Dissolução irregular da sociedade empresária
O sistema jurídico brasileiro contempla uma série de hipóteses de responsabilidade solidária ou subsidiária de sócios e administradores de empresas, por atos próprios, quando tenham agido com dolo ou culpa, ou com violação à lei ou ao estatuto ou contrato social. Essa responsabilização é direta, não havendo que se falar em desconsideração da personalidade jurídica.
Primeiro é necessário determinar-se o que se deve entender por dissolução irregular da sociedade. Em segundo lugar, se uma sociedade meramente inativa pode ser considerada uma sociedade dissolvida.
Dissolução é o desfazimento da sociedade por vencimento de seu prazo de duração, por deliberação dos sócios; por liquidação judicial ou extrajudicial, ou por anulação judicial requerida por qualquer dos sócios, conforme cláusulas previstas no contrato social.
O artigo 1.033 do Código Civil regula a matéria, determinando as hipóteses de dissolução da sociedade.
Artigo 1.033. Dissolve-se a sociedade quando ocorrer:
I - o vencimento do prazo de duração, salvo se, vencido este e sem oposição de sócio, não entrar a sociedade em liquidação, caso em que se prorrogará por tempo indeterminado;
II - o consenso unânime dos sócios;
III - a deliberação dos sócios, por maioria absoluta, na sociedade de prazo indeterminado;
IV - a falta de pluralidade de sócios, não reconstituída no prazo de 180 (cento e oitenta) dias;
V - a extinção, na formada lei, de autorização para funcionar.
Logo, não se pode considerar dissolvida uma sociedade meramente inativa, pois a sociedade inativa é sociedade dormente e, assim, capaz de ser reativada a qualquer momento por deliberação de seus sócios.
A dissolução irregular [05] das sociedades empresárias consiste no encerramento das atividades que constituem seu objeto sem a necessária liquidação dos seus ativos e passivos na forma prevista no Código Civil e na legislação específica a cada caso, ou seja, é caracterizada pela inoperância das atividades da empresa, sem que ocorra a sua baixa na Junta Comercial e outras repartições competentes.
A legislação pertinente determina a observação de solenidades no ato da criação e da dissolução da sociedade, conforme assevera o parágrafo 2º do artigo 51 do Código Civil.
Art. 51. Nos casos de dissolução da pessoa jurídica ou cassada a autorização para seu funcionamento, ela subsistirá para os fins de liquidação, até que está se conclua.
§1º - Far-se-á, no registro onde a pessoa jurídica estiver inscrita, a averbação de sua dissolução.
Todas as obrigações da sociedade devem ser cumpridas antes da sua extinção. A não observância desta norma, enquadra o ato como sendo uma dissolução irregular
Nos casos de ausência ou insuficiência de patrimônio social para fazer frente a débitos de responsabilidade da pessoa jurídica, as recentes decisões do Superior Tribunal de Justiça sobre o assunto têm reconhecido a legitimidade do redirecionamento da execução à pessoa dos sócios e administradores, quando haja indícios de dissolução irregular da sociedade, como, exemplificativamente, quando não for possível localizar o respectivo estabelecimento no endereço constante do Contrato Social ou Estatuto registrado na Junta Comercial, denotando o encerramento de suas atividades de forma irregular.
Caso a sociedade seja simplesmente desativada sem cumprir suas obrigações, os bens particulares do administrador e/ou dos sócios podem ser objeto de constrição. A existência de indícios do encerramento irregular das atividades da empresa executada autoriza o redirecionamento do feito executório à pessoa do sócio
Devem, portanto, os empresários ter extrema cautela ao cessar suas atividades, pois a dissolução irregular poderá acarretar-lhes o ônus de responder pessoalmente com seu patrimônio pelas obrigações societárias.
O fato de a dissolução irregular da sociedade empresária acarretar a responsabilidade pessoal dos sócios pelas dívidas da empresa se assemelha ao instituto da desconsideração da personalidade jurídica.
Assim não são raras as vezes em que a responsabilidade direta, solidária ou subsidiária dos sócios e administradores acaba sendo confundida com a teoria da desconsideração da personalidade jurídica.
Com a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica, como penalidade imposta à sociedade, chega-se à responsabilização dos sócios ou administradores, a qual também pode ocorrer em outras situações que não se confundem com a teoria da desconsideração, conforme já mencionado.
Quando os sócios ou administradores extrapolam seus poderes violando a lei ou o contrato social, a lei lhes impõe a responsabilidade por tais atos. Entretanto, surge uma modalidade diferente da desconsideração tratada no presente trabalho, qual seja, a responsabilização pessoal e direta dos sócios.
Entendimento sumulado pelo Superior Tribunal de Justiça
Há que se reconhecer que, em várias decisões, os Tribunais, notadamente o Superior Tribunal de Justiça, têm reconhecido a importância da cautela na aplicação da teoria da desconsideração.
O posicionamento do Superior Tribunal de Justiça deve servir como baliza à aplicação responsável da teoria da desconsideração da personalidade jurídica que não pode extrapolar dos limites constitucionais impostos pelos princípios da legalidade, do devido processo legal e da ampla defesa.
Contraria a aplicação de tais limites, por exemplo, o ajuizamento de ação de execução contra sócio, conselheiro ou administrador de empresa que não teve a oportunidade de se defender na fase do processo de conhecimento e é surpreendido com a penhora que recai sobre o seu patrimônio, por conta de atos lícitos praticados pela empresa de que foi ou é sócio, conselheiro e administrador, pelo simples fato de tal empresa não ter patrimônio suficiente para honrar a dívida. Neste caso, existe evidente inversão do ônus da prova, passando o sócio, seu procurador, conselheiro ou administrador da empresa a ter a obrigação de provar que não participou da fraude e/ou de que dela não se beneficiou.
Neste sentido, o STJ firmou entendimento de que o redirecionamento da Execução Fiscal, e seus consectários legais, para o sócio-gerente da empresa, somente é cabível quando demonstrado que este agiu com excesso de poderes, infração à lei ou contra o estatuto, ou na hipótese de dissolução irregular da empresa.
Súmula 435 do STJ: Presume-se dissolvida irregularmente a empresa que deixar de funcionar no seu domicílio fiscal, sem comunicação aos órgãos competentes, legitimando o redirecionamento da execução fiscal para o sócio-gerente. [06]
Tal entendimento justifica-se ante o fato de que é dever do sócio-administrador, diante do encerramento, ou da inviabilidade das atividades da empresa, seguir os passos definidos no art. 1.103 do Código Civil para promover-lhe a dissolução de forma regular.
Outrossim, embora a Súmula limite a responsabilidade a sócio-gerente, qualquer diretor, administrador ou representante de pessoa jurídica de direito privado, desde que tenha relação com a situação configuradora do fato gerador da obrigação tributária, poderá ser responsabilizada pessoalmente pelo pagamento do tributo. A lei, que é fonte primeira do direito, prescreve nesse sentido.
O próprio teor da Súmula impede esse redirecionamento automático. "Presume-se dissolvida irregularmente" diz o enunciado, para mais adiante acrescentar: "sem comunicação aos órgãos competentes". Evidente tratar-se de presunção relativa a comportar prova em sentido contrário.
O redirecionamento da execução fiscal à pessoa dos sócios está sendo utilizado de forma mais ampla, abrangendo as demais execuções, desde que preenchidos os mesmos requisitos.
Entendimento jurisprudencial sobre a responsabilização dos sócios
A aplicação desmedida da desconsideração da personalidade jurídica e responsabilização dos administradores de maneira indevida pelo Poder Judiciário brasileiro gera uma situação de insegurança principalmente entre os investidores. Esses investidores, que têm a árdua tarefa de disputar o retorno de seus investimentos com as atrativas taxas de juros disponíveis no mercado brasileiro, ainda encontram mais este obstáculo: podem ser chamados a responder pelas obrigações da companhia investida.
Os abusos mais gritantes na responsabilização dos sócios e administradores vêm ocorrendo no âmbito da Justiça do Trabalho. Tem-se verificado, nos últimos anos, inúmeros casos de Processos Trabalhistas nos quais os reclamantes têm ganhado a causa, porém a execução não tem eficácia, pela insolvência ou incapacidade financeira da sociedade ex-empregadora em quitar a penalidade pecuniária decidida pela Justiça.
Nestes casos, a Justiça Trabalhista vem se utilizando, de forma corriqueira, da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, no sentido de bloquear recursos de ex-administradores e sócios, visando gerar para o reclamante os valores determinados pela Justiça.
Há que se considerar que, na maioria das vezes, os ex-administradores não têm qualquer responsabilidade quanto ao passivo trabalhista. Mesmo assim, os juízes têm relacionado todas aquelas pessoas físicas que, durante o período do vínculo trabalhista do reclamante com a sociedade, foram administradores ou sócios, sem tentar identificar em que período a pretensa ilegalidade foi de fato praticada.
Este tipo de atuação é extremamente prejudicial ao país como um toda, uma vez que cria embaraços e inseguranças aos que investem na mencionada na economia. As decisões judiciais atiram, sem qualquer critério responsável, para todos os lados, expondo os sócios, seus procuradores e administradores indicados a contingências futuras em relação às quais os mesmos não têm qualquer responsabilidade.
Também tem sido freqüente que as pessoas atingidas, em se tratando de valores de pouca monta ou cujo custo de discussão fique maior que o devido, acabam honrando o pagamento para se verem livres do bloqueio. Este pagamento gera o que se pode chamar de "justiça pela via transversa": o credor recebe de quem nada lhe deve.
A justiça comum tem procurado fundamentar suas decisões de desconsideração da personalidade jurídica em fatos mais concretos e plausíveis, sem ferir a segurança jurídica que é própria do instituto.
Nessa mesma linha, a jurisprudência do STJ consolidou o entendimento de que a certidão emitida pelo Oficial de Justiça atestando que a empresa devedora não mais funciona no endereço constante dos assentamentos da junta comercial é indício de dissolução irregular, apto a ensejar o redirecionamento da execução para o sócio-gerente, a este competindo, se for de sua vontade, comprovar não ter agido com dolo, culpa, fraude ou excesso de poder, ou ainda, não ter havido a dissolução irregular da empresa. [07]
Analisando algumas decisões monocráticas do Supremo Tribunal Federal (STF), percebe-se que a dissolução irregular da sociedade empresária é considerada fraude e infração à legislação, sendo por si só elemento suficiente para a decretação da desconsideração da personalidade jurídica.
Segue abaixo jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP) que fundamentou uma decisão do STF:
EXECUÇÃO. SOCIEDADE LIMITADA. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. RECURSO IMPROVIDO.
Havendo indícios de desativação irregular da pessoa jurídica, o que impede o credor de receber seu crédito, é perfeitamente aplicável a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, sendo então necessária a justa responsabilidade dos sócios, através de seus bens pessoais, nos termos do artigo 50 do Código Civil de 2002.'". O acórdão recorrido manteve a decisão que deferiu pedido de desconsideração da personalidade jurídica ao fundamento de que "a inércia da devedora aliada a desatualização da ficha cadastral junto à JUCESP, bem como a suposta inexistência de bens, conduz à conclusão de que houve dissolução de sociedade de forma irregular, hipótese capaz de caracterizar fraude e infração da lei e do contrato, justificando a desconsideração da personalidade jurídica da empresa e permitindo a responsabilização dos sócios pelas dívidas sociais, sobretudo porque não localizados bens que respondam pela dívida", não cabendo a este Tribunal o reexame de fatos e provas para julgar em sentido contrário ao que foi decidido pela Corte de origem (...)
(AI 637095, Relator(a): Min. Joaquim Barbosa, julgado em 08/10/2010, publicado em DJe-198 divulgado 19/10/2010 publicado 20/10/2010)
Em outra jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS), que também fundamentou uma decisão do STF, não ficou constatada a necessidade de desconsideração da personalidade jurídica, uma vez que a simples existência de débitos em nome da pessoa jurídica não é elemento suficiente, se não ficar devidamente comprovado o excesso de poder, dolo ou culpa por parte do sócio.
APELAÇÃO CÍVEL. TRIBUTÁRIO E FISCAL. INEXISTÊNCIA DE DISSOLUÇÃO IRREGULAR E INFRAÇÃO A LEI. NÃO CABIMENTO DO REDIRECIONAMENTO AO SÓCIO. ICMS. CRÉDITOS EXCEDENTES. INCIDÊNCIA DE CORREÇÃO MONETÁRIA. AUSÊNCIA DE PREVISÃO LEGAL. IMPOSSIBILIDADE. REVISÃO DOS HONORÁRIOS. - (...) - Os sócios-gerentes respondem, pessoalmente, quando agem com excesso de mandato ou, dentro de suas atribuições, procedem com dolo ou culpa ou com violação da lei, ou do estatuto ou do contrato. Inteligência dos artigos 10 do Decreto 3.708/19 e 135, III, do Código Tributário Nacional. - Não é simples persistência de débitos quando do encerramento das atividades da empresa que levam ao reconhecimento da responsabilidade pessoal do sócio-gerente e sim a sonegação fiscal. - (...)
(AI 781271, Relator(a): Min. Dias Toffoli, julgado em 10/03/2010, publicado em DJe-057 divulgado 29/03/2010 publicado 30/03/2010)
Em decisão proferida pelo Tribunal de Justiça do Estado de Goiás (TJGO), ficou clara a responsabilidade solidária dos sócios no caso de dissolução irregular da sociedade empresária.
APELAÇÃO CÍVEL. EMBARGOS À EXECUÇÃO FISCAL. PRELIMINAR. JULGAMENTO ANTECIPADO DA LIDE. INOCORRÊNCIA DE CERCEAMENTO DO DIREITO DE DEFESA. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA. ALEGAÇÃO DE IMPENHORABILIDADE DE BEM DE FAMÍLIA. NÃO COMPROVAÇÃO. Insubsistente a alegação de cerceamento de defesa em razão do julgamento antecipado da lide quando as partes, expressamente, dispensaram a produção de provas. Ocorrendo a dissolução irregular da pessoa jurídica devedora, impõe-se a responsabilização solidária dos sócios pelos débitos tributários, nos termos do art. 134, inc. VII, do Código Tributário Nacional. (...)
(AI 678484, Relator(a): Min. Marco Aurélio, julgado em 18/08/2009, publicado em DJe-164 divulgado 31/08/2009 publicado 01/09/2009)
No mesmo sentido é a recente decisão proferida pelo STJ:
CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. DÍVIDA DE SOCIEDADE LIMITADA. EXECUÇÃO FRUSTRADA. REDIRECIONAMENTO AOS BENS DE SÓCIO. POSSIBILIDADE. DISSOLUÇÃO IRREGULAR DA SOCIEDADE.
1. Em caráter excepcional, o sócio de sociedade por cotas de responsabilidade limitada responde com seus bens particulares por dívida da sociedade, quando esta foi dissolvida de modo irregular. Precedentes.
2. Além do mais, a alegação de que inexistiu excesso de mandato por parte do ora recorrente, que firmou, conjuntamente, o instrumento de encerramento do contrato social, ficando estabelecido que eventual responsabilidade deveria recair unicamente sobre o sócio majoritário, implica o reexame do conjunto fático-probatório. (Súmula 7/STJ).
3. (...)
4. Recurso especial conhecido em parte e, nesta parte, desprovido.
(REsp 586.222/SP, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 23/11/2010, DJe 30/11/2010)
Com base nos julgamentos dos tribunais estaduais e até mesmo dos tribunais superiores, é possível perceber que a dissolução irregular de sociedade empresária passou a ser um dos requisitos para que seja autorizada a desconsideração da personalidade jurídica.
É importante ressaltar que de certa forma a dissolução irregular se dá através de atos ilícitos e abusivos, porque foi realizada, como o próprio nome diz, de forma irregular.
Assim, os julgados têm sido no sentido de que a simples dissolução irregular da sociedade empresária preenche os requisitos necessários para autorizar a desconsideração da personalidade jurídica.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
COELHO, Fábio Ulhôa. Manual de Direito Comercial, 18ª Edição; Ed. Saraiva: São Paulo. 2007
COELHO, Fábio Ulhôa. Curso de Direito Comercial, vol. I; 10ª Edição; Ed. Saraiva: São Paulo. 2006
COELHO, Fábio Ulhôa. Curso de Direito Comercial, vol. II, 9ª Edição; Ed. Saraiva. 2006
TOMAZATTE, Marlon. Curso de Direito Empresarial, vol. I; 2ª Edição; Editora Atlas: São Paulo. 2009
TOMAZETTE, Marlon. A desconsideração da personalidade jurídica: a teoria, o CDC e o novo Código Civil. Jus Navigandi, Teresina, ano 6, n. 58, ago. 2002. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/3104>. Acesso em: 17 de outubro de 2010
MEDEIROS, André Antonio Araújo de. Um novo enfoque crítico sobre a despersonalização da pessoa jurídica no Processo do Trabalho. Jus Navigandi, Teresina, ano 7, n. 58, 1 ago. 2002. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/3176>. Acesso em: 15 de novembro de 2011
Notas
-
ULHÔA, Fábio. Vol II; pag 16
- ULHÔA, Fábio. Vol II; pag 14
- TOMAZATTE, Marlon. Curso de Direito Empresarial. V. 1. 2ª Edição. Editora Atlas. São Paulo. 2009; pag. 232
- ULHÔA, Fábio. Vol II; pag 35
- Para o professor de Marcelo Alonso "a dissolução irregular da sociedade comercial é o abandono da empresa sem que ocorra o seu correto encerramento".
- DJe 13/05/2010, RSTJ vol. 218 p. 703
- Precedentes do STJ:REsp 953.956/PR, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, julgado em 12.08.2008, DJe 26.08.2008; AgRg no REsp 672.346/PR