3 OS IMPACTOS DO GERENCIALISMO NO BRASIL: CRISE OU PLASTICIDADE EVOLUTIVA?
3.1 Proêmio
Constatou-se, em passo pretérito, que as inovações implantadas no arcabouço jurídico-administrativo pelo gerencialismo no Brasil foram muitas. Destarte, o Direito Administrativo não poderia passar incólume a essas significativas mudanças.
Assim sendo, pode-se afirmar, peremptoriamente, que o DNA do Direito Administrativo brasileiro já não é mais o mesmo. Mister, então, é verificar a extensão das modificações advindas do gerencialismo. Tais modificações, por seu turno, podem paramentar-se, para fins deste estudo, como uma verdadeira crise ou uma profunda adaptação à (pós) modernidade, no que cognominamos de plasticidade evolutiva.
Nesse diapasão, serão tecidas algumas reflexões sobre tais alterações, ora sob a contextualização paradigmática de uma verdadeira crise, ora sob o prisma de uma simples, mas nada desprezível, acomodação às exigências da atualidade. Após tais considerações, externaremos, por fim, nosso entendimento, em um sentido ou em outro.
3.2 O gerencialismo como crise
Com o fito de afirmar – e demonstrar – que o direito administrativo, sob o influxo de valores gerencialistas, resulta em crise, adotar-se-á, nesse campo da pesquisa, como marco teórico, a exuberante sistematização elaborada pelo proponente português Paulo Otero, exposta em sua obra Legalidade e Administração Pública (2007).
Não nos ateremos a dizer o que é, precisamente, crise no contexto administrativo. A definição de crise, por si só, é mais intuitiva que descritiva; contudo, num certo esforço descritivo, pode-se dizer que crise é um estado que acarreta a alteração da condição normal das coisas, seja por fatores internos ou por fatores externos. No campo do direito administrativo, a crise se manifestaria em distúrbios na própria identidade do direito administrativo: este, em estado de crise, vendo sua própria face refletida no espelho, não se reconheceria.
Assim, para Paulo Otero (2007), a crise de identidade do direito administrativo atual manifesta-se em três perspectivas distintas: (i) a dinâmica privatizadora da Administração Pública; (ii) a expansão desenfreada de autoridades administrativas independes; e (iii) a descaracterização da função administrativa.
Cada uma dessas perspectivas será analisada em apartado no espaço abaixo, ilustrando-as como realidade no direito brasileiro através de exemplos.
3.2.1 A dinâmica privatizadora da Administração Pública
Um dos primeiros fatores de crise para o direito administrativo consiste na presença cada vez mais robusta, em vários de seus campos, da tônica privada. Conforme expõe Otero (2007, p. 304), essa tônica privada no seio administrativo manifesta-se de quatro maneiras: (i) privatização da estrutura organizacional administrativa; (ii) privatização das funções administrativas; (iii) privatização do direito regulador da atividade administrativa; e (iv) privatização das relações laborais intra-administrativas.
Pela privatização da estrutura organizacional administrativa, tem-se a indiscriminada criação de pessoas jurídicas administrativas privadas que perseguem atividades eminentemente públicas[14].
Em todas estas situações, podendo as mesmas envolver ou não a criação de sociedades comerciais, deparamos sempre com um fenômeno de ‘privatização dos sujeitos’, servindo-se a Administração Pública das formas organizativas típicas do Direito Privado, designadamente do Direito Comercial, para criar novas entidades, todas elas dotadas de uma personalidade jurídica de direito privado, e confiar-lhes tarefas que, directa ou indirectamente, as instrumentaliza aos fins de interesse público subjacentes à entidade pública que está na respectiva génese (OTERO, 2007, p. 305).
E em que isso contribui para a crise do direito administrativo? Vejamos. (i) A atividade administrativa, até então confiadas a pessoas administrativas públicas, passa a ser compartilhada com pessoas administrativas privadas; (ii) logo, a busca pelo interesse público no contexto administrativo não é exclusiva de entidades públicas, mas também de entidades privadas; (iii) isso, então, apequena a noção de personalidade jurídica de direito público; (iv) o Direito Administrativo vê-se compelido a, assim, conviver com o Direito Privado, o que é um fator de enfraquecimento do primeiro (OTERO, 2007, p. 306-307).
Não acreditamos que, face à realidade brasileira, tal contexto seja denotativo de crise. A própria Constituição Federal, frente aos arts. 175 e 173, anui com a existência de entidades privadas na Administração Pública que realizem atividades tipicamente públicas. Como exemplo, tem-se Companhia de Saneamento de Minas Gerais (COPASA), sociedade de economia mista – portanto, pessoa jurídica administrativa privada – voltada para o saneamento básico, prestação estatal de suma importância para o bem-estar societal[15].
A privatização das funções administrativas dá-se em direção à gestão ou exploração dessas funções. Nesse caso, a gestão ou exploração de atividades administrativas passa a ser desempenhada por pessoas jurídicas privadas. Difere-se, portanto, da primeira figura de privatização acima vista, porquanto esta importa em alargamento da Administração através da criação de pessoas jurídicas administrativas privado-públicas; na forma de privatização ora sob comento, a pessoa jurídica privada é que explorará as atividades ou a gestão; não é uma pessoa jurídica administrativa, mas uma pessoa privada[16], no sentido de que se encontra fora do aparelho do Estado (OTERO, 2007, p. 308).
Há na privatização da gestão ou exploração de tarefas administrativas, no entanto, um elevado grau de precariedade decorrente de existir sempre uma pessoa colectiva pública que mantém a responsabilidade última pelo efectivo e eficiente funcionamento das mesmas nas mãos das entidades privadas a quem foram confiadas: alicerçando-se em actos administrativos ou em contratos administrativos, a pessoa colectiva pública por tais tarefas dotada de uma responsabilidade última de garantia goza de amplos poderes de conformação, fiscalização e sancionamento sobre o modo como a gestão ou exploração dessas mesmas tarefas públicas se encontra a ser desempenhada pela entidade privada a quem foram confiadas, incluindo a faculdade de colocar termo ao respectivo acto ou contrato permissivo (OTERO, 2007, p. 308-309).
O principal fator de crise, aponta Otero (2007, p. 309), consiste na diminuição do campo operacional do Direito Administrativo, constituindo-se, portanto "[...] na mais séria ameaça ao Direito Administrativo do século XXI".
Pelas transcrições acima fica fácil entrever o apresentado fenômeno no Direito Administrativo brasileiro: trata-se das organizações sociais, estimuladas pela Reforma Gerencial através do Programa de Publicização, pelo qual os Serviços Não-Exclusivos são transferidos do setor estatal para o público não-estatal.
A privatização do Direito regulador da atividade administrativa corresponde ao uso cada vez mais patente do Direito Privado no campo do Direito Administrativo.
[...] a substituição do Direito Administrativo pelo Direito Privado na disciplina jurídica da actividade das entidades públicas envolve uma privatização que se pode considerar sui generis: o Direito Privado aplicado pela Administração Pública não é idêntico ao que rege as relações entre os particulares, antes é objeto de uma administrativização ou publicização, sujeito que está a um núcleo duro de vinculações jurídico-públicas inderrogáveis, falando-se, por isso mesmo, em ‘Direito Administrativo Privado’ (OTERO, 2007, p. 311).
É nesse contexto que se fala em "fuga do Direito Administrativo para o Direito Privado"[17], sendo o fator de crise evidente, em ordem que se tornam mais porosas as fronteiras entre Direito Administrativo e Direito Privado, o que importa em mudança na própria conceituação de Direito Administrativo, de modo a comportar conceituações mais amplas ou estritas (OTERO, 2007, p. 312).
Perceba que a própria noção da Administração Pública Gerencial comporta uma abertura do Direito Administrativo ao Direito Privado, ao apregoar que a Administração Pública deve funcionar nos moldes de uma administração de empresas. Contudo, esse movimento não é impulsionado somente pelo gerencialismo: o próprio fetichismo do equilíbrio econômico-financeiro nos contratos de concessão já evidencia uma velada fuga para o direito privado, como bem expôs Vinícius Marins (2005, p. 15), por ocasião da análise do contexto brasileiro.
Por fim, relativamente à dinâmica privatizadora da Administração, tem-se a privatização das relações laborais intra-administrativas. O Direito do Trabalho acaba por imiscuir-se no campo administrativo, importando uma mudança "[...] das formas típicas da relação jurídica de emprego público por vinculações contratuais regidas pelo Direito do Trabalho [...]" (OTERO, 2007, p. 313).
Sem prejuízo da garantia institucional de que goza a função pública na Constituição, elemento este que exclui liminarmente a extinção legal de um regime específico da função pública ou a sua completa identificação material com o regime laboral jurídico-privado, mostra-se admissível que o legislador, atendendo a razões de eficiência e flexibilidade, submeta certas zonas das relações laborais existentes na Administração Pública a um regime jurídico de Direito Privado (OTERO, 2007, p. 313, grifos nossos).
O fator de crise reside justamente no esmaecer dos confins entre Direito Administrativo e Direito do Trabalho no campo da função pública, privilegiando-se o segundo em detrimento do primeiro. Logo, desse embate, o Direito Administrativo queda-se enfraquecido.
O gerencialismo, nesta seara, contribui decisivamente para uma crise no Direito brasileiro. A Emenda Constitucional 19, de 1998, tentou derrubar a exigência constitucional do regime jurídico único, de modo a permitir a uma expansão da contratação de servidores celetistas. Contudo, a Emenda 19, que deu nova redação à cabeça do art. 39 da Constituição Federal, foi objeto, nesse contexto, de uma Ação Direita de Inconstitucionalidade (ADI), a de n. 2135/2000. Em medida liminar, o Supremo Tribunal Federal (STF) suspendeu, liminarmente, a nova redação, em razão de suposta inconstitucionalidade formal, estando o julgamento da referida ADI em suspenso. Importa ainda registrar que a própria idéia de fragilização da estabilidade encontra conexão intuitiva com a forma de privatização acima explanada. Assim, contribui o gerencialismo para uma suposta crise do Direito Administrativo brasileiro.
3.2.2 Multiplicação de autoridades administrativas independentes
No léxico de Paulo Otero (2007), as autoridades administrativas independentes correspondem aos entes cujas atividades encontram-se, teoricamente, livres de injunções político-administrativas do governo, vez que suas atividades são de extrema importância para determinados compartimentos da comunidade estatal. Por serem tão relevantes, tais atividades devem ser conduzidas e pautadas pela objetividade, pela imparcialidade e pela neutralidade política (OTERO, 2007, p. 319), apresentando-se imunes aos assédios vindos do espaço político ordinário. Assim, não obstante integrantes da comunidade administrativa estatal, encontram-se fora do círculo hierárquico característico desta.
Sucede, porém, que ao justificar-se a criação destas autoridades administrativas independentes na ideias de reforço da neutralidade, da imparcialidade e da objectividade decisórias da Administração Pública em certas matérias se lança uma correlativa suspeição de sinal contrário sobre toda a restante Administração, comprovando-se, por esta via, que a impregnação política das diversas estruturas administrativas, expressando a já mencionada politização ou colonização dos partidos políticos, resultante do actual ‘Estado do partido governamental’, é já hoje uma realidade expressamente assumida pela ordem jurídica: o surgimento das autoridades administrativas independentes é a resposta à progressiva perda de neutralidade, imparcialidade e objectividade que uma Administração dominada por maiorias político-partidárias oferece aos particulares, procurando-se salvar algumas áreas particularmente sensíveis dessa politização descontrolada (OTERO, 2007, p. 320).
Consignadas autoridades administrativas independentes caracterizam-se, portanto, pelo déficit democrático que ostentam[18] [19], demonstrando-se, assim, a existência de um "protagonismo técnico-burocrático" que menoscaba a legitimidade político-democrática (OTERO, 2007, p. 293).
Assim, a expansão descontrolada dessas autoridades desvincula-se da noção amplamente propalada da unidade administrativa e do suporte democrático do direito administrativo pela presença do elemento político. Eis o quadro de crise.
No Brasil, podem-se apontar como exemplos inequívocos dessas autoridades administrativas independentes as agências reguladoras, multiplicadas no ordenamento jurídico nacional em razão da quebra dos monopólios estatais e pelo programa de Privatização engendrado pela Reforma Gerencial da década de 90, estimulador da transferência do setor Produção para o Mercado da esfera estatal para a esfera privada.
3.2.3 Descaracterização da função administrativa
Conforme apresenta Paulo Otero (2007, p. 323-331), a descaracterização da função administrativa dá-se em dois sentidos distintos: (i) a terceiridade de algumas funções administrativas e (ii) a progressiva intromissão do Judiciário na seara administrativa. Vejamos esses fenômenos apartadamente.
Relativamente à função cuja curadoria lhe foi reservada, a Administração Pública sempre esteve numa posição ingrata: atuava com parcialidade e, concomitantemente, deveria respeitar as prescrições normativas. Contudo, isso não mais encontra espeque absoluto na realidade: a Administração, precipuamente no que tange às autoridades administrativas independentes, vem cada vez mais se mostrando desinteressada da função que lhe cabe, como se estivesse acima dela, paramentando-se, então, como um árbitro.
Uma tal aproximação entre a função administrativa e a função jurisdicional mostra-se hoje particularmente visível no exercício por estruturas da Administração Pública de poderes de intervenção decisória no âmbito de relações jurídicas entre privados, fazendo com que os órgãos administrativos desenvolvam uma actividade equivalente à de um juiz (OTERO, 2007, p. 325).
Portanto, resta modificada a configuração tradicional da função administrativa: se antes ela pautava-se pela parcialidade, agora, em determinados casos, ela assume uma nota de terceiridade, confundindo-se, então, as funções jurisdicionais e administrativas, de modo a descaracterizar, de certa maneira, o próprio Direito Administrativo, sendo lícito, portanto, falar em crise.
Como exemplo desse fenômeno em terras brasileiras, pode-se apontar o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE). Veja-se que a própria Lei n. 8.884, de 11 de junho de 1994 consigna, em seu art. 3°, que o CADE é um órgão judicante.
Contudo, não se pode afirmar que o CADE ostenta uma ligação perspícua com o movimento gerencialista: porém, o CADE só se transformou em autarquia em 1994, através da citada Lei, sendo contemporânea essa transformação ao movimento gerencialista[20] – o CADE anteriormente à Lei 8.884/94 era uma empresa pública.
Por fim, como última vertente para a descaracterização da função administrativa, de acordo com o modelo de Paulo Otero, emerge a jurisdicionalização da função administrativa. Tal fenômeno designa a progressiva intrusão do Judiciário na função administrativa; desse modo, o Judiciário conquista novos espaços dentro do mundo administrativo[21].
Ou seja: a jurisdicionalização da função administrativa traduz-se na transferência para a esfera do poder judicial de tarefas ou decisões tipicamente integrantes da função administrativa, procedendo-se através desta ‘fuga para o terceiro poder’ a uma amputação da área material de incidência do Direito Administrativo, isto por efeito, segundo um diferente ângulo de análise, de um ‘enriquecimento sem causa’ do poder judicial gerado por um ‘empobrecimento’ da função administrativa (OTERO, 2007, p. 329-330).
O fator de crise dispensa maiores considerações: imiscuindo-se o Judiciário na função administrativa de maneira constante, nada restaria à Administração no campo operativo decisional, transformando-se esta num fantoche do Judiciário.
Entrementes, não existe uma relação causa-efeito entre o ativismo jurisdicional no campo administrativo e gerencialismo, na perspectiva pátria. Mas que o protagonismo jurisdicional no campo administrativo na realidade brasileira é uma verdade, quanto a isso, não existem dúvidas[22].
3.3 O gerencialismo como plasticidade evolutiva
Antes de tecer as reflexões que concebem o gerencialismo como plasticidade evolutiva deve-se estabelecer o que é evolução e o que é plasticidade.
Lastreando-se em Niklas Luhmann (2002), pode-se dizer que a evolução ocorre quando as estruturas dos sistemas sociais normalizam o improvável. (LUHMANN, 2002, p. 205). Não é por outra razão que Marcelo Neves (2008, p. 1) assevera que e evolução de corte luhmanniano dá-se quando "[...] o improvável torna-se provável [...]". Destarte, o processo evolutivo jurídico luhmanniano percorre as seguintes etapas: (i) variação, que é o surgimento de uma comunicação inesperada no sistema; (ii) seleção, que consiste na não-rejeição da comunicação desviante pelas estruturas do sistema, permitindo a continuidade da expectativa comunicacional surpreendente; (iii) restabilização, quando o sistema produz, autopoieticamente, a comunicação improvável, tornando-a, portanto, provável (LUHMANN, 2002, p. 173) [23].
Visto, ainda que sucintamente, o processo evolutivo bosquejado por Niklas Luhmann, deve-se compreender o que é plasticidade. A plasticidade pressupõe uma modificação do estado natural das coisas em razão de elementos externos – sem, contudo, desaguar em crise. Nesse diapasão, trata-se de uma adaptação às novas condições do sistema.
Assim, pode-se dizer que a plasticidade evolutiva denomina a capacidade de um sistema de evoluir conforme as necessidades e pressões de um contexto histórico, político e econômico.
E isso é, justamente, uma característica da pós-modernidade: transformações outrora impensáveis tornam-se naturais a uma velocidade incrível imprimida pelos meandros da globalização. Assim, não podemos nos assustar com as repentinas inovações ocorridas no nosso tempo, vez que o nosso tempo se caracteriza justamente por essas repentinas inovações.
A sociedade contemporânea seria assim caracterizada pela complexidade, a desordem, a indeterminação, a incerteza: novas figuras, tais como aquelas do rizoma, do labirinto ou da rede – agora promovida ao nível de paradigma dominante nas ciências sociais – são fornecidas para dar conta de uma organização social que abandonou os caminhos bem balizados da simplicidade, da ordem e da coerência (CHEVALLIER, 2009, p. 17-18).
Diríamos mais: nossa sociedade pós-moderna corresponderia à complexificação do complexo, a uma desordem impassível a priori de ordenação, à determinação às indeterminações e incertezas – certificação das indeterminações ou determinação às incertezas. Ora, é assim que pós-modernidade deve ser enxergada: como hiperbolização das características da modernidade.
Nesse contexto, a globalização assume papel especial. É como se fosse um pulverizador das inovações ocorridas em diferentes espaços sociais, donde que se esmaecem as fronteiras desses espaços. Nesse modelo, a globalização seria o instrumento pelo qual a complexificação do complexo, a desordem impassível a priori de ordenação e a determinação às indeterminações e incertezas são espraiada por todos os contextos, havendo, contudo, níveis distintos de adaptabilidades às características da pós-modernidade.
É imperioso reconhecer que o Direito Administrativo não poderia passar incólume a estes contextos de pós-modernidade e globalização. Destarte, o Direito Administrativo recebe os influxos desses movimentos, o que acaba por alterar sua composição e compostura clássicas. Todavia, isso não seria sinal de crise, mas de evolução; uma evolução cujo ritmo é ditado pela pós-modernidade e exportado para todos os contextos pela globalização. O direito administrativo olha-se no espelho e reconhece-se, não obstante as constantes intervenções plásticas.
Tudo o que foi dito calha à fiveleta ao Direito Administrativo brasileiro, em relação aos impactos nele causados pela implementação dos postulados gerencialistas. As principais inovações introduzidas no Direito Administrativo brasileiro cuja paternidade é creditada ao movimento gerencialista afiguram-se como sinais de evolução. O fenômeno da privatização, em seus múltiplos coloridos, a expansão das autoridades administrativas independentes e a descaracterização da função administrativa – recorrendo-se, novamente, à gramática da crise engendrada por Paulo Otero (2007) – estão intumescidos de elementos desviantes que passaram pelo processo evolutivo acima apresentado: (i) primeiro surgiram tais elementos desviantes; (ii) segundo, tais elementos acabaram por encontrar adaptabilidade no sistema administrativo; (iii) onde, por fim, resistiram e reproduziram, não obstante as críticas endereçadas. Logo, o que era improvável ao Direito Administrativo em seu classicismo impermeável tornou-se provável, decorrendo, daí, evolução.
Todavia, essa evolução não se deu naturalmente. A influência de fatores externos permitiu que o gerencialismo se tornasse um imperativo no contexto brasileiro de 1990. Como se viu, o gerencialismo foi concebido como a forma adequada para suplantar os pontos negativos intrínsecos à Administração Pública Burocrática: tornar a Administração mais flexível e mais eficiente, através de uma série de medidas que contemplassem mais os resultados do que os processos – eis o âmago do gerencialismo. Na visão gerencialista, a Administração Pública brasileira tinha tudo, menos flexibilidade e eficiência, o que abriu as portas às reformas da década de 1990. Assim, o gerencialismo era o remédio contra uma Administração Pública Burocrática que não mais respondia aos anseios dos tempos hodiernos. Mister, então, se afigurava reformar a Administração Pública brasileira para que a mesma se enquadrasse às exigências da atualidade, decorrendo, desse contexto, uma plasticidade, no sentido de serem alterações necessárias (a Reforma Administrativa) frente a novos contextos (em síntese, a crise do Estado, um símbolo da pós-modernidade).
E, como se viu, o gerencialismo foi amplamente adotado na modernidade central (mormente Estados Unidos e Grã-Bretanha), aportando no Brasil justamente através da globalização.
Logo, os impactos do gerencialismo no Brasil não importam em crise, mas numa plasticidade evolutiva[24] profunda.
Esse momento revela mudanças que vêm se realizando no direito administrativo no sentido de sua atualização e revitalização, para que entre em sintonia com o cenário atual da sociedade e do Estado. Algumas tendências podem ser extraídas:
a)desvencilhamento de resquícios absolutistas, sobretudo no aspecto da vontade da autoridade impondo-se imponente;
b)absorção de valores e princípios do ordenamento consagrados na Constituição;
c)assimilação da nova realidade do relacionamento Estado-sociedade;
d)abertura para o cenário sócio-político-econômico em que se situa;
e)abertura para conexões científica interdisciplinares;
f)disposição de acrescentar novos itens à temática clássica (MEDAUAR, 2003, p. 267).
Tais alterações não passaram despercebidas por Sabino Cassese. Sem utilizar o vocábulo crise, o autor italiano vale-se das seguintes palavras-chave hermenêuticas em relação ao contexto atual do Direito Administrativo: contraddizioni [contradições] e paradossi [paradoxos]. Veja-se[25]:
O direito administrativo apresenta-se como um mosaico de contradições. Sujeito por uma parte a uma veloz mudança, é para outros o emblema da estabilidade. Tradicionalmente unitário, tornou-se pluralista. Filho da centralização, sobrevive a uma intensa descentralização. Exemplo de unilateralismo, tem sido capaz de resistir à onda contratualista. Reino do formalismo, vale-se da informalidade. Hospeda no seu seio nacionalização e privatizações, regulação e desregulação. Filho do interesse nacional, é porém instrumento da cooperação regional e global. Sofre, do mesmo modo, limites estatais, regionais[26] e globais. Todas essas oposições e contradições vivem, como muitas camadas superpostas e misturadas (segundo o modelo do ‘institutional layering’), em tensão permanente no direito administrativo, rendendo uma difícil compreensão numa investigação isolada dos seus múltiplos ingredientes (CASSESE, 2009, p. 3, tradução nossa).
Nesse diapasão Cassese (2009, p. 13-28) fala em tensões, paradoxos e contradições entre política e administração, entre o público e o privado, entre o estatal e o universal e o nacional e transnacional (regional).
Em epítome: de fato, o direito administrativo brasileiro apresenta elementos desviantes de sua configuração clássica, que terminam por ensejar, no contexto administrativo, vários paradoxos, contradições ou mesmo tensões. Tais elementos desviantes foram introduzidos no arcabouço nacional na década de 1990, pela Reforma Administrativa Gerencial, cujo escopo era atualizar a Administração Pública brasileira, livrando-a dos excessos burocráticos. O gerencialismo, surgido nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha, aporta em terras nacionais – através da globalização de novas engenharias institucionais que visam a adequar o Estado aos novos apetites de um capitalismo pós-moderno – com a promessa de inserir a Administração pátria na pós-modernidade. Mas isso, de modo algum, representou um fator de crise para o direito administrativo brasileiro, posição à qual manifestamos nossa adesão.