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A inconstitucionalidade das leis de pequeno valor na execução contra a Fazenda Pública

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Agenda 19/09/2011 às 10:33

A autorização constitucional para os Estados e Municípios editar normas definidoras dos tetos para expedição de Requisição de Pequeno Valor não é licença para ampla discricionariedade das entidades federativas.

SUMÁRIO. 1. Introdução. 2. A execução contra a Fazenda Pública. 2.1. O conceito de Fazenda Pública. 2.2. O regime de precatórios. 3. A Requisição de Pequeno Valor – RPV. 3.1. A exceção ao regime de precatórios. 3.2. Razoabilidade, proporcionalidade, e capacidade econômica. 3.3. Situações exemplares (paradigmas). 3.4. As Alterações da Emenda Constitucional nº 62/2009. 4. Conclusão. 5. Referências bibliográficas.


RESUMO

O art.100 da CF/88 dispõe sobre execução contra a Fazenda Pública, que se dá pelo regime de precatórios, ordenando os pagamentos cronologicamente conforme disponibilidade orçamentária. Essa regra geral é excepcionada nos parágrafos 3º e 4º para as obrigações consideradas de pequeno valor, que dispensam a expedição de precatório e permitem o sequestro na conta bancária do ente público devedor em caso de inadimplemento. Por outro lado, a CF/88 autoriza a definição quantitativa de tais obrigações por leis específicas dos Estados e Municípios, observando-se a capacidade econômica de cada um. Na prática, tem-se verificado que os entes públicos editam leis fixando valores ínfimos, normas estas inconstitucionais por violarem os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade.

PALAVRAS-CHAVE: Fazenda Pública, execução, precatório, RPV, proporcionalidade, inconstitucionalidade


1.INTRODUÇÃO

O presente trabalho debruça-se sobre o art.100 da Constituição Federal, que trata da execução contra a Fazenda Pública e, dentre outras coisas, estabelece o regramento dos precatórios, instrumento próprio para pagamento dos débitos dos entes federativos por ordem cronológica, e, em particular, sobre os casos em que essa ordem é excepcionada.

Dedica-se às hipóteses em que é dispensada a própria formação de precatório, explicitadas nos parágrafos 3º e 4º do referido dispositivo constitucional, para as obrigações consideradas de pequeno valor. Nesses casos, a Lei Maior autoriza que a definição quantitativa de tais obrigações, objeto das RPV (Requisições de Pequeno Valor), seja feita por leis específicas dos Estados e Municípios, desde que em conformidade com a capacidade econômica do ente federativo.

A ideia de escrever sobre o tema surgiu da experiência profissional enquanto servidor da Justiça do Trabalho, quando, ao lidar com as execuções trabalhistas contra a Fazenda Pública, percebíamos o descumprimento do preceito constitucional em diversas leis municipais. Notávamos, pelo conhecimento empírico, que determinados Municípios, notoriamente mais ricos, definiam em seu processo legislativo um valor irrisório como teto das obrigações consideradas de pequeno valor. A contrario sensu, outros Municípios, reconhecidamente paupérrimos, aprovavam leis estabelecendo "pequeno valor" muito maior, revelando espantosa contradição.

Levantada a hipótese, partimos para a verificação de casos paradigmáticos, que já haviam sido objeto de apreciação pela doutrina ou de questionamento judicial, bem como buscamos novos dados, a exemplo dos Municípios da jurisdição das Varas do Trabalho de Feira de Santana-BA, dos quais elaboramos um quadro comparativo entre os valores estabelecidos nas leis de "pequeno valor" e dois dos seus indicadores econômicos. Tudo com a finalidade de atestar o desrespeito aos princípios constitucionais da razoabilidade e da proporcionalidade na criação das normas pelos entes federativos.

A importância do tratamento científico do tema consiste no enorme interesse público das execuções contra a Fazenda Pública, seja para preservar a saúde financeira do Estado e a sua capacidade econômica, seja para permitir que cumpra com maior eficiência as suas funções essenciais na realização do bem-estar social e na garantia da dignidade humana.


2. A EXECUÇÃO CONTRA A FAZENDA PÚBLICA

2.1. Conceito de Fazenda Pública

Tradicionalmente relacionamos a expressão Fazenda Pública às finanças do Estado, identificando-a com erário, ou com o que quer que represente o aspecto financeiro do ente público. Daí, termos Ministério da Fazenda e Secretaria da Fazenda denominando as pastas da administração relacionadas à política econômica dos governos.

Com o tempo, a expressão alcançou amplitude maior, passando a designar a atuação do Estado em juízo, ou melhor, a própria personificação do Estado. No domínio do direito processual, dizemos Fazenda Pública cada vez que houver uma pessoa jurídica de direito público figurando numa ação judicial, ainda que não se trate de matéria fiscal ou financeira.

O professor Hely Lopes Meireles anotou:

"A Administração Pública quando ingressa em juízo por qualquer de suas entidades estatais, por suas autarquias, por suas fundações públicas ou por seus órgãos que tenham capacidade processual, recebe a designação tradicional de Fazenda Pública, porque seu erário é que suporta os encargos patrimoniais da demanda." (1998, p.590)

No presente trabalho, em que discutimos aspectos do procedimento de execução contra a Fazenda Pública, a expressão em comento é adotada para designar todas as unidades federativas, incluindo as autarquias e as fundações públicas e excluindo as sociedades de economia mista e empresas públicas, as quais, em conformidade com o art.173 da CF/88, sujeitam-se ao regime próprio das empresas privadas.

2.2. O regime de precatórios

A execução contra a Fazenda Pública se reveste de características muito especiais, com rito completamente distinto, a ponto de alguns autores não a considerarem verdadeiramente uma execução, ou ainda uma execução imprópria, tendo em vista a afetação do patrimônio dos entes públicos a finalidades públicas, o que impede que seus bens sejam penhorados ou alienados.

Em se tratando da Fazenda Pública, não se aplica, pois, o regramento do Código de Processo Civil para a execução por quantia certa contra devedor solvente, que inclui arresto, penhora, adjudicação, alienação, hasta pública, arrematação, etc. Conforme Alexandre Freitas Câmara, a principal característica da execução contra a Fazenda Pública é a ausência de qualquer ato de apreensão forçada de bens do executado, o que não autoriza negar-se a natureza de módulo processual executivo. (2008, p.308).

A especificidade da execução contra a Fazenda Pública já se delineia com a citação, que se faz não para pagar ou garantir, mas para, querendo, apresentar embargos à execução. Transcorrido in albis o prazo para oferecimento de embargos ou transitada em julgado a sentença que os julgou, o juiz da execução requisitará ao presidente do Tribunal que expeça o precatório dirigido à autoridade competente para a inclusão do crédito no orçamento respectivo e pagamento na ordem cronológica. Tudo em conformidade com o artigo 100 da CF/88:

Art. 100. Os pagamentos devidos pelas Fazendas Públicas Federal, Estaduais, Distrital e Municipais, em virtude de sentença judiciária, far-se-ão exclusivamente na ordem cronológica de apresentação dos precatórios e à conta dos créditos respectivos, proibida a designação de casos ou de pessoas nas dotações orçamentárias e nos créditos adicionais abertos para este fim.

Convém ressaltar que o procedimento especial de execução contra a Fazenda Pública, mediante regime de precatórios, representou, embora parte da doutrina se posicione de forma diversa [01], um avanço democrático e um instrumento de "combate à fraude e aos favorecimentos indevidos, bem como de garantia do prévio estabelecimento de previsão orçamentária para pagamento das condenações." (PAMPLONA FILHO & CERQUEIRA, 2010, p.38).

A propósito, sem pretensão de incursionar por veredas históricas, intento por demais impróprio à natureza do presente trabalho, transcrevemos excerto de Américo Luís Martins da Silva, referindo-se ao sistema caótico, abusivo e imoral reinante no sistema de pagamento das dívidas públicas anterior à Constituição Federal de 1934:

O sistema de pagamento da dívida passiva, oriunda da execução das sentenças condenatórias contra a Fazenda Pública, concorria, enormemente, para a desmoralização da administração pública no Brasil. Nessa época, o Presidente da República, os Ministros de Estado, o Tribunal de Contas, ou qualquer outra autoridade administrativa podiam ordenar pagamento, em se tratando de sentenças judiciárias. A Câmara dos Deputados e o Senado Federal faziam designação de caso ou de pessoas nas verbas legais para pagamento das referidas condenações. Daí, não se respeitar a ordem de preferência. O credor recebia o pagamento da dívida conforme o prestígio que dispunha junto às autoridades do Poder Executivo e do Poder Legislativo. Enfim, o pagamento dessas dívidas passivas era bastante tumultuado e sem organização apropriada. (1996, p.43)

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A despeito de suas imperfeições, mormente no tocante a problemas na aplicação que acabaram por gerar morosidade, o regime de precatórios, enquanto procedimento executório, representou uma resposta efetiva à necessidade de organizar de forma republicana os pagamentos das condenações judiciais da Fazenda Pública.

Pontes de Miranda, ao comentar o art. 182 da Constituição de 1934, dispositivo que introduziu no ordenamento pátrio o sistema de precatórios, foi enfático: "Executado que seja o art.182, ter-se-á concorrido, enormemente, para a moralização da administração pública no Brasil. É o preceito constitucional contra a advocacia administrativa." (S/D, apud. DANTAS, 2010, p.358).


3. A REQUISIÇÃO DE PEQUENO VALOR - RPV

3.1. A exceção ao regime de precatórios

Alegoricamente, podemos compreender o sistema de precatórios como uma grande fila, que se forma a partir da requisição cronológica do pagamento, em sede de execução judicial, dos débitos da Fazenda Pública, consagrando o princípio constitucional da igualdade, tão caro ao estado democrático de direito. A realização judicial deste princípio exige, todavia, a compreensão e a redução das desigualdades, como bem explicita José Afonso da Silva: "A realização da igualdade perante a justiça, assim, exige a busca da igualização de condições dos desiguais [...]" (2001, p.223)

Nesse sentido, a CF/88, ainda no art. 100, excepcionou a ordem cronológica de pagamentos dos precatórios, prevendo, conforme inovação introduzida pela EC nº 30 de 2000, preferências no pagamento dos débitos de natureza alimentícia (§ 1º) e, sobre estes inclusive, para os débitos de natureza alimentícia cujos titulares tenham 60 (sessenta) anos de idade ou mais na data de expedição do precatório, ou sejam portadores de doença grave, definidos na forma da lei (§ 2º).

A outra exceção, na qual centralizaremos a nossa abordagem, diz respeito à dispensa da própria expedição do precatório, para pagamentos de obrigações definidas em leis como de pequeno valor, e à possibilidade de edição dessas leis pelas próprias entidades de direito público, segundo as suas diferentes capacidades econômicas, conforme dicção dos parágrafos 3º, 4° e 5º, do multicitado art. 100 da CF/88. [02]

§ 3º O disposto no caput deste artigo, relativamente à expedição de precatórios, não se aplica aos pagamentos de obrigações definidas em lei como de pequeno valor que a Fazenda Federal, Estadual, Distrital ou Municipal deva fazer em virtude de sentença judicial transitada em julgado.

§ 4º São vedados a expedição de precatório complementar ou suplementar de valor pago, bem como fracionamento, repartição ou quebra do valor da execução, a fim de que seu pagamento não se faça, em parte, na forma estabelecida no § 3º deste artigo e, em parte, mediante expedição de precatório.

§ 5º A lei poderá fixar valores distintos para o fim previsto no § 3º deste artigo, segundo as diferentes capacidades das entidades de direito público. [03]

Ressalte-se que, conforme dispõe o art. 87 do ADCT [04], enquanto não se dê a publicação oficial das respectivas leis definidoras pelos entes da Federação, os débitos ou obrigações que tenham valor igual ou inferior a quarenta salários mínimos, perante a Fazenda dos Estados e do Distrito Federal, trinta salários mínimos, perante a Fazenda dos Municípios, serão pagos mediante Requisição de Pequeno Valor (RPV), ou seja, requisição direta pelo Judiciário, sem necessidade de precatório. No âmbito federal, a Lei 10.259/2001 estabeleceu o limite de sessenta salários mínimos para o Requisitório de Pequeno Valor.

Pretendia o legislador, garantir a rápida tramitação das execuções menos onerosas, desobrigando-as da ordem cronológica dos precatórios, afeita às grandes filas. Por outro lado, ao cunhar a expressão e o conceito econômico de pequeno valor e, principalmente, ao permitir a sua quantificação por lei específica, contendo a eficácia da norma, desejou diminuir o impacto dessas execuções sobre as já muito combalidas fazendas públicas, em particular sobre os municípios do interior deste país continental e desigual.

Além disso, fixados os limites dos créditos sujeitos à RPV, a nova regra determina a requisição do pagamento da dívida diretamente à autoridade citada, e, em caso de descumprimento da ordem de pagamento, o sequestro na conta bancária do devedor.

Necessário se faz também mencionar a disciplina do § 4º do art. 100 da CF/88 que proíbe a expedição de precatório complementar e o fracionamento, da execução, para evitar a confusão dos institutos, a fim de que se processe pela via da RPV aqueles créditos que quantitativamente estejam no limite do que se considera pequeno valor por lei específica do ente federativo ou em consonância com os valores transitórios do texto constitucional.

Por derradeiro, no caso de litisconsórcio ativo, para efeito de dispensa ou não do precatório, será considerado o valor de cada autor. Isto quer dizer que se a somatória do débito extrapolar o limite fixado em lei de pequeno valor ou, na ausência de lei, o limite provisório estabelecido no art. 87 do ADCT, mas o valor devido a cada exequente, tomado individualmente, não superar o referido limite, será expedida Requisição de Pequeno Valor.

3.2. Razoabilidade, proporcionalidade e capacidade econômica

Ainda que relativizemos o conceito de razoável, que é diferente em relação à perspectiva e as limitações de cada um, haverá as barreiras da aceitabilidade. Considerando ainda que a própria lei imponha balizas à atuação da administração, qualquer ação desarrazoada é, evidentemente, ilegal. Com tal posicionamento concorda Carvalho Filho:

Assim, na esteira da doutrina mais autorizada e rechaçando algumas interpretações evidentemente radicais, exacerbadas ou dissonantes do sistema constitucional vigente, é preciso lembrar que, quando se pretender imputar à conduta administrativa a condição de ofensiva ao princípio da razoabilidade, terá que estar presente a idéia de que a ação é efetiva e indiscutivelmente ilegal. (2007, p.32)

A proporcionalidade, enquanto princípio e regra de interpretação, corresponde ao movimento fundamental de evitar o excesso e buscar o equilíbrio. Em suma, o desproporcional naturalmente excede.

[…] o princípio da proporcionalidade ou da razoabilidade, consubstancia uma pauta de natureza axiológica que emana diretamente da idéia de justiça, equidade, bom senso, prudência, moderação, justa medida, proibição de excesso, direito justo e valores afins; precede e condiciona a positivação jurídica, inclusive de âmbito condicional; e, ainda, enquanto princípio geral do direito, serve de regra de interpretação para todo ordenamento jurídico. (LARENS, 1989, p. 585-586, apud. LENZA, 2008, p.75)

A proporcionalidade deve repercutir, inclusive, no exercício da função de legislar do Estado, a fim de se evitar abusos, como precisamente anotado por Raquel Melo Urbano de Carvalho:

"O status constitucional atribuído ao princípio da proporcionalidade impõe ao legislador e ao administrador o dever de considerar a harmonia entre os meios e os fins perseguidos na função estatal cujo exercício lhes é imputado." (2008, p.133)

Estabelecidas as premissas, não há dúvida que a fixação pelos Estados-membros e Municípios daquilo que, em seu âmbito, consideram-se obrigações ou dívidas de pequeno valor, no exercício da competência legislativa delegada expressamente no art. 100 § 5º da CF/88, deve pautar-se por critérios objetivos que indiquem a capacidade financeira do ente federado.

A despeito da grande desigualdade econômica entre as regiões do país, os valores indicados no art. 87 do ADCT da CF/88, que não constituem critérios mínimos nem máximos, tampouco pisos ou tetos definitivos, servem, todavia, de indicadores do que o legislador considerou medianamente razoável.

Na prática, entretanto, o que se vislumbrou após a EC 37 de 12 de junho de 2002, que definiu os parâmetros provisórios de pequeno valor para Estados-membros e Municípios em, respectivamente 40 e 30 salários mínimos, foi uma corrida dos entes federativos, em especial dos Municípios, para editar normas fixando valores muito inferiores aos previstos no texto constitucional. Segundo Renato Luis Dresch, tal movimento se deu em prejuízo da efetividade jurisdicional, dos pequenos credores da Fazenda Pública, e, em última, análise, da teleologia constitucional que visa ao privilégio dos pequenos valores. (2010, p.4)

Não há dúvidas de que a RPV é um instrumento eficaz de tutela jurisdicional, refletindo a busca da razoável duração do processo, princípio que ingressou no ordenamento pátrio pela EC 45/2004 e foi instituído no inciso LXXVIII do art. 5º da CF/88, tendo em vista que abrevia a satisfação do credor nas condenações judiciais da Fazenda Pública, levando-se em conta que, por essa via, evitam-se as filas, em alguns casos intermináveis, dos precatórios. Entretanto, esse atalho procedimental torna-se inócuo se não for exigida dos entes federativos obediência aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade no exercício do poder de legislar.

Mais uma vez, Dresch nos socorre com muita lucidez:

Caso se admita que Estados e Municípios têm ampla liberdade para limitar as dívidas de pequeno valor sem atentar para a proporcionalidade ou a razoabilidade, seríamos obrigados a admitir que, numa situação absurda, o Município pudesse considerar dívida de pequeno valor as importâncias que não superassem R$ 10,00. Essa é a razão pela qual se deve atentar para a proporcionalidade. (2010, p.6)

No mesmo diapasão, Pamplona Filho & Cerqueira:

De mais a mais, impende alertar que a Constituição não fixa um teto para a determinação do que se entende por obrigações de pequeno valor, de maneira a não ser vinculativa, com relação aos estados, aos municípios e ao Distrito Federal, os tetos dispostos no art. 87 do ADCT. Todavia, por questões de razoabilidade, deve existir uma mínima ponderação no momento da determinação do teto das obrigações de pequeno valor. (2010, p.57)

O STF, em reiteradas decisões, também tem relativizado a autonomia dos Estados e Municípios no regramento da RPV, avaliando que os entes federativos, ao definirem quantitativamente o que seja "pequeno valor" para efeito de dispensa de expedição de precatório requisitório, devem obediência ao princípio da proporcionalidade.

Decidiu o Ministro Gilmar Mendes:

[...] o Tribunal fixou o entendimento de que é constitucional a lei da entidade federativa que fixa valores diferenciados àquele estipulado, em caráter transitório, pelo art. 87, inciso II, do ADCT. Entendeu-se, assim, que o art. 100, § 5º, da Constituição, permite que a lei fixe valores distintos como referencial de "pequeno valor" apto a afastar a incidência do sistema de pagamento, por meio de precatórios, dos débitos da Fazenda Pública.

A teleologia das normas constitucionais é a de assegurar a autonomia das entidades federativas, de forma que Estados e Municípios possam adequar o sistema de pagamento de seus débitos às peculiaridades financeiras locais. O referencial de "pequeno valor", para afastamento da aplicação do sistema de precatórios, deverá ser fixado conforme as especificidades orçamentárias de cada ente da federação.

Parece claro, da mesma forma, que essa autonomia do ente federativo deverá respeitar o princípio da proporcionalidade. É dizer: não poderá o Estado ou o Município estabelecer um valor demasiado além, ou aquém, do que seria o valor razoável de "pequeno valor" conforme as suas disponibilidades financeiras. Cada caso é um caso, cujo juízo de proporcionalidade pressupõe a análise dos orçamentos de cada ente federativo. [05]

Não se pode olvidar, repise-se, que Municípios muito pequenos, com orçamentos mínimos não suportariam o valor fixado no art. 87 da ADCT para a dispensa da expedição de precatório. O que se infere do posicionamento da maior parte da doutrina, coincidente com o do STF, é que o que deve ser rechaçado é a possibilidade de Estados e Municípios estabelecerem valores ínfimos, desproporcionais e desarrazoados, comprometendo o próprio instituto da RPV ao inviabilizar sua finalidade prioritária, qual seja a de tornar mais efetiva e célere a satisfação do crédito nas pequenas execuções contra a Fazenda Pública.

3.3. Situações exemplares (paradigmas)

O Município de São Paulo, maior capital do país, fixou pela Lei 13.179/2001 o valor de R$ 7.200,00, como teto para expedição de RPV, tal quantia à época representava 40 salários mínimos, o que podemos considerar bastante razoável, se sopesarmos que a própria Constituição estimou o valor provisório de 30 salários mínimos. Já Belo Horizonte, terceira maior capital, fixou mediante lei municipal 9.320/2007, o irrisório e desproporcional limite de cinco salários mínimos, acima do qual inevitavelmente expedir-se-á precatório.

Notório é o caso da Lei 5.250/2002 do Estado do Piauí, que previa a necessidade de um montante superior a cinco salários mínimos para motivar expedição de precatório, e teve a constitucionalidade questionada por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2.868/PI [06], a qual veio a ser julgada improcedente. Em decisão não unânime dos Ministros do STF, considerou-se razoável o valor estipulado, levando-se em consideração ser o Piauí o Estado de menor PIB per capita da Federação.

O próprio STF, na Reclamação n° 4.988/MC/PE, entendeu proporcional o valor ínfimo de R$ 900,00, como referencial de pequeno valor fixado pelo Município de Petrolina-PE. Já a 1ª Câmara do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, em decisão unânime entendeu que a Lei nº 1.585/2005, do Município de Guaranésia, que fixou o limite para RPV em R$ 1500,00, não ofendia aos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade.

A tabela abaixo se refere aos Municípios que integram a jurisdição das Varas do Trabalho de Feira de Santana, na Bahia, precisamente aqueles que editaram leis fixando quantitativamente o valor teto para obrigações e débitos de pequeno valor. Elencamos, num quadro comparativo, os valores definidos nas aludidas leis [07] e dois indicadores econômico-financeiros [08] de cada um dos Municípios.

Não é necessário um exame acurado dos dados da tabela para perceber a inexistência de critérios objetivos no exercício do poder de legislar dos Municípios, nomeadamente em relação à observância da capacidade financeira para a definição dos valores que incidem para efeito das RPV.

Tomando a princípio os Municípios de Amélia Rodrigues e Anguera, verificamos que ambos definiram, no seu âmbito, o importe de dois salários mínimos como teto das obrigações e débitos de pequeno valor. Contudo, ao julgar pelos indicadores econômicos, constatamos que a capacidade financeira do primeiro tende a ser duas vezes maior que a do segundo. Situação similar ocorre se compararmos os Municípios de Antônio Cardoso e Ipirá, com envergaduras econômico-financeiras completamente díspares, mas que fixaram limites idênticos para expedição de RPV. O mesmo se pode afirmar ao confrontarmos na tabela os Municípios de Feira de Santana e São Gonçalo dos Campos.

Flagrante paradoxo também se nos mostra ao percebermos que Municípios de economia reconhecidamente fragilizada ou de menor vigor, a exemplo de Lamarão, aprovaram leis estabelecendo um "pequeno valor" muito maior que o de outros reconhecidamente de maior pujança, como Santo Estêvão e Amélia Rodrigues.

De outra sorte, verificamos que a maioria absoluta dos Municípios estabeleceu valores irrisórios, atendidos assim aqueles entre um e cinco salários mínimos, sobretudo se cotejarmos tais valores com os trinta salários mínimos fixados provisoriamente pelo texto constitucional no art. 87 dos ADCT. São valores indefensáveis diante da razão de ser do instituto da RPV, que é tutelar os pequenos débitos da Fazenda Pública, sua grande maioria, a exemplo daqueles advindos dos processos do trabalho, de natureza alimentícia, dando-lhes tramitação mais célere.

3.4. As Alterações da Emenda Constitucional nº 62/2009

Ainda estava em curso a pesquisa que fundamentou o presente artigo, quando se deu a publicação da Emenda Constitucional n° 62, em 9 de novembro de 2009, alterando significativamente o art. 100 da CF/88 e introduzindo mudanças em todo o sistema de precatórios, inclusive atinentes à Requisição de Pequeno Valor, que motivou este trabalho.

Por ser muito recente a edição da emenda, a doutrina ainda não se manifestou de maneira profusa sobre as mudanças, tampouco a jurisprudência pacificou posicionamentos, e muito menos tivemos lapso suficiente para avaliar seus efeitos práticos. Nesse particular, faço minhas as ressalvas de Francisco Wildo Lacerda Dantas:

As considerações que serão realizadas sobre o texto, ainda fresco, da recentíssima Emenda Constitucional, portanto, ainda que possam revelar um sabor de improvisação, se reveste, por outro lado, de um inegável ineditismo que as poupará da possível crítica de apenas repetir o que já se tinha escrito a respeito. (2010, p.355)

Relativamente ao parágrafo 3º do art. 100 CF/88, a EC 62/2009 não trouxe qualquer alteração, mantendo a dispensa de expedição de precatório requisitório nas obrigações definidas em lei como sendo de pequeno valor. Incluiu, contudo, um novo parágrafo 4º, inserindo um piso ou valor mínimo para a fixação do limite de expedição das RPV a ser observado pelas pessoas jurídicas de direito público. O teor do antigo § 4º permaneceu válido, passando a figurar agora no § 8º. Confiramos, pois, a nova redação dos §§ 3º e 4º:

§ 3º O disposto no caput deste artigo relativamente à expedição de precatórios não se aplica aos pagamentos de obrigações definidas em leis como de pequeno valor que as Fazendas referidas devam fazer em virtude de sentença judicial transitada em julgado. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 62, de 2009).

§ 4º Para os fins do disposto no § 3º, poderão ser fixados, por leis próprias, valores distintos às entidades de direito público, segundo as diferentes capacidades econômicas, sendo o mínimo igual ao valor do maior benefício do regime geral de previdência social. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 62, de 2009). [09]

Note-se que, a partir da EC 62/2009, não é mais possível aos Estados ou Municípios instituírem "menor valor" inferior ao do maior benefício do regime geral da previdência social, que, atualmente monta em R$ 3.467,40, conforme Lei 1.254 de 15 de junho de 2010. [10]

Significa dizer que, com o advento da EC 62/2009, não serão mais admitidos os ínfimos valores comumente estabelecidos pelos entes públicos, especialmente os Municípios, uma vez que a própria Constituição passou a estipular um mínimo vinculado ao maior valor mensal pago aos beneficiários do regime geral da previdência social.

Restauradas e resguardadas estão, apenas em parte, a efetividade e a dignidade do instituto da RPV, enquanto instrumento do processo de execução contra a Fazenda Pública destinado a tutelar os credores de pequenas somas, uma vez que o limite a ser definido em lei específica passou a ser balizado por um piso que garante um "pequeno valor", se não ideal ou substancial, muito acima daqueles ultrajantes ou desmoralizantes valores já tratados em pormenores no tópico anterior.

Digo em parte porque, se o texto constitucional agora condiciona que lei específica estipule valores dentro de um padrão mínimo de aceitabilidade, se assim considerarmos o maior benefício previdenciário, não garante, por sua vez, a subordinação aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade no tocante às capacidades econômicas, sobretudo se tomarmos em consideração os Estados e Municípios maiores e economicamente mais vigorosos. Em suma, para tais entes federativos fixar o limite para expedição de RPV igual ao mínimo estabelecido pelo § 4° do art. 100 da CF/88 não é razoável nem proporcional.

Outra questão que a EC 62/2009 trouxe à baila diz respeito à eficácia das leis estaduais e municipais que já existiam antes da sua vigência, e definiam valores para dispensa de precatório inferiores ao valor do maior benefício previdenciário, e cuja constitucionalidade já vínhamos questionando pelo desrespeito aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. Agora, com as alterações introduzidas pela emenda, essas normas passaram a afrontar dispositivo expresso da carta magna.

Nesse ponto, seguimos o posicionamento de Leonardo José Carneiro da Cunha, que nega a existência de inconstitucionalidade superveniente, e considera revogadas tais leis, voltando a vigorar, até que se editem novas normas, os limites provisórios previstos no art.87 do ADCT.

É ponto incontroverso na doutrina e na jurisprudência brasileiras que não existe inconstitucionalidade superveniente. A nova previsão constitucional não torna inconstitucionais as leis anteriores que com ela não se adéquem. Em vez de tornar inconstitucionais as normas até então em vigor, a nova regra constitucional tem o condão, isto sim, de revogá-las. [11] (2010)

Com essas considerações, reitero que, com a introdução do novo § 4º do art. 100 da CF/88, apenas parcialmente foi resgatada a vontade do poder constituinte derivado ao criar a RPV com o escopo de dar proteção aos pequenos credores da Fazenda Pública, uma vez que foi garantido apenas um piso, aceitável somente para os entes federativos de pequena capacidade financeira, para os quais sem dúvida foi mitigada a ampla liberdade que tinham para formular as normas limitadoras das dívidas de pequeno valor. Para os Estados e Municípios mais ricos da nossa federação, no entanto, a fixação do limite mínimo pela EC 62/2009 não trará qualquer efeito prático, continuando intacto o poder de legislar ao seu alvedrio sobre a definição do que devem ser consideradas, em seu âmbito, obrigações e dívidas de pequeno valor.

Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROSA, Nelio. A inconstitucionalidade das leis de pequeno valor na execução contra a Fazenda Pública. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3001, 19 set. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19933. Acesso em: 22 dez. 2024.

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