4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O objetivo deste artigo foi analisar se as alterações produzidas pelo gerencialismo no Brasil constituíram-se em fator de crise ou em uma plasticidade evolutiva. O caminho percorrido até estas considerações foi longo, e passa a ser abaixo sintetizado.
De início verificaram-se quais as formas ou tipos de Administração Pública que se contrapõem à Administração Pública Gerencial. Esta se caracteriza pela eficiência e flexibilidade, onde o controle procedimental é substituído por um controle de resultados. Os outros dois tipos de Administração Pública são: (i) Administração Pública Patrimonialista, em que a coisa pública é vista como propriedade do príncipe, o que importa em confusão do público com o privado; (ii) Administração Pública Burocrática, que se caracteriza pela existência de um rígido controle procedimental, além de regras objetivas que visam a apartar o público e o privado no domínio administrativo.
A Reforma Administrativa empreendida na década de 1990 pelo Governo Fernando Henrique Cardoso buscou a implementação de postulados gerencialistas no Brasil, em ordem a constituir uma Administração Pública Gerencial.
O gerencialismo – que dá ensejo à Administração Pública Gerencial – nasce na década de 80 em resposta à crise do Estado. Os pilares do gerencialismo podem ser resumidos na seguinte assertiva: a Administração Pública deve funcionar do mesmo modo que uma administração de uma empresa. Nesse sentido, para que tal aspiração seja alcançada, mister são dois pontos: (i) a eficiência e (ii) um controle de resultados, em detrimento do controle procedimental burocrático.
Destarte, como forma de adequar a Administração Pública à nova realidade circundante, que exigia uma atuação mais eficiente, o Governo Fernando Henrique elaborou o Plano Diretor de Reforma Administrativa do Aparelho do Estado, documento que nortearia a progressiva implantação do gerencialismo na Administração Pública pátria. Tal Plano Diretor possuía as seguintes diretrizes: (i) busca por maior eficiência na atuação estatal; (ii) substituição de um formal e rígido controle procedimental por um flexível controle de resultados; (iii) estabelecer, para o Núcleo Estratégico, além de eficiência, efetividade; (iv) conceder maior autonomia para o administrador público, principalmente para aquele inserido no setor Atividades Exclusivas; (v) instituir um programa de Publicização, pelo qual o setor dos Serviços Não-Exclusivo passaria da esfera estatal para a esfera pública não-estatal; (v) instituir um programa de Privatização, pelo qual o setor Produção para o Mercado passaria do setor estatal para o setor privado.
Tendo-se em vista tais diretrizes, promulgou-se a Emenda Constitucional 19, de 1998, marco teórico-constitucional do gerencialismo no Brasil. Logo, durante a década de 1990, o Brasil assistiu a uma onda gerencialista, que resultou: (i) na emergência de novos princípios, como os da subsidiariedade e eficiência; (ii) na implementação do programa de Privatização, pelo qual 40 (quarenta) entidades passaram da esfera estatal para a esfera privada; (iii) na criação da figura das organizações sociais, conforme os postulados do programa de Publicização; (iv) na constituição de agências reguladoras, que deveriam regulamentar e fiscalizar os setores que foram transferidos da esfera estatal para a esfera privada; (v) por intermédio do contrato de gestão, nas agências executivas, entidades às quais eram conferidas maiores prerrogativas com o fito de atuarem mais eficientemente; (vi) na fragilização da estabilidade, com a ampliação das hipóteses de demissão e do prazo do estágio probatório; (vii) numa nova política remuneratória, a saber, o subsídio. O rol apresentado não é exaustivo, mas constitui-se nas principais inovações do gerencialismo brasileiro da década de 1990.
O Direito Administrativo brasileiro, então, sofreu mutações em sua estrutura; restava saber se tais mutações seriam bosquejos de uma crise ou de uma plasticidade evolutiva.
Foram então apresentados os argumentos segundo os quais o gerencialismo constituir-se-ia num fator de crise do Direito Administrativo pátrio, que podem ser assim sintetizados: (i) as inúmeras privatizações, dos diversos vieses, confundiria o próprio Direito Administrativo, em razão da presença cada vez mais constante do Direito Privado; (ii) a proliferação de autoridades administrativas independentes prejudicaria a clássica noção de unidade orgânico-administrativa e provocaria um afastamento da legitimidade democrática no contexto administrativo; (iii) a descaracterização da própria função administrativa, com a emergência de uma Administração Pública marcada pelo signo da terceiridade (ao invés da parcialidade) e pela crescente intromissão do Judiciário nos assuntos administrativos, o que, então, banalizaria a própria Administração Pública. Esses três fenômenos – que albergam, com certa extensão, as diretrizes gerencialistas introduzidas no Brasil na década de 1990 – seriam a débâcle do Direito Administrativo.
Contudo, outra perspectiva – que mereceu expressamente nossa adesão – foi apresentada. Por esse horizonte, o gerencialismo implementado no Brasil não se constituiria em um fator de crise para o Direito Administrativo brasileiro: não seria, pois, um caso de crise, mas de plasticidade evolutiva. Essa plasticidade evolutiva poderia, então, ser assim explicada: o gerencialismo traz consigo alguns elementos desviantes da noção clássica de Direito Administrativo, porquanto improváveis. Tais elementos desviantes improváveis tornam-se, justamente com o gerencialismo, prováveis, donde se extrai a evolução. Todavia, essa evolução deu-se sob a pressão dos novos tempos, marcados pela pós-modernidade, no que se pinça a plasticidade. Assim, o gerencialismo – uma engenharia institucional que adequa o aparelho do Estado às necessidades de um capitalismo pós-moderno – é então globalizado, sendo transferido para outros contextos políticos, sociais e econômicos. Mas algo é inequívoco: o gerencialismo deveras altera o perfil do Direito Administrativo clássico. Mas isso não é sinônimo de crise.
Enfim, podemos dizer com a sonoridade devida: o gerencialismo brasileiro da década de 1990 representou uma mudança profunda com os postulados clássicos do Direito Administrativo, sem que se paramentasse, contudo, como crise: ao reverso, trata-se de uma plasticidade evolutiva.
Esperamos, desse modo, ter contribuído para desmistificar, em alguns pontos, o gerencialismo brasileiro. No entanto, novas pesquisas sobre o tema ainda são bem-vindas, principalmente quanto à efetividade da Reforma Administrativa da década de 1990. Mas isso é assunto para outra ocasião.
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