2 O writ of certiorari: a inspiração norte-americana
Por ser um documento eminentemente principiológico [11], a Constituição norte-americana ocupou-se do Judiciário Federal em um único dispositivo, o artigo III.
Este artigo instituiu a Suprema Corte dos Estados Unidos (United States Supreme Court), fixando-se-lhe tão-somente a competência originária (trial court), deixando o estabelecimento da competência recursal (appelate jurisdiction) ao sabor do Congresso Federal, em sua atividade legiferante.
Além da fixação da competência recursal da Corte Suprema, às leis federais coube a fixação da sua quantidade de juízes, bem como a instituição e organização dos tribunais federais inferiores, dentre os quais estão as "cortes distritais" (district courts, juízos federais de 1ª instância) e os "tribunais federais de apelações" (U.S. Courts of Appeals, equivalentes aos Tribunais Regionais Federais brasileiros) [12].
Observe-se o seguinte trecho da Constituição dos Estados Unidos da América [13]:
Article. III.
Section. 1.
The judicial Power of the United States, shall be vested in one supreme Court, and in such inferior Courts as the Congress may from time to time ordain and establish. The Judges, both of the supreme and inferior Courts, shall hold their Offices during good Behaviour, and shall, at stated Times, receive for their Services, a Compensation, which shall not be diminished during their Continuance in Office.
Section. 2.
Clause 1: The judicial Power shall extend to all Cases, in Law and Equity, arising under this Constitution, the Laws of the United States, and Treaties made, or which shall be made, under their Authority; to all Cases affecting Ambassadors, other public Ministers and Consuls; to all Cases of admiralty and maritime Jurisdiction; to Controversies to which the United States shall be a Party; to Controversies between two or more States; between a State and Citizens of another State; between Citizens of different States, between Citizens of the same State claiming Lands under Grants of different States, and between a State, or the Citizens thereof, and foreign States, Citizens or Subjects.
Clause 2: In all Cases affecting Ambassadors, other public Ministers and Consuls, and those in which a State shall be Party, the supreme Court shall have original Jurisdiction. In all the other Cases before mentioned, the supreme Court shall have appellate Jurisdiction, both as to Law and Fact, with such Exceptions, and under such Regulations as the Congress shall make. [14] (
Atualmente, a competência recursal da Suprema Corte norte-americana pode ser exercida em três situações distintas [15]: apelação (mandatory appeal), certificação (certification) e writ of certiorari.
Nos dois primeiros casos (mandatory appeal e certification), preenchidos os pressupostos recursais, o conhecimento pela Suprema Corte é obrigatório, constituindo verdadeiro direito subjetivo do cidadão. Por sua vez, o juízo de admissibilidade do writ of certiorari é dotado de uma ampla margem de discricionariedade, não havendo direito subjetivo ao respectivo conhecimento.
Hoje, as hipóteses de cabimento do mandatory appeal e do certification são bastante restritas e praticamente todos os casos que chegam à Suprema Corte norte-americana, o são através do writ of certiorari. Entretanto, conforme será demonstrado no próximo tópico, nem sempre foi assim, e a restrição gradual das hipóteses de cabimento daqueles recursos ensejou o surgimento e a proliferação do writ of certiorari.
2.1 Surgimento do writ of certiorari
Para se entender o surgimento do writ of certiorari, deve-se analisar diferentes experiências históricas vivenciadas pelos Estados Unidos da América, cuja consequência foi a multiplicação de demandas que sobrecarregaram seu poder judiciário, notadamente a Suprema Corte, por ser um órgão de convergência.
Podem ser citados [16]: a industrialização norte-americana a partir do século XIX; a criação de entidades (agencies e commissions) autorizadas a editar normas próprias, o que gerou numerosos conflitos de interpretação da legislação federal e da própria Constituição; as demandas, na década de 1960, em razão dos civil rights; e as, na década de 1970, relativas ao seguro social e à aposentadoria de empregados.
Esses marcos históricos (multiplicadores de demandas), paulatinamente, tornaram necessárias reformas na legislação federal e, mais especificamente, na competência recursal da Suprema Corte e na estrutura e competência dos tribunais federais de apelação (U.S. Courts of Appeals).
Pela Reforma de 1891 (Evarts Act), a organização judiciária federal foi alterada, com a criação dos tribunais federais de apelação (U.S. Courts of Appeals) [17], e a competência recursal da Suprema Corte também foi alterada, com a restrição das hipóteses de cabimento de recursos de cognição obrigatória (mandatory jurisdiction) e com a criação do writ of certiorari [18].
Quanto a este último, seu conhecimento pela Suprema Corte norte-americana não é um direito subjetivo do jurisdicionado, mas um ato discricionário daquele tribunal, que passa a escolher livremente de quais casos conhecer.
A criação do writ of certiorari pelo Evarts Act de 1981 visava, justamente, compensar a retirada de competência da Suprema Corte para os recursos de cognição obrigatória, permitindo o conhecimento de determinados casos não sujeitos, originariamente, à sua esfera de competência [19].
A despeito dessas modificações iniciais, apenas no ano de 1925 foi dado o passo crucial para a configuração da atual sistemática de acesso recursal à Suprema Corte norte-americana, com a edição do Judiciary Act of 1925, diploma normativo conhecido como Judge´s Bill (Lei dos Juízes).
Mais uma vez foram restringidas as hipóteses de cabimento dos recursos de conhecimento obrigatório (mandatory appeals) o que, consequentemente, aumentou sobremaneira o número de writ of certiorari interpostos perante o alto tribunal norte-americano. Além disso, o Judge´s Bill trouxe dois importantes requisitos de admissibilidade para o writ of certiorari: a) que a causa ou controvérsia, julgada em única ou última instância pelos tribunais estaduais ou federais, fosse substancialmente relevante para todo o País, b) que quatro, dos nove juízes da Suprema Corte, manifestassem-se favoravelmente ao conhecimento do recurso [20].
Vale trazer à colação, mais uma vez, as palavras do Ministro GILMAR MENDES, retiradas de seu voto proferido no julgamento do RE-QO 556.664/RS [21]:
Portanto, há muito resta evidente que a Corte Suprema americana não se ocupa da correção de eventuais interpretações divergentes das Cortes ordinárias. Em verdade, com o Judiciary Act de 1925 a Corte passou a exercer um pleno domínio sobre as matérias que deve ou não apreciar (Cf., a propósito, Griffin. Stephen M., The Age of Marbury, Theories of Judicial Review vs. Theories of Constitutional Interpretation, 1962-2002, Paper apresentado na reunião anual da ‘American Political Science Association’, 2002, p. 34). Ou, nas palavras do Chief Justice Vinson, ‘para permanecer efetiva, a Suprema Corte deve continuar a decidir apenas os casos que contenham questões cuja resolução haverá de ter importância imediata para além das situações particulares e das partes envolvidas’ (‘To remain effective, the Supreme Court must continue to decide only those cases which present questions whose resolutions will have immediate importance far beyond the particular facts and parties involved’) (Griffin, op. cit., p. 34). (grifos do autor)
Por fim, com a última grande reforma realizada em 1988, restou invertida a antiga sistemática dos recursos cabíveis à Suprema Corte, segundo a qual os recursos destinados àquela corte eram, em regra, de cognição obrigatória (mandatory appeal).
A partir de então, o mandatory appeal passou a ser cabível apenas das decisões das cortes distritais de três juízes (three-judge district court) e o certification (também de conhecimento obrigatório e mais raramente utilizado) ficou restrito à hipótese na qual os tribunais que julgam o caso em segunda instância (e não a parte vencida no feito) submetem a questão de direito federal à Corte Suprema [22].
Por sua vez, o writ of certiorari passou a ser, na prática, o único meio de acesso à Suprema Corte, continuando a inexistir direito subjetivo ao seu conhecimento.
Diante de tudo o que foi exposto, é lícito concluir que a Suprema Corte norte-americana detém desígnio distinto dos demais tribunais que compõem o respectivo sistema judiciário, não sendo uma mera instância revisora para apreciar qualquer matéria em que se discuta um direito individual. Em verdade, ela escolhe criteriosamente julgar apenas os casos cuja relevância e importância sejam destacadas e cuja repercussão se projete muito além das partes envolvidas na causa, alcançando toda a sociedade norte-americana.
2.2 Aspectos do julgamento do writ of certiorari
As sessões em que o critério subjetivo de relevância do writ of certiorari é discutido, chamadas de conference [23], são reservadas (não públicas) e realizadas na Justices' Conference Room [24]. Ademais, as decisões que analisam o critério subjetivo da relevância a fim de admitir ou não o writ não necessitam ser fundamentas e raramente são publicadas [25].
Desde o Judiciary Act of 1925 (Judge´s Bill ou Lei dos Juízes) já se exige para o conhecimento do writ of certiorari que a causa ou controvérsia, julgada em última instância pelos tribunais estaduais ou federais, se apresente substancialmente relevante para todo o país, segundo a manifestação positiva de quatro dos nove juízes da Suprema Corte, também chamada de "regra dos quatro". Não havendo tal manifestação, o writ não vai para a discuss list e, portanto, não é conhecido.
Vale ressaltar que o surgimento dessa "regra dos quatro" é controvertido. MACIEL [26] aponta que tal requisito de admissibilidade surgiu com o Judiciary Act of 1925, e, portanto, estaria fundado em regra escrita. Diversamente, PINTO [27] afirma que esse requisito tem origem na tradição da Suprema Corte e não possui fundamento em regra escrita.
Após a reforma de 1988, manteve-se o mesmo quadro, com a ressalva de que a admissão do writ of certiorari fica, segundo MACIEL [28], "primeiramente, sujeita aos critérios objetivos do Regimento Interno da Suprema Corte (U.S.S.C. Rules – Rule 10), e, em segundo lugar, ao critério subjetivo da relevância, que consiste em avaliação discricionária". Observe-se a Regra n.º 10 do Regimento Interno da Suprema Corte [29]:
Rule 10. Considerations Governing Review on Writ of Certiorari
Review on a writ of certiorari is not a matter of right, but of judicial discretion. A petition for a writ of certiorari will be granted only for compelling reasons. The following, although neither controlling nor fully measuring the Court's discretion, indicate the character of the reasons the Court considers:
(a) a United States court of appeals has entered a decision in conflict with the decision of another United States court of appeals on the same important matter; has decided an important federal question in a way that conflicts with a decision by a state court of last resort; or has so far departed from the accepted and usual course of judicial proceedings, or sanctioned such a departure by a lower court, as to call for an exercise of this Court's supervisory power;
(b) a state court of last resort has decided an important federal question in a way that conflicts with the decision of another state court of last resort or of a United States court of appeals;
(c) a state court or a United States court of appeals has decided an important question of federal law that has not been, but should be, settled by this Court, or has decided an important federal question in a way that conflicts with relevant decisions of this Court.
A petition for a writ of certiorari is rarely granted when the asserted error consists of erroneous factual findings or the misapplication of a properly stated rule of law. [30](grifos do autor)
Embora MACIEL afirme que a admissão do writ of certiorari fique condicionado aos critérios objetivos estabelecidos na Regra n.º 10, data maxima venia, o trecho "[t]he following, although neither controlling nor fully measuring the Court's discretion, indicate the character of the reasons the Court considers" [31] parece indicar ser possível a superação das hipóteses de cabimento consignadas nos itens "a", "b" e "c".
Independentemente e além das hipóteses de cabimento elencadas na Regra n.º 10, é possível, excepcionalmente, interpor o writ of certiorari em caso que sequer tenha sido julgado, ou seja, ainda pendente de julgamento. Esse permissivo possui fundamento na Regra n.º 11 do Regimento Interno da Suprema Corte [32]:
11. Certiorari to a United States Court of Appeals before JudgmentRule
A petition for a writ of certiorari to review a case pending in a United States court of appeals, before judgment is entered in that court, will be granted only upon a showing that the case is of such imperative public importance as to justify deviation from normal appellate practice and to require immediate determination in this Court. See
28 U. S. C. § 2101(e). [33] (grifos do autor)Segundo a Regra n.º 11, é possível interpor o writ of certiorari num caso ainda pendente de julgamento em tribunal federal de apelações, desde que seja demonstrado que o caso é de tamanha importância e imperatividade pública que justifique o desvio da praxis apelatória e que demande sua solução imediata pela Suprema Corte. É o chamado writ of certiorari per saltum [34].
Por fim, a Regra n.º 16 enuncia as três possíveis decisões que a Suprema Corte pode tomar ao analisar a petição de certiorari:
(i) negar o certiorari, hipótese em que a decisão inferior é mantida integralmente; (ii) admitir o certiorari, convocando os litigantes para apresentar razões orais e escritas defendendo suas respectivas posições; e (iii) proferir uma decisão sumária sobre o mérito (summary disposition). Neste terceiro caso, são necessários seis juízes para, imediatamente, proferir-se uma decisão sobre o mérito de determinada questão, confirmando ou reformando o julgamento anterior. [35]