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A análise sistemática da sucessão do cônjuge e do companheiro na perspectiva civil-constitucional

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Agenda 21/07/2011 às 15:43

Aborda-se a questão da inconstitucionalidade do tratamento sucessório dado ao companheiro se comparado aquele dado ao cônjuge.

"O conhecimento, no fundo, não faz parte da natureza humana. É a luta, o combate, o resultado do combate e, consequentemente, o risco e o acaso que vão dar lugar ao conhecimento."

FOUCAULT


RESUMO

O presente trabalho aborda a questão da inconstitucionalidade do tratamento sucessório dado ao companheiro se comparado aquele dado ao cônjuge. Tomando por base o processo de constitucionalização do Direito Civil e, por conseguinte, do Direito de Família e das Sucessões, é traçado um panorama histórico da legislação pertinente à união estável, perpassando a evolução dos valores sociais e constitucionais que culminaram na promulgação da Constituição de 1988 e na edição das Leis nº 8971/94 e 9278/96. Em seguida, é analisado o regime sucessório do cônjuge no Código Civil de 2002 para ser comparado ao do companheiro. Constatam-se a desigualdade de tratamento, os equívocos e os retrocessos. Em seguida são analisados os Projetos de Lei que tramitam no Congresso Nacional, objetivando a alteração do artigo 1790 do CC. Por fim, propõe-se um Projeto de Lei que supere as críticas daqueles.

PALAVRAS-CHAVE: União estável. Concorrência Sucessória. Inconstitucionalidade. Proposta de reforma do artigo 1790 do CC.


ABSTRACT

The present work approaches the issue of unconstitutionality of the successory treatment devoted to the friend if compared to the one devoted to the spouse. Having the constitutionalization of the Civil Right as the basis and therefore family and succession rights, a historical overview of the applied legislation to the stable union is presented going through the social and constitutional values which culminated in the acting of the 1988 Constitution and in the acting of the laws numbers 8971/94 and 9278/96. Next, it is analyzed the successory process of the spouse in the Civil Code of 2002 in order to be compared to the friend. It was verified the different treatments, the mistakes and drawbacks. Then it is analyzed the Law Projects which are under analysis in the National Congress, aiming at the change of the article 1790 of the CC. Finally, it is suggested a Law Project that overcomes the criticism addressed to the previous ones.

KEY-WORDS: Stable Union. Successory Concurrence. Unconstitutionality. Proposal for a change in article 1790 of the CC.

SUMÁRIO: INTRODUÇÃO . 1 A FAMÍLIA ENQUANTO CONSTRUÇÃO SOCIAL . 2 A GARANTIA CONSTITUCIONAL DOS DIREITOS DE FAMÍLIA . 2.1 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS . 3 A FAMÍLIA NA CF DE 88 E A CLÁUSULA GERAL DE INCLUSÃO . 3.1 NÃO TAXATIVIDADE DO ROL CONSTITUCIONAL . 3.2 ELEMENTOS CARACTERIZADORES DA FAMÍLIA . 3.3 A FUNÇÃO SOCIAL DA FAMÍLIA . 4 UNIÃO ESTÁVEL . 4.1 BRECHAS DA LEI E TRATAMENTOS DESIGUAIS PARA SITUAÇÕES IGUAIS . 4.2 APONTAMENTOS DE UMA ADEQUADA COMPREENSÃO DA UNIÃO ESTÁVEL 4.3 HISTÓRICO DAS LEGISLAÇÕES . 4.4 ANÁLISE DO ART. 226, § 3º DA CF E O PRINCÍPIO DO NÃO RETROCESSO . 4.5 EFEITOS PATRIMONIAIS DA UNIÃO ESTÁVEL . 4.5.1.O regime de bens e o direito à meação . 5 DA SUCESSÃO DO CÔNJUGE . 5.1CONSIDERAÇÕES PRÉVIAS . 5.2 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA SUCESSÃO DO CÔNJUGE. 5.3 NORMATIZAÇÃO NO CC DE 2002 . 5.3.1 Partilha . 5.4 DIREITO REAL DE HABITAÇÃO E USUFRUTO VIDUAL . 5.5 ARTIGO 1830 DO CC: ANÁLISES E CRÍTICAS . 6 DA SUCESSÃO DO COMPANHEIRO . 6.1 LEIS Nº 8971/94 E 9278/96 . 6.2 CC DE 2002: UMA ANÁLISE COMPARATIVA COM O CÔNJUGE . 6.3 CONSTATAÇÕES ACERCA DA ANÁLISE COMPARATIVA DAS SUCESSÕES DO CÔNJUGE E DO COMPANHEIRO . 7 DA BUSCA PELO TRATAMENTO ISONÔMICO PERANTE O CASO CONCRETO .8 ENQUADRAMENTO DO COMPANHEIRO COMO HERDEIRO NECESSÁRIO . 9 PROJETOS DE LEI . 10 PROPOSTA DE REFORMA . CONCLUSÃO . REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


INTRODUÇÃO

A experiência constitucional brasileira reflete a extraordinária transformação ocorrida na tutela jurídica da família ao longo do séc. XX. Do ponto de vista formal, passa-se de acanhada menção ao casamento civil na Constituição de 1891 à ampla determinação dos princípios fundamentais do Direito de Família na Constituição atual. Do ponto de vista substancial, parte-se da previsão na Constituição de 1934, de um modelo único de família – fundado no casamento indissolúvel – à pluralidade de entidades familiares.

A proteção jurídica que era dispensada com exclusividade à "forma" familiar (solenidade do casamento) foi substituída, em conseqüência, pela tutela jurídica atualmente atribuída ao "conteúdo" (substância): o que se deseja ressaltar é que a relação estará protegida não em decorrência de possuir esta ou aquela estrutura, mesmo quando prevista constitucionalmente, mas em virtude da função que desempenha – isto é, como espaço de troca de afetos, assistência moral e material, auxílio mútuo, companheirismo ou convivência entre pessoas humanas.

A proteção à família consubstancia-se na proteção à relação familiar, ao vínculo solidário-afetivo estabelecido entre os membros, este elo identifica a ratio da família constituída pelo casamento ou pela união estável. De fato, a família se apresenta, hoje, como relacional e individualista.

É relacional na medida em que se respeita e vivencia a lógica do grupo. É também democrática, e democracia "significa igualdade, social e civil, e a rejeição de qualquer discriminação e preconceito". Inclui-se aí as noções de liberdade, pluralismo, integração e solidariedade.

A família constitucional tem no casamento e na união estável a mesma ratio de construção conjunta do grupo, portanto, naquilo em que se identificam, exige-se o mesmo tratamento. Do contrário estar-se-á a tratar com preconceito e discriminação, conteúdos intrínsecos da família, e, portanto, integrantes de todo o modelo de família, como o direito sucessório dos membros que integram o núcleo familiar.

Neste aspecto, não há interpretação possível a qualificar a união estável como hierarquicamente inferior. O fato de o texto constitucional ter expressado no art. 226, § 3º acerca da facilitação, em norma regulamentadora, da conversão da união estável em casamento, não lhe retira a igualdade em relação a este, enquanto entidade familiar. Diferencia-se em situações específicas apenas, mas jamais quanto a sua natureza de comunidade solidário-afetiva com fins de permanência.

O direito sucessório, direito fundamental, previsto constitucionalmente, concilia a liberdade individual, garantida pela sucessão testamentária, e a solidariedade social, resguardada através da sucessão legítima.

Em coerência ao sistema jurídico, justifica-se a necessária readequação da sucessão legítima do companheiro, prevista no Código Civil de 2002, igualando-o em direitos, pela identidade familiar, ao cônjuge. Busca-se a isonomia, posto que essa sucessão seja deferida aos membros da família em virtude da presunção na contribuição, formação do patrimônio familiar, em relações mútuas que se estabeleceram com o falecido.

Diante da valorização de cada membro da família, individualmente considerado, relevante para o conteúdo sucessório considerar aqueles que devem ocupar patamar hierárquico diferenciado na ordem de sucessão, pela proximidade afetiva, pelos direitos-deveres de uns para com os outros, pela construção de vida e patrimônio em comum, objetivando-se equilíbrio no quantum patrimonial designado a cada integrante. Há que se atentar para a relação que se forma na família e se considerar os membros individualmente, numa lógica de equilíbrio.

Ao se proceder à propositura de projeto de lei no tópico 10 (Proposta de reforma), busca-se um equilíbrio da divisão patrimonial. Através da análise da figura do sucessor, individualmente considerada, para além do viés patrimonial, atenta-se para o regime de bens. No que diz respeito à figura do companheiro, garante-se-lhe um patamar hierárquico diferenciado, consoante sua importância na vida do de cujus.

Neste sentido, o projeto revoga o artigo 1790 do CC e altera os artigos 1829, 1831, 1832, 1.836, 1.837, 1.838, 1.839, 1.845 e 2.003 do CC, para que tenham uma maior clareza e conste em suas redações, de forma expressa, a extensão de seus comandos para os companheiros. Ao ser proposto um tratamento único para sucessão do cônjuge e do companheiro, elimina-se o problema da inconstitucionalidade pela falta de isonomia.

Espera-se que esse projeto seja o propulsor de profundas reflexões, tomando-se por base a Constituição Federal de 1988, de maneira que a tutela sucessória do cônjuge e do companheiro se revista em um mecanismo potencial de libertação das necessidades, como meio de concretização de uma vida digna.


1.A FAMÍLIA ENQUANTO CONSTRUÇÃO SOCIAL

O ser humano nasce inserto no seio familiar – estrutura básica social – de onde se inicia a moldagem de suas potencialidades com o propósito da convivência em sociedade e da busca da realização pessoal. No âmbito familiar vão suceder os fatos elementares da vida do ser humano, desde o nascimento até a morte. É nesta ambientação que o homem se distingue dos demais animais, pela possibilidade de escolha de seus caminhos e orientações, formando grupos onde desenvolverá sua personalidade em busca da felicidade.

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O fenômeno familiar não é uma totalidade homogênea, mas um universo de relações diferenciadas, pretendendo atender às expectativas da própria sociedade e às necessidades do próprio homem em cada lugar e em cada época.

Com o mesmo pensar Bilac (apud Farias e Rosenvald, 2008) afirma que "a variabilidade histórica da instituição família desafia qualquer conceito geral".

Destarte, não há como fixar um modelo familiar uniforme, sendo necessário compreendê-lo conforme os movimentos que constituem as relações sociais ao longo do tempo. Seus elementos fundantes variam de acordo com os valores e ideais predominantes em cada momento histórico.

Tomando como marco o modelo patriarcal, hierarquizado e transpessoal da família, decorrente das influências da Revolução Francesa sobre o CC de 1916, temos que naquela época imperava o vínculo do casamento até sua dissolução pelo fato morte. Neste mesmo período da Revolução Industrial a família era unidade de produção, através da qual se formava o patrimônio a ser transmitido aos herdeiros num momento posterior, pouco importando os laços afetivos. Daí a impossibilidade de dissolução do vínculo, o que corresponderia à desagregação da própria sociedade.

Com o passar dos anos a sociedade avançou, passando a viger novos valores. O desenvolvimento científico atingiu limites nunca dantes imaginados, a exemplo da concepção artificial do ser humano. Nessa perspectiva, em que o elemento sexual pôde até ser deixado de lado, ganhou evidência a preocupação com a pessoa humana em detrimento do ter. A partir de então a função precípua da família passou a ser a realização das pessoas humanas que compõem seu núcleo, inclusive porque suas relações interpessoais e sociais no seio familiar passaram a se basear mais no afeto.

Os novos valores que inspiram a sociedade contemporânea rompem com a concepção tradicional de família. A sociedade moderna foi construindo um modelo de família descentralizado, democrático, igualitário e desmatrimonializado. O escopo principal da família passa a ser a solidariedade social e demais condições necessárias ao progresso e aperfeiçoamento humano, regido o núcleo essencial pelo afeto, como mola propulsora.

Na lição precisa de Tepedino (apud Farias e Rosenvald, 2008), a preocupação central do ordenamento é com

(...) a pessoa humana, o desenvolvimento de sua personalidade, o elemento finalístico da proteção estatal, para cuja realização devem convergir todas as normas de direito positivo, em particular aquelas que disciplinam o direito de família, regulando as relações mais íntimas e intensas do indivíduo no social.

A tese aqui defendida já está sendo utilizada em nossos tribunais, especialmente na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, em passagens como esta:

A Lei 8009/90 precisa ser interpretada consoante o sentido social do texto. Estabelece limitações à regra draconiana de o patrimônio do devedor responder por suas obrigações patrimoniais. Impenhorabilidade do bem de família. O incentivo à casa própria busca proteger as pessoas, garantindo-lhes o lugar para morar. Família, no contexto, significa instituição social de pessoas que se agrupam, normalmente por laços de casamento, união estável ou descendência. Não se olvidem os ascendentes. Seja o parentesco civil, ou natural. Compreende ainda a família substituta. Nessa linha, conservada a tecnologia da norma, o solteiro deve receber o mesmo tratamento. Também o celibatário é digno desta proteção. E mais. Também o viúvo, ainda que seus descendentes hajam constituído outras famílias, e como, normalmente acontece, passam a residir em outras casas. Data vênia, a lei 8009/90 não está dirigida a número de pessoas. Ao contrário – à pessoa. Solteira, casada, viúva, desquitada, divorciada, pouco importa. O sentido social da norma busca garantir um teto para cada pessoa. Só essa finalidade, ‘data vênia’ põe sobre a mesa a exata extensão da lei. Caso contrário, sacrificar-se-á a interpretação teleológica para prevalecer a insuficiente interpretação literal. (STJ, Ac. 6ª T. REsp. 182.223/SP, rel.Min. Luiz Vicente Cernicchiaro, j. 19.9.99, DJU 10.5.99)

Diante de personalidades multifacetadas, natural dos seres humanos, a família contemporânea apresenta-se sob diversas formas quantas forem as possibilidades de se relacionar, ou melhor, de expressar amor, afeto. Impõe-se traçar o novo eixo fundamental da família, não apenas consentâneo com a pós-modernidade, mas igualmente afinado com os ideais de coerência filosófica da vida humana.

O eixo fundamental da família moderna não é mais o modelo institucional, compreendido como núcleo econômico e reprodutivo (entidade de produção), mas sim o modelo sócio-afetivo, propiciando novos arranjos familiares.

A outra conclusão não pode se chegar à luz do texto constitucional, sendo fundamental compreender a possibilidade de que do afeto decorram efeitos jurídicos dos mais diversos possíveis.

Neste viés, o casamento deixa de ser ponto referencial necessário e a família (considerada em seu aspecto plural) torna-se meio para a promoção da pessoa humana e não uma finalidade em si mesma. A família é o refúgio das garantias fundamentais reconhecidas a cada um dos cidadãos. É a busca da dignidade humana, sobrepujando valores meramente patrimoniais.

A nova tábua axiológica, reflexo de uma democratização social e política, também reflete nas relações privadas, substituindo o ambiente familiar centralizador e patriarcal por um espaço aberto ao diálogo entre seus membros, concretizando os princípios da dignidade da pessoa humana, da solidariedade social e da isonomia substancial (arts. 1º e 3º da CF).

Assim, aquela família do CC de 1916, matrimonializada, patriarcal, hierarquizada, heteroparental, biológica, de caráter institucional, constituída com base na produção e na reprodução dá lugar à família da CF de 1988 e do CC de 2002, pluralizada, democrática, igualitária substancialmente, hetero ou homoparental, biológica ou sócio-afetiva, de caráter instrumental, constituída com base na relação sócio-afetiva.

O CC atual não determina um conceito único de família, utilizando-se de vários sentidos da expressão para designar as relações familiares. Considerando que o ordenamento infraconstitucional não define a família, é preciso lembrar a superioridade do conceito constitucional, decorrente do art. 226, que abraçou uma concepção múltipla e aberta de entidade familiar, permitindo a sua constituição pelas mais diferentes formas, todas elas merecedoras de igual proteção do Estado.

Assim, nenhuma concepção utilizada em sede legal, e em qualquer outra norma infraconstitucional, pode colidir com a opção ideológica inclusiva e aberta da Lei Fundamental de 1988. A família deixou de ser encarada sob a ótica patrimonialista e passou a ser meio de desenvolvimento e proteção da pessoa humana, não podendo ser utilizada com função restritiva _ subtrair direitos de seus componentes, violar a dignidade do homem, sua liberdade e sua forma peculiar de expressar o amor _ por apego a formalismos legais.

Pode-se dizer, parafraseando Soares (apud Farias e Rosenvald, 2008), que a família na contemporaneidade decorre da abertura do campo jurídico aos novos valores e fatos sociais, tais como a liberalização dos costumes, a flexibilização da moralidade sexual, a equiparação social de homens e mulheres e a perda da gradativa influência religiosa na organização familiar. Nela não são cabíveis mais dogmas absolutos e inquestionáveis, que durante muito tempo obstaculizaram o acompanhamento das novas concepções de mundo. Por isso faz-se mister interpretações e previsões jurídicas para temas inafastáveis como as uniões homoafetivas. Hoje a família é espaço aberto ao diálogo, voltado para o desenvolvimento espiritual e físico do ser humano e para uma convivência harmoniosa, pautada no amor.

Nota-se, portanto, que em decorrência do avanço da sociedade e com as novas conquistas e descobertas da humanidade, a família contemporânea é realidade viva, submetida a valores vigentes e não a idéias estáticas, presas a valores pertencentes a um passado distante, nem a suposições incertas de um futuro remoto. A família, portanto, caracteriza uma realidade presente e transcendente ao fenômeno exclusivamente biológico. Busca uma dimensão mais ampla, fundada no afeto, na ética, na realização pessoal de seus membros, na solidariedade recíproca e na dignidade de seus membros. É o alicerce fundamental para o alcance da felicidade.


2.A GARANTIA CONSTITUCIONAL DOS DIREITOS DE FAMÍLIA

Com a promulgação da CF de 88 deu-se início ao que os juristas entendem como a "constitucionalização do direito civil", que superou a separação entre os ramos do Direito Público e Direito Privado e, informou que toda a legislação infraconstitucional deve ser lida (ou melhor, relida) à luz dos preceitos determinados pela Carta Magna.

Enquanto fundamento de validade do ordenamento jurídico, o texto constitucional subordina todas as demais normas de tal modo que é possível notar uma necessária força normativa em sua estrutura, condicionando todo o tecido normativo infraconstitucional.

Com senso crítico, Barroso (2002) demonstra a efetividade de suas normas:

A Constituição, liberta da tutela indevida do regime militar, adquiriu força normativa e foi alçada, ainda que tardiamente, ao centro do sistema jurídico, fundamento e filtro de toda a legislação infraconstitucional. Sua supremacia, antes apenas formal, entrou na vida do país e das instituições.

Dessa supremacia normativa constitucional decorreu uma verdadeira reconstrução da dogmática jurídica, se fazendo necessária uma releitura dos conceitos e institutos jurídicos clássicos (como, o casamento e a filiação), uma elaboração e desenvolvimento de novas categorias jurídicas (como a união de pessoas do mesmo sexo como entidade familiar), uma interação maior entre os diversos ramos do conhecimento, possibilitando uma visão multidisciplinar do Direito.

O Direito Constitucional afastou-se da preocupação exclusiva com a organização política de Estado para se ocupar também das necessidades humanas reais ao disciplinar direitos individuais e sociais (nos arts. 226 e227, por exemplo, a Constituição disciplina a organização da família).

Assume a Carta Magna um verdadeiro papel reunificador do sistema, passando a demarcar os limites do Direito Civil, inclusive no que concerne à proteção dos núcleos familiares.

2.1.PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS

A idéia que se tem sobre princípios é que deles se extraem as verdades primeiras, constituindo as premissas fundamentais de um sistema que se desenvolve. Exatamente por isso revestem-se de grande relevância, pois são o substrato sobre o qual é construído todo o sistema jurídico. Eles conferem coerência e unidade ao sistema jurídico, impedindo que a esperada harmonia seja desmantelada. Isso porque os princípios não oferecem solução única, como as regras jurídicas, mas ao contrário, permitem uma adaptação do direito à evolução dos valores da sociedade, sem que, para isso, tenham que mudar ou revogar as normas jurídicas.

A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. Dependendo do escalão do princípio atingido tem-se a insurgência contra estrutura mestra do ordenamento, subversão de seus valores fundamentais.

O texto constitucional atual estabelece os princípios gerais interpretativos do sistema, possuindo induvidosa força normativa, superando a crença de que teriam apenas uma dimensão ética ou valorativa, desprovidos de eficácia e força jurídica. Desta forma, é reconhecido um caráter normativo aos princípios, sendo permitida sua aplicação direta e imediata. Disso resulta que a norma constitucional também vale como lei, dirigindo condutas, vinculando o tecido infraconstitucional, as decisões judiciais, as interpretações e a colmatação do direito.

Nesse sentido da força normativa dos princípios com caráter de regras jurídicas abertas foram de grande valia as contribuições de Dworkin (apud Farias e Rosenvald, 2009) e Alexy (apud Farias e Rosenvald, 2009) em sede alienígena e de Barroso (apud Farias e Rosenvald, 2009) em sede nacional, dentre outros.

É possível que os princípios sejam base para que o magistrado delibere diante de um caso concreto e que sejam influenciadores de regras jurídicas, conferindo-lhes novo conteúdo, devido suas proposições genéricas e abstratas.

Diante das idéias expostas é possível inferir que dada a sua generalidade e abstração os princípios inspiram uma interpretação pautada nas diretrizes constitucionais, vinculando todo o sistema jurídico infraconstitucional, inclusive no que tange ao Direito de Família, conferindo nova essência às regras positivadas nos mais diferentes diplomas normativos.

Princípios norteadores das relações familiares (garantidores de igual tratamento às famílias, independentemente do nome que recebam):

Princípio da dignidade da pessoa humana: segundo Kant a moralidade resume-se no que ele denominou de imperativo categórico, que seria a exigência de o ser humano ser visto como um fim em si mesmo. Assim as normas decorrentes da atividade legisladora precisam ter como finalidade o homem. O imperativo categórico orienta-se pelo valor básico da dignidade da pessoa humana. Ela tornou-se o maior princípio fundante do Estado Democrático de Direito brasileiro, sendo firmado já no primeiro artigo da Constituição Federal de 1988.

Isto vem a significar uma completa transformação do Direito Civil, que não encontra mais seu fundamento no individualismo, mas na proteção da pessoa humana. De um modo geral, pode se dizer que ao ser elevada como fundamento da ordem jurídica, a dignidade da pessoa humana provocou a despatrimonialização e a personalização dos institutos, de modo a colocar a pessoa humana no centro protetor do direito.

Como afirma Dias (2009, p. 59-60) "a dignidade da pessoa humana encontra na família o solo apropriado para florescer. A ordem constitucional dá-lhe especial proteção independentemente de sua origem".

É possível afirmar, portanto, que a dignidade da pessoa humana desdobra-se em quatro postulados, quais sejam, a um, o sujeito reconhece a existência dos outros como sujeitos iguais a ele; a dois, merecedores do mesmo respeito à integridade psicofísica de que é titular; a três, é dotado de vontade livre, de autodeterminação e; a quatro, é parte do grupo social, em relação ao qual tem garantia de não vir a ser marginalizado.

Corolários desta elaboração são os princípios jurídicos da igualdade, da integridade psicofísica, da liberdade e da solidariedade. De fato, quando se reconhece a existência de outros iguais, daí emana o princípio da igualdade; se estes iguais merecem idêntico respeito à sua integridade psicofísica, é preciso construir um princípio que proteja tal integridade; sendo a pessoa dotada de vontade livre, é preciso garantir, também juridicamente, esta liberdade; enfim, fazendo ela, necessariamente, parte do grupo social, disso decorre o princípio da solidariedade social.

Sendo assim, diante de situações jurídicas conflitantes e amparadas por cada um desses princípios, a medida de ponderação determina-se em favor da dignidade da pessoa humana, que não pode ser relativizada, estimada com relação aos demais.

No âmbito da família a dignidade da pessoa humana se apresenta como o princípio ético jurídico a dar fundamento às estruturas familiares, respeitando-se a autonomia e a solidariedade de cada indivíduo membro da família.

Princípio da Liberdade: juntamente com a igualdade, a liberdade foi um dos primeiros princípios reconhecidos como direitos humanos fundamentais, e integrou a primeira geração de direitos a garantir o respeito à dignidade da pessoa humana.

O princípio da liberdade consubstancia-se hoje na possibilidade de poder realizar, sem qualquer interferência, as próprias escolhas e projetos de vida, sob pena de se incorrer numa tutela paternalista, característica de sistemas não democráticos.

Paradoxalmente, diante da análise do papel do Direito _ que tem como finalidade própria assegurar a liberdade _ pode-se depreender a necessidade de coordenação, organização e limitação da própria liberdade para garantir a liberdade individual.

Conforme Dias (2009), "só existe liberdade se houver, em igual proporção e concomitância, igualdade. Inexistindo o pressuposto da igualdade, haverá dominação e sujeição, não liberdade."

Portanto, o direito de liberdade da pessoa existe para ser exercido no contexto social, principalmente no âmbito familiar, no qual ocorrem as interações entre as pessoas, guardando relação com os demais princípios, marcado pelo dever de solidariedade pessoal.

Princípio da igualdade: "Todos são iguais perante a lei", assim prevê o art. 5º, caput da CF. Depreende-se que a dimensão deste princípio é a generalização, significando que todas as pessoas estão equiparadas diante do Estado, merecendo tratamento isonômico no âmbito social. Confunde-se com a isonomia formal, no sentido de que a lei e sua aplicação tratam a todos igualmente, sem levar em conta distinções de grupos.

No entanto, a compreensão do princípio da igualdade previsto constitucionalmente não deve ser tão estreita. A Constituição de 1988 nos informa, no capítulo referente aos direitos individuais, que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza (art. 5º caput). Este princípio não pode ser reconhecido apenas no seu sentido formal e encontra reforço em muitas outras normas que buscam a igualização dos desiguais pela outorga de direitos sociais substanciais. (Exemplo de tratamento desigual entre os desiguais consta no artigo 7º, XX da CF. Por ter sido muito discriminada, inclusive no mercado de trabalho, o legislador resolveu proteger este em relação à mulher, garantindo, através de um tratamento desigual, uma igualdade substancial com os homens.).

Sob o enfoque do Direito de Família, Dias (2009) pensa que "a relação de igualdade nas relações familiares deve ser pautada não pela pura e simples igualdade entre iguais, mas pela solidariedade entre seus membros, caracterizada da mesma forma pelo afeto e amor".

É principalmente com base neste princípio que se pauta esta monografia. Assim como a constituição equiparou em direitos todos os filhos, não existindo mais a classificação em espúrios, incestuosos, naturais, adulterinos e legitimados (art. 227§ 6º da CF c/c 1596 do CC), o fez também em relação às diferentes formas de constituição de família. O problema reside na legislação infraconstitucional, mais especificamente, no CC, já que manteve o tratamento igualitário entre os filhos, independentemente do tipo de relação pela qual foram concebidos, mas não o manteve quanto ao direito sucessório na união estável se comparado ao casamento.

Princípio da Solidariedade: atualmente, a acepção do vocábulo solidariedade, mais consentânea com o Estado Democrático de Direito, se apóia num viés sociológico. O indivíduo, como tal, não existe, mas sim coexiste, juntamente com os demais. Sua relação com os semelhantes passou a ser considerada como essencial à sua existência e, sendo assim, não pôde ele mais ser estimado como uma pequena "totalidade" auto-suficiente e auto-subsistente.

Tal princípio encontra terreno fértil no Direito de Família, tendo em vista que os interesses dos membros se sobrepuseram ao interesse da instituição, deixando de lado rígidas hierarquizações, baseadas na preservação do patrimônio, a favor da realização pessoal dos indivíduos que compõem a família.

A solidariedade pode ser vista tanto no plano fático, uma vez que no ambiente familiar compartilham-se afetos e responsabilidades, como no plano jurídico, na medida em que os deveres de cada um para com os outros impuseram a definição de novos direitos e deveres jurídicos. Assim é, por exemplo, a obrigação alimentar recíproca entre os membros da família, garantindo-se condições mínimas de subsistência do ser humano. Desta forma, na análise de terceiros envolvidos, pondera-se sobre a disponibilidade ou indisponibilidade do direito protegido, ora pendendo para a liberdade, ora para a solidariedade.

Na medida em que o homem é um ser essencialmente social, que está em constante interação com os demais é preciso que todos tenham a consciência da dignidade do outro. Nesta perspectiva, a construção de uma sociedade solidária, que busque erradicar a pobreza e a marginalização e a reduzir as desigualdades sociais e regionais, bem como promover o bem de todos, sem discriminações (CF/88, art. 3º, III e IV), preconiza não que sintamos algo de bom pelo outro, mas que nos comportemos como se sentíssemos. Tem-se, portanto, o que podemos chamar de solidariedade objetiva, ou, em outras palavras, dever de solidariedade.

A sucessão hereditária no âmbito familiar é instrumento de concretização do princípio da solidariedade constitucional, principalmente as regras da sucessão legítima necessária, pois estabelecem uma possibilidade de distribuição de valores materiais entre os familiares e, dessa forma, um mecanismo em potencial de libertação das necessidades, como meio de concretização de uma vida digna.

Ao contrário do que ocorre, para que a solidariedade constitucional tenha ampla realização no âmbito do Direito Sucessório, é preciso que as regras da sucessão legal observem a pessoa do sucessor, em suas variadas e diversas necessidades, interesses, exigências, qualidades individuais, condições econômicas e posições sociais, não havendo discriminação quanto à entidade familiar a qual pertence o chamado à sucessão.

Princípio da afetividade: a CF abriga princípios implícitos que através de sua interpretação sistemática conduz ao reconhecimento dos mesmos. A Lei Maior, assim como o CC, não utilizam da palavra "afeto", embora, em alguns dispositivos, seja possível entrever esse elemento caracterizador de situação merecedora de tutela. Exemplo claro disso se deu no momento em que a Constituição admitiu outras formas de união, constituídas sem o selo do casamento, como tipos de família juridicamente tuteladas, prova de que abdicou de valores que justificavam a norma de exclusão, passando a privilegiar o fundamento comum a todas as entidades familiares, qual seja, a afetividade.

Sobre a autora
Karen Hellen Esteves de Avelar

Bacharel em Direito pela UFJF, Delegada de Polícia e pós-graduada em Direito Público Material pela Universidade Gama Filho/RJ.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AVELAR, Karen Hellen Esteves. A análise sistemática da sucessão do cônjuge e do companheiro na perspectiva civil-constitucional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2941, 21 jul. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19594. Acesso em: 23 dez. 2024.

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