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Caso Richarlyson: análise da atuação do juiz na decisão judicial segundo a perspectiva da teoria do direito de Ronald Dworkin

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Agenda 11/09/2011 às 18:45

Em vez de se ater à demanda do processo, o juiz preferiu perfilar preconceitos. Analisa-se o comportamento do magistrado a partir da teoria do Direito de Ronald Dworkin, afirmando a importância da observância ao precedente e aos princípios.

Resumo: Este artigo tem como objetivo analisar o caso do jogador de futebol Richarlyson, que em 2007 ajuizou ação na 9º Vara Criminal de São Paulo, alegando ter sofrido crime de injúria. Na ocasião, em lugar de ater-se à real demanda do processo, o juiz, Manoel Maximiano Junqueira Filho preferiu perfilar argumentos preconceituosos segundo os quais não seria aconselhável (ou possível) que um homossexual jogasse futebol. Tendo em vista o comportamento do magistrado nesta decisão, o estudo buscou, a partir da Teoria do Direito de Ronald Dworkin, afirmar a importância da observância ao precedente e aos princípios, presentes no direito positivados e na moral da comunidade política.

Palavras-chave: Integridade, Objetividade, Dworkin.


1. CASO RICHARLYSON: BREVE DESCRIÇÃO DO OBJETO A SER ANALISADO

Em 2007, Richarlyson, jogador de futebol, ajuizou ação na 9ª Vara Criminal de São Paulo contra um dirigente do Palmeiras, José Cyrillo Júnior, alegando que sofrera crime de injúria. Como foi amplamente divulgado, o "cartola" teria insinuado em um programa televisivo que o atleta seria homossexual. Como muitos opinaram, talvez a questão não seja, efetivamente, motivo para abertura de um processo judicial. Contudo, ao invés de promover uma discussão que pudesse solucionar o caso, o juiz Manoel Maximiano Junqueira Filho surpreendeu com uma decisão paupérrima em argumentação jurídica e transbordante em preconceitos.

O magistrado, que deixou de lado a real questão, isto é, a existência de injúria por parte do diretor do Palmeiras, preferiu tratar de uma suposta exigência de masculinidade e virilidade no futebol, fundamentando-a com argumentos duvidosos como ditos populares, hinos de clubes de futebol, além de afirmar textualmente: "é assim que eu penso... e porque penso assim, na condição de magistrado, digo!" (JUNQUEIRA FILHO, 2007, p. 4), em um evidente descaso à objetividade como elemento central da decisão, substituindo-a pela vontade do aplicador.

Neste estudo, não se pretende discutir questões processuais, concernentes ao caráter legal da decisão ou mesmo fazer quaisquer generalizações. O objetivo é analisar, ainda que brevemente, em um caso concreto, como propõe Ronald Dworkin, o comportamento e a interpretação do juiz no que diz respeito à sentença do caso, destacando a objetividade –ou a falta dela- na decisão. Para fazer esta análise, adotar-se-á como base teórica o pensamento de Dworkin, enfocando sua teoria do direito como integridade para orientar a atuação do juiz.


2. TEORIA DO DIREITO DE RONALD DWORKIN: A NECESSIDADE DO DIREITO COMO INTEGRIDADE

2.1. A importância da interpretação para a decisão judicial

Para alcançar os objetivos deste estudo, é preciso, antes de tudo, descrever, ainda que brevemente, a importância da interpretação no âmbito da decisão judicial para Dworkin, apontando tal processo interpretativo como discussão base para o desenvolvimento de toda a obra. Segundo o teórico, ao Direito aplica-se a interpretação de práticas sociais, que é criativa, não conversacional. Isto é, trata-se de um processo que se preocupa, primordialmente, com o propósito não a causa. É importante ressaltar, ainda, que tais propósitos não são os do autor, mas os do intérprete. Todavia, isso não significa que este possa dar à obra interpretada qualquer sentido que desejar, pois, como afirma Dworkin (2010, p. 64):

A história ou a forma de uma prática ou objeto exerce uma coerção sobre as interpretações disponíveis destes últimos, ainda que, como veremos, a natureza dessa coerção deva ser examinada com cuidado. Do ponto de vista criativo, a interpretação é um caso de interação entre propósito e objeto.

No processo de interpretação, Dworkin enfatiza também que não se trata de buscar a intenção original do autor, mas como lembra Gadamer, de "pôr em prática uma inteção" (GADAMER apud DWORKIN, 2010, p. 67). O exemplo trazido pelo teórico estadunidense é o teatro. Produzir uma peça de teatro é uma forma de interpretá-la, podendo trazer novos enfoques que, eventualmente, difiram da intenção definida conscientemente pelo autor. Nas palavras de Dworkin (2010, p. 71):

Uma interpretação é, por natureza, o relato de um propósito, ela propõe uma forma de ver o que é interpretado – uma prática social ou uma tradição, tanto quanto um texto ou uma pintura – como se este fosse o produto de uma decisão de perseguir um conjunto de temas, visões e objetivos, uma direção em vez de outra.

No âmbito da decisão jurídica, inevitavelmente o objetivo maior do direito, tem grande destaque o juiz, mais que operador, aplicador de regras e princípios. Segundo Dworkin, há três tipos principais de juízes, ou melhor, há três concepções de direito, que orientam a atuação no que diz respeito à interpretação: convencionalismo, pragmatismo e direito como integridade. Nos próximos tópicos discorrerei sobre as duas primeiras, contrastando cada uma delas com a concepção de direito como integridade. Buscarei compreender também em qual delas a decisão do caso em análise melhor se enquadra.

2.2. Concepção convencionalista

O convencionalismo, ou conservadorismo, que tem por característica fundamental afirmar o direito como algo único e imutável, que não pode ser modificado ou adequado pelo juiz, mas que deve ser aplicado sem contaminar-se por quaisquer concepções deste.

Esta concepção, como aponta Dworkin, serve de justificativa para a manutenção incontestável de decisões passadas, isto é, das convenções, que, segundo essa corrente, estão presentes em todas as sociedades complexas. "O convencionalismo sustenta que a prática jurídica, bem compreendida, é uma questão de respeitar e aplicar essas convenções, de considerar suas conclusões, e nada mais, como direito" (DWORKIN, 2010, p. 142).

Todavia, o convencionalismo não corresponde à compreensão leiga de que o direito possui normas para todos os casos. Na realidade, por convenção, o direito não é, nem pode ser, completo, já que a todo momento surgem casos novos, que não encontram semelhantes que já tenham sido resolvidos anteriormente. Desse modo, os adeptos desta corrente argumentam que nestes casos novos, os casos difíceis, a decisão do juiz é discricionária no sentido forte do termo, uma vez que deverá fundamentar-se em elementos que estão além do direito, das convenções jurídicas. Contudo, como observa Dworkin, juízes e advogados divergem sobre a leitura – e interpretação – correta de leis e decisões tomadas no passado. Entretanto, o convencionalismo, assim como não nega as possíveis posições antagônicas de operadores do direito, também não afirma que alguns estão errados ou que falam absurdos.

O convencionalismo faz ainda duas afirmações que devem ser ressaltadas. Em primeiro lugar, cabe aos juízes, salvo em raras exceções, respeitar as convenções jurídicas da comunidade, isto é, "tratar o direito como aquilo que a convenção estipula como tal" (DWORKIN, 2010, p. 144). Nesse sentido, sob a perspectiva convencionalista, ainda que um juiz considere uma lei injusta ou insensata, deve aplicá-la, não criar um novo direito. A segunda afirmação, por sua vez, declara que o direito somente pode ser encontrado em decisões passadas através de técnicas, que são convenções. Assim, em alguns casos (situações que não encontram precedente) não há direito pelo simples fato de que ainda não se proferiu nenhuma decisão a nenhum caso semelhante isto é, porque ainda não há convenção para este caso. Entretanto, nessas situações, o juiz convencionalista não pode eximir-se de tomar uma decisão. Em tais ocasiões tem-se os casos difíceis (hard cases), cabendo ao juiz exercer o poder discricionário, tomando decisões baseadas em fatores extrajurídicos e produzindo um novo direito, que, futuramente, será convertido em convenção, direito antigo.

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Uma crítica a essa visão convencionalista pode ser encontrada na obra de Carlos Maximiliano. Este autor defende que a aplicação incondicional do direito "ainda que o mundo pereça" é vetusta e terrível (MAXIMILIANO, 2010, p. 137). Embora o autor acredite na aplicação do direito como subsunção, isto é, o enquadramento do fato à norma, não defende que a atuação do juiz deva ser orientada pela aplicação cega de normas, desconsiderando o coeficiente pessoal e os valores jurídico-sociológicos (MAXIMILIANO, 2010, p.103). Como conclui o teórico brasileiro, "o direito prevê e provê; logo não é indiferente à realidade. Faça-se justiça; porém salve-se o mundo, e o homem de bem que no mesmo se agita, labora, produz" (MAXIMILIANO, 2010, p.139). Comparativamente com o pensamento de Dworkin, esta idéia corresponde à defesa da equidade e da justiça como pressupostos do direito como integridade, traduzidas na moral política da comunidade. A questão principal para ambos os autores não é a impossibilidade de decidir segundo as decisões passadas, segundo o precedente. Na realidade, o direito como integridade proposto pelo jusfilósofo americano, assim como a visão de Maximiliano, é, de fato, uma concepção positivista. Contudo, não se restringe a isto, devendo trazer a moralidade para o campo do direito.

Como destaca Dworkin, o juiz convencionalista deve ter bastante cuidado ao exercer a discricionariedade, já que, tendo de ater-se às convenções (tanto normas quanto decisões anteriores), seu poder de criar novo direito é bastante limitado (DWORKIN, 2010, p. 162). Além disso, essa coerência também não exige do juiz convencionalista que analise exaustivamente todas as decisões passadas a fim de descobrir a melhor maneira de interpretação a ser aplicada, ou a forma mais correta de compreender um precedente. Isso quer dizer que o juiz convencionalista, apesar de preocupar-se com a coerência, não age do mesmo modo que o juiz orienta-se a partir do direito como integridade, pois este observa, além da coerência com o princípio e com o precedente, a coerência com o princípio como fonte de direitos. De acordo com Dworkin (2010, p. 164):

O direito como integridade supõe que as pessoas têm direitos – direitos que decorrem de decisões anteriores de instituições políticas, e que, portanto, autorizam a coerção – que extrapolam a extensão explícita das práticas políticas concebidas como convenções. O direito como completude supõe que as pessoas têm direito a uma extensão coerente, e fundada em princípios, das decisões políticas do passado, mesmo quando os juízes divergem profundamente sobre seu significado. Isso é negado pelo convencionalismo: um juiz convencionalista não tem razões para reconhecer a coerência de princípio como uma virtude judicial, ou para examinar minuciosamente leis ambíguas ou precedentes inexatos para tentar alcançá-la.

Tendo traçado – espero eu – uma breve descrição do convencionalismo, contrastando-o com o direito como integridade, passarei à análise do pragmatismo, comparando-o às outras duas concepções.

2.3. Concepção pragmática

Se ao convencionalismo cabem, por assim dizer, os dogmas da interpretação presa à regra e ao precedente, tal preocupação em ater-se às convenções não é compartilhada pelo pragmatismo. Segundo esta corrente, o juiz deve adotar uma "atitude cética com relação ao pressuposto que acreditamos estar personificado no conceito de direito: nega que as decisões políticas do passado, por si sós, ofereçam qualquer justificativa para o uso ou não do poder coercitivo do Estado" (DWORKIN, 2010, p. 185), devendo, assim, estar sempre pronto a modificar regras anteriormente estabelecidas. De acordo com Dworkin, a diferença principal entre as duas concepções reside no fato de que, na perspectiva convencionalista, os juízes não são livres para alterar ou interpretar regras derivadas das convenções jurídicas. Na ótica pragmática, por sua vez, os juízes não têm o dever geral de reconhecer e seguir tais convenções. Desse modo, em uma sociedade que adote o pragmatismo como eixo central de sustentação, os juízes sentem-se "livres para mudarem as regras quando pensam que a mudança seria – ligeiramente, ao menos – mais importante que qualquer mal que a mudança pudesse causar" (DWORKIN, 2010, p. 181). Contudo, com esse estímulo à mudança, ainda que se fortaleça a flexibilidade do sistema – e por isso mesmo assume muito mais vantagens que o convencionalismo –, torna-se muito mais difícil prever as decisões que os juízes irão tomar.

O pragmatismo também difere do direito como integridade na medida em que adota o ceticismo interior ao direito, enquanto que o direito como completeza (assim como o convencionalismo), trata-se de uma

teoria não cética das pretensões juridicamente protegidas: sustenta que as pessoas têm como pretensões juridicamente protegidas todos os direitos que são patrocinados pelos princípios que proporcionam a melhor justificativa como um todo. O pragmatismo, ao contrário, nega que as pessoas tenham quaisquer direitos; adota o ponto de vista de que elas nunca terão direito àquilo que seria pior para a comunidade apenas porque uma legislação assim o estabeleceu, ou porque uma longa fileira de juízes decidiu que outras pessoas tinham tal direito (DWORKIN, 2010, p. 186).

Entretanto, como observa Dworkin, se os direitos e deveres indubitavelmente fazem parte da realidade jurídica na qual vivemos, o pragmatismo pode ser usado como interpretação possível? O jusfilósofo esclarece que, na prática, essa corrente não é tão radical, pois os pragmáticos defendem que os juízes devem agir como se as pessoas tivessem direitos, isto é, para o bem da civilização, admitir que a legislação – e só ela – pode estabelecer normas, e os magistrados, para evitar o próprio fracasso do modelo pragmático, não podem descartar leis apenas pelo fato de que não as aprovam.

Todavia, surge outra questão: a estratégia do como se não poderia, em vez de cumprir a proposta pragmática, gerar uma doutrina atenuada de respeito ao precedente ou mesmo pautar-se em um fingimento? Com esta interrogação, Dworkin busca explicitar duas dúvidas bastante recorrentes quando se defende o pragmatismo não radical. Em primeiro lugar, o juiz poderia estar pronto a reduzir ou ampliar sua lista de direitos "como se", de acordo com suas experiências. Desse modo, não seria necessário considerar todos os direitos conferidos por todas as leis, nem todos os direitos proferidos em todas as decisões anteriores. Ao juiz caberia, segundo essa primeira visão, a faculdade de rejeitar decisões judiciais do passado especialmente irrefletidas ou leis que já não se aplicassem à conjuntura política atual da sociedade.

Em contrapartida, uma segunda visão sugere que o magistrado poderia disfarçar tais atenuantes na medida em que simulasse a observância de uma lei obsoleta ou de um precedente tolo e malicioso, quando, na realidade, tal observância não é real. Assim, poderiam surgir "interpretações" surpreendentes de leis e decisões anteriores, que, na verdade, não passariam de simulações. Todavia, como destaca Dworkin, não se trata aqui de definir essa simulação como "nobre mentira" ou torpe e maléfico engodo, pois "um pragmático deveria chegar a sua concepção de modo tão abertamente pragmático quanto lhe permita sua ousadia, disfarçando apenas aqueles elementos que a sociedade não está totalmente preparada para aceitar" (DWORKIN, 2010, p. 190).

Embora essas questões tenham inegável importância, é preciso reconhecer os pontos positivos do pragmatismo, pontos que o aproximam da concepção do direito como integridade, a qual Dworkin defende como aquela que deve ser a verdadeira orientadora da decisão judicial. A primeira vantagem da visão pragmática refere-se ao fato de que ela não deseja buscar uma suposta intenção original do legislador ou do juiz que proferiu uma decisão anterior. Além disso, o juiz pragmático não se sente obrigado a considerar e seguir sempre o precedente quando este se tratar de decisão obscura ou quando houver espaço para divergência entre as semelhanças e diferenças entre decisões passadas e o caso em questão.

Todavia, ainda que apresente consideráveis pontos positivos, que lhe garantem flexibilidade bem maior que aquela reservada ao convencionalismo, o pragmatismo também é uma concepção cética do direito, pois "rejeita a existência de pretensões juridicamente tuteladas genuínas, não estratégicas" (DWORKIN, 2010, p. 195). Isso significa que, ainda que os juízes pragmáticos não rejeitem as pretensões morais e políticas da comunidade, não levam a sério as pretensões juridicamente tuteladas, ou seja, os direitos, que segundo tal visão, não possuem força ou fundamento independentes. Embora esta visão de "direito sem direitos" não seja em si, algo maléfico, já que o pragmático afirma sempre voltar-se à busca de um futuro melhor, é absolutamente importe observar a coerência ao princípio, uma das exigências da integridade.

Entender a integridade torna-se bem mais fácil se observarmos o exemplo construído por Dworkin. Como afirma o teórico, as pessoas exigem do Estado que este, através de suas instituições, aja de modo coerente com os princípios pelos quais escolheu se pautar. Isto é, "exige que o governo tenha uma só voz e aja de modo coerente e fundamentado em princípios com todos os seus cidadãos, para estender a todos os padrões fundamentais de justiça e equidade que usa para alguns" (DWORKIN, 2010, p. 201). Além disso, cotidianamente, as pessoas também desejam que as outras comportem-se segundo princípios de certo modo gerais, que permeiam toda a comunidade, mesmo que, muitas vezes, haja divergências referentes ao que realmente são princípios de equidade e justiça corretos. Desse modo, como afirma Dworkin (2010, pp. 202-203):

Se aceitarmos a integridade como uma virtude política distinta ao lado da justiça e da equidade, então teremos um argumento geral, não estratégico para reconhecer tais direitos. A integridade da concepção de equidade de uma comunidade exige que os princípios políticos necessários para explicar a suposta autoridade da legislatura sejam plenamente aplicados ao se decidir o que significa uma lei por ela sancionada. A integridade da concepção de justiça de uma comunidade exige que os princípios morais necessários para justificar a substância das decisões de seu legislativo sejam reconhecidas pelo resto do direito. A integridade de sua concepção de devido processo legal adjetivo insiste em que sejam totalmente obedecidos os procedimentos previstos nos julgamentos e que se consideram alcançar o correto equilíbrio entre exatidão e eficiência na aplicação de algum aspecto do direito, levando-se em conta as diferenças de tipo e grau de danos morais que impõe um falso veredito. Essas diferentes exigências justificam o compromisso com a coerência do princípio valorizada por si mesma. Sugerem aquilo que sustentarei: que a integridade, mais que qualquer superstição de elegância, é a vida do direito tal qual conhecemos.

A integridade também, como aponta Dworkin, também exige dos legisladores que mantenham o direito coerente quanto aos princípios, assim como demanda dos juízes que interpretem e cumpram a lei observando igualmente tal coerência, contrariando a visão pragmática, que não considera o direito como um todo, isto é, adotando a perspectiva de Bobbio, o foco no ordenamento jurídico, não como decisões ou normas esparsas usadas conforme a estratégia do pragmatismo.

Ao reportar-se aos princípios da comunidade, Dworkin não deseja endossar qualquer teoria metafísica, ou a visão da comunidade como ente uno e racional, superior às pessoas que a compõem. Na realidade, trata-se da construção de um raciocínio sobre a integridade baseado em duas etapas, a responsabilidade, considerando as partes do processo como agentes morais, e a autoridade dos cidadãos no âmbito coletivo, não apenas individual. Se tais princípios de integridade realmente valem, então o pragmatismo deve ser rejeitado, assim como o convencionalismo, em favor do direito como completeza.

2.4. Afinal, de acordo com a teoria de Dworkin, como procedeu o juiz do caso em questão?

A partir do que tentei expor acima sobre a teoria do direito de Ronald Dworkin, seria possível classificar a decisão proferida pelo juiz Manoel Maximiano Junqueira Filho pautada em uma visão convencional, pragmática ou integral do direito? Acredito que sim, tal classificação seria, sim, possível. A sentença carrega um inconfundível caráter pragmático, já que não se prende a qualquer argumento baseado em decisões anteriores ou normas legalmente estabelecidas, mas nas concepções pessoais do magistrado, que se limita a afirmar que a queixa-crime não reúne condições para ser deferida, iniciando uma série de argumentos claramente homofóbicos.

Como afirmei de início, não pretendo aqui discutir se realmente houve crime de injúria e, por isso, a sentença talvez fosse inadequada, até porque não disponho de informações ou instrumentos suficientes para fazê-lo. Este estudo tem como objetivo esclarecer a inadequação da sentença e da atitude do magistrado em relação à não consideração do direito como integridade, isto é, o descaso com a objetividade, os princípios e o devido processo legal.

Na decisão proferida para o caso em análise, o juiz deixa clara sua concepção pragmática em diversos pontos:

  • 1. Não vejo nenhum ataque do querelado ao querelante.

  • 2. Em nenhum momento o querelado apontou o querelante como homossexual.

  • 3. Se o tivesse rotulado de homossexual, o querelante poderia optar pelos seguintes caminhos:

    • 3. A – Não sendo homossexual, a imputação não o atingiria e bastaria que, também ele, o querelante, comparecesse no mesmo programa televisivo e declarasse ser heterossexual e ponto final;

    • 3. B – se fosse homossexual, poderia admiti-lo, ou até omitir, ou silenciar a respeito. Nesta hipótese, porém, melhor seria que abandonasse os gramados...

  • Quem é, ou foi BOLEIRO, sabe muito bem que estas infelizes colocações exigem réplica imediata, instantânea, mas diretamente entre o ofensor e o ofendido, num TÈTE-À TÈTE".

  • Trazer o episódio à Justiça, outra coisa não é senão dar dimensão exagerada a um fato insignificante, se comparado à grandeza do futebol brasileiro.

  • Em Juízo haveria audiência de retratação, exceção da verdade, interrogatório, prova oral, para se saber se o querelado disse mesmo... e para se aquilatar se o querelante é, ou não...

Neste ponto, o magistrado exime-se de qualquer análise sobre a existência ou não de crime por parte do réu, assim como não atém-se a qualquer estudo ou interpretação jurídica do caso, preferindo proferir opiniões pessoais sobre o assunto. Fica bastante claro que o juiz não prima pela objetividade.

É de suma importância esclarecer que, segundo a opinião de muitos analistas e leigos, a questão não fosse efetivamente algo que exigisse a intervenção judiciária, não cabe ao juiz avaliar a suposta significância do caso em relação a elementos como o "futebol brasileiro", sobretudo se neste âmbito esportivo, o magistrado considera existir um espaço moral à parte, que não deve – nem pode – admitir a presença de pessoa de orientação diferente a de uma "suposta" inegável maioria. Para fundar tal argumento, o magistrado utiliza vários e infundados artifícios, como a afirmação, através da letra de um hino de futebol, da virilidade e masculinidade – e não homossexualidade – do futebol.

7. Quem se recorda da "COPA DO MUNDO DE 1970", quem viu o escrete de ouro jogando (FÉLIX, CARLOS ALBERTO, BRITO, EVERALDO E PIAZA; CLODOALDO E GÉRSON; JAIRZINHO, PELÉ, TOSTÃO E RIVELINO), jamais conceberia um ídolo seu homossexual.

O magistrado ainda tenta sustentar seus argumentos opinando que, tendo em vista atletas de grande destaque no futebol, seria impossível que qualquer torcedor pudesse ter como ídolo um homossexual, sendo por isso, "mais aconselhável" aos jogadores que possuem tal orientação sexual afastar-se deste esporte, evitando desconforto aos dirigentes, aos colegas e aos torcedores. O juiz ainda tenta amenizar a colocação afirmando que não seria de todo impossível que um homossexual jogasse futebol, desde que o fizesse apenas em times inteiramente compostos por colegas "em sua mesma condição", e somente enfrentasse times que concordassem em fazê-lo. Neste ponto, Manoel Maximiano Junqueira Filho afasta-se ainda mais da concepção de direito como integridade na medida em que desconsidera princípios morais presentes na comunidade e no próprio direito positivado, princípios estes que reportam-se, especialmente, à igualdade e à inclusão, que não podem ser limitadas por quaisquer critérios de cor de pele, gênero, orientação sexual, credo, dentre outros. Como busquei esclarecer anteriormente, a integridade exige a coerência com os princípios, que não pode ser observada em uma decisão que busca excluir e desigualar.

Além de não ater-se aos princípios e desconsiderar a objetividade como um dos elementos centrais da decisão judicial, o magistrado comete ainda uma falta bastante grave, desconsidera outro pressuposto do direito como completeza: a concepção da decisão como parte de um romance em cadeia. Como afirma Dworkin, os juízes são, ao mesmo tempo, autores e críticos de um romance composto por todas as decisões proferidas anteriormente, bem como, de algum modo, parâmetro para as decisões futuras. Desse modo, quando o juiz decide, além de levar em consideração o devido processo legal, ou seja, o procedimento legalmente previsto, a equidade e a justiça, traduzidas nos princípios, também precisa analisar o precedente, ainda que afaste-se dele.

Todavia, além de distanciar-se do direito como integridade e adotar uma atuação visivelmente parcial (não objetiva) e pragmática, fundamentando a decisão em hinos de futebol e ditos populares como "cada um na sua área, cada macaco em seu galho, cada galo em seu terreiro, cada rei em seu baralho", o magistrado também incorre em outro sério erro, o abuso do direito, que procurarei esclarecer a seguir, a partir dos estudos de Maria Sueli Rodrigues de Sousa.

Sobre a autora
Amanda Pinto Neves

Acadêmica do curso de Direito da Universidade Federal do Piauí.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NEVES, Amanda Pinto. Caso Richarlyson: análise da atuação do juiz na decisão judicial segundo a perspectiva da teoria do direito de Ronald Dworkin. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2993, 11 set. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19961. Acesso em: 25 dez. 2024.

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