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A análise sistemática da sucessão do cônjuge e do companheiro na perspectiva civil-constitucional

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Agenda 21/07/2011 às 15:43

3.A FAMÍLIA NA CF DE 88 E A CLÁUSULA GERAL DE INCLUSÃO

Com efeito, o conceito de família trazido pelo art. 226 é plural e indeterminado, firmando uma verdadeira cláusula geral de inclusão. O cotidiano, as necessidades e os avanços sociais concretizam os tipos familiares, merecendo, todos eles, igualmente, proteção legal.

Conforme lição de Lôbo e Matos (apud Serrão, 2009, p. 28 e 29):

Não é a família per se que é constitucionalmente protegida, mas o locus indispensável de realização e desenvolvimento da pessoa humana. Sob o ponto de vista do melhor interesse da pessoa, não podem ser protegidas algumas entidades familiares e desprotegidas outras, pois a exclusão refletiria nas pessoas que as integram por opção ou por circunstâncias da vida, comprometendo a realização do princípio da dignidade humana.

Ademais, sobreleva considerar que a norma constitucional deve ser interpretada de forma a se lhe emprestar a maior eficácia possível. Assim, podendo se extrair diferentes tipos de leitura de algum dispositivo constitucional deve prevalecer o que determine maior alcance social, conferindo eficácia ao princípio da dignidade de cada um dos que integram o núcleo familiar (§8º do art, 226 da CF).

3.1.NÃO TAXATIVIDADE DO ROL CONSTITUCIONAL

Ponto crucial sobre as entidades familiares circunda a enumeração do art. 226 da CF. Seria ele um rol exemplificativo ou rol taxativo?

Para responder esta questão, faz-se necessário esclarecer a importância do preâmbulo de nossa Constituição, pois é um compromisso antecipado que, juntamente com os princípios fundamentais formam as cláusulas pétreas da Constituição.

No preâmbulo fica estabelecido que instituído o Estado Democrático de Direito, este se destina a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, o bem-estar, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos. Resta claro, portanto que a interpretação do texto constitucional deve ser pautada nos princípios da liberdade, igualdade e justiça, e na ausência de preconceito, visando à concretização do macroprincípio da dignidade da pessoa humana, assegurado pelo art. 1º, III, como princípio fundamental da República.

Desta forma, como a pessoa humana é o elemento finalístico da proteção estatal, as normas de direito positivo em geral e em especial as que disciplinam o direito de Família devem convergir para regular as relações mais íntimas e intensas do indivíduo no social.

Isto posto, a conclusão que se chega é no sentido da não taxatividade do rol contemplado no art. 226 da CF, senão desprotegeríamos inúmeros agrupamentos familiares não previstos ali. A exclusão das outras formas de entidades familiares por este artigo decorre de um problema de interpretação literal, pois uma interpretação sistemática e teleológica dos preceitos constitucionais conduz, seguramente, à idéia de inclusão de outros modelos familiares.

Segundo Bobbio (apud Farias e Rosenvald, 2008), o raciocínio a ser feito diante das entidades familiares é no sentido de se entender o rol não taxativo da Constituição, posto que se depreende de sua leitura o reconhecimento do status privilegiado de liberdade, solidariedade, responsabilidade. A família se apresenta como um núcleo solidário-afetivo, valorizando-se a estrutura em detrimento de modelos previamente consubstanciados.

O raciocínio jurídico implícito a este posicionamento pode ser inserido entre aqueles que compõem a chamada teoria da "norma geral exclusiva" segundo a qual, resumidamente, uma norma, ao regular um comportamento, ao mesmo tempo exclui daquela regulamentação todos os demais comportamentos [01]. Como se salientou em doutrina, a teoria da norma geral exclusiva tem o seu ponto fraco no fato de que, nos ordenamentos jurídicos, há outra norma geral (denominada inclusiva), cuja característica é regular os casos não previstos na norma, desde que semelhantes a ele, de maneira idêntica [02]. De modo que, frente a uma lacuna, cabe ao intérprete decidir se deve aplicar a norma geral exclusiva, usando o argumento a contrario sensu, ou se deve aplicar a norma geral inclusiva, através do argumento a simili ou analógico.

Sem abandonar os métodos clássicos de interpretação [03], verificou-se que outras dimensões, de ordem social, econômica, política, cultural etc., mereceriam ser consideradas, muito especialmente para a interpretação dos textos das longas Constituições democráticas que se forjaram a partir da segunda metade deste século [04]. Sustenta a melhor doutrina, modernamente, com efeito, a necessidade de se utilizar métodos de interpretação que levem em conta tratar-se de dispositivo constante da Lei Maior e, portanto, métodos específicos de interpretação constitucional devem vir à baila [05].

Pela passagem acima exposta, numa comparação entre o previsto no artigo 226 da CF e as outras realidades fáticas familiares, chegamos à conclusão, através do argumento analógico, que o rol do artigo 226 da CF não é taxativo.

No tocante à união estável, diante de um raciocínio teleológico-sistemático, tem-se uma identidade de ratio com a causa da inclusão do cônjuge como herdeiro necessário na sucessão, a exigir, portanto, uma interpretação consoante à norma inclusiva _ perante uma mesma ratio deve-se dar tratamento idêntico.

3.2.ELEMENTOS CARACTERIZADORES DA FAMÍLIA

Não havendo mais que se falar em taxatividade das modalidades familiares, torna-se interessante determinar os caracteres que identificam a família e que produzirão efeitos jurídicos, independentemente da previsão legal.

Segundo Matos (apud Serrão, 2009, p.15), que segue o pensamento desenvolvido por Lôbo, são características comuns a todas as famílias:

A estabilidade, excluindo-se os relacionamentos casuais, episódicos ou descomprometidos, sem comunhão de vida; a ostensibilidade, o que pressupõe uma unidade familiar que se apresente assim publicamente; a afetividade, como fundamento e finalidade da entidade, com desconsideração do novel econômico.

Na esteira do que aqui se sustenta, nossos tribunais têm reconhecido que a presença do caráter afetivo como mola propulsora de algumas relações, a caracteriza como entidade familiar (independentemente de previsão constitucional), merecendo a proteção do Direito de Família, como afirmado pela Corte gaúcha no seguinte aresto: TJ/RS, Ac. 8ª Câm. Cív., AgInstr. 599075496, rel. Des. Breno Moreira Mussi, j. 17.6.99, in RTDC 2:155.

Temos assim como inadmissível um sistema familiar fechado, eis que atentaria contra a dignidade da pessoa humana, assegurada constitucionalmente, contra a realidade social viva e presente da vida e, igualmente, contra os avanços da contemporaneidade, que restariam tolhidos, emoldurados numa ambientação previamente delimitada. Por isso, estão admitidas no Direito de Família todas as entidades fundadas no afeto, na ética e na solidariedade recíproca, mencionadas, ou não, expressamente pelo comando do art. 226 da Carta Maior.

3.3.A FUNÇÃO SOCIAL DA FAMÍLIA

A norma jurídica, somente pode ser vista e admitida como instrumento posto à disposição para implementar decisões justas e adequadas, solucionando os mais variados problemas e conflitos emergidos de uma sociedade aberta, plural e multifacetária.

Por isso, com a colaboração do texto Constitucional, é inquestionável que a ciência jurídica como um todo (aí está incluído o Direito de Família) é um sistema aberto de valores, fundado em princípios a serem seguidos, em busca da concretização da dignidade da pessoa humana, da solidariedade social, da igualdade e da liberdade.

Dessa nova visão que se tem sobre o ordenamento jurídico, inexiste dúvida de que todo e qualquer instituto, necessariamente, tem que cumprir uma função, uma determinada finalidade que deve ser observada na sua aplicação, sob pena de desvirtuá-lo da orientação valorativa constitucional que norteia todo o ordenamento jurídico. E não pode ser diferente com o Direito de Família. A aplicação da norma familiarista tem de estar sintonizada com o tom garantista e solidário da Constituição Federal, garantindo funcionalidade de seus institutos. É o que se chama de função social da família.

Guerra (apud Farias e Rosenvald, 2008) comenta bem sobre essa funcionalidade:

Os institutos de Direito de Família como um todo (casamento, união estável, parentesco, alimentos, etc.) devem observar uma determinada finalidade, sob pena de perderem a sua razão de ser. Assim, deve-se buscar, nos princípios constitucionais, o que almejou o constituinte para a família, de forma a bem entender sua normatização.

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Afirmada a imprescindibilidade do cumprimento de uma função social (nos mesmos moldes da função social da propriedade, da posse, do contrato e da empresa) pelo Direito de Família, vale destacar, inclusive, a premente necessidade de adaptação do conteúdo de seus clássicos institutos aos valores constitucionais, podendo implicar modificação de situações históricas, como se nota da admissibilidade de união estável entre pessoas ainda casadas, mas separadas de fato.

Nessa perspectiva, o não atendimento da função social da família poderá implicar efeitos jurídicos negativos entre as partes interessadas.


4.UNIÃO ESTÁVEL

4.1.BRECHAS DA LEI E TRATAMENTOS DESIGUAIS PARA SITUAÇÕES IGUAIS

Temos no Direito várias situações de brechas da lei e de tratamento desigual para situações iguais e é com base nisso que é pautada essa monografia. A título ilustrativo mostraremos duas ocorrências, dentre inúmeras outras: a situação da conta de água e luz do inquilino em relação ao locatário _ o inquilino é obrigado a pagar conta de luz, mas não o é quanto a de água, ou seja, se não pagar quem será cobrado é o proprietário e a situação das causas suspensivas, aplicáveis ao casamento e não aplicáveis à união estável _ apesar de os impedimentos matrimoniais serem aplicáveis à união estável, as causas suspensivas não embaraçam a sua caracterização, o que, de algum modo, pode gerar uma perplexidade: pessoas que celebram casamento com inobservância das causas suspensivas ficam submetidas, obrigatoriamente, ao regime da separação de bens, enquanto que aquelas que constituem união estável com inobservância das mesmas causas suspensivas, não sofrem da mesma restrição patrimonial. É o que emana do § 2º do art. 1723 do CC, registrando que "as causas suspensivas do art. 1523 não impedirão a caracterização da união estável." Torna-se necessário, portanto, aplicar as causas suspensivas igualmente à união estável. Não se trata de estar criando interpretações extensivas em normas restritivas de direito, mas sim, de se redimensionar os sujeitos a que se destinam as causas suspensivas de uma relação familiar. Essas causas não são atributos do casamento, mas conseqüências restritivas de um relacionamento.

Nota-se, pelos casos acima, que no direito muitas vezes não prevalece a regra segundo a qual onde há a mesma razão há o mesmo direito.

É neste tratamento injusto e desigual que se enquadra a tutela diferenciada entre cônjuge e companheiro no que tange à sucessão, tema deste trabalho.

4.2.APONTAMENTOS DE UMA ADEQUADA COMPREENSÃO DA UNIÃO ESTÁVEL

Conforme demonstrado no tópico 3.1 ("Não taxatividade do rol constitucional"), a união estável, através do artigo 226 §3º da CF de 1988, passou a ser tutelada constitucionalmente como entidade familiar sem o vínculo do casamento.

Pode-se dizer que ela é uma relação afetivo-amorosa entre um homem e uma mulher, não impedidos de casar entre si, com estabilidade, durabilidade, notoriedade, convivência sob o mesmo teto ou não. Seu elemento principal é o ânimo de constituir família, isto é, a intenção de estar vivendo como se casados fossem (convivência more uxório). O intuito familiae ou affectio maritalis é visível socialmente pelos mesmos sinais exteriores de um casamento, como, a soma de projetos afetivos, pessoais e matrimoniais, de empreendimentos financeiros com esforço comum, de contas conjuntas bancárias, declarações de dependência em imposto de renda, em planos de saúde e em entidades previdenciárias, o carinho, a dedicação e a abnegação diante de alguma doença contraída por algum dos companheiros, a frequência em eventos sociais e familiares, eventual casamento religioso (conhecido como evento eclesiático), dentre outros...

Observa-se, portanto, que hoje não é elemento exigido para a união estável um lapso temporal mínimo de convivência e de relacionamento sob o mesmo teto.

Em sede jurisprudencial já se disse que o companheirismo é qualificado

(...) pela dedicação, colaboração e aplicação do homem e mulher nas tarefas da comunhão de vida e de interesses para construir o progresso moral e material unificados, não pela união efêmera da concubinagem firmada só para intercâmbio sexual. O direito de participação nos bens radica na dissolução da sociedade, fincada na relação jurídica permanente da affectio maritalis intuitu familiae, por isso não se compra o amor e nem o sexo se indeniza". (TJ/RS, Ac. 8ª Câm. Cív., ApCív 591059126, rel. Des. Clarindo Favretto, j. 14.11.91.)

A possibilidade de constituição de união estável com pessoa casada, separada judicialmente ou de fato _ independentemente do prazo _ a despeito do que afirmam os artigos 1642, V e 1830 do CC é exemplo claro da importância dos elementos "afetividade" e "atualidade" para a caracterização de uma família no Direito contemporâneo. É a demonstração da união estável suplantando os efeitos do casamento, merecedora da mesma tutela deste por ser uma realidade viva na sociedade.

Ora, se o indivíduo está separado de fato e já até constituiu outra entidade familiar é porque o vínculo afetivo com a família anterior não é suficiente mais para ainda gerar efeitos após sua desconstituição. Ainda mais quando já se constituiu uma nova família em que esta (presunção absoluta) passou a ser responsável pela aquisição do patrimônio após a sua constituição.

Esse é o entendimento patrocinado pelo STJ:

(...) tratando-se de aquisição após a separação de fato, à conta de um só dos cônjuges, que tinha vida em comum com outra mulher, o bem adquirido não se comunica ao outro cônjuge, ainda quando se trate de casamento sob o regime de comunhão universal. (STJ, Ac. 3ª T., REsp. 67.678/RS, rel. Min. Nílson Naves, DJU 14.8.00).

Desta forma, quanto aos bens adquiridos durante o casamento, o ex cônjuge é que faz jus à meação. Quanto aos adquiridos depois da separação de fato e da constituição da união estável será o companheiro quem fará jus à meação.

4.3.HISTÓRICO DAS LEGISLAÇÕES

A expressão concubinato significa comunhão de leito. Ela carregava duplo sentido. O primeiro se refere à união entre homem e mulher extraconjugal. O segundo diz respeito a uma comunhão de fato que se reflete no convívio duradouro entre duas pessoas como se casadas fossem.

Com a Carta de 1988 o ordenamento jurídico brasileiro passou a designar esta última acepção do termo como união estável.

Contudo, um longo e sinuoso caminho foi trilhado até a legitimação da união estável como entidade familiar capaz de produzir efeitos jurídicos, já que o direito brasileiro sempre considerou as relações não conjugais como imorais.

O Código Civil de 1916 acolhia, unicamente, como ente familiar aquela estrutura oriunda do casamento, considerada a base da sociedade e, desse modo, tida como sendo o único laço legítimo e legal de se constituir família, merecedora de amparo do Estado.

Assim, face ao conservadorismo (leia-se e entenda-se como machismo) existente na sociedade coube aos doutrinadores e aos julgados dos Tribunais admitirem e reconhecerem a união estável, como uma espécie de relação familiar, até que ela fosse reconhecida pela Carta Magna de 1988, visto que não existia previsão legal anterior à Constituição. Todavia, tal reconhecimento - por parte dos Tribunais - apesar de um avanço significativo, admitia, tão-somente, a partilha dos bens adquiridos pelo esforço comum dos conviventes, isto é, tão-só a extensão de sua contribuição. De outro lado, em não sendo possível ser atribuída parte dos bens pelo esforço em comum (leia-se "provado", pois o companheiro tinha que provar que o patrimônio fora adquirido em comum esforço), a jurisprudência concedia apenas indenização à concubina, a título de serviços domésticos prestados.

Artigo 226,§ 3º da CF.: Com a Constituição Federal de 1988, o Estado passou a reconhecer a união estável como entidade familiar, passando inclusive a facilitar sua conversão em casamento.

Após o reconhecimento da união estável como entidade familiar pela constituição federal de 1988, não demorou muito para que passasse a ser regulamentada legalmente. Surgiram assim as leis 8971/94 e 9278/96.

Lei 8971/94: veio disciplinar os direitos dos companheiros a alimentos, impondo como requisitos para configuração da união estável que os companheiros fossem solteiros, separados judicialmente, divorciados ou viúvos e que houvesse uma convivência mínima de cinco anos ou a existência de prole. Garantiu ao companheiro participação na herança, mediante usufruto parcial em concorrência com os descendentes ou ascendentes, e recebimento de todos os bens na falta destes herdeiros. Tratou, ainda, do direito à meação post mortem.

Lei 9278/96: veio regular também a união estável, mas não ab-rogando a lei anterior. Estabeleceu diferentes requisitos dos acima mencionados, como a convivência duradoura, pública e contínua, de um homem e uma mulher, estabelecida com o objetivo de constituição de família, afastando de uma vez por todas, a exigência temporal. De forma explícita, assegurou o direito de meação em virtude do condomínio decorrente da presunção de colaboração na aquisição onerosa de bens durante o tempo da união. No âmbito sucessório, estendeu ao companheiro o direito real de habitação.

Tais direitos sucessórios foram concebidos a partir da observação do que a lei deferia ao cônjuge e com o óbvio intuito de equiparar, tanto quanto possível, as duas situações.

Observou-se, contudo, que admitida a convivência parcial da lei mais antiga após a entrada em vigor da lei mais recente, a coexistência de todos aqueles direitos sucessórios acabava por situar o companheiro em posição mais favorecida que o próprio cônjuge, a quem não se permitiria jamais cumular o usufruto vidual (art. 1611,§ 1º do CC de 1916) com o direito real de habitação (art. 1611,§ 2º do CC de 1916). Procurou-se, então, corrigir este resultado mediante raciocínio segundo o qual, diante da precedência, na CF, do casamento sobre a união estável, as vantagens asseguradas ao companheiro deveriam ser estendidas ao cônjuge: assim passou-se a permitir a cumulação do usufruto vidual com o direito real de habitação.

Desse panorama legislativo nota-se que aquele comportamento moralista, advindo da Igreja Católica, e patrimonialista, foi afastado a partir da CF Cidadã ao ser equiparada a união estável com o casamento.

Artigos 1723 a 1727 do CC de 2002: passou a regular as uniões estáveis que iniciaram antes da vigência do CC de 2002 e se desdobraram sob sua égide, bem como as que se iniciaram após.

Inicialmente o relacionamento livre entre homem e mulher em nosso país não era tratado como crime ou ato ilícito, mas suas conseqüências se projetavam apenas no âmbito do Direito das Obrigações, não produzindo efeitos no âmbito do Direito de Família. Ou seja, este tipo de relacionamento submetia-se às regras das sociedades de fato, não familiaristas, sendo-lhe reconhecido efeitos meramente patrimoniais (indenização pelos serviços prestados entre as partes), uma vez que essas famílias não faziam jus a alimentos, por exemplo. As lides deste tipo de relacionamento eram dirimidas perante o Juízo Cível. Apenas com o advento da Constituição Cidadã e conseqüente elevação da união estável ao status de entidade familiar que se firmou a competência das Varas de Família para conhecer e julgar as causas relativas à união estável através do art. 9º, da lei nº 9278/96.

Foi nesse viés discriminatório que se posicionou o CC de 1916 ao reconhecer apenas o casamento como entidade familiar. O casamento era a única forma de se constituir uma "família legítima", ainda que outras formas familiares fossem caracterizadas pelo afeto. Daí a distinção e tratamento desigual garantido pelo Direito da época entre "filhos legítimos" e "filhos ilegítimos" (nascidos de pessoas não casadas entre si).

Não pode se aceitar que em pleno século XXI o Direito de Família se feche para a realidade da vida moderna, não abarcando ou protegendo situações da nossa realidade, consagrando regras inclusive inconstitucionais.

Ademais, a liberdade do cidadão representado pelos direitos fundamentais constitui seu núcleo mínimo de proteção, precisando ser reconhecida a aplicabilidade dessa liberdade na constituição das entidades familiares.

O texto constitucional atribui especial proteção à família, independentemente de sua forma de constituição. Mas a proteção não se dá com o fim nela mesma, mas sim porque busca-se garantir a dignidade de seus membros (caráter instrumental da família). Daí que a norma infraconstitucional deve respeitar e garantir igual tratamento às famílias em geral, independentemente da forma como foi constituída. Qualquer tratamento discriminatório ferirá a proteção da pessoa humana, contrariando a intenção do constituinte originário que busca se adequar às novas tendências.

O que se busca tutelar é a vida em comum, independentemente da forma como se dê, pois se presume que qualquer família está fundada no afeto.

Onde há a mesma razão deve haver o mesmo direito, as realidades idênticas devem ser tratadas de maneira igual. Não pode o ordenamento jurídico ser incoerente e não reconhecer o amor e a solidariedade que permeiam as relações familiares. As convenções não se sobrepõem à realidade. Quando vemos uma família a consideramos como tal sem questionarmos se ela se constituiu de papel passado ou não. Até mesmo as que assim se constituíram, antes da formalidade, foi necessário ter havido a presença daqueles ingredientes comuns a todas elas, como a solidariedade, o amor e o respeito.

É um limitador das liberdades do indivíduo ele ter que se casar para adquirir mais direitos.

4.4.ANÁLISE DO ART. 226, § 3º DA CF E O PRINCÍPIO DO NÃO RETROCESSO

No art. 226, § 3º da CF alguns argumentam no sentido de que o legislador quis estabelecer níveis de importância entre as famílias ao dizer que a lei facilitará a conversão da união estável em casamento. Contudo, esse raciocínio é forçoso para justificar um pensamento preconceituoso, pois se assim realmente fosse, o constituinte estaria sendo contraditório com seus princípios constitucionais fundamentais da igualdade entre as pessoas, liberdade e dignidade da pessoa humana (arts. 5º caput e 1º, III da CF) [06].

Já que o Estado zela pela construção de uma sociedade livre, justa e solidária, deve promover a igualdade social, vedada qualquer forma de discriminação, não podendo privilegiar uma forma de constituição de família em detrimento de outra, sob pena de cercear a liberdade individual, afrontando os princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana.

Ao facilitar a conversão da união estável em casamento, o constituinte almejou tão somente facilitar a conversão através de menores solenidades, tudo em consonância com o viés que tem adotado de diminuição do formalismo e prevalência das relações fáticas e/ou da autonomia da vontade.

Note-se que casamento e união estável são formas diferentes de constituir e provar a existência da família, mas que devem receber os mesmos efeitos protetivos em relação aos seus componentes, tanto pelos motivos até aqui expostos como por uma realidade brasileira na qual mais da metade da população vive em regime de união estável [07], inclusive pelas despesas financeiras que um casamento exige [08].

Exatamente por isso é de se notar a inconstitucionalidade da norma legal que dispõe sobre o direito sucessório do companheiro (art.1790 do CC), pois defere a este proteção inferior aos direitos garantidos ao cônjuge. Negam-se, assim, os princípios da solidariedade, igualdade, liberdade e dignidade da pessoa humana, uma vez que o companheiro é preterido por uma questão meramente formal, reveladora de uma origem preconceituosa atinente à moral e à religião, e não jurídica propriamente dita.

Júnior (apud Farias e Rosenvald, 2008), eminente civilista do Amazonas também defende que o tratamento sucessório dispensado ao companheiro

(...) é ofensivo ao Texto Constitucional, porque agride a igualdade da proteção que a lei deve deferir a todas as espécies de família, uma vez que não aceitamos a alegada superioridade de qualquer das espécies familiares sobre as demais. E, mais adiante é direto ao asseverar que o art.1790 do CC "deve ser destinado à lata do lixo, sendo declarado inconstitucional e, a partir daí, simplesmente ignorado, a não ser para fins de estudo histórico da evolução do Direito.

Tendo o mesmo posicionamento, encontra-se Madaleno (apud , Silva, p. 22), ao dizer que "o art. 1790 é ofensivo ao texto constitucional, porque agride a igualdade de proteção que a lei deve deferir a todas espécies de família , uma vez que não aceitamos a alegada superioridade de qualquer das espécies familiares sobre as demais."

Em sede jurisprudencial, nota-se uma tendência no sentido do posicionamento aqui defendido. Veja-se ilustrativamente:

Sucessão – União estável – Inconstitucionalidade do art. 1790 do CC diante o tratamento paritário entre a união estável e o casamento por força do art 226 da CF. (...) as regras sucessórias previstas para a sucessão entre companheiros no novo Código Civil são inconstitucionais. Na medida em que a nova lei substantiva rebaixou o status hereditário do companheiro sobrevivente em relação ao cônjuge supérstite, violou os princípios fundamentais da igualdade e da dignidade. (TJ/RS, Ac. Unân. 8ª Câm. Cív., AgInstr.70009524612, rel. Des. Rui Portanova, j.18.11.04).

Não sendo razoável a legislação infraconstitucional distinguir o que não foi diferenciado pelo constituinte, o mesmo raciocínio deve ser aplicado a qualquer dispositivo legal que trate a união estável de forma distinta em relação ao casamento, ou seja, deve ser expurgado pela incompatibilidade com os valores apregoados pela Carta Magna – que possuem induvidosa força normativa [09].

Contudo, o CC 2002, contrariando o princípio do não retrocesso, passou a tratar de forma pior a sucessão do companheiro se comparada a que as leis 8971/94 e 9278/96 lhe garantiam, bem como se comparada à do cônjuge. Quanto ao princípio, convém lembrar a lição de Ingo Wolfgang Sarlet (Tartuce apud Silva, 2009, p.32) que, ao fazer referência à doutrina portuguesa de Vital Moreira e José Joaquim Gomes Canotilho, afirma que a proibição do retrocesso

(...) pode ser considerada uma das conseqüências da perspectiva jurídico-subjetiva dos direitos fundamentais sociais na sua dimensão prestacional, que, nesse contexto, assume condição de verdadeiros direitos defesa contra medidas de cunho retrocessivo, que tenham por objeto a sua destruição ou redução.

4.5.EFEITOS PATRIMONIAIS DA UNIÃO ESTÁVEL

Não há dúvida que de qualquer entidade familiar, como reflexo dasrelações pessoais, decorrem variados efeitos jurídicos que repercutem tanto no campo pessoal como no econômico, independentemente da vontade das partes. Isso se dá porque a vida em comum exige esforço conjunto no tocante às despesas da residência comum, à mantença da própria família e ao impulso natural de adquirir patrimônio que assegure melhores condições econômicas para a união que se formou.

Destarte, a união estável dá origem a um conjunto de efeitos de ordem pessoal que acabam por refletir na esfera patrimonial, necessitando da regulamentação do Direito. Nesse sentido dispõe o artigo 1724 do CC: "As relações pessoais entre os companheiros obedecerão aos deveres de lealdade, respeito e assistência, e de guarda, sustento e educação dos filhos."

No âmbito patrimonial, a união estável assemelha-se ao casamento em muitos aspectos, pois se sujeita no que couber, ao regime da comunhão parcial de bens, conforme disposto no art. 1725 do CC. Por conseguinte, os bens adquiridos onerosamente durante a convivência são de propriedade comum, exceto os adquiridos com o produto da venda de bens particulares. Além disso, as partes podem estipular a incomunicabilidade dos bens por contrato escrito.

Os efeitos patrimoniais da união estável dependerão se a sua dissolução ocorreu por ato inter vivos ou causa mortis. Se por ato inter vivos, decorrerá o direito à meação e aos alimentos. Se por ato causa mortis, o sobrevivente terá direito além de sua meação, o direito à herança (inclusive podendo pleitear a inventariança: art. 1797, I do CC _ "até o compromisso do inventariante, a administração da herança caberá, sucessivamente ao cônjuge ou companheiro, se com o outro convivia ao tempo da abertura da sucessão"), à habitação e aos eventuais benefícios previdenciários, tudo isso sem prejuízo da sub-rogação no contrato de locação de imóvel urbano (Lei 8245/91: Lei de locação de imóveis urbanos, em seu artigo 11 disciplina a hipótese de que ocorrendo o óbito do locatário na constância da relação locatícia, o seu cônjuge ou companheiro, assim como os dependentes, sobreviventes ficarão sub-rogados automaticamente nos direitos e obrigações concernentes ao contrato, desde que residentes no imóvel. E em seu artigo 47, III, pela mesma lógica, garante, nos contratos de locação por prazo indeterminado, o direito de retomada do imóvel para uso próprio do locador ou de seu cônjuge – estendendo-se também ao companheiro – ascendente ou descendente, que não disponha de imóvel residencial próprio.)

4.5.1.O regime de bens e o direito à meação

Como dito no tópico anterior, o sistema jurídico criou uma verdadeira presunção de colaboração na aquisição do patrimônio entre os conviventes (entenda-se este termo como sinônimo de qualquer daqueles que convivem numa entidade familiar, independentemente do título que esta receba) ao subentender o esforço recíproco entre eles. E foi nesse sentido que o legislador previu a meação como um direito dos companheiros em relação aos bens adquiridos por esforço comum.

Art. 1725 do CC: "na união estável, salvo contrato escrito entre os companheiros, aplica-se às relações patrimoniais, no que couber, o regime de comunhão parcial de bens."

Nota-se que o dispositivo legal regulamentou as relações econômicas na união estável tomando como modelo os efeitos patrimoniais do casamento, aplicando o regime de comunhão parcial de bens. Por isso, caracterizada a união estável, só não haverá direito em relação aos bens adquiridos antes da convivência e aos provenientes de sucessão hereditária e doação, pois em relação aos bens adquiridos na constância da convivência há presunção absoluta, pela lei, de que houve colaboração recíproca na aquisição.

A presunção absoluta decorre das regras da comunhão parcial de bens em relação ao casamento (de onde as mesmas foram retiradas para a união estável), pois os bens adquiridos onerosamente neste são partilhados entre os cônjuges em presunção absoluta, não se permitindo a qualquer deles demonstrar que o outro não colaborou para a referida aquisição.

Neste viés o Enunciado 115 da Jornada de Direito Civil do CJF (apud Farias e Rosenvald, 2008): "há presunção de comunhão de aquestos na constância da união extramatrimonial mantida entre os companheiros, sendo desnecessária a prova do esforço comum para se verificar a comunhão dos bens".

É importante detalhar que a colaboração não precisa ser material, decorrendo da simples convivência, do clima propício gerado pelo ambiente familiar para aquisição patrimonial.

Quando há contrato de união estável, as relações patrimoniais são regulamentadas conforme o que estiver nele estipulado, afastando, assim, o regime da comunhão parcial determinado por lei (art. 1725 do CC). Embora seja expressão do princípio da liberdade contratual, este pacto é limitado por cláusulas contratuais que afastem direitos e garantias estabelecidos em lei em favor de companheiros.

Este contrato, assim como a natureza da união estável, não requer qualquer solenidade. Apenas exige-se a sua celebração por escrito, podendo ser por escritura pública ou particular, não submetido ao registro público. O pacto convivencial é um ato bilateral, podendo ser celebrado a qualquer tempo, antes ou durante a convivência. Pode ser revogado a qualquer tempo, desde que com a anuência de ambas as partes.

O contrato não basta, por si só, para caracterizar a união estável. Os elementos já ditos é que são essenciais para a caracterização da mesma. O contrato estipula o regime de bens a partir de sua confecção em diante, gerando efeitos ex nunc. Antes de sua confecção o que vale é a regra geral: comunhão parcial de bens (art. 1725 do CC.)

Sobre a autora
Karen Hellen Esteves de Avelar

Bacharel em Direito pela UFJF, Delegada de Polícia e pós-graduada em Direito Público Material pela Universidade Gama Filho/RJ.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AVELAR, Karen Hellen Esteves. A análise sistemática da sucessão do cônjuge e do companheiro na perspectiva civil-constitucional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2941, 21 jul. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19594. Acesso em: 22 nov. 2024.

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