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Desmistificando o dumping social

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Agenda 02/10/2011 às 15:11

ANEXOS

ANEXO 1 – Sentença proferida nos autos do processo n. 02.068/2007-0 da 3a. VARA DO TRABALHO DE JUNDIAÍ, de autoria do Professor Jorge Luiz Souto Maior, Juiz de Direito Titular da 3ª Vara do Trabalho de Jundiaí, SP.

3a. VARA DO TRABALHO DE JUNDIAÍ.

Processo n. 02.068/2007-0.

Vieram os autos conclusos, para a prolação da seguinte

S E N T E N Ç A

Trata-se de demanda proposta por ADILSON BARCELOS ALMEIDA, qualificado às fls. 03, em face de GAFOR LTDA. e SPAL INDÚSTRIA BRASILEIRA DE BEBIDAS S.A., qualificadas às fls. 03.

Alega o reclamante que foi admitido pela 2a reclamada para exercer a função de motorista carreteiro; que foi dispensado em 01.09.1997, quando recebeu suas verbas rescisórias e continuou trabalhando na 2a reclamada, sem registro, até 01.09.1998, quando foi registrado pela 1a reclamada para desenvolver as mesmas atividades antes realizadas.

Sustenta que trabalhava em horas extras sem receber corretamente os valores que lhe eram devidos; que recebia valores de cunho salarial que não integravam a remuneração.

Pleiteia os direitos decorrentes dos fatos narrados.

Em defesa, fls. 129/142 e fls. 383/396, as reclamadas contestam os fatos narrados pelo reclamante, pugnando pelo julgamento da improcedência dos pedidos.

Na audiência, fls. 126/128, foram colhidos os depoimentos do reclamante e da 1a reclamada, encerrando-se a instrução processual.

Razões finais remissivas.

Inconciliados.

É o relatório.

D E C I D E – S E.

(...)

VII – Dano Social e Sua Reparação.

Em novembro de 2006, por sentença proferida nos autos do processo n. 916/04-3, a 2ª. reclamada, SPAL INDÚSTRIA BRASILEIRA DE BEBIDAS S.A. (COCA-COLA), foi condenada ao pagamento de direitos trabalhistas a LUIZ APARECIDO RICARDO, além de indenização suplementar, advinda do dano social, caracterizada pela utilização do trabalho do reclamante, na função de motorista, por intermédio de empresa interposta que, sem idoneidade econômica, não garantira ao trabalhador direitos fundamentais, tais como a anotação da Carteira de Trabalho, o que repercute, como se sabe, na esfera dos direitos previdenciários do trabalhador. Além disso, pela ausência da consideração do reclamante como empregado, seu trabalho era utilizado muito além do limite permitido por lei, chegando mesmo a atingir semanas inteiras,em completo desrespeito à condição humana do Sr. LUIZ APARECIDO RICARDO, que, no período de 25/01/04 a 25/04/04, serviu aos interesses econômicos da 2ª. reclamada.

Conforme verificado no processo n. 1.317/070, a situação era generalizada no setor de transporte dos produtos da 2ª. reclamada, atingindo também a ajudantes de motoristas, que igualmente eram contratados por empresas interpostas, isto é, por pessoas físicas notoriamente desprovidas de capital. Neste segundo caso mencionado, o reclamante, MAURO LUCAS DE CAMPOS, trabalhou de 17/02/2005 a 30/09/06, com salário mensal de R$480,00, sendo que sua CTPS somente foi anotada em 01.07.2005, tendo cumprido diversas horas extras ao longo de seu contrato de trabalho, numa jornada, declarada judicialmente, das 5h00 às 21h00 de segunda a sábado, sem que tais horas lhe tivessem sido pagas.

Nesse mesmo período, até meados de 2008, a 2ª. reclamada contratou diversos motoristas por intermédio das empresas SANSSEYS TRANSPORTES LTDA. e NISSEYS TRANSPORTES LTDA. Com o encerramento do contrato que havia entre a 2ª. reclamada e ditas empresas, várias reclamações trabalhistas foram ajuizadas, sendo que em todas elas foram pleiteadas horas extras e apresentado nas defesas (vide processos n. 1.116/06, 395/08-8, 507/08-0, 986/08-5, 1.286/08-8) o mesmo argumento irresponsável, social e juridicamente falando, de que os motoristas cumpriam jornada externa o que significa dizer que a 2ª. reclamada admitia, ainda que em tese, que os motoristas que conduziam os seus produtos aos pontos de venda podiam permanecer ao volante 24 horas por dia, sete dias por semana, e que isso seria plenamente regular...

No que se refere aos motoristas que prestavam serviços à 2ª. reclamada por intermédio da SANSSEYS/NISSEYS, adveio ainda o fenômeno da ausência do pagamento de verbas rescisórias, que possuem, como se deveria saber, natureza alimentar, vez que se referem a uma compensação financeira pela perda do emprego.

E, se não bastasse, à ausência de pagamento seguiu-se uma resistência contra o adimplemento dessa obrigação, por parte das reclamadas, nos processos originados das ações propostas pelos trabalhadores (motoristas), a partir de uma espécie de "jogo de empurra". A NISSEYS, dizendo que nenhuma relação tinha com a empresa SANSSEYS, empregadora do reclamante, e esta, a SANSSEYS, aduzindo que não houve o pagamento das verbas rescisórias ao reclamante por culpa da 2ª. reclamada, SPAL (COCA-COLA), que teria encerrado, de forma abrupta, o contrato que havia entre ambas, culminando a perversidade com o argumento da 2a. reclamada, SPAL (COCA-COLA), de que nada tinha a ver com situação, pois não teria contratado o reclamante.

E na visão da 2ª. reclamada a história estaria definitivamente resolvida.

Mas, concretamente, tal história não é apenas uma questão de avaliação dos efeitos obrigacionais decorrentes do contrato de natureza civil formulado entre as empresas. As reclamadas, cada qual com sua razão, participaram de um negócio cujo objetivo maior era mesmo a exploração do trabalho alheio, tanto que na primeira discrepância de interesses entre elas, deixaram os trabalhadores, todos eles, sem o recebimento de seus direitos rescisórios, que possuem, vale repisar, natureza alimentar.

A situação é imperdoável, sobretudo se consideramos que os serviços desses trabalhadores foram destinados a uma das maiores empresas do mundo, a Coca-cola. Não é admissível que o desenvolvimento da atividade econômica de uma empresa de sucesso como esta se desenvolva ao custo do não pagamento de direitos trabalhistas. Bem, se pode dizer que não fora ela quem deixou de pagar os direitos trabalhistas, mas, o fato concreto é que a terceirização apenas obscurece a realidade. Em verdade, a Coca-cola contratou uma empresa para que os serviços dos motoristas fossem prestados em conformidade com os interesses dela, contratante. No mínimo deveria a Coca-cola garantir que os direitos trabalhistas dessas pessoas fossem efetivamente respeitados, sendo mais injustificável ainda o seu ato de depois vir a juízo, diante do fato incontroverso de que as verbas rescisórias, alimentares, desses trabalhadores não foram pagas, postar-se como quem não tem nada a ver com a história.

É evidente que a Coca-cola tinha plena ciência da quantidade de horas trabalhadas pelos motoristas e mais ainda de que nenhuma hora extra lhes era paga.

Do modo como restou configurado nos autos mencionados, transparece que para a 2ª. reclamada a satisfação de seus interesses econômicos pouco importa o efetivo respeito aos direitos de trabalhadores que prestam serviços em sua rede produtiva.

Tome-se, como exemplo, a hipótese desses autos, refletida nos processos acima enunciados: o reclamante perde o emprego e não recebe verbas rescisórias. Se ele vai ter problemas pessoais com isso, pouco importa às reclamadas. Estas diante da lógica formal da terceirização consideram que tudo não passa de um jogo, sem regras, que pode ser impulsionado ao seu bel prazer, parecendo até que quanto maior o sacrifício que imponham ao trabalhador maior o prazer das reclamadas, sobretudo da 2ª. reclamada, Coca-cola.

A 2ª. reclamada tenta fazer crer, conforme dito por seu representante em uma das audiências realizadas na 3ª. Vara do Trabalho de Jundiaí, que a cessação do contrato com a SANSSEYS/NISSEYS deu ensejo a uma tentativa de regularização da situação dos transportes dos produtos da 2ª. reclamada, advindo a contratação da empresa GAFOR LTDA. Mas, como verificado no processo n. 734/2008-6, o motorista, Sr. WILLIAM FERNANDES MARQUEZIN, foi contratado pela GAFOR LTDA. em 22/10/07, ou seja, quando ainda a SANSSEYS prestava serviços à SPAL, conforme consta dos processos acima mencionados. No processo n. 395/08-8, por exemplo, o reclamante, ROSALINO LUIZ MARINHO, trabalhou como motorista, transportando produtos da 2ª. reclamada, por intermédio da empresa SANSSEYS, de 01/09/04 a 03/03/08.

O que se percebe, portanto, é que apesar das condenações de que fora alvo a 2ª. reclamada, quanto ao modo de exploração do trabalho alheio, para concretização da atividade de transporte de seus produtos aos pontos de venda, o que, por certo, é essencial à consecução de fins econômicos, não houve progresso relevante. A bem da verdade, para ser completamente justo, houve algum progresso sim, pois antes os motoristas, diante da precariedade econômica das empresas contratadas pela 2ª. reclamada, sequer tinham suas CTPS anotadas e, posteriormente, com a intermediação da SANSSEYS e depois da GAFOR esse direito passou a ser garantido aos trabalhadores.

No entanto, com relação à limitação da jornada a questão continuou exatamente a mesma. Conforme apurado no processo n. 734/2008-6, as reclamadas, GAFOR e SPAL, continuaram apresentando suas defesas simplesmente alegando, de forma social e juridicamente irresponsável, que o reclamante não estava sujeito a controle de horários em razão do disposto no art. 62, inciso I, da CLT, deixando de juntar aos autos controles de freqüência, mesmo diante da alegação do reclamante, naqueles autos, de que trabalhava das 5h30 às 24h00, de segunda à sexta-feira e aos sábados das 5h30 às 22h00, com apenas 20 minutos de intervalo para refeição e descanso. É evidente, portanto, que a evolução não é suficiente e está muito aquém do que se imagina seja o ideal, ainda mais considerando o propósito da 2ª. reclamada, COCACOLA, de servir como paradigma de RESPONSABILIDADE SOCIAL.

Veja, por exemplo, que a própria reclamada diz-se preocupada com o desenvolvimento social do país, tendo, inclusive, criado o Instituto Coca-Cola Brasil, para investir em Programas ligados à Educação.

Na mesma linha, tem apoiado atividades de preservação do meio ambiente, utilizando-se, como estratégia de marketing, a própria forma de distribuição de seus produtos aos pontos de venda. Em uma propaganda da 2ª. reclamada, que se circula pela mídia, uma criança se diz orgulhosa de que seu pai dirige um caminhão da Coca-cola, levando alegria para as pessoas.

É preciso, no entanto, que a propaganda esteja em conformidade com a realidade.

Quem conhece o modo como os produtos da 2ª. reclamada são de fato transportados para os pontos de venda se sente agredido pela propaganda em questão.

Em verdade, a criança deveria dizer: "Meu pai dirige um caminhão da GAFOR, que traz o nome Coca-cola. Pode até ser que ele leve alegria para alguém, mas o faz à custa de sua própria saúde. Todo dia ele chega tarde em casa porque faz inúmeras horas extras e tanto a GAFOR quanto a Coca-cola não lhe pagam essas horas."

Poderia, também, dizer: "A Coca-cola diz que se preocupa com a alegria dos outros e com a sustentabilidade do Planeta, mas ela despreza os direitos do meu pai e também os meus, pois, para sobreviver, diante dos padrões de trabalho exigidos pela Coca-cola, passo dias e até semanas sem ver o meu pai, que trabalhava das 5 às 24h."

Ou, ainda: "Meu pai dirige um caminhão da Coca-cola, que pena! Ele leva alegria para os outros e a tristeza para dentro de nossa casa."

Claro, é difícil imaginar uma criança dizendo essas coisas, pois o fascínio que a coca-cola exerce sobre as pessoas, sobretudo em crianças, em razão de seu marketing intenso, é muito grande e é até capaz que a ausência do pai sequer seja sentida diante do orgulho de poder dizer, para os coleguinhas, que o pai dirige um caminhão da coca-cola, mesmo que não seja, concretamente, da coca-cola.

Mas, isso só aumenta a autêntica responsabilidade social da Coca-cola. Uma responsabilidade que lhe impõe um padrão de conduta respeitoso para com os trabalhadores, que efetivam sua atividade econômica, e para com os consumidores, que complementam o ciclo produtivo. A propaganda enganosa, que obscurece o dado concreto de uma exploração do trabalho sem o respeito aos direitos socais, é, portanto, uma agressão a toda sociedade.

O respeito aos direitos sociais constitui, ademais, o limite ético da produção econômica. Os valores traduzidos nesses direitos são definidos com conformidade com padrões jurídicos ligados ao Direito do Trabalho, sendo a limitação da jornada de trabalho um direito fundamental exatamente para que os pais de família cumpram o seu dever de educar e de participar da vida de seus filhos. O trabalho é um valor, mas não é tudo. Assim, na perspectiva da responsabilidade social, ditada pelo direito, a expressão ideal não se resume àquela produzida na propaganda: "meu pai dirige um caminhão da coca-cola". A ela deve se seguir o complemento: "...mas também tem vida própria depois que cumpre sua jornada de trabalho".

Não se trata, pois, de negar a importância da 2ª. reclamada como fomentadora do desenvolvimento econômico, do emprego, muito pelo contrário. Mas é exatamente em razão da sua importância para a sociedade que sua conduta deve ser paradigmática no que tange ao respeito aos Direitos Humanos, que se apresenta como instrumento eficaz para preservar a dignidade do trabalhador, permitindo-lhe o desenvolvimento pessoal, dentro e fora do trabalho.

A necessidade humana, por óbvio, não legitima a supressão de direitos fundamentais, sendo o trabalho apenas um dos direitos fundamentais do homem, embora seja extremamente importante, sobretudo dentro de uma sociedade capitalista.

Aliás, por falar em capitalismo, cumpre lembrar que as agressões ao Direito do Trabalho acabam atingindo uma grande quantidade de pessoas, sendo que dessas agressões algumas empresas se valem para obter vantagem na concorrência econômica com relação a várias outras empresas. Isto implica a produção de danos não apenas aos trabalhadores, mas também a outros empregadores que,

"inadvertidamente", cumprem a legislação trabalhista, ou que, cedendo às práticas adotadas pela concorrência, se vêem forçados, economicamente falando, a agir da mesma forma.

Resultado: precarização completa das relações sociais, que se baseiam na lógica do capitalismo de produção.

Veja-se, por exemplo, o que esta prática reiterada de não se limitar devidamente a jornada de trabalho dos motoristas por parte da 2ª. reclamada, que se vale para tanto, da tática da intermediação de mão-de-obra, deixando transparecer para o público leigo em geral que está fora de seu controle esse resultado, gera na realidade local.

Ora, a 2ª. reclamada não é a única grande empresa que necessita da atividade de motoristas para o transporte de seus produtos e assim a sua consideração de que não deve limitar as jornadas dos motoristas não vale somente para si, mas todas as demais empresas, o que equivale, portanto, a uma negação geral da existência do direito dos trabalhadores a uma existência digna, pois toda a sua vida estará potencialmente tomada por um único valor: o trabalho.

Em segundo lugar, cumpre lembrar que a 2ª. reclamada é um exemplo, dentro do modelo capitalista, de sucesso produtivo, e sua postura, portanto, gera um paradigma de conduta, que conduz o modelo produtivo para o lado da verdadeira responsabilidade social ou transforma essa noção em mera retórica de comércio.

Entretanto, no que tange aos motoristas de caminhão, que transportam seus produtos, a Coca-cola vem a juízo dizer que os motoristas são trabalhadores externos e que, por isso, nenhum controle sobre sua jornada é possível e que, conseqüentemente, não lhes é garantido o direito fundamental à limitação da jornada de trabalho.

Mas, como ficam as empresas que cumprem a legislação trabalhista no que tange a este tipo de trabalho?

As Casas Bahia, por exemplo, outra grande empresa, que possui inúmeros motoristas, os quais, diariamente, conduzem produtos para diversas de suas lojas em São Paulo (Capital), e outras cidades do interior paulista e até de outros Estados, não traz esse argumento. Os motoristas, que são seus empregados, contratados por ela diretamente, possuem cartões de ponto e as discussões que eventualmente se apresentam em reclamações trabalhistas resumem-se, muitas vezes, à apuração de diferenças nos cartões ou a verificar se a integralidade das horas extras estão consignadas nos cartões. Não é, por óbvio, uma situação ideal, pois, primeiro horas extras só deveriam existir de forma excepcional e segundo existindo deveriam ser inequivocamente pagas. Um conflito que envolve horas extras não pagas é um problema social relevante qualquer que seja a discussão que o envolva. Mas, por outro lado, enquanto isso, em vários outros processos de várias outras empresas, as questões são muito mais graves.

Como demonstrado acima, na Coca-cola (Spal), por exemplo, cuja atividade também requer essencialmente o transporte diário de produtos para bares e supermercados, os motoristas e ajudantes são contratados por empresas interpostas, que sequer possuem idoneidade econômica e que, por isso, ou contratam motoristas e ajudantes sem registro, impondo-lhes jornadas de trabalho efetivamente desumanas, como se verificou no processo n. 1.317/07-0 (cópia da ata em anexo), ou, registrando, não se preocupam com a limitação de suas jornadas de trabalho, tudo com a conveniente omissão da Coca-cola. Esta prática valeu algumas condenações por dano social à referida empresa e, agora, ao que parece está minimizando a situação, mas continua, de forma fraudulenta, terceirizando o serviço, que é essencial aos seus objetivos produtivos.

A AMBEV, concorrente da 2ª. reclamada – cujas fábricas são uma em frente à outra – faz pior. Como verificado no processo 1.045/08-9 (decisão em anexo), engendra contratos com "distribuidoras", que, de fato, não distribuem nada, apenas fornecem veículos para transportar os produtos da reclamada aos pontos de venda, sendo que as tais distribuidoras, "financiando" para estes a compra dos caminhões, contratam os motoristas como "autônomos" e estes, prestando serviços totalmente inseridos na estrutura empresarial alheia ainda são responsáveis pelos custos da atividade com a manutenção do caminhão e contratação de ajudantes.

Assim, de duas uma: ou a Casas Bahia, acreditando na eficácia dos Direitos, é uma "otária", como na crônica de Carlos Heitor Cony, ou as demais, todas elas, praticam uma ilegalidade na busca de obter vantagem na concorrência econômica, passando por cima de direitos

fundamentais, o que, quando avaliada no contexto mais amplo, representa um grave dano de natureza social, exigindo imediata e exemplar coerção.

Dada a pertinência, convém, ademais, reproduzir a Crônica em questão:

Amigo meu foi com a namorada passar o Carnaval em Búzios. Pegou um congestionamento de 25 quilômetros na estrada da Manilha e foi assaltado por dois bandidos, que nem usavam capuzes para não chamar a atenção dos outros carros engarrafados. Recebeu ordem de ir em frente, no ritmo lento do tráfego, se desse algum sinal acusando o assalto, seria sacrificado na hora. O jeito foi obedecer.

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Quando o trânsito melhorasse, os bandidos ficariam com o carro e libertariam os dois. O que realmente aconteceu, hora e meia mais tarde.

Da experiência de dirigir com uma arma na nuca, o meu amigo guardou um detalhe que o impressionou. O calor era muito, sol forte. Aproveitando centenas de carros engarrafados, vendedores de água, de refrigerantes e de biscoitos passavam entre as filas, suando como

demônios em fornalhas coletivas. Um dos bandidos sentiu sede, mandou que o outro providenciasse uma Coca-Cola: "Pede a esse otário uma coca geladinha".

O meu amigo pensou que o otário em questão fosse ele mesmo: além de estar sendo assaltado, teria de pagar uma Coca para o bandido.

O otário era o vendedor, um sujeito forte, com a pele tostada brilhando de suor, ganhando trocados na manhã de sol – se conseguisse vender todo o estoque que trazia nas costas, mal teria dinheiro para o almoço à beira da estrada. Um otário.

Com uma arma roubada por aí, ele poderia estar dentro do carro refrigerado, mais um pouco e teria o carro todo para passar o Carnaval. Enquanto houver otários no mundo, é mole trabalhar sem pegar no pesado. Ser apanhado pela polícia é um acidente de percurso, um risco do "metier".

Estatisticamente, ele poderia se refrescar com a Coca, ficar com o carro e ganhar o seu dia. A questão que se coloca é: devemos continuar premiando os "espertos" e condenando os "otários"?

Pois bem, respeitando-se o critério de impor efeitos jurídicos em conformidade com a gravidade e a extensão do dano provocado pelo ilícito, as empresas que agridem deliberadamente os direitos trabalhistas, com intuito de obter vantagem econômica, devem sofrer as conseqüências do ilícito que cometem, ao menos na perspectiva da reparação do dano social produzido.

Destaque-se, a respeito, o Enunciado n. 4, da 1ª. Jornada de Direito Material e Processual da Justiça do Trabalho, organizada pela Anamatra e realizada nos dias 21 a 23 de novembro de 2007, no Tribunal Superior do Trabalho, em Brasília, com o seguinte teor:

"’DUMPING SOCIAL’. DANO À SOCIEDADE. INDENIZAÇÃO SUPLEMENTAR. As agressões reincidentes e inescusáveis aos direitos trabalhistas geram um dano à sociedade, pois com tal prática desconsidera-se, propositalmente, a estrutura do Estado social e do próprio modelo capitalista com a obtenção de vantagem indevida perante a concorrência. A prática, portanto, reflete o conhecido "dumping social", motivando a necessária reação do Judiciário trabalhista para corrigi-la. O dano à sociedade configura ato ilícito, por exercício abusivo do direito, já que extrapola limites econômicos e sociais, nos exatos termos dos arts. 186, 187 e 927 do Código Civil. Encontra-se no art. 404, parágrafo único do Código Civil, o fundamento de ordem positiva para impingir ao agressor contumaz uma indenização suplementar, como, aliás, já previam os artigos 652, "d", e 832, § 1º, da CLT."

Importa compreender, definitivamente, que os direitos sociais são o fruto do compromisso firmado pela humanidade para que se pudesse produzir, concretamente, justiça social dentro de uma sociedade capitalista. Esse compromisso em torno da eficácia dos Direitos Sociais se institucionalizou em diversos documentos internacionais nos períodos pós-guerra, representando também, portanto, um pacto para a preservação da paz mundial. Sem justiça social não há paz, preconiza o preâmbulo da OIT (Organização Internacional do Trabalho). Quebrar esse pacto significa, por conseguinte, um erro histórico, uma traição a nossos antepassados e também assumir uma atitude de descompromisso com relação às gerações futuras.

Os Direitos Sociais (Direito do Trabalho e Direito da Seguridade Social, com inserção nas Constituições) constituem a fórmula criada para desenvolver o que se convencionou chamar de capitalismo socialmente responsável.

Sob o ângulo exclusivo do positivismo jurídico pátrio, é possível, ademais, constatar que o Direito Social, por via reflexa, atinge outras esferas da vida em sociedade: o meio-ambiente; a infância; a educação; a habitação; a alimentação; a saúde; a assistência aos necessitados; o lazer (art. 6o., da Constituição Federal brasileira), como forma de fazer valer o direito à vida na sua concepção mais ampla. Neste sentido, até mesmo valores que são normalmente, indicados como direitos liberais por excelência, a liberdade, a igualdade, a propriedade, são atingidos pela formação de um Direito Social e o seu conseqüente Estado Social. Prova disso são as diversas proposições contidas na Constituição brasileira. A propósito, destaque-se que o valor social do trabalho e a proteção da dignidade humana foram alçados a princípios fundamentais da República (art. 1o., incisos III, e IV), assim como também se deu com o objetivo de construir uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3o., inciso I) e que o Brasil rege-se nas suas relações internacionais seguindo o princípio da prevalência dos direitos humanos (art. 4o., inciso II).

Além disso, vale lembrar que os direitos sociais, conforme definição do art. 6o. e aos quais se integrou a especificação dos direitos de natureza trabalhista (arts. 7o. a 9o.), foram inseridos no título "Dos Direitos e Garantias Fundamentais", juntamente com os direitos individuais (art. 5o.), nos quais se prevê, ademais, expressamente, que a "propriedade atenderá a sua função social" (inciso XXIII), tendo sido incorporados, portanto, à cláusula pétrea da Constituição, conforme bem acentua Paulo Bonavides: "só uma hermenêutica constitucional dos direitos fundamentais em harmonia com os postulados do Estado Social e democrático de direito pode iluminar e guiar a reflexão do jurista para a resposta alternativa acima esboçada, que tem por si a base de legitimidade haurida na tábua dos princípios gravados na própria Constituição (arts. 1o., 3o. e 170) e que, conforme vimos, fazem irrecusavelmente inconstitucional toda inteligência restritiva da locução jurídica ‘direitos e garantias individuais’ (art. 60, 4o., IV), a qual não pode, assim, servir de argumento nem de esteio à exclusão dos direitos sociais"2.

O fato é que, como se pode ver, o Direito Social, não é apenas uma normatividade específica. Trata-se, isto sim, de uma regra de caráter transcendental, que impõe valores à sociedade e, conseqüentemente, a todo ordenamento jurídico. E que valores são estes? Os valores são: a solidariedade (como responsabilidade social de caráter obrigacional), a justiça social (como conseqüência da necessária política de distribuição dos recursos econômicos e culturais produzidos pelo sistema), e a proteção da dignidade humana (como forma de impedir que os interesses econômicos suplantem a necessária respeitabilidade à condição humana).

2. Curso de Direito Constitucional, Malheiros, São Paulo, 1997, p. 597. Importante, ademais, compreender que a imposição desses valores se dá tanto ao Estado, como propulsor das políticas de promoção social e de garantidor das normas jurídicas sociais, quanto a todos os cidadãos, nas suas correlações intersubjetivas.

O Direito Social, portanto, não apenas se apresenta como um regulador das relações sociais, ele busca promover, em concreto, o bem-estar social, valendo-se do caráter obrigacional do direito e da força coercitiva do Estado. Para o Direito Social a regulação não se dá apenas na perspectiva dos efeitos dos atos praticados, mas também e principalmente no sentido de impor, obrigatoriamente, a realização de certos atos.

Esse capitalismo socialmente responsável perfaz-se tanto na perspectiva da produção de bens e oferecimento de serviços quanto na ótica do consumo, como faces da mesma moeda. Deve pautar-se, também, por um sentido ético, na medida em que o desrespeito às normas de caráter social traz para o agressor uma vantagem econômica frente aos seus concorrentes, mas que, ao final, conduz a todos ao grande risco da instabilidade social.

O desrespeito aos direitos trabalhistas representa, conseqüentemente, um crime contra a ordem econômica, conforme definido no art. 20, inciso I, da Lei n. 8.884/43, punível na forma do art. 23, inciso I, da mesma lei4. Nos termos da lei em questão, "Serão solidariamente responsáveis as empresas ou entidades integrantes de grupo econômico, de fato ou de direito, que praticarem infração da ordem econômica" (art. 17), o que elimina, aliás, qualquer possibilidade de discussão quanto à responsabilidade de todas as empresas (tomadoras, prestadoras etc.) que, de algum modo, beneficiam-se economicamente da exploração do trabalho humano sem respeito ao retorno social necessariamente conseqüente.

O art. 170 da Constituição brasileira é claro ao estipular que "a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social", observados, dentre outros, os princípios da função social da propriedade (inciso III) e da busca do pleno emprego (inciso VIII). O próprio Código Civil não passou em branco a respeito, fixando a função social do contrato (art. 421 e § 1º. Do art. 1.228). 3. ".

20. Constituem infração da ordem econômica, independentemente de culpa, os atos sob qualquer forma manifestados, que tenham por objeto ou possam produzir os seguintes efeitos, ainda que não sejam  alcançados:

I - limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrênciaou a livre iniciativa;"

4. "Art. 23. A prática de infração da ordem econômica sujeita os responsáveis às seguintes penas:

I - no caso de empresa, multa de um a trinta por cento do valor do faturamento bruto no seu último exercício, excluídos os impostos, a qual nunca será inferior à vantagem auferida, quando quantificável;"

Todas essas normas, por óbvio, não podem ser tidas como sem qualquer significação. A sua relevância parte do reconhecimento de que uma sociedade, que se desenvolve nos padrões do capitalismo, para sobreviver, depende da eficácia das normas do Direito Social, pois esse é o seu projeto básico de desenvolvimento.

A eficácia das normas de natureza social depende, certamente, dos profissionais do direito (advogados, juízes, procuradores, professores, juristas em geral), mas também de um sentido ético desenvolvido em termos concorrenciais, para que reprimendas sejam difundidas publicamente aos agressores da ordem jurídica social a fim de que a sociedade tenha ciência da situação, desenvolvendo-se uma necessária reação até mesmo em termos de um consumo socialmente responsável, com favorecimento às empresas que têm no efetivo respeito aos direitos sociais o seu sentido ético.

A responsabilidade social, tão em moda, não pode ser vista apenas como mera "jogada" de marketing, como se a solidariedade fosse um favor, um ato de benevolência. Na ordem jurídica do Estado Social as empresas têm obrigações de natureza social em razão de o próprio sistema lhes permitir a busca de lucros mediante a exploração do trabalho alheio. Os limites dessa exploração para a preservação da dignidade humana do trabalhador, o respeito a outros valores humanos da vida em sociedade e o favorecimento da melhoria da condição econômica do trabalhador, com os custos sociais conseqüentes, fixam a essência do modelo de sociedade que a humanidade pós-guerra resolveu seguir e do qual a Constituição brasileira de 1988 não se desvinculou, como visto.

O Direito Social foi incorporado às Constituições como valor essencial. Essa noção axiológica faz com que o Direito Social, como os Direitos Humanos em geral, tenha incidência na realidade independente de uma lei que o prescreva expressamente e, se necessário, até contrariando alguma lei existente. A partir da verificação dos horrores da 2ª. Guerra mundial, a humanidade entendeu que o desrespeito às normas ligadas aos direitos humanos constitui um crime contra a humanidade (vide o julgamento de Nuremberg).

O que a humanidade espera dos juízes, conseqüentemente, é que não flexibilizem os conceitos pertinentes aos direitos humanos (intimidade, privacidade, liberdade, não discriminação, dignidade), assim como os preceitos insertos no Direito Social (direito à vida, à saúde, à educação, ao trabalho digno, à infância, à maternidade, ao descanso, ao lazer), pois as conveniências políticas podem conduzir a criação de leis que satisfaçam interesses espúrios (vide, neste sentido, o filme Sessão Especial de Justiça), flexibilidade esta da qual, aliás, aproveitam-se para florescer os regimes ditatoriais.

Os Direitos Sociais, portanto, não podem ser reduzidos a uma questão de custo. Não é próprio desse modelo de sociedade vislumbrar meramente saídas imediatistas de diminuição de custo da produção, pois que isso significa quebrar o projeto de sociedade sem pôr outro em seu lugar. É o caos das próprias razões. Afinal, há muito se base: a soma da satisfação dos interesses particulares não é capaz de criar um projeto de sociedade.

Em nossa realidade, no entanto, várias têm sido as situações de desrespeito pleno aos direitos trabalhistas e, conseqüentemente, à pessoa do trabalhador. Pode-se pensar que isso se dá involuntariamente em razão de uma questão de dificuldade econômica, mas não é bem assim. Claro, a dificuldade econômica também existe, mas o que preocupa mais são as atitudes deliberadas de grandes empresas (que não têm problemas econômicos) de descumprir seu papel social (ao mesmo tempo em que se anunciam para o público em geral como "socialmente responsáveis"). As terceirizações, subcontratações, falências fraudulentas, táticas de fragilização do empregado (como falta de registro, transformação do trabalhador em pessoa jurídica, dispensas sem pagamento de verbas rescisórias, justas causas fabricadas) têm imposto a milhões de cidadãos brasileiros um enorme sacrifício quanto a seus direitos constitucionalmente consagrados, sendo que tal situação tem, como visto, enorme repercussão no custo social (principalmente no que tange à seguridade social, à saúde e à educação)5 e no desenvolvimento econômico (diminuição do mercado interno), favorecendo, portanto, apenas às empresas multinacionais, ou seja, as que possuem capital estrangeiro, que produzem para o exterior, atendendo a propósitos monopolistas e com isso levando à falência as pequenas e médias empresas nacionais, e que irão embora quando sentirem que nossa sociedade não deu certo. Interessante perceber, também, que a lógica da precarização é mais facilmente implementada em grandes conglomerados empresariais, marcados pela impessoalidade, do que em pequenos empreendimentos nos quais o contato humano entre o patrão e o empregado é muito maior, assumindo, às vezes, aspectos até de certo modo familiares. Dentro desse contexto as pequenas e médias empresas são, igualmente, vítimas (apenas estão identificando de forma equivocada o seu algoz).

5. Nós, da elite, não sentimos o efeito dessa situação, mas isso porque pagamos segurança, escola e planos de previdência e saúde, todos de natureza privada.

Em muitas outras situações assiste-se a participação do próprio Estado nesta exploração, utilizando-se das táticas de redução de custo: contratação de pessoas sem concurso público; utilização da "terceirização" para prestação de serviços; e licitações pelo menor custo para construção de obras. Como resultado, o Estado reduz seu custo, as empresas ganhadoras das licitações adquirem seus ganhos e os trabalhadores executam os seus serviços, mas não recebem, integralmente, seus direitos. As pontes, as ruas, as estradas, os túneis, são construídos à custa do sacrifício dos direitos sociais.

O desrespeito deliberado e inescusável da ordem jurídica trabalhista, portanto, representa inegável dano à sociedade.

Cumpre verificar que o próprio Direito Civil avançou no reconhecimento da situação de que vivemos em uma "sociedade de produção em massa"6. Atualmente, nos termos dos arts. 1867 e 1878 do Código Civil, aquele que, ultrapassando os limites impostos pelo fim econômico ou social, gera dano ou mesmo expõe o direito de outrem a um risco9 comete ato ilícito. O ilícito, portanto, tanto se perfaz pela provocação de um dano a outrem, individualmente identificado, quanto pela desconsideração dos interesses sociais e econômicos, coletivamente considerados. Na ocorrência de dano de natureza social, surge, por óbvio, a necessidade de se apenar o autor do ilícito, para recuperar a eficácia do ordenamento, pois um ilícito não é mero inadimplemento contratual e o valor da indenização, conforme prevê o art. 944, do CC, mede-se pela extensão do dano, ou seja, considerando o seu aspecto individual ou social. Como já advertira Paulo Eduardo Vieira de Oliveira10, o efeito do ato ilícito é medido, igualmente, sob o prisma da integridade social.

6. Cf. expressão de Mauro Cappelletti, in "Formações sociais e interesses coletivos diante da justiça civil", tradução de Nelson Renato Palaia Ribeiro de Campos, "in" Revista de Processo, RT, São Paulo, janmar/1977, p. 130.

7. "Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito."

8. "Art. 187. Também ato ilícito o de um direito que, ao exercê-lo, manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes."

9. Art. 927, parágrafo único: "Haverá obrigação de reparar o dano, de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por natureza, para os direitos de outrem."

Rompidas foram, pois, em termos de definição do ilícito e de sua reparação, as fronteiras do individualismo.

No aspecto da reparação, o tema em questão atrai a aplicação do provimento jurisdicional denominado na experiência americana de fluid recovery ou ressarcimento fluído ou global, quando o juiz condena o réu de forma que também o dano coletivo seja reparado, ainda que não se saiba quantos e quais foram os prejudicados e mesmo tendo sido a ação intentada por um único individuo que alegue o próprio prejuízo.

O renomado autor italiano, Mauro Cappelletti, desde a década de 70 já preconiza essa necessária avaliação da realidade. Como diz o referido autor, "Atividades e relações se referem sempre mais freqüentemente a categorias inteiras de indivíduos, e não a qualquer indivíduo, sobretudo. Os direitos e os deveres não se apresentam mais, como nos Códigos tradicionais, de inspiração individualista-liberal, como direitos e deveres essencialmente individuais, mas meta-individuais e coletivos"11. "Continuar, segundo a tradição individualista do modelo oitocentista, a atribuir direitos exclusivamente a pessoas individuais (....) significaria tornar impossível uma efetiva proteção jurídica daqueles direitos, exatamente na ocasião em que surgem como elementos cada vez mais essenciais para a vida civil."12

Na perspectiva da reparação dos interesses e direitos coletivos (sociais), esse autor demonstra a insuficiência das soluções jurídicas que mantêm a legitimidade da correção no âmbito das ações individuais dos lesados, nos limites estritos de seu dano, e mesmo de outras que conferem, de forma hegemônica, ao Ministério Público a legitimidade para essa defesa.

10. O Dano Pessoal no Direito do Trabalho, SP, Ed. LTr, 2002, p. 26.

11. "Formações sociais e interesses coletivos diante da justiça civil", tradução de Nelson Renato Palaia Ribeiro de Campos, "in" Revista de Processo, RT, São Paulo, jan-mar/1977, p. 131.

12. Idem, p. 131.

No aspecto da legitimidade individual esclarece Mauro Cappelletti:

"O indivíduo ‘pessoalmente lesado’, legitimado a agir exclusivamente para a reparação do dano a ele advindo, não está em posição de assegurar nem a si mesmo nem à coletividade uma adequada tutela contra violações de interesses coletivos."13

"...a eventual demanda, limitando-se ao dano advindo a apenas um entre milhares ou milhões de prejudicados, será privada de uma eficaz conseqüência, preventiva ou repressiva, nos cotejos do prejudicado e a vantagem da coletividade."14

Sobre a exclusividade de ação ao Ministério Público, repetindo outros autores, posiciona-se o autor no sentido de que o Ministério Público é "inclinado a não agir", em razão de diversas limitações estruturais15.

Esse autor preconiza, portanto, que se ampliem os sujeitos legitimados para agir na perspectiva coletiva, incluindo entidades privadas. Esclarece, no entanto, que isso não é suficiente, demonstrando a essencialidade da "extensão dos poderes do juiz", que não deve mais limitar-se "a determinar o ressarcimento do ‘dano sofrido’ pela parte agente, nem, em geral, a decidir questões com eficácia limitada às partes presentes em juízo. Ao contrário, o juiz é legitimado a estender o âmbito da própria decisão, de modo a compreender a totalidade do dano produzido pelo réu, e, em geral, a decidir eficazmente mesmo às absent parties ou precisamente erga omnes. É a revolução dos conceitos tradicionais de responsabilidade civil e de ressarcimento dos danos, como também daqueles de coisa julgada e do princípio do contraditório"16.

Mais adiante em seu texto reafirma:

"...os efeitos das decisões devam estender-se também aos sujeitos não presentes na causa."

"...no campo mais tradicional do ressarcimento do dano, não se deve mais reparar só o dano sofrido (pelo autor presente em Juízo), mas o dano globalmente produzido (pelo réu à coletividade inteira). Se de fato o juiz devesse, por exemplo, limitar-se a condenar a indústria poluente a ressarcir só o dano advindo a qualquer autor, uma tal demanda teria raramente um efeito determinante: normalmente, o comportamento poluente continuaria imperturbado, porque o dano a compensar ao autor esporádico seria sempre mais inferior aos custos necessários para evitar qualquer comportamento."

Além disso, adverte o autor em questão para algo extremamente importante, qual seja, o fato de que apenas o ressarcimento dos danos individuais, ainda que coletivamente defendidos, não atinge a esfera da necessária reparação do ilícito cometido na perspectiva social. Como explica Cappelletti, "Se (....) o juiz condenar o réu a ressarcir o dando causado a centenas, milhares ou, até, milhões de membros de uma coletividade idealmente representada por aquele autor, surgirão os grandes problemas de identificação daquelas centenas, milhares ou milhões de pessoas; de distribuição de arrecadação entre eles; do uso, enfim, ou a quem destinar o eventual resíduo não reclamado dos membros da coletividade"17, surgindo daí a necessidade do já mencionado provimento jurisdicional do fluid recovery (ressarcimento fluído) para que o ilícito seja reprimido integralmente, não se restringindo, pois, apenas ao aspecto dos interesses individuais. É fácil compreender o que disse o mestre italiano quando vislumbramos a realidade atual das agressões aos direitos trabalhistas no Brasil.

A legitimidade estrita ao lesado, individualmente considerado, é insuficiente e a legitimidade coletiva, conferida ao Ministério Público do Trabalho e aos sindicatos, não tem sido, reconhecidamente, satisfatória para a correção da realidade, nem mesmo contanto com a atuação fiscalizatória do Ministério do Trabalho e Emprego, tanto que ela está aí consagrada, como é de conhecimento de todos.

Muitas vezes as lesões não têm uma repercussão econômica muito grande e os lesados, individualmente, não se sentem estimulados a ingressar com ações em juízo e nem mesmo os entes coletivos dão a tais lesões a devida importância. Outras vezes, mesmo tendo repercussão econômica palpável, muitos trabalhadores deixam de ingressar em juízo com medo de não conseguirem novo emprego, pois impera em nossa realidade a cultura de que mover ação na Justiça é ato de rebeldia. O agressor da ordem jurídica trabalhista conta, portanto, com o fato conhecido de que nem todos os trabalhadores lhe acionam na Justiça (naverdade os que o fazem sequer são a maioria). Conta, ainda, com: o prazo prescrional de 05 (cinco) anos; a possibilidade de acordo (pelo qual acaba pagando bem menos do que devia); e a demora processual. Assim, mesmo considerando os juros trabalhistas de 1% ao mês não capitalizados e a correção monetária, não cumprir, adequadamente, os direitos trabalhistas, tornou-se entre nós uma espécie de "bom negócio", como já advertira o ex-Presidente do TST, o saudoso Orlando Teixeria da Costa.

17. Ibidem, p. 153.

As agressões ao Direito do Trabalho acabam atingindo uma grande quantidade de pessoas, sendo que destas agressões o empregador muitas vezes se vale para obter vantagem na concorrência econômica com relação a vários outros empregadores. Isto implica, portanto, dano a outros empregadores não identificados que, inadvertidamente, cumprem a legislação trabalhista, ou que, de certo modo, se vêem forçados a agir da mesma forma. Resultado: precarização completa das relações sociais, que se baseiam na lógica do capitalismo de produção.

Óbvio que esta prática traduz-se como "dumping social", que prejudica a toda a sociedade e óbvio, igualmente, que o aparato judiciário não será nunca suficiente para dar vazão às inúmeras demandas em que se busca, meramente, a recomposição da ordem jurídica na perspectiva individual, o que representa um desestímulo para o acesso à justiça e um incentivo ao descumprimento da ordem jurídica.

Nunca é demais recordar, que descumprir, deliberada e reincidentemente, a legislação trabalhista, ou mesmo pôr em risco sua efetividade, representa um descomprometimento histórico com a humanidade, haja vista que a formação do direito do trabalho está ligada diretamente com o advento dos direitos humanos que foram consagrados, fora do âmbito da perspectiva meramente liberal do Século XIX, a partir do final da 2a. guerra mundial, pelo reconhecimento de que a concorrência desregrada entre as potências econômicas conduziu os países à conflagração.

Já passou, portanto, da hora do Judiciário trabalhista brasileiro tomar pulso da situação e reverter esse quadro, que não tem similar no mundo. Há algum tempo atrás, mesmo que indevidamente, porque alheio a uma análise jurídica mais profunda, até se poderia sustentar que a culpa pela situação vivida nas relações de trabalho, quanto ao descumprimento da legislação trabalhista, não seria dos juízes, mas de uma legislação frágil, que não fornecia instrumentos para correção da realidade. Hoje, no entanto, essa alegação alienada não se justifica sob nenhum aspecto. Como visto, o próprio Código Civil, com respaldo constitucional, apresenta-se como instrumento de uma necessária atitude contrária aos atos que negligenciam, deliberadamente, o direito social e, portanto, aplicando-se normas e preceitos extraídos da teoria geral do direito, a atuação dos juízes para reparação do dano social sequer pode ser reprimida retoricamente com o argumento de que se trata da aplicação de um direito retrógrado originário da "mente fascista de Vargas".

Como critério objetivo para apuração da repercussão social das agressões ao Direito do Trabalho, pode-se valer da noção jurídica da reincidência, trazida, expressamente, no art. 59, da Lei n. 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor) e que, no Direito Penal, constitui circunstância agravante da pena (art. 61, I, CP) e impede a concessão de fiança (art. 323, III, CPP). Outro critério é o da avaliação quanto a ter sido uma atitude deliberada e assumida de desrespeito à ordem jurídica, como, por exemplo, a contratação sem anotação da Carteira de Trabalho ou a utilização de mecanismos para fraudar a aplicação da ordem jurídica trabalhista, valendo lembrar que o ato voluntário e inescusável é, igualmente, um valor com representação jurídica, haja vista o disposto no inciso LXVII, do art. 5º., da CF.

É de suma importância compreender que com relação às empresas que habitam o cotidiano das Varas, valendo-se da prática inescrupulosa de agressões aos direitos dos trabalhadores, para ampliarem seus lucros, a mera aplicação do direito do trabalho, recompondo-se a ordem jurídica individual, com pagamento de juros e correção monetária, por óbvio, não compensa o dano experimentado pela sociedade.

Portanto, nas reclamações trabalhistas em que tais condutas forem constatadas (agressões reincidentes ou ação deliberada, consciente e economicamente inescusável de não respeitar a ordem jurídica trabalhista), tais como a que se apresenta na hipótese dos presentes autos, como acima destacado, deve-se proferir condenação que vise a reparação específica pertinente ao dano social perpetrado, fixada "ex officio" pelo juiz da causa, pois a perspectiva não é a da mera proteção do patrimônio individual.

A esta necessária ação do juiz, em defesa da autoridade da ordem jurídica, sequer se poderia opor com o argumento de que não há lei que o permita agir desse modo, pois seria o mesmo que dizer que o direito nega-se a si mesmo, na medida em que o juiz, responsável pela sua defesa, não tem poderes para fazê-lo atuar.

De todo modo, essa objeção traz consigo o germe de sua própria destruição, na medida em que o ordenamento jurídico pátrio, em diversas passagens, atribui, expressamente, esse poder ao juiz.

Como fundamentos positivistas da reparação do dano social é possível citar, por exemplo, o artigo 404, parágrafo único18, do Código Civil, e os artigos 832, § 1º.19, e 652, "d"20, da CLT, todos inseridos, aliás, no âmbito das contendas individuais.

Lembre-se, ademais, que o art. 81, do Código de Defesa do Consumidor, deixou claro que a "defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas" pode ser exercida em juízo individualmente, buscando-se uma tutela plena para o respeito à ordem jurídica, afinal, como dito logo em seguida, no art. 83, para "a defesa dos direitos e interesses protegidos por este código são admissíveis todas as espécies de ações capazes de propiciar sua adequada e efetiva tutela" (art. 83).

18. "Art. 404. As perdas e danos, nas obrigações de em dinheiro, serão pagas com atualização monetária segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, abrangendo , e ários de advogado, sem prejuízo da pena convencional.

Parágrafo único. Provado que os da mora não cobrem o prejuízo, e não havendo pena convencional, o juiz conceder ao credor indenização suplementar."

19. "Quando a decisão concluir pela procedência do pedido, determinará o prazo e as condições para o seu cumprimento."

20. "Art. 652 - Compete às Juntas de Conciliação e Julgamento:

(....)

d) impor multas e demais penalidades relativas aos atos de sua competência".

Além disso, o artigo 84, do mesmo Código, garante ao juiz a possibilidade de proferir decisão alheia ao pedido formulado, visando a assegurar o resultado equivalente ao do adimplemento: "Art. 84. Na ação que tenha por objeto o cumprimento da obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela específica da obrigação ou determinará providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento." Permite-lhe, ainda, "impor multa diária ao réu, independentemente de pedido do autor, se for suficiente ou compatível com a obrigação, fixando prazo razoável para o cumprimento do preceito" (§ 4º.). Acrescenta o § 5° que "Para a tutela específica ou para a obtenção do resultado prático equivalente, poderá o juiz determinar as medidas necessárias, tais como busca e apreensão, remoção de coisas e pessoas, desfazimento de obra, impedimento de atividade nociva, além de requisição de força policial".

Como se vê, a possibilidade de o juiz agir de ofício para preservar a autoridade do ordenamento jurídico foi agasalhada pelo direito processual e no que se refere ao respeito à regulamentação do Direito do Trabalho constitui até mesmo um dever, pois o não cumprimento convicto e inescusável dos preceitos trabalhistas fere o próprio pacto que se estabeleceu na formação do nosso Estado Democrático de Direito Social, para fins de desenvolvimento do modelo capitalista em bases sustentáveis e com verdadeira responsabilidade social.

A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) não foi alheia ao fenômeno, atribuindo ao juiz amplos poderes instrutórios (art. 76521) e liberdade para solução justa do caso na perspectiva da eqüidade, conforme previsão dos arts.8º 22. e 76623, não se esquecendo da perspectiva dos efeitos sociais, conforme regra do já citado art. 652, "d".

21. "Art. 765. Os Juízos e Tribunais do Trabalho terão ampla liberdade na direção do processo e velarão pelo andamento rápido das causas, podendo determinar qualquer diligência necessária ao esclarecimento delas"

22. "Art. 8º. As autoridades administrativas e a Justiça do Trabalho, na falta de disposições legais ou contratuais, decidirão, conforme o caso, pela jurisprudência, por analogia, por eqüidade e outros princípios e normas gerais de direito, principalmente do direito do trabalho, e, ainda, de acordo com os usos e costumes, o direito comparado, mas sempre de maneira que nenhum interesse de classe ou particular prevaleça sobre o interesse público."

23. "Art. 766. Nos dissídios sobre estipulação de salários, serão estabelecidas condições que, assegurando justos salários aos trabalhadores, permitam também justa retribuição às empresas interessadas."

A incidência dos preceitos do Código do Consumidor, para correção das práticas ilegais nas relações de trabalho, é inteiramente pertinente eis que o consumo se insere na mesma lógica do capitalismo de produção que o Direito do Trabalho regula e organiza.

A respeito das relações de consumo, compete, ainda, verificar que vários segmentos empresariais têm se valido da retórica da "responsabilidade social", para vender a sua marca. Mas, ao participarem de negócios jurídicos, que põem em risco a eficácia dos direitos sociais, contrariam o seu próprio compromisso, fazendo com que sua propaganda, em torno da responsabilidade social, seja catalogada juridicamente como uma publicidade enganosa, nos termos do art. 37, da Lei n. 8.078/9024, definida como crime no artigo 66 da mesma Lei25, punível com "detenção de três meses a um ano e multa".

Destaque-se que "a proteção contra a publicidade enganosa e abusiva, métodos comerciais coercitivos ou desleais, bem como contra práticas e cláusulas abusivas ou impostas no fornecimento de produtos e serviços" é um direito dos consumidores, conforme artigo 6º., inciso IV, da Lei n. 8.078/90.

No aspecto da punição ao agressor da ordem jurídica com repercussão social, dispõe o art. 78, da Lei n. 8.078/90, que "Além das penas privativas de liberdade e de multa, podem ser impostas, cumulativa ou alternadamente, observado o disposto nos arts. 44 a 47, do Código Penal: Ia interdição temporária de direitos; II -a publicação em órgãos de comunicação de grande circulação ou audiência, às expensas do condenado, de notícia sobre os fatos e a condenação; III - a prestação de serviços à comunidade."

Grande relevo tem a providência do inciso II, já que o consumo socialmente responsável é um dever jurídico no Estado Social, mas para que seja exercido é essencial que a sociedade tenha conhecimento dos atos ilícitos praticados.

24. "Art. 37. É proibida toda publicidade enganosa ou abusiva.

§ 1° É enganosa qualquer modalidade de informação ou comunicação de caráter publicitário, inteira ou parcialmente falsa, ou, por qualquer outro modo, mesmo por omissão, capaz de induzir em erro o consumidor a respeito da natureza, características, qualidade, quantidade, propriedades, origem, preço e quaisquer outros dados sobre produtos e serviços." (grifou-se)

25. "Art. 66. Fazer afirmação falsa ou enganosa, ou omitir informação relevante sobre a natureza, característica, qualidade, quantidade, segurança, desempenho, durabilidade, preço ou garantia de produtos ou serviços."

O direito à informação, ademais, é expressamente catalogado como direito básicos do consumidor (art. 6º., inciso III: "a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade e preço, bem como sobre os riscos que apresentem"

Aliás, faz parte Da Política Nacional de Relações de Consumo a necessária "educação e informação de fornecedores e consumidores, quanto aos seus direitos e deveres, com vistas à melhoria do mercado de consumo", nos termos do inciso IV, do art. 4º., da Lei n. 8.078/90, sendo relevante recordar que o direito à informação é preceito fundamental do respeito ao princípio da boa-fé objetiva, essencial no desenvolvimento de uma sociedade sadia.

Nem se diga que faltaria à Justiça do Trabalho competência para aplicar todas essas regras, afinal a política econômica, o consumo e as relações de trabalho estão ligadas de forma indissolúvel à mesma lógica. Além disso, os efeitos jurídicos dos ilícitos constados fazem parte da competência derivada. Lembre-se, a propósito, que a Emenda Constitucional 45 de 2004 atribuiu à Justiça do Trabalho competência para todas as repercussões jurídicas relativas à exploração do trabalho humano no contexto produtivo, conferindo-lhe, inclusive, a tarefa de executar as contribuições previdenciárias decorrentes das suas decisões.

Há quem diga, com razão, que mesmo a competência penal relativa às questões trabalhistas foi conduzida à Justiça do Trabalho, sendo relevante destacar que também o direito penal preocupou-se com o desrespeito à ordem jurídica trabalhista, definindo como crime a conduta de "Frustrar, mediante fraude ou violência, direito assegurado pela legislação do trabalho" (art. 203), com pena de "detenção de um ano a dois anos, e multa, além da pena correspondente à violência".

Diante de tudo isso, o que se espera do Judiciário é que faça valer todo o aparato jurídico para manter a autoridade do ordenamento jurídico no aspecto da eficácia das normas do Direito Social, não fazendo vistas grossas para a realidade, não fingindo que desconhece a realidade em que vive, e não permitindo que as fraudes à legislação trabalhista tenham êxito. Sobretudo, exige-se do

Judiciário que reconheça ser sua a obrigação de tentar mudar a realidade quando em descordo com o Direito.

Vale repisar que a tentativa de inibir as ações corretivas, pondo em discussão qual seria o ente legítimo para receber a reparação de cunho social, não tem a menor razão de ser, como acima delineado. Concretamente, a forma de se fixarem a reparação e o beneficiário da obrigação determinada não são o mais importante. Não se podem pôr como obstáculos à ação concreta para reparação do dano social, que visa revitalizar a autoridade da ordem jurídica, as discussões processuais em torno da legitimidade e dos limites da ação do juiz ao pedido formulado. O que se exige do juiz é que, diante do fato demonstrado, que repercute no interesse social, penalize o agressor para desestimulá-lo na repetição da prática e para compensar o benefício econômico já obtido.

A medida corretiva, assim, vai desde a condenação ao pagamento de uma indenização adicional (ou suplementar), destinada ao autor da ação individual, em virtude da facilidade de implementação da medida, até a determinação de obrigações de fazer, voltadas a práticas de atos em benefício da comunidade.

Em âmbito mundial, vários são os exemplos de penalização de empresas que descumprem seus compromissos sociais em termos de preservação de direitos humanos. Muito se fala a respeito da proteção do meio-ambiente, mas é óbvio que a proteção do ser humano está em primeiro plano, pois um meio ambiente saudável sem homens saudáveis que dele possam usufruir nada vale.

Roberto Basilone Leite, em sua obra, Introdução do Estudo do Consumidor26, traz uma análise de caso paradigmático dessa atuação jurisdicional corretiva, ocorrido nos EUA. Trata-se do caso Gore vs BMW, do qual se extraiu o princípio jurídico do desestímulo, que é "princípio oriundo do Direito Penal, apropriado pela doutrina civilista que trata da responsabilidade por danos metapatrimoniais".

Esclarece o autor que "diante de uma lei destinada a garantir determinado direito consumerístico, tanto individual, quanto difuso ou coletivo, presume-se implícito, nas punições nela estipuladas, o intuito de desestimular o possível infrator à prática do ato ou omissão lesivos".

Dada a pertinência, convém reproduzir o relato de Basilone:

"Exemplo bem ilustrativo da aplicação do princípio do desestímulo, colhido por Paulo Soares Bugarin27, consiste na decisão prolatada no caso BMW of North America, Inc. versus Gore. Após adquirir um veículo BMW novo de um revendedor do Estado do Alabama, Gore descobriu que o carro fora repintado. Ajuizou ação de ressarcimento de danos (compensatory damages) e de punição por danos (punitive damages) contra a American Distributor of BMW, em que a empresa foi condenada ao pagamento de US$ 4.000,00 a título de compensatory damages e mais US$ 4 milhões a título de punitive damages.

26. Roberto Basilone. Introdução ao direito do consumidor. São Paulo: LTr, 2002. p. 97-100.

27. Paulo Soares. "O direito do consumidor e o devido processo legal na moderna jurisprudência

A sanção foi reduzida posteriormente pelas Cortes superiores, mas o que interessa, neste passo, é apenas destacar o raciocínio lógico da primeira decisão. US$ 4 milhões teria sido o valor dos lucros obtidos pela empresa com a venda de todo o lote ‘condenado’ de veículos repintados. Com tal punição, pretendia o juiz criar um precedente tendente a eliminar no produtor justamente o interesse econômico da assunção do risco de lançar produto defeituoso no mercado.

É comum o empresário pautar suas decisões exclusivamente com base em cálculos financeiros. Suponhamos que, num lote de determinada mercadoria pronto para a comercialização, o produtor constate um certo defeito em todas as unidades. O cálculo das probabilidades, no entanto, indica que poucos consumidores acabarão notando ou sofrendo prejuízos em decorrência desse defeito. O empresário poderá sentir-se tentado a ceder ao seguinte raciocínio: se vier a ocorrer dano a uns poucos consumidores e o ressarcimento das respectivas despesas for pequeno em relação aos lucros obtidos com a colocação daquele lote no mercado, compensa a ele correr o risco.

Contudo, se ele souber que a ocorrência de lesão a um único consumidor o sujeitará a uma pena pecuniária equivalente ou até superior aos referidos lucros, não valerá mais a pena correr o risco: estará eliminada a própria constitucional norte-americana: o caso BMW of North America, Inc. V. Gore". Revista de Informação Legislativa, Brasília, DF, v. 36, n. 143, jul./set. 1999, p. 234.

vantagem subjacente à decisão de risco de comercializar o lote "defeituoso" que seria a certeza de algum lucro. O fator psicológico instaurador da tentação restará bastante enfraquecido, pois seu objeto principal ‘a certeza do lucro’ terá sido eliminado. Nisso consiste o princípio do desestímulo.

Pode-se concluir, afinal, este tópico, mencionando que a indenização de desestímulo tem três funções distintas: a) a função reparatória ou compensatória, conforme se trate, respectivamente, de dano material ou imaterial; b) a função pedagógica ou didática, que procura sanar as eficiências culturais do lesante; c) a função punitiva ou de desestímulo, que diminui no lesante a pulsão para a prática lesiva."

A posição em questão vem se difundindo na jurisprudência brasileira nas matérias pertinentes ao Código do Consumidor, conforme decisão, proferida em 2007, pela 3ª. Turma Recursal Cível dos Juizados Especiais Cíveis do Rio Grande do Sul, no processo n. 7100120866, que tinha como partes, EVA SHIRLEI MELLO MACHADO e KATER ADMINISTRADORA DE EVENTOS LTDA., e da qual foi relator o Dr. Eugênio Facchini Neto, que contém a Ementa abaixo transcrita:

"TOTO BOLA. Sistema de loterias de chances múltiplas. fraude que retirava ao consumidor a chance de vencer. ação de reparação de danos materiais e morais. danos materiais limitados ao valor das cartelas comprovadamente adquiridas. danos morais puros não caracterizados. Possibilidade, porém, de excepcional aplicação da função punitiva da responsabilidade civil. na presença de danos mais propriamente sociais do que individuais, recomenda-se o recolhimento dos valores da condenação ao fundo de defesa de interesses difusos. recurso parcialmente provido.

1. Não há que se falar em perda de uma chance, diante da remota possibilidade de ganho em um sistema de loterias. Danos materiais consistentes apenas no valor das cartelas comprovadamente adquiridas, sem reais chances de êxito. 2. Ausência de danos morais puros, que se caracterizam pela presença da dor física ou sofrimento moral, situações de angústia, forte estresse, grave desconforto, exposição à situação de vexame, vulnerabilidade ou outra ofensa a direitos da personalidade.

3. Presença de fraude, porém, que não pode passar em branco. Além de possíveis respostas na esfera do direito penal e administrativo, o direito civil também pode contribuir para orientar os atores sociais no sentido de evitar determinadas condutas, mediante a punição econômica de quem age em desacordo com padrões mínimos exigidos pela ética das relações sociais e econômicas. Trata-se da função punitiva e dissuasória que a responsabilidade civil pode, excepcionalmente, assumir, ao lado de sua clássica função reparatória/compensatória. "O Direito deve ser mais esperto do que o torto", frustrando as indevidas expectativas de lucro ilícito, à custa dos consumidores de boa fé.

4. Considerando, porém, que os danos verificados são mais sociais do que propriamente individuais, não é razoável que haja uma apropriação particular de tais valores, evitando-se a disfunção alhures denominada de overcompensantion. Nesse caso, cabível a destinação do numerário para o Fundo de Defesa de Direitos Difusos, criado pela Lei 7.347/85, e aplicável também aos danos coletivos de consumo, nos termos do art. 100, parágrafo único, do CDC. Tratando-se de dano social ocorrido no âmbito do Estado do Rio Grande do Sul, a condenação deverá reverter para o fundo gaúcho de defesa do consumidor."

No acórdão em questão, destaca o relator:

"A função punitiva, presente na antigüidade jurídica, havia sido quase que esquecida nos tempos modernos, após a definitiva demarcação dos espaços destinados à responsabilidade civil e à responsabilidade penal. A esta última estaria confinada a função punitiva. Todavia, quando se passou a aceitar a compensabilidade dos danos extrapatrimoniais, especialmente os danos morais puros,percebeu-se estar presente ali também a idéia de uma função punitiva da responsabilidade civil. Para os familiares da vítima de um homicídio, por exemplo, a obtenção de uma compensação econômica paga pelo causador da morte representa uma forma estilizada e civilizada de vingança, pois no imaginário popular está-se também a punir o ofensor pelo mal causado quando ele vem a ser condenado a pagar uma indenização.

Com a enorme difusão contemporânea da tutela jurídica (inclusive através de mecanismos da responsabilidade civil) dos direitos da personalidade, recuperou-se a idéia de penas privadas. Daí um certo revival da função punitiva, tendo sido precursores os sistemas jurídicos integrantes da família da common law, através dos conhecidos punitive (ou exemplary) dammages. Busca-se, em resumo, ‘punir’28 alguém por alguma conduta praticada, que ofenda gravemente o sentimento ético-jurídico prevalecente em determinada comunidade29."

28. "Quanto à não exclusividade do direito penal para o exercício de funções sancionatórias, veja-se Paolo Cendon, "Responsabilità civile e pena privata", in: Francesco D. Busnelli e G. Scalfi (org.), Le pene private, Milano, Giuffrè, 1985, p. 294, os estudos de Paolo Gallo, especialmente Pene Private e Responsabilità Civile, Milano: Giuffrè, 1996, e Introduzione al Diritto Comparato, vol. III, Analisi Economica del Diritto, Torino: Giappichelli, 1998, esp. p. 91s., e Giulio Ponzanelli, La respnsabilità civile – profili di diritto comparato, Bologna, Il Mulino, 1992, p. 30 e s. No direito francês, v. menção feita por Geneviève Viney, na sua Introduction à la Reponsabilité, volume integrante do Traité de Droit Civil, dirigido por Jacque

E, mais adiante, destaca o aspecto da relevância social do dano, que não se repara na perspectiva individual, sobretudo quanto este se apresente ínfimo: "individualmente os danos sofridos foram ridiculamente ínfimos. Mas na sua globalidade, configuram um dano considerável. Tratando-se de fenômeno de massa – e fraudes do gênero só são intentadas justamente por causa disso (pequenas lesões a milhares ou milhões de consumidores) – a Justiça deve decidir levando em conta tal aspecto, e não somente a faceta individual do problema."

O caso dos presentes autos, como é possível verificar, se encaixa, plenamente, na temática supra.

Por todos esses fundamentos, diante do dano social gerado pela prática adotada pela 2ª. reclamada, que é, efetivamente, a responsável pela situação criada que agrediu o Estado Social Democrático de Direito com a intenção de obter vantagem econômica indevida, condeno a 2ª. reclamada, Coca-cola, a pagar multa equivalente a 30% do lucro obtido durante a "Semana Otimismo que Transforma", de 17 a 23 de maio de 2009, que será revertida, nos termos do art. 13 da Lei n. 7.347/85, ao Fundo de Defesa dos Direitos Difusos, instituído pela Lei n. 9.008/95 (Regulamentada pelo Decreto 1.306/94), cabendo ao Ministério Público do Trabalho, a fiscalização da efetiva aplicação desta verba para a reconstituição dos bens lesados, sobretudo no que tange a inibir a repetição da aludida prática, tais como a realização de diligências conjuntas com o Ministério do Trabalho; implementação de cursos de formação e de requalificação de trabalhadores quanto a conhecimento de seus direitos... Até porque durante a semana em questão o Ghestin, Paris: L.G.D.J., 1995, p. 122 e 123. No direito norte-americano, na obra coletiva Punitive Damages (Chicago: University of Chicago Press, 1992), v. especialmente a introdução de Cass Sunstein, "To punish or not" (p. 75/76), além de Thomas H. Koenig and Michael L. Rustad, In Defense of Tort Law, New York: New York University Press, 2003, esp. p. 23/28." compromisso publicamente assumido pela 2ª. reclamada foi de destinar "parte" de seu lucro – não fixando limite – para o incentivo de práticas de transformação social http://www.cocacolabrasil.com.br/semanaotimismoquetransforma/

29. "Trata-se de uma função freqüentemente invocada pelos tribunais, do que serve de exemplo o seguinte acórdão: ‘Responsabilidade civil. Dano moral. Acusação injusta de furto em mercado. A injusta imputação de furto a cliente de mercado e a sua revista causam constrangimento passível de indenização. A fixação do dano deve levar em conta o caráter compensatório e punitivo’ (TJRS, 6a. CC., C.C. 70001615152, j. em 11.04.01, rel. Des. Cacildo de Andrade Xavier)."

Além disso, deve a 2ª. reclamada, em cinco dias, sob pena de "astreinte" fixada em R$5.000,00 por dia de atraso (a ser vertida para o Fundo acima), dar notícia em seu sítio da presente condenação, explicitando que o valor da multa a que fora condenada nos presentes autos foi originada da consideração do dano social por ela praticado quanto à exploração do trabalho dos motoristas de caminhão, da qual adveio a declaração judicial de que sua propaganda, na campanha "Otimismo que Transforma", foi enganosa.

Sobre o autor
Luiz Gustavo Abrantes Carvas

Advogado, pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade Anhanguera – UNIDERP Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARVAS, Luiz Gustavo Abrantes. Desmistificando o dumping social. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3014, 2 out. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20121. Acesso em: 22 dez. 2024.

Mais informações

Título original: "Dumping social: desmistificando um mito". Orientador: Professor Hugo Lourenço Moreira Santos.

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