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O Tribunal Penal Internacional e a Constituição Federal de 1988

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Agenda 21/07/2011 às 17:47

4. QUESTÕES APARENTEMENTE CONTROVERTIDAS ENTRE O ESTATUTO DE ROMA E A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1.988.

O presente capítulo demonstrará que eventuais incompatibilidades do Estatuto de Roma com a CF/88 são apenas superficiais e que, numa análise mais fria e científica, verifica-se que são complementares e harmonizam-se de maneira integral.

As questões que geraram controvérsia e para fixar os pontos a serem analisados neste momento do presente trabalho analisar-se-ão os seguintes aspectos: a entrega de brasileiros natos ao TPI, a pena de prisão perpétua e a impossibilidade de adoção de reservas no tratado, as imunidades por foro de prerrogativa e por função, a ofensa à coisa julgada, a impossibilidade de homologação da sentença pelo Superior Tribunal de Justiça e, por derradeiro, a imprescritibilidade dos crimes da competência do TPI.

4.1. ENTREGA E EXTRADIÇÃO

Inicialmente, para a devida compreensão do tema aqui tratado, deve-se conceituar a extradição que segundo o STF "é o processo que pede ao Brasil para entregar um indivíduo a outro Estado (país), para que lá seja processado e julgado por crime que tenha cometido [48]", assim sendo a extradição é a entrega de um estrangeiro ou de um naturalizado por um Estado a outro Estado.

O Artigo 5º, LI da Constituição Federal de 1.988 veda a extradição ao nacional, com a ressalva do naturalizado em dois casos específicos e o inciso LII do mesmo artigo proíbe a extradição do estrangeiro por crime político ou de opinião [49].

Por sua vez, a entrega é a capitulação de um acusado ao TPI para julgamento ou cumprimento de pena. Logo, verifica-se que há uma latente diferença de sujeitos. A extradição é entre um Estado e outro Estado; já a entrega é entre um Estado e uma Organização (TPI), sendo assim, pode-se entregar um brasileiro nato ao Tribunal Penal Internacional.

O próprio Estatuto de Roma, Decreto nº 4.388/02, em seu artigo 120, visando mitigar dúvidas e eventuais conflitos com as constituições atuais, definiu a extradição e a entrega da seguinte forma:

Artigo 102. Termos Usados Para os fins do presente Estatuto:

a) Por "entrega", entende-se a entrega de uma pessoa por um Estado ao Tribunal nos termos do presente Estatuto.

b) Por "extradição", entende-se a entrega de uma pessoa por um Estado a outro Estado conforme previsto em um tratado, em uma convenção ou no direito interno.

O professor Carlos Japiassú, citando Tarciso Dal Maso Jardim [50], explicita a diferença substancial entre os dois institutos, a saber:

Não se trata do antigo instituto da extradição, que se reporta a entrega de uma pessoa, submetida à sentença penal (provisória ou definitiva) de uma jurisdição soberana a outra. Trata-se da entrega sui generis, em que um Estado transfere determinada pessoa a uma jurisdição penal internacional que ajudou a construir. A Constituição brasileira certamente não se refere a esse caso especial por impossibilidade de lógica e de vaticínio.

Ademais, com o princípio da complementaridade temos um fator único, vez que, ao ratificar o tratado o Brasil reconheceu a jurisdição do TPI e ainda a tem como uma extensão da jurisdição brasileira. Para dar maior embasamento a esta teoria, temos o § 4º do Artigo 5º da CF/88 o qual reconhece e submete o país à jurisdição do TPI, corroborando a tese de que ela é uma extensão da competência jurisdicional brasileira.

Como exposto não há qualquer confusão entre a extradição e a entrega visto que são institutos distintos e com finalidades próprias. Enquanto o primeiro visa o cumprimento de uma pena, expedida por um Estado soberano com uma jurisdição a outro Estado, o segundo visa o julgamento e/ou cumprimento da pena por um crime internacional por uma jurisdição complementar ao Estado que está entregando, demonstrando o seu caráter singular em relação aquele. E ainda, deve-se analisar o fato de a jurisdição do TPI ser complementar à jurisdição brasileira, formando uma ramificação desta, formando-se um embrião de uma justiça internacional eficaz.

4.2. PENA DE PRISÃO PERPÉTUA

Há um choque de direitos humanos no presente caso, no entanto um claramente se sobrepõe ao outro. O primeiro é o da prisão perpétua, que, de acordo com a CF/88 seria uma violação aos direitos humanos do preso no âmbito interno. O segundo é o direito da humanidade de ser defendida de agressões que atinjam à coletividade internacional e que tenham um alcance muito maior do que o interesse individual do acusado/condenado. Nesse caso o segundo se sobrepõe, uma vez que o próprio TPI foi criado para proteger os direitos humanos, logo não há que se falar na violação destes por aplicação de pena perpétua ao acusado que ignorou os direitos dos seus semelhantes.

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Esse ponto deve ser analisado cuidadosamente, uma vez que superficialmente, a previsão da pena de prisão perpétua no Estatuto de Roma pode gerar uma virtual incompatibilidade com a Carta Magna, uma vez que a CF/88 em seu Artigo 5º, XLVII, "b", veda expressamente as penas de caráter perpétuo. No entanto, em caso de guerra declarada autoriza a pena de morte. Como se abstrai facilmente pela leitura do texto constitucional e pela lógica da ordem internacional, pautada na soberania dos Estados, essa vedação aplica-se tão somente ao âmbito interno.

Com efeito, não pode o Brasil querer impor a sua vedação constitucional aos outros países e o próprio STF já autorizou a extradição de indivíduos para países que autorizam a pena perpétua sem exigir a comutação da pena. Como exemplo tem-se o processo de extradição nº 426 [51], com data de julgamento em 4 de setembro de 1985, cuja ementa segue abaixo:

EXTRADIÇÃO. EXTRADITANDO FORAGIDO. PRISÃO PERPETUA. DEFERIMENTO. 1. PROCESSO QUE REUNE AS CONDIÇÕES NECESSARIAS A ENTREGA DO EXTRADITANDO. 2. ENTENDE O TRIBUNAL, POR SUA MAIORIA, IMPROCEDENTE A ALEGAÇÃO DE RESSALVA PARA A COMUTAÇÃO DE PRISÃO PERPETUA EM PENA LIMITATIVA DE LIBERDADE, POR FALTA DE PREVISÃO NA LEI OU NO TRATADO. 3. PEDIDO DE EXTRADIÇÃO DEFERIDO.

Deve-se analisar que o Brasil no Art. 7º da ADCT determina que "O Brasil propugnará pela formação de um tribunal internacional dos direitos humanos" e o § 4º do Artigo 5º da Carta Magna dispõe que "o Brasil se submete à jurisdição de Tribunal Penal Internacional a cuja criação tenha manifestado adesão".

Conforme destaca Cachapuz de Medeiros [52] "se somos benevolentes com ‘nossos delinquentes’, isso só diz bem com os sentimentos dos brasileiros. Não podemos impor o mesmo tipo de ‘benevolência’ aos Países estrangeiros".

Logo, interpretando corretamente o dispositivo previsto no Art. 5 que veda a prisão perpétua, verifica-se que esta proibição não alcança aos legisladores estrangeiros e tampouco aos legisladores internacionais. Esse dispositivo não obsta que a pena de prisão perpétua possa ser instituída fora do País em um tribunal permanente e com jurisdição internacional ao qual o Brasil deve obedecer em prol de um interesse maior [53] que o interno.

De outra forma, conforme o artigo 110, § 3º do Decreto 4.388/02, ao ser condenado, o indivíduo tem o direito de ter a pena revista, após o cumprimento de 2/3 da pena ou de 25 anos em caso de prisão perpétua, desde que preenchidos os requisitos que estão previstos no § 4º do mesmo artigo:

4. No reexame a que se refere o parágrafo 3o, o Tribunal poderá reduzir a pena se constatar que se verificam uma ou várias das condições seguintes:

a) A pessoa tiver manifestado, desde o início e de forma contínua, a sua vontade em cooperar com o Tribunal no inquérito e no procedimento;

b) A pessoa tiver, voluntariamente, facilitado a execução das decisões e despachos do Tribunal em outros casos, nomeadamente ajudando-o a localizar bens sobre os quais recaíam decisões de perda, de multa ou de reparação que poderão ser usados em benefício das vítimas; ou

c) Outros fatores que conduzam a uma clara e significativa alteração das circunstâncias suficiente para justificar a redução da pena, conforme previsto no Regulamento Processual;

Logo, como se abstrai do presente artigo, a pena de prisão perpétua aplicada não tem caráter desumano e dá ao condenado a oportunidade de revisão, desde que preenchidos os requisitos básicos que demonstrem a sua reabilitação.

4.3. IMUNIDADES POR FORO DE PRERROGATIVA DE FUNÇÃO

Desde Nuremberg já se tem aplicado a não concessão de imunidades por foro e prerrogativa de função, tanto que os oficiais que alegaram em sua defesa que estavam apenas cumprindo ordens de seus superiores foram condenados. Geralmente os crimes de competência do TPI são praticados por pessoas que se escondem atrás desses privilégios e imunidades concedidas pelo ordenamento jurídico interno de seu país.

Visando excluir essa possibilidade e alcançar uma justiça mais equânime, o Estatuto de Roma previu em seu artigo 27 o seguinte:

Artigo 27 Irrelevância da Qualidade Oficial

1. O presente Estatuto será aplicável de forma igual a todas as pessoas sem distinção alguma baseada na qualidade oficial. Em particular, a qualidade oficial de Chefe de Estado ou de Governo, de membro de Governo ou do Parlamento, de representante eleito ou de funcionário público, em caso algum eximirá a pessoa em causa de responsabilidade criminal nos termos do presente Estatuto, nem constituirá de per se motivo de redução da pena.

2. As imunidades ou normas de procedimento especiais decorrentes da qualidade oficial de uma pessoa; nos termos do direito interno ou do direito internacional, não deverão obstar a que o Tribunal exerça a sua jurisdição sobre essa pessoa.

Por isso, as imunidades e prerrogativas não são motivos que possam impedir o TPI de exercer a sua jurisdição, vez que se fosse de outra maneira, praticamente não haveria motivo para a sua existência.

4.4. DA OFENSA A COISA JULGADA

Outro ponto que poderá gerar dúvida aos mais desavisados é o fato da ofensa à coisa julgada. Segundo o Artigo 467 do Código de Processo Civil, a coisa julgada é "a eficácia, que torna imutável e indiscutível a sentença, não mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário". Por sua vez, a garantia constitucional da proteção à coisa julgada está esculpida no art. 5º, XXXVI cujo texto literal é "a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada".

Assim, surge a dúvida: e se um indivíduo já tiver sido condenado pelo tribunal do seu país pelo crime que tem a competência também do Tribunal Penal Internacional? Ora, facilmente se dirime essa problemática uma vez que a competência do TPI é subsidiária. Por isso, caso o Estado julgue o acusado de maneira imparcial, não há que se falar em novo julgamento.

Ademais a vedação do ne bis in idem tem previsão expressa no Decreto 4.388/02, cujo Artigo 20 estabelece que:

1. Salvo disposição contrária do presente Estatuto, nenhuma pessoa poderá ser julgada pelo Tribunal por atos constitutivos de crimes pelos quais este já a tenha condenado ou absolvido.

2. Nenhuma pessoa poderá ser julgada por outro tribunal por um crime mencionado no artigo 5º, relativamente ao qual já tenha sido condenada ou absolvida pelo Tribunal.

3. O Tribunal não poderá julgar uma pessoa que já tenha sido julgada por outro tribunal, por atos também punidos pelos artigos 6o, 7o ou 8o, a menos que o processo nesse outro tribunal:

De acordo com o Artigo 20, §3º do Estatuto de Roma, no entanto, o TPI poderá invocar a competência para julgar quando o julgamento feito pelo Estado:

a) Tenha tido por objetivo subtrair o acusado à sua responsabilidade criminal por crimes da competência do Tribunal; ou

b) Não tenha sido conduzido de forma independente ou imparcial, em conformidade com as garantias de um processo equitativo reconhecidas pelo direito internacional, ou tenha sido conduzido de uma maneira que, no caso concreto, se revele incompatível com a intenção de submeter a pessoa à ação da justiça.

Outro ponto que poderia suscitar dúvidas quanto à ofensa à coisa julgada seria o artigo 17 do Estatuto de Roma que confere às partes o direito de recorrer ao TPI para nova análise da decisão proferida pela jurisdição interna do país, fato que pode modificar, até mesmo, uma decisão colegiada do STF. Porém, nesse caso a jurisdição brasileira deve ceder ao TPI, da mesma maneira com o que ocorre com relação à pena perpétua.

4.5. DA IMPOSSIBILIDADE DE HOMOLOGAÇÃO PELO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

A transferência da competência para a homologação das sentenças estrangeiras passou ao STJ com a EC nº 45/2004, pois até então era do STF essa competência.

No presente caso não há que se falar em eventual conflito e sim na interpretação mais correta ao artigo 105, I, "i" da Constituição que declara:

Art. 105. Compete ao Superior Tribunal de Justiça:

I - processar e julgar, originariamente:

i) a homologação de sentenças estrangeiras e a concessão de exequatur às cartas rogatórias;

Como se extrai do dispositivo legal acima exposto, a competência do Superior Tribunal de Justiça é para homologar as sentenças provenientes de outros países e não de cortes internacionais, como é o caso do TPI, pois enquanto as primeiras são vinculadas à jurisdição e a soberania de um determinado estado as provenientes das cortes internacionais não tem vinculação com soberania de pais algum e tem jurisdição internacional, transpassando os limites estabelecidos pelas constituições dos Estados membros.

Dessa forma não há que se falar em homologação das sentenças proferidas pelo TPI vez que a jurisdição desse tribunal integra, indireta e subsidiariamente, a jurisdição do Brasil, pois, ao elaborar o § 4º do Artigo 5º da CF, dispositivo que é cláusula pétrea, pois amplia a proteção aos direitos humanos ao reconhecer a jurisdição de um tribunal voltado à defesa desses direitos, o país assinou o dever de acatar as sentenças advindas do TPI sem a necessidade de homologação para ter validade.

4.6. DA IMPRESCRITIBILIDADE DOS CRIMES DE SUA COMPETÊNCIA

Um último ponto que poderia ser incompatível é com relação à imprescritibilidade dos crimes do TPI, pois os incisos XLII e XLIV do Artigo 5º da CF/88 dizem que são imprescritíveis os crimes de racismo e a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático. Por sua vez, o Artigo 29 do Estatuto de Roma diz que "Os crimes da competência do Tribunal não prescrevem".

Conforme lecionam Renata Mantovani e Marina Brina [54] "embora a Constituição preceitue alguns crimes como imprescritíveis, não faz menção quanto à situação de outros delitos, se prescritíveis ou não". Deve se analisar ainda que a lista de infrações com caráter imprescritível foi delegada ao legislador infraconstitucional [55], desde que sejam respeitados os princípios e os fundamentos da República Federativa do Brasil. Por isso tanto a prescrição, quanto a imprescritibilidade dizem respeito a direitos humanos: o primeiro ao acusado e o segundo em relação à vítima e indiretamente a humanidade.

Como o Estatuto de Roma, segundo o STF, adentra no Ordenamento Jurídico Interno como norma supralegal, é forçoso entender que ele possui competência para ampliar o rol dos crimes imprescritíveis, uma vez que estão devidamente respeitados os princípios e fundamentos estabelecidos na Constituição.

Sobre o autor
Mateus Gaspar Luz Campos de Souza

Acadêmico de Direito - UCDB

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUZA, Mateus Gaspar Luz Campos. O Tribunal Penal Internacional e a Constituição Federal de 1988. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2941, 21 jul. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19595. Acesso em: 24 dez. 2024.

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