5. Possível dilema na determinação da competência da Justiça Militar para julgar crimes ocorridos em operações envolvendo as Forças Armadas no cumprimento da Lei e da Ordem.
Quando se trata de estabelecer a competência da Justiça Militar da União, quer no plano legislativo, quer no jurisprudencial, ocorrem verdadeiras "colchas de retalhos jurídicos", notadamente quando civis estão envolvidos no polo passivo ou ativo do delito.
Vale, nesse sentido, trazer à colação a Lei nº. 9.299/96, a qual retirou a competência da Justiça Militar para julgar crimes dolosos contra a vida quando a vítima for civil.
Art. 9º, parágrafo único: "Os crimes de que trata este artigo, quando dolosos contra a vida e cometidos contra civil, serão da competência da justiça comum."
Pois bem, recentemente, foi aprovado pelo Congresso Nacional, o PL 6615/09, o qual restabeleceu a competência da Justiça Militar para julgamento de crimes dolosos contra a vida cometidos no contexto de abate de aeronaves civis, na hipótese do art. 303 do Código Brasileiro de Aeronáutica.
Temos, assim, dois pesos e duas medidas, posto que militares das Forças Armadas terrestres e marítimas, porventura, num confronto inevitável, seja em uma comunidade ou fronteira do Brasil, venham a atingir mortalmente um civil (por hipótese, um traficante), responderão pelo crime perante o Tribunal do Júri.
Em outra esteira, oficiais da Força Aérea Brasileira, no mesmo cumprimento da Lei e da Ordem, ao dispararem contra uma aeronave hostil, pilotada, por exemplo, por traficante, serão processados e julgados pela Justiça Militar.
Relativamente ao civil no polo ativo do crime, embora o inciso III, alínea "d", do artigo 9º do Código Penal Militar considere crime militar aquele praticado por civil contra militar em função de natureza militar, na garantia e preservação da ordem pública, quando legalmente requisitado para aquele fim, ou em obediência a determinação legal superior, as jurisprudências dos tribunais superiores vêm entendendo que a Justiça Militar da União não é competente para julgar tais crimes. Vejamos alguns julgados:
""Habeas Corpus". Competência. Civis denunciados por crimes de resistência e desacato. Código Penal Militar, arts. 177 e 299. A policia naval e atividade que pode ser desempenhada, igualmente, por servidores civis ou militares do Ministério da Marinha, de acordo com o paragrafo único do art. 269 do Regulamento para o Trafego Marítimo (Decreto n. 87.648, de 24/9/1982). Crime militar e competência da Justiça Militar, "ut" art. 124, da Constituição de 1988. Relevante, na espécie, e o objeto do crime e não mais a qualidade do sujeito ativo. Compreensão do art. 142, da Constituição de 1988. Sendo o policiamento naval atribuição, não obstante privativa da Marinha de Guerra, de caráter subsidiário, por força de lei, não é possível, por sua índole, caracterizar essa atividade como função de natureza militar, podendo seu exercício ser cometido, também, a servidores não militares da Marinha de Guerra. A atividade de policiamento, em princípio, se enquadra no âmbito da segurança pública. Esta, de acordo com o art. 144, da Constituição de 1988, e exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, por intermédio dos órgãos policiais federais e estaduais, estes últimos, civis ou militares. Não se compreende, por igual, o policiamento naval na ultima parte da letra "d", do inciso III, do art. 9., do Código Penal Militar, pois o serviço de vigilância, garantia e preservação da ordem pública, administrativa ou judiciária, ai previsto, de caráter nitidamente policial, pressupõe desempenho especifico, legalmente requisitado para aquele fim, ou em obediência a determinação legal superior. "Habeas Corpus" deferido, para anular o processo a que respondem os pacientes, desde a denuncia inclusive, por incompetência da Justiça Militar, devendo os autos ser remetidos a Justiça Federal de Primeira Instância, no Para, competente, "ut" art. 109, IV, da Constituição, por se tratar de infrações em detrimento de serviço da União, estendendo-se a decisão ao denunciado não impetrante.
(HC 68928, Relator(a): Min. NÉRI DA SILVEIRA, SEGUNDA TURMA, julgado em 05/11/1991, DJ 19-12-1991 PP-18710 EMENTA VOL-01647-01 PP-00055 RTJ VOL-00138-02 PP-00569)"
"HABEAS CORPUS. PACIENTE ACUSADO DE DESACATO E DESOBEDIÊNCIA PRATICADOS CONTRA SOLDADO DO EXÉRCITO EM SERVIÇO EXTERNO DE POLICIAMENTO DE TRÂNSITO, NAS PROXIMIDADES DO PALÁCIO DUQUE DE CAXIAS, NO RIO DE JANEIRO. Atividade que não pode ser considerada função de natureza militar, para efeito de caracterização de crime militar, como previsto no art. 9º, III, d, do Código Penal Militar. Competência da Justiça Comum, para onde deverá ser encaminhado o processo criminal. Habeas corpus deferido.
(HC 75154, Relator(a): Min. ILMAR GALVÃO, Primeira Turma, julgado em 13/05/1997, DJ 05-09-1997 PP-41872 EMENT VOL-01881-02 PP-00203)"
"CRIMINAL. DESACATO E RESISTENCIA PRATICADO POR CIVIL CONTRA SOLDADO DO EXERCITO EM OPERAÇÃO DO POLICIAMENTO CIVIL.
- COMPETENCIA. NÃO SE CARACTERIZA COMO MILITAR O POLICIAMENTO CIVIL, AINDA QUE EXERCIDO PELO EXÉRCITO EM CONJUNTA COLABORAÇÃO COM A POLICIA CIVIL.
(CC 16.228/RJ, Rel. Ministro JOSÉ DANTAS, TERCEIRA SECAO, julgado em 28/05/1997, DJ 23/06/1997 p. 29043)"
"PROCESSUAL PENAL. PENAL. CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. DESACATO PRATICADO POR CIVIL CONTRA SOLDADO DO EXÉRCITO EM ATIVIDADE DE POLICIAMENTO EXTERNO DE TRÂNSITO. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA COMUM.
- Não sendo o desacato praticado contra soldado em exercício de função propriamente militar, não se trata de crime da competência da Justiça Militar. Conflito conhecido, declarando-se competente o Juízo suscitado.
(CC 26.106/RJ, Rel. Ministro FELIX FISCHER, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 14/06/2000, DJ 14/08/2000 p. 135)"
De consequente, mesmo diante da redação do art. 15 § 7º da LC nº 136/2010 (que considerou atividade militar, para fins de julgamento pela Justiça Militar, a atuação da Forças Armadas no cumprimento da Lei e da Ordem), é factível que interpretações, no mesmo sentido dos julgados explicitados supra, sejam adotadas em relação aos crimes perpetrados por civis no Complexo do Alemão, em outras comunidades ou nas fronteiras do Brasil, contra militares das Forças Armadas, no cumprimento da Lei e da Ordem.
Considerações finais
Pelo exposto, podemos pontuar o seguinte:
a) As Forças Armadas, em razão de seu contingente e poderio bélico, têm sido vista, por grande parte da sociedade, como solução para a resolução de diversos problemas de ordem social, em especial, aqueles cuja incumbência ,em primeiro plano, pela carta magna, seria de atribuição dos órgãos de segurança pública;
b) O conceito de lei e ordem é abrangente e pode dar azo à variadas interpretações pelo judiciário;
c) O quadro demonstrativo de algumas das participações das Forças Armadas (item 2) demonstra que, nem todas as ações dos militares federais, ocorreram no cumprimento da lei e da ordem. Em algumas delas verifica-se nitidamente um viés político;
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d) É legal a participação das Forças Armadas, no cumprimento da Lei e da Ordem, na segurança pública, desde que, de forma supletiva, por curto período, nos casos em que se mostrem ineficientes os órgãos de segurança pública (equipamentos e pessoal);
e) É de bom alvitre que não haja a permanência prolongada de militares em comunidades, assumindo a iniciativa e o controle de ações tipicamente policiais, mormente quando atuem em conjunto com a Polícia Militar e Civil;
f) Tendo em vista que a Força de Pacificação no Alemão e na Penha é composta por policiais das Forças Armadas e outros órgãos policiais, faz-se necessário que haja uma triagem com divisões de tarefas, a fim de que o Exército atue nos casos mais complexos, ficando os desvios de condutas inerentes ao cotidiano de uma comunidade, a cargo da Polícia Militar e Civil, a fim de serem evitados, pela ausência de prática dos militares federais, possíveis abusos de autoridade.
g) Embora lei complementar considere atividade militar as ações dos militares, no cumprimento da Lei e da Ordem, para fins de julgamento pela Justiça Militar, a competência desta Justiça especializada só será efetivamente firmada, após pronunciamentos dos tribunais superiores, notadamente o Supremo Tribunal Federal.
Referências Bibliográficas
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