercitá-los em seu próprio nome.

Sucessão. Em sentido estrito, porém, como instituição do direito hereditário, sucessão é a transmissão de bens e de direitos a uma ou mais pessoas vivas, integrantes de um patrimônio deixado por uma pessoa falecida.

Na sucessão hereditária, é essencial a morte da pessoa, a quem se sucede, porquanto a sua abertura é subordinada a esse fato jurídico substancial. Não se sucede, isto é, não se pode herdar de pessoa viva. A sucessão hereditária será sempre causa mortis. E por essa razão é igualmente assim denominada: sucessão causa mortis, em distinção à sucessão inter vivos, que se possa manifestar sob outros aspectos. (Silva, 2004, p.1339)

A sucessão causa mortis dá-se por disposição de última vontade ou em virtude de lei, recebendo, respectivamente as denominações de sucessão testamentária (autonomia da vontade) e sucessão legítima (vínculo familiar). A última não pode ser excluída pela vontade do de cujus, dando origem à legítima _ porção dos bens que cabem de pleno direito e obrigatoriamente aos parentes em linha reta do testador e ao seu cônjuge.

Pode-se dizer que a quota necessária é fruto da conjugação dos elementos romano e germânico no Direito Brasileiro. No Direito Romano predominava a liberdade de testar, só se verificando a sucessão legítima quando faltava um ato, válido, de última vontade. Aos poucos, as restrições à liberdade de testar foram surgindo. Primeiro no campo formal, depois no campo material. O desenvolvimento de novos conceitos morais contribuiu para que o chefe de família percebesse que violava deveres sacratíssimos em relação à progênie, quando o pai deixava todo o seu patrimônio a estranhos, esquecido de que, chamando à vida novos seres, contraíra, para com a sociedade, e para com a sua consciência em primeiro lugar, a obrigação de ampará-los. Mais tarde, Justiniano aumentou a porção da legítima dos descendentes do testador.

Já o Direito Germânico tem uma concepção oposta à romana antiga. O direito sucessório estava baseado na família e no parentesco, prevalecendo a sucessão legítima. O testamento só passou a ser reconhecido a partir da interferência da Igreja, que compensava a cessão de bens imóveis com a salvação das almas.

O instituto da legítima, portanto, encontra seu fundamento na conciliação entre a plena liberdade de testar e a proteção da família, devendo-se lembrar que a reserva dos herdeiros necessários é intangível, não podendo ser diminuída na essência ou no seu valor por nenhuma cláusula testamentária _ princípio da intangibilidade da legítima.

O princípio acima mencionado visa proteger a família (com a legítima ela não ficará desamparada _ dignidade humana e solidariedade econômica entre os membros da mesma família); garantir a propriedade privada (autonomia privada de o testador poder dispor metade de seus bens) e a livre iniciativa. Nota-se, portanto, que o referido princípio encontra-se em inteira consonância com o ordenamento constitucional vigente.

Atualmente, grande parte da doutrina fundamenta a sucessão legítima num conceito de interesse superior da família, entendida como instituição de importância social, mas não merecedora de tutela por si mesma, mas sim porque promove o desenvolvimento da pessoa de seus componentes _ visão constitucional da família.

Após breves considerações, cumpre fazer uma análise das normas infraconstitucionais que versaram sobre os direitos sucessórios dos cônjuges ao longo dos tempos.

5.2.EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA SUCESSÃO DO CÔNJUGE

O Direito Romano, a propósito da vocação hereditária passou por diversas transformações. Nas suas origens, não muito bem conhecidas, prevalecia a perpetuidade do culto. O filho era chamado a suceder para dar continuidade à personalidade jurídica do morto. Inicialmente, a mulher não tinha direitos sucessórios, mas gradativamente foi conquistando-os. Na última fase do Direito Romano, da codificação justinianéia, foi reconhecido à mulher direito à sucessão do marido, recolhendo a quarta parte em propriedade na falta de filhos, e em usufruto se os havia até o máximo de três; se fossem em maior número, um direito usufrutuário mais limitado. Na falta de colaterais, os cônjuges eram herdeiros um do outro.

No Direito das Ordenações Filipinas (no qual se baseou nosso direito pré-codificado durante todo o século XIX e início do século XX), o cônjuge estava localizado na quarta posição sucessória, atrás dos descendentes, dos ascendentes e dos colaterais até o 4º grau. Era remota a possibilidade de o cônjuge ser chamado a suceder.

Atendidos os apelos dos juristas e da sociedade para que o cônjuge ficasse numa posição mais favorável na ordem de vocação hereditária, a lei Feliciano Pena (lei 1839/1907) inverteu as posições dos colaterais e do cônjuge, colocando este antes daqueles.

O CC de 1916 manteve o cônjuge na terceira classe sucessória, atribuindo-lhe a herança sob duplo pressuposto (arts. 1603 c/c 1611 do CC de 1916):

• Ausência de descendentes e ascendentes;

• Não estarem os cônjuges legalmente separados.

Desta forma, no sistema original do CC de 1916, descendentes e ascendentes (que integravam, respectivamente, a primeira e a segunda classes de herdeiros legítimos, de acordo com a ordem de vocação hereditária ali prevista: art. 1603) jamais concorriam com o cônjuge sobrevivente, o qual, à falta de testamento e uma vez reconhecida a capacidade sucessória daqueles herdeiros preferenciais, nada recebia na sucessão do de cujus.

Como não era considerado herdeiro necessário, ainda que não existissem descendentes e nem ascendentes, o cônjuge também não recebia nada se o de cujus tivesse disposto de todos os seus bens em testamento.

A lei 883, de 21 de outubro de 1949, ao permitir, em certas circunstâncias, o reconhecimento de filho havido fora do matrimônio, inovou em matéria sucessória, criando hipótese de simultâneo chamamento do filho natural reconhecido e do cônjuge do de cujus, desde que o último fosse casado com o falecido no regime de separação total. A herança era repartida igualmente entre os dois (art. 3º da lei). Instituía-se uma solução discriminatória perante o filho natural, uma vez que com filhos legítimos o cônjuge não poderia concorrer em obediência à ordem de vocação hereditária então em vigor (art. 1603 do CC revogado.)

O Estatuto da Mulher Casada, lei 4121/62, passou a reconhecer à mulher, enquanto durasse a viuvez e se casada em regime que não fosse o da comunhão de bens, o direito de usufruto vidual correspondente à quarta parte dos bens deixados pelo marido quando concorresse com filhos do casal ou do falecido cônjuge, e à metade se não houvesse filhos, embora sobrevivessem os ascendentes do de cujus (artigo 1611, § 1º do CC de 1916).

Com o propósito de amparar o cônjuge supérstite contra eventualidade de ser privado de moradia, o Estatuto da Mulher Casada também inovou criando a possibilidade do direito real de habitação, incluído no art. 1611 §2º CC 1916. O objeto deste direito é o imóvel destinado à residência da família, desde que seja o único bem daquela natureza a inventariar. O direito era aplicado apenas ao regime de comunhão de bens, não ficando prejudicado o direito do cônjuge à sua meação. Este direito real era vitalício e condicional ao estado de viuvez.

No mesmo sentido de proteção ao cônjuge sobrevivente, a lei chamada de "proteção à família" (Decreto-Lei 3200 de 1941) dispôs em seu artigo 17, em favor da brasileira casada com estrangeiro sob regime que exclua a comunhão de bens, o usufruto vitalício da quarta parte dos bens deste, se houver filhos do casal e da metade se não os houver. Este usufruto não está condicionado ao estado de viuvez. A sucessão usufrutuária aqui prevista é diferente da prevista no Estatuto da Mulher Casada (lei 4121/62), não tendo sido, portanto, revogada por esta. Aliás, trata-se de norma especial, de incidência restrita à hipótese ali cogitada, que continua valendo ainda hoje perante a ausência no CC de 2002 de disposição sobre o assunto.

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Em seguida, a Nova Lei de Introdução ao Código Civil e, posteriormente a CF de 1946 e atualmente a CF de 1988 estabeleceram que a sucessão de bens de estrangeiros situados no Brasil será regulada pela lei brasileira em benefício do cônjuge e dos filhos do casal, salvo se a lei pessoal do de cujus lhes fosse mais favorável (CF/88, art. 5º, inc. XXXI).

5.3.NORMATIZAÇÃO NO CC DE 2002

Antes de partirmos para a análise da sucessão do cônjuge perante o CC de 2002 são necessárias duas observações:

• As regras do novo diploma somente se aplicam às sucessões abertas a partir do dia 11 de janeiro de 2003, conforme apregoa o artigo 2041 do CC. Por isso o histórico das sucessões se faz necessário, pois muitas pessoas morreram na vigência da lei revogada, enquanto o inventário e/ou a partilha se deram na vigência do CC atual. Nesses casos, por força da saisine, as regras a serem observadas serão as da época do óbito (momento em que os direitos hereditários, definitivamente incorporados ao patrimônio dos herdeiros, não podem ser desconstituídos por lei superveniente _ art. 1572 do CC de 1916 e 1784 do CC de 2002).

• Tanto no CC de 1916 quanto no atual, não há confundir o direito de herança, reconhecido ao cônjuge supérstite, com a sua meação. No CC de 1916, a meação era um efeito da comunhão, ao passo que o direito hereditário não dependia do regime de bens; no CC de 2002, todavia, nenhuma das afirmações pode ser feita em caráter absoluto. Em regra, o cônjuge já tem direito à meação em vida do outro, na vigência da sociedade conjugal. A morte do cônjuge, nos regimes de comunhão, apenas põe termo ao estado de indivisão, permitindo sejam discriminados e individuados os bens sobre que incide a metade de cada um. No CC atual, ao contrário do de 1916, a meação pode ser também efeito da sucessão, como no regime de participação final dos aquestos (separação de patrimônios durante a vigência da sociedade conjugal, mas com possibilidade de meação quanto aos bens adquiridos pelo casal, a título oneroso, na vigência da união estável, na hipótese de dissolução da sociedade pela morte de um deles) e no da separação obrigatória de bens (súmula 377 do STF: entendimento de que os aquestos são comuns, existindo meação sobre eles na hipótese de dissolução da sociedade pela morte de um dos cônjuges). Ademais, o regime de bens passou a ter relevância na definição dos direitos hereditários do cônjuge quando concorre com descendentes do de cujus, o que não ocorria no CC de 1916.

Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:

I - aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares;

II - aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge;

III - ao cônjuge sobrevivente;

IV - aos colaterais.

O CC de 2002 manteve a ordem de vocação hereditária do CC anterior, com algumas modificações: o cônjuge passou a poder concorrer com os descendentes, dependendo do regime de bens em que fora casado com o de cujus e também com os ascendentes, independentemente do regime de bens adotado. Não havendo descendentes e nem ascendentes, o cônjuge é chamado sozinho. Apenas na sua ausência que os colaterais serão chamados, até o quarto grau.

A sucessão, de um modo geral, funciona da seguinte forma: a vocação de descendentes afasta a de ascendentes, quer os primeiros concorram ou não com o cônjuge do autor da herança (art. 1829 do CC) e dentro de cada classe, os parentes de grau mais próximo preferem aos de grau mais afastado.

Em relação ao cônjuge, o CC inovou melhorando a sua situação sucessória. Alteração mais relevante: cônjuge se torna herdeiro necessário (art. 1845 do CC). Outra alteração foi sua colocação nas duas classes preferenciais em concorrência com os descendentes e ascendentes, como apregoa o art. 1829, I e II do CC.

Tem precedência sobre os colaterais, ou seja, não havendo parentes em linha reta, herdará tudo sozinho, desde que não esteja separado judicialmente, nem de fato há mais de dois anos, salvo prova, neste caso, de que essa convivência se tornara impossível sem culpa sua.

Quando o cônjuge concorre com os descendentes, faz-se necessário analisar em qual regime de bens foi realizado o casamento. Regra geral, os descendentes e o cônjuge concorrem à sucessão do de cujus (art. 1829, I, primeira parte, CC), salvo quando o casamento se der nos seguintes regimes (art. 1829, I, CC):

A).Comunhão universal de bens, pois neste caso, o cônjuge já é contemplado com a meação, não sendo necessário protegê-lo com a herança.

B)Separação obrigatória de bens. A lei, ao estabelecer este regime, objetiva a não comunicabilidade de bens entre os cônjuges (pelos motivos do art. 1641, CC). Caso o cônjuge fosse herdeiro, estar-se-ia beneficiando-o com bens que não cabem a ele (pela imposição da incomunicabilidade dos bens no momento da constituição do vínculo matrimonial). A súmula 377 do STF, todavia, entende que os aquestos são comuns, existindo meação sobre eles. Observe: meação, e não herança!

C)Comunhão parcial, quando o de cujus não houver deixado bens particulares. Neste caso, o cônjuge já se beneficiou com a meação, não tendo porque beneficiar-se enquanto herdeiro. Caso fosse considerado herdeiro, estaria ganhando duas vezes do mesmo patrimônio (bis in idem).

O regime de bens que não se encontra nas exceções acima descritas, encontra-se na regra, ou seja, o cônjuge concorre com os descendentes. E isso se dá nos seguintes regimes:

D)Participação final dos aquestos: o cônjuge é herdeiro em relação aos bens particulares do de cujus e meeiro quanto aos bens adquiridos onerosamente durante o casamento.

E)Comunhão parcial com bens particulares deixados pelo de cujus : semelhante ao anterior, o cônjuge é herdeiro em relação aos bens particulares e meeiro em relação aos bens adquiridos onerosamente durante o casamento.

F)Separação convencional de bens: este regime visa à incomunicabilidade dos bens por uma escolha dos nubentes, mas não por imposição legal. Em decorrência disso o cônjuge não é meeiro, mas apenas herdeiro, haja vista existirem apenas bens particulares.

Quando concorre com os ascendentes (art. 1829, II), o faz independentemente do regime de bens, tendo em vista que o cônjuge e os ascendentes encontram-se em iguais condições, não sendo necessário resguardar mais um do que o outro. Aqui, não importa perquirir se há ou não o benefício da meação para o cônjuge, ele e os ascendentes estão no mesmo patamar. Diferentemente é o caso anterior, quando concorre com os descendentes. Presume-se que estes, por serem mais novos e por darem maior continuidade ao patrimônio, necessitam de maior resguardo, não estando em paridade com o cônjuge.

Não havendo descendentes nem ascendentes, o cônjuge não concorre com os colaterais (art. 1829, III). Prevalece em relação a estes, independentemente do regime de bens. Isto porque o cônjuge teve com o de cujus maior afinidade e contribuiu muito mais para a construção do patrimônio do que os colaterais, sendo merecedor, portanto, da totalidade da herança (art. 1838 do CC). Apenas se não houver cônjuge sobrevivente nos termos do art. 1830 é que serão chamados a suceder os colaterais até o 4º grau (art. 1839 do CC).

5.3.1.Partilha

Quando o cônjuge concorre com os descendentes, sua quota dependerá do número destes (art. 1832 CC):

• Quando o número de descendentes não for superior a três, a divisão entre estes e o cônjuge será por cabeça, igual quinhão para todos.

• Na hipótese de se ter mais de três descendentes, filhos em comum do de cujus com o cônjuge sobrevivente, deve-se resguardar este com ¼ da herança, sendo os ¾ restantes divididos por cabeça entre os descendentes. Dentro desta hipótese surge uma questão:

Havendo um ou mais descendentes filhos apenas do de cujus, permanecerá o cônjuge com o resguardo de ¼ ? Tem-se dois entendimentos:

O primeiro compreende a regra do 1832 do CC como restritiva. Estar-se-ia diminuindo o quinhão dos descendentes para beneficiar o cônjuge se permanecesse o resguardo de ¼. Sendo restritiva do direito dos descendentes, a regra não poderia ser estendida para hipótese não prevista. Dessa forma, quando os descendentes não são comuns, a divisão deve ser feita por cabeça.

Já o segundo compreende a regra por um viés teleológico do legislador. A finalidade do artigo é resguardar o cônjuge que contribuiu para a construção do patrimônio. Não é razoável desproteger o cônjuge pelo simples fato de não serem todos os filhos comuns. O fato é o mesmo (mais de três descendentes), não havendo motivos para a mudança do direito.

Penso ser mais correto o segundo entendimento, pois onde há a mesma razão, há o mesmo direito, devendo a regra prevalecer ainda que os filhos não sejam comuns. Até porque, se assim não fosse, quando tivesse filhos incomuns, estes seriam beneficiados pela divisão por cabeça em relação à hipótese em que tivesse apenas filhos comuns. Isso daria um tratamento diferenciado aos filhos _ tratamento inconstitucional (art. 227 §6º da CF).

Quando o cônjuge concorre com os ascendentes, a partilha ocorrerá conforme o artigo 1837 do CC, que deve ser corretamente interpretado diante de sua infeliz redação. Temos três hipóteses que não podem se confundir:

A)Concorrendo com ambos os pais, ao cônjuge tocará 1/3 da herança. É esta a primeira hipótese prevista no art. 1837 do CC, embora redigido de outra maneira. Isso para que não seja confundida esta hipótese com a seguinte. A má redação do artigo acabou por criar zonas de intersecção, embora tivesse o legislador a intenção de atribuir efeitos jurídicos diferentes.

B)Se houver um único ascendente, independente do grau, recolherá ele metade da herança e o cônjuge a outra metade.

C)Se houver mais de um ascendente no mesmo grau (os de grau mais próximo afastam o de grau mais remoto, sem distinção de linhas), sendo este grau superior ao primeiro, metade da herança caberá ao cônjuge e a outra metade será repartida entre os ascendentes por linhas, nos termos do art. 1836,§§ 1º e 2º do CC. Observa-se, portanto, que pela explicação dada, esta hipótese não se confunde com a anterior, embora, a redação da segunda parte do art. 1837 do CC possa gerar a dúvida sobre em qual das duas hipóteses se encaixa a possibilidade de coexistência, numa única pessoa, das qualidades de único ascendente (descrição da hipótese anterior) e de ascendente de grau superior ao primeiro (descrição desta última hipótese).

5.4.DIREITO REAL DE HABITAÇÃO E USUFRUTO VIDUAL

O art. 1831 do CC passou a prever, com maior extensão em relação à lei anterior, o direito real de habitação. Este direito continua sendo em relação ao

imóvel residencial da família, desde que seja o único a inventariar, sem prejuízo da parte que caiba ao cônjuge sobrevivente na herança. Foi ampliado, contudo, pois independe do estado de viuvez e do regime de bens adotado pelo casal.

O direito ao usufruto vidual, anteriormente mencionado, (art. 1611 do CC de 1916) foi extinto com o CC de 2002, somente sendo reconhecido nas sucessões abertas antes de sua entrada em vigor (art. 2041 CC), obedecidos os requisitos da lei à época vigente. A extinção se deu porque ao ser colocado como herdeiro necessário, o cônjuge não estará desprotegido como outrora, não precisando do referido benefício.

5.5.ARTIGO 1830 DO CC: ANÁLISES E CRÍTICAS

Outra impropriedade para a sucessão do companheiro no CC decorre do disposto no art. 1830 do CC, que autoriza a concorrência sucessória entre o cônjuge sobrevivente e o companheiro da união estável contraída após a separação de fato do de cujus, desde que o cônjuge sobrevivente comprove estar separado de fato há menos de dois anos, ou, em caso de separação fática superior ao referido prazo, demonstre que a convivência se tornou impossível por culpa exclusiva do de cujus.

Art. 1.830. Somente é reconhecido direito sucessório ao cônjuge sobrevivente se, ao tempo da morte do outro, não estavam separados judicialmente, nem separados de fato há mais de dois anos, salvo prova, neste caso, de que essa convivência se tornara impossível sem culpa do sobrevivente.

O art. 1830 do CC de 2002 é além de lacunoso, anacrônico, tendo em vista o atual espírito do Direito de Família.

Ponto menos controvertido na doutrina é o da exclusão da herança do cônjuge sobrevivente, nos casos de separação judicial. Deve-se, no entanto, já ter havido o trânsito em julgado da decisão de separação judicial litigiosa, não podendo o consorte ser privado do direito sucessório, na hipótese, se houver recurso pendente de julgamento. Também é exigido, quando for o caso de separação consensual, que o acordo esteja regularmente homologado. Nesse sentido, Gonçalves (apud, Da Silva, 2009, p.26):

O direito sucessório do cônjuge, todavia, só estará afastado depois de homologada a separação consensual ou passada em julgado a sentença de separação litigiosa ou de divórcio direto, que só produz efeitos ex nunc, ou ainda depois de lavrada a escritura pública de separação ou divórcio consensuais, que produz seus efeitos imediatamente, nos termos do art. 1124-A do diploma processual civil, com a redação dada pela lei nº 11441, de 4 de janeiro de 2007. Morrendo o cônjuge no curso da ação de divórcio direto, de conversão de separação em divórcio ou de separação judicial, extingue-se o processo.

Questão controvertida é quanto à parte do dispositivo que reconhece direito sucessório ao cônjuge se não estivesse separado de fato há mais de 2 anos ou se, separado de fato há mais de 2 anos, não tivesse dado causa à separação. A controvérsia surge quando, nesse período, o de cujus contrai união estável. Neste caso, é discutida a possibilidade de haver a concorrência do ex-cônjuge com o companheiro quando da morte do autor da herança. Por isso existem três posicionamentos doutrinários principais tentando buscar uma solução: atribuir direitos sucessórios apenas ao cônjuge, apenas ao companheiro ou ao companheiro em concorrência com o cônjuge.

A primeira solução pode ser considerada descartada, sendo poucos os doutrinadores adeptos dela. A maior parte da doutrina se divide, portanto, entre as duas últimas soluções.A título de exemplo, Cahali (apud Silva, p.30):

Existe um conflito entre as normas, na medida em que duas pessoas, pela análise fria dos textos, seriam titulares da mesma herança. Para a convivência das regras, caracterizada a união estável, há que se prestigiar o companheiro viúvo, em detrimento do cônjuge, integrante formal de matrimônio falido, apenas subsistente no registro civil. Mas, à evidência, não se privará o cônjuge de eventual meação sobre patrimônio adquirido na constância do casamento, bens estes a cuja comunhão o companheiro não terá direito, pois adquiridos anteriormente à união estável.

Também Dias (apud, Da Silva, 2009, p.28):

Para o cônjuge preservar a qualidade de herdeiro, é necessário que a sociedade conjugal tenha persistido até o falecimento do outro. Indispensável reconhecer que a separação de fato subtrai do viúvo a condição de herdeiro. Admitir a possibilidade de o cônjuge herdar quando o casal já estava separado de fato, é perpetuar os efeitos do casamento para depois de seu fim. Não há como assegurar pelo longo período de dois anos, o direito à herança de quem foi o culpado pela separação. Tal possibilidade afronta princípio petiço dos mais elementares, além de gerar o enriquecimento sem causa, pois herdaria o patrimônio amealhado depois da separação. Também fora de propósito deferir a herança ao cônjuge sobrevivente, independente do prazo da separação, pelo só fato de não ter sido o responsável pelo rompimento da vida em comum. Estes absurdos estão consagrados na lei (CC 1830), não tendo o legislador atentado que a jurisprudência considera rompido o casamento quando cessa a convivência. Não mais persistindo os deveres do casamento, nem o regime de bens, tal subtrai a possibilidade de o sobrevivente ser reconhecido como herdeiro. Nem concorre com os sucessores e nem preserva a qualidade de herdeiro. Recebe a meação dos bens adquiridos a constância do casamento, que não é direito sucessório. Nada mais.

Particularmente penso que se pelo artigo 1830 do CC é reconhecido direito sucessório ao ex-cônjuge sobrevivente que estava separado de fato do de cujus a menos de 2 anos, com muito mais razão é de se conferir igual direito àquele companheiro que conservou o elo afetivo com o de cujus até o fato morte. Aliás, conferir o direito sucessório ao companheiro é muito mais consentâneo com o viés do legislador atual, que prioriza os laços afetivos na caracterização da entidade familiar, do que conferi-lo ao ex-cônjuge, que não mais possui o afectio maritalis. Mas é melhor que tentemos buscar uma solução proporcional, em que cada um fique resguardado com a parte da herança correspondente à sua contribuição.

A segunda parte do art. 1830 comporta dois absurdos:

O primeiro se refere à possibilidade de o ex-cônjuge sobrevivente ter seu direito sucessório reconhecido se estivesse separado de fato do autor da herança a menos de dois anos. O absurdo é em relação ao fato de neste período não se fazer análise da culpa imediata, ou seja, mesmo que o ex-cônjuge sobrevivente tenha sido o culpado pela separação, ele terá direito a herança.

O segundo absurdo é quanto à possibilidade de ser considerado herdeiro se estivesse separado de fato, independente da análise temporal, desde que a convivência se tornara impossível sem culpa do sobrevivente. Neste caso o problema se dá quando, suponhamos, num casamento que tenha durado 5 anos, ocorre a separação de fato que perdura por 15 anos, até que um dos ex-cônjuges morre. O ex-cônjuge sobrevivente não teve culpa na separação. E o de cujus, três anos após a separação de fato, constituiu união estável. Nota-se, aqui, que o companheiro sobrevivente pode ter contribuído muito mais na aquisição do patrimônio do de cujus do que o ex-cônjuge sobrevivente, inclusive porque viveu mais tempo com ele. E então? A herança não será do companheiro? Não seria injusto seguir a literalidade do artigo 1830 do CC?

Interessante a sugestão de Almeida (apud Pereira, 2009, p.145), em seu Código Civil Comentado, pág. 217. Propõe que o cônjuge, na hipótese, seja tratado como um dos "parentes sucessíveis" a que se refere o art. 1790, III, do CC, dividindo-se a herança, desigualmente entre ele e o companheiro (tocariam 2/3 ao primeiro e 1/3 ao último).

Brilhante, contudo, é a solução proposta por Pereira. Não poderia ter sido melhor. Aliás, a maioria dos autores nem sempre enfrentam a questão, mesmo quando a identificam. Quando muito, emitem um parecer sobre quem pensam que deveria ser tutelado pelo direito sucessório, mas não põem fim à questão. Assim defende Pereira (2009, p. 146):

Sendo inadmissível ao intérprete ignorar a cláusula final do art. 1830, a despeito das críticas, de lege ferenda, que se possam dirigir à necessidade de indagação sobre culpa (cf. vol. V destas Instituições, nº 405-A), parece-nos que o problema deva ser resolvido mediante a aplicação, em cada período de aquisição patrimonial, das regras sucessórias que lhe são próprias, como se se tratasse de duas sucessões distintas: assim, considerar-se-ão, em primeiro lugar, os bens adquiridos até a separação de fato e, quanto a eles, se fará a partilha segundo o art. 1829, assegurada aí a participação do cônjuge (em concorrência ou não com os parentes do falecido); em seguida, proceder-se-á à partilha dos bens posteriormente adquiridos, de acordo com o art. 1790, recebendo o companheiro o quinhão que, nas circunstâncias, lhe couber.

Este critério não estende injustificadamente os efeitos do casamento para depois de seu fim, pois não assegura uma condição de herdeiro ad eternum a uma pessoa que, dependendo de quando o sucedendo morreu, este já não a sentia mais como ente familiar, merecedora, portanto, do direito de herdar. Evita-se também o enriquecimento ilícito do ex-cônjuge sobrevivente, pois não lhe garante sucessão nos bens adquiridos pelo de cujus posteriormente à separação de fato, a pretexto de não ter sido culpado por ela. Ademais, numa análise bem objetiva, admite-se a sucessão do ex-cônjuge sobrevivente ainda que tenha sido culpado pela separação de fato, pelo fato de se presumir ter contribuído para a aquisição patrimonial do de cujus enquanto estiveram juntos.

O critério proposto por Pereira foi o mais razoável e mais próximo da eqüidade dos que já vi e, até mesmo, dos que pude imaginar, pois contempla proporcionalmente todos os que contribuíram de alguma forma para a aquisição patrimonial do de cujus, em momentos diferentes de sua vida. Eu tinha criado um critério muito subjetivo (com a análise da culpa). O de Pereira, ao revés, é muito objetivo (não faz análise da culpa). Talvez pudéssemos criar um critério cuja base seja o de Pereira, acrescentando um pouquinho de subjetividade quanto à sucessão dos bens adquiridos até a separação de fato, ou seja, acrescentar um critério subjetivo quanto à participação do ex-cônjuge sobrevivente na herança:

Os bens adquiridos até a separação de fato, que serão objeto da partilha segundo o art. 1829, devem assegurar a participação do ex-cônjuge sobrevivente que não tenha sido culpado imediatamente pela separação.(Chamo de culpa imediata ou relevante as causas ensejadoras da separação sanção – adultério, tentativa de morte, sevícia, ou injúria grave, abandono voluntário do lar conjugal durante um ano contínuo, condenação por crime infamante e conduta densonrosa art. 1573 do CC; as causas ensejadoras da revogação da doação pura – donatário atentar contra a vida do doador; cometer crime de homicídio doloso contra ele; cometer ofensa física contra ele; cometer injúria grave ou calúnia contra ele ou recusar ao doador os alimentos de que este necessitava – art. 557 do CC; ou, ainda, as causas ensejadoras da ação de indignidade – herdeiro ou legatário que houver sido autor, co-autor ou partícipe de homicídio doloso ou tentativa deste contra a pessoa de cuja sucessão se tratar, seu cônjuge, companheiro, ascendente ou descendente; que houver acusado caluniosamente em juízo o autor da herança ou que incorrer em crime contra a sua honra, ou de seu cônjuge ou companheiro; que por violência ou meios fraudulentos, inibir ou obstar o autor da herança de dispor livremente de seus bens por ato de última vontade – art. 1814 do CC. A culpa imediata se contrapõe a culpa mediata: esta seria a sucessão de acontecimentos próprios do convívio, que podem anteceder a culpa imediata, embora esta culpa possa existir sem aquela.) Isso por três motivos: primeiro, por se presumir ter contribuído para a aquisição patrimonial do de cujus, segundo, porque faz jus por uma questão de consideração, reconhecimento, gratidão e/ou moral, por ter integrado a família. Neste caso, tem-se consideração seja porque o matrimônio se desfez por culpa mediata de ambos, seja porque quem saiu "devedor" da separação foi o de cujus, sendo a herança uma forma de mitigar sua culpa imediata em ter dado causa à desconstituição de sua família e terceiro, porque, para o direito brasileiro, objetivamente falando, o que é obrigatório legalmente é apenas a meação, uma vez que a jurisprudência subtrai a possibilidade de o sobrevivente ser reconhecido como herdeiro quando rompido o casamento com o fim da convivência.

Por outro lado, não é justo e nem consoante com a idéia de família atual o direito de herdar do ex-cônjuge que não integra mais o núcleo familiar do de cujus, por ter sido ele próprio o causador da separação de fato. A família hoje (pós CF/88) passou a ser protegida somente na medida em que proporciona o desenvolvimento da personalidade de seus membros _ família instrumento _ formação social que tem em vista a pessoa de seus componentes: desenvolvimento e felicidade do outro. Neste tipo de família impera o princípio da igualdade e da solidariedade. Diante desta nova concepção de família, questiona-se: como um cônjuge que abandona o lar, atenta contra a vida de seu consorte ou comete adultério, além de outras causas de culpa imediata..., propicia o desenvolvimento e felicidade dos demais integrantes da família? Se foi ele que não quis continuar sendo integrante daquela família, como pode querer que a solidariedade econômica decorrente da herança o atinja? É inevitável e justificável que os demais integrantes deixem de considerá-lo como membro, já que é ensejador de desarmonia no lar.

O mesmo não pode ser dito do ex-cônjuge que não deu causa à separação de fato, seja porque houve culpa imediata do de cujus, seja porque houve culpa mediata de ambos. Nessa situação, os demais integrantes ainda continuam a considerá-lo como membro e, portanto, merecedor da herança.

Salientou-se, portanto, a questão da culpa relevante como mais um requisito importante para suceder, servindo como mais um critério para constatação de que o sobrevivente pode fazer jus à herança. Isso porque, apesar de alguns dizerem que o exame da culpa trata apenas de causa imediata da ruptura _ não tão importante frente ao resultado de uma sucessão de acontecimentos próprios do convívio, que também dão causa ao rompimento – temos de convir que seria muito mais honesto se separar porque a convivência não é mais possível, sem que se cometa alguma das faltas graves ensejadoras da separação sanção (art. 1573 do CC); da revogação da doação pura (art. 557 do CC) ou, ainda, da ação de indignidade (art. 1814 do CC).Logo, a análise da culpa como requisito para suceder estimula a lealdade, a honestidade e o respeito entre os cônjuges. Do contrário, ou seja, se mesmo culpado o cônjuge sobrevivente pudesse suceder, ficaria desestimulado em agir conforme esses ditames. E é protegendo esses princípios morais que nascem nas relações familiares e repercutem nas relações sociais, que o Direito evita muitos problemas futuros.

Em síntese, podemos dizer que, após ser conferido ao ex-cônjuge (desprovido de culpa relevante na separação) os bens que lhe pertencem na sucessão do de cujus até a separação de fato, proceder-se-á à partilha dos bens posteriormente adquiridos, de acordo com o art. 1790, recebendo o companheiro o quinhão que, nas circunstâncias, lhe couber.

Sobre a autora
Karen Hellen Esteves de Avelar

Bacharel em Direito pela UFJF, Delegada de Polícia e pós-graduada em Direito Público Material pela Universidade Gama Filho/RJ.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AVELAR, Karen Hellen Esteves. A análise sistemática da sucessão do cônjuge e do companheiro na perspectiva civil-constitucional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2941, 21 jul. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19594. Acesso em: 23 dez. 2024.

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