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A imprescindibilidade da autuação em flagrante nas situações de prisão cautelar administrativa, na Polícia Militar de Alagoas, em observância à ordem constitucional vigente

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Agenda 12/10/2011 às 08:20

3. A OBRIGATORIEDADE DE AUTUAÇÃO DO POLICIAL MILITAR ENCONTRADO EM SITUAÇÃO DE FLAGRANTE TRANSGRESSIONAL EM OBSERVÂNCIA À ORDEM CONSTITUCIONAL VIGENTE

Considerado o capítulo cerne deste trabalho, aqui haverá uma exposição sobre o conceito de prisão e as suas espécies, quais sejam, prisão penal, cautelar e extrapenal. Da mesma forma serão enfocadas as prisões administrativas disciplinares militares, cujas espécies são a prisão punição e a prisão cautelar, além das características que são comuns às prisões em flagrante delito e em flagrante transgressional, quais sejam, acessoriedade, provisoriedade, preventividade, revogabilidade, instrumentalidade e necessidade. Serão abordadas também a natureza jurídica da prisão em flagrante delito e a semelhança desta com a prisão em flagrante transgressional, a distinção entre regras e princípios, os princípios constitucionais e a prisão em flagrante transgressional disciplinar, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, a impossibilidade do habeas corpus nas prisões disciplinares, o artigo 12, do Regulamento Disciplinar da PMAL, a possibilidade da existência de abuso de autoridade nas prisões cautelares administrativas e, finalmente, a obrigatoriedade de Autuação do Policial Militar encontrado em situação de flagrante transgressional.

3.1. PRISÃO

3.1.1. Conceito de Prisão

Prisão pode ser conceituada como o ato pelo qual o indivíduo tem o seu direito de ir, vir, permanecer, ficar, limitado em determinado local imposto coercitivamente pelo Estado em razão de uma conduta por ele praticada contra bem jurídico tutelado pelo ente estatal, podendo ser esta privação em decorrência de flagrante delito, ordem escrita e fundamentada da autoridade judicial competente, transgressão disciplinar militar ou crime propriamente militar.

Em verdade, este conceito foi extraído do inciso LXI, artigo 5°, da Constituição Federal, pelo qual "ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei". Estão aqui expostos todos os ingredientes para quaisquer tipos de prisão. Neste mandamento constitucional estão presentes não apenas as prisões cautelares ou processuais (flagrante delito, preventiva e temporária), mas, igualmente, a penal (trânsito em julgado) e as administrativas militares (transgressão disciplinar e crime propriamente militar).

Com relação ao vocábulo prisão, declara Plácido e Silva (2004, p. 1095):

PRISÃO. Do latim prehensio, de prehendere (prender, segurar, agarrar), tanto significa o ato de prender ou o ato de agarrar uma coisa ou pessoa, assim, prender e agarrar são equivalentes a prisão, significando o estado de estar preso ou encarcerado.

Na terminologia jurídica, é o vocábulo tomado para exprimir o ato pelo qual se priva a pessoa de sua liberdade de locomoção, isto é, da liberdade de ir e vir, recolhendo-a a um lugar seguro ou fechado, de onde não poderá sair. (grifo do autor).

Na mesma linha, só que mais breve, Costa et al (2007, p. 166)sintetizam: "A prisão é a privação da liberdade de locomoção (direito de ir e vir) em decorrência de ordem legal." Fixado o conceito de prisão, seguem-se as suas espécies.

3.1.2. Espécies de Prisão

Doutrinariamente, no ordenamento jurídico brasileiro, conforme ensina Brasileiro de Lima (2011, p. 58), pode-se afirmar que existem três espécies de prisão: a) Prisão penal; b) Prisão Cautelar e c) Prisão extrapenal.

3.1.2.1. Prisão Penal

É a aquela decretada por sentença condenatória transitada em julgado, imposta, por juiz competente, ou seja, pena privativa de liberdade. Antes de sua aplicação, o Estado-juiz faculta ao condenado todos os direitos e garantias constitucionais previstos por meio do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório, com os meios e recursos a eles inerentes.

3.1.2.2. Prisão Cautelar

Com a reforma implementada no Código de Processo Penal, a partir de 2008, por intermédio das Leis n° 11.690/08 e n° 11.719/08, consoante se viu no Capítulo 2, implicitamente foram revogadas duas prisões cautelares: a prisão em virtude de pronúncia nos crimes de competência do Tribunal do Júri e a prisão decorrente de sentença penal condenatória recorrível. Assim, sobreviveram, no ordenamento jurídico, as três prisões restantes: a prisão em flagrante delito, a prisão preventiva e a prisão temporária.

Trata-se a prisão cautelar de um instrumento de que o Estado dispõe com o fito de garantir a eficácia da fase inquisitorial ou pré-processual ou do processo penal em si. Está estreitamente vinculada à instrumentalização do processo penal, na medida em que frustra qualquer tentativa do infrator no sentido de desconstituir provas, ameaçar testemunhas, fugir do distrito da culpa, dentre outras condutas que possam obstar a marcha regular do processo.

A propósito, é necessário acrescentar que a Lei 12.403, de 04 de maio de 2011, com vacatio legis de sessenta dias, modificou inúmeros artigos do Título IX (doravante intitulado "Da Prisão, das Medidas Cautelares e da Liberdade Provisória"), do Código de Processo Penal. No que se refere à prisão, o novo artigo 283, do CPP, trouxe praticamente a mesma redação do inciso LXI, do artigo 5°, da Constituição, o que deixa clara a intenção do legislador processual penal em atender às exigências constitucionais. Assim, prescreve o artigo 283:

Art. 283. Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva.

Revela notar, por lógico, que o dispositivo apenas excluiu do texto a referência às transgressões disciplinares militares e os crimes propriamente militares. Além disso, afastou de uma vez por todas as prisões em virtude de pronúncia e a decorrente de sentença penal condenatória recorrível. Também deixou bem evidente a separação das prisões cautelares, vale dizer, a prisão em flagrante delito das demais (em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado, de prisão temporária e prisão preventiva). À primeira, inicialmente, basta, por óbvio, tão somente a autuação em flagrante, devendo ser homologada, a posteriori, pelo magistrado competente. As últimas devem ser exclusivamente por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária.

3.1.2.3. Prisão Extrapenal

No que diz respeito à prisão extrapenal, atualmente na ordem jurídica em vigor, existem apenas a prisão militar e a prisão civil. Ambas se encontram no artigo 5°, da Constituição Federal.

3.1.2.3.1. Prisão Militar

A prisão militar está prevista no inciso LXI, que faz ressalvas à prisão nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei. Nas hipóteses de transgressão disciplinar e de crime próprio militar, a autoridade militar pode efetuar a prisão do seu subordinado sem que haja determinação judicial ou flagrante delito. As transgressões administrativas constam dos regulamentos disciplinares das Forças Armadas e das Polícias Militares, como já visto. No RDPMAL, de acordo com o artigo 57, inciso III, somente para as transgressões de intensidade grave é que se pode infligir a punição de prisão para o policial militar, cabendo salientar que também existe a detenção, uma prisão mitigada, prevista no mesmo artigo, inciso II, para as infrações de natureza média. Cabe destacar que, segundo o escólio de Mikalovski e Alves (2009, p. 21) "a transgressão disciplinar por definição não é um crime, mas uma contravenção que fere os valores da vida militar, da disciplina e da hierarquia, que são os fundamentos das instituições militares."

No que toca aos crimes militares é o Código Penal Militar (Decreto-lei 1.001/69) quem estabelece os tipos penais e as respectivas penas. Não existe, no CPM, distinção entre crime propriamente e impropriamente militar. Trata-se de criação doutrinária. Portanto, crime propriamente militar é aquele que não encontra correspondência no Código Penal comum, somente podendo ser praticado por militar, o que afasta o civil de estar na condição de sujeito ativo do delito. Exemplos de crimes desta ordem podemos citar: Ofensa aviltante a inferior (art. 176), Deserção (art. 187), Abandono de Posto (art. 195), dentre outros. Por outro lado, de acordo com o magistério de Brasileiro de Lima (op. cit., p. 74) crime impropriamente militar é aquele "cuja prática é possível a qualquer cidadão (civil ou militar), passando a ser considerado militar porque praticado em certas condições (art. 9° do CPM)." São exemplos: Homicídio (art. 205), Lesão Corporal (art. 209), Calúnia (art. 214) Constrangimento Ilegal (art. 222) etc.

Importa consignar que, ao acrescentar o parágrafo único ao artigo 9°, do Código Penal Militar, a Lei 9.299/96 estabeleceu que os crimes dolosos contra a vida cometidos contra civil é da competência da justiça comum, dispositivo flagrantemente inconstitucional, por ferir o princípio do juiz natural, pois, como adverte Assis (2005c, p. 98), "não pode o legislador ordinário alterar a competência fixada pela Constituição Federal, como acabou fazendo em relação aos crimes dolosos contra a vida praticados por militares." Posteriormente, com a chamada Reforma do Judiciário, a Emenda 45/04 deu nova redação ao § 4°, da Constituição Federal, ao ordenar que compete à Justiça Militar estadual processar e julgar os militares dos Estados, nos crimes militares definidos em lei e as ações judiciais contra atos disciplinares militares, ressalvada a competência do júri quando a vítima for civil. Ou seja, houve o deslocamento da competência para o Tribunal do Júri para processar e julgar os crimes dolosos contra a vida praticados por policiais militares, permanecendo a Justiça Militar da União competente para julgar os mesmos crimes quando praticados por militares das Forças Armadas, o que se traduz numa discriminação3 inadmissível, inclusive, a exemplo da Lei 9.299/96, ferindo o princípio do juiz natural, consagrado no inciso XXXVII e LIII, do artigo 5°.

3.1.2.3.2. Prisão Civil

A Constituição Federal, no artigo 5°, inciso LXVII, determina que não há prisão civil por dívida, salvo aquela imposta ao responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel. Esta espécie de prisão consiste naquela destinada a obrigar o indivíduo que contraiu dívida e não honrou tal compromisso, estando sujeito ao cerceamento de sua liberdade de locomoção. Apesar de a Constituição prever estas duas modalidades de prisão civil, hoje, somente uma subsiste, a relativa à dívida de alimentos, em razão de o STF, no julgamento do RE n° 466.343-SP e do HC n° 87.585-TO, reconhecer a supralegalidade ou constitucionalidade das normas constantes na Convenção Americana de Direitos Humanos, incorporada à ordem jurídica nacional por intermédio do Decreto n° 678/92, pois é assim que prescreve o artigo 7°, § 7°, da Convenção: "Ninguém deve ser detido por dívida. Este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar."

Maiores detalhes sobre a matéria serão expostos no item 3.4, vez que, a seguir, serão abordadas as espécies de prisão administrativa prevista no regulamento disciplinar de Alagoas.

3.1.3. Espécies de Prisão Administrativa Disciplinar Militar

Como regra geral, a prisão somente pode ser efetuada em flagrante delito ou por ordem escrita da autoridade judiciária, excepcionando-as apenas quando se tratar de punições disciplinares e de crime propriamente militar. O Estatuto dos Policiais Militares de Alagoas, no artigo 35, caput e § 1°, reza que as transgressões disciplinares são especificadas no Regulamento Disciplinarda Polícia Militar do Estado de Alagoas, devendo esteestabelecer as normas para aaplicação e amplitude das punições disciplinares.

O Regulamento Disciplinar da PMAL é uma espécie normativa híbrida, vez que possui normas de Direito Material e de Direito Processual. Sem querer, evidentemente, adentrar nas profundezas do assunto, pois este não é o propósito deste trabalho, tem-se que as normas jurídicas de direito material são aquelas que criam, modificam ou extinguem relações jurídicas. Por outro lado, as normas jurídicas de direito processual são aquelas que dão concretude, efetividade às normas jurídicas de Direito Material. Verificam-se, ainda, normas de caráter conceitual que são aquelas cujo texto traz apenas conceitos.

Com relação às normas de Direito Material previstas no sobredito regulamento, ocorrem de forma bem clara nos artigos 30, 31 e 32, pois são compostos de tipos transgressionais, tipos punitivos. Da mesma forma o artigo 33, combinado com o artigo 27, traz consigo normas semelhantes, entretanto contêm conceitos indeterminados. Cumpre afirmar que não só o RDPMAL, mas também todos os regulamentos disciplinares possuem verdadeiros tipos transgressionais, que é o mais correto, visto que elas versam sobre direito de liberdade de locomoção, assim como no Direito Penal. Entretanto, além desses tipos previstos, os regulamentos estabelecem normas que trazem conceitos jurídicos indeterminados, cláusulas abertas, o que, a rigor, não deveria, por tratar de matérias que impõem privação da liberdade de locomoção. Assis (2008b, p. 205) prefere chamar de "tipicidade mitigada" em função dessa flexibilidade.

Sobre conceito jurídico indeterminado, são esclarecedoras as palavras de Di Pietro (2001b, p. 97):

A expressão conceito jurídico indeterminado, embora bastante criticável, ficou consagrada na doutrina de vários países, como Alemanha, Itália, Portugal, Espanha e, mais recentemente, no Brasil, sendo empregada para designar vocábulos ou expressões que não têm um sentido preciso, objetivo, determinado, mas que são encontrados com grande freqüência nas normas jurídicas dos vários ramos do direito. Fala-se em boa-fé, bem comum, conduta irrepreensível, pena adequada, interesse público, ordem pública, notório saber, notória especialização, moralidade, razoabilidade e tantos outros.

É exatamente o que ocorre no Regulamento Disciplinar da Polícia Militar de Alagoas ao prevê figuras como honra, pundonor policial militar, decoro da classe, preceitos sociais, moral, trabalhar mal, frequentar lugares incompatíveis etc. São expressões imprecisas "que deixam à Administração a possibilidade de apreciação segundo critérios e oportunidade e conveniência administrativa." (DI PIETRO, 2010a, p. 215). Isso até que no âmbito civil se admite, em virtude de não haver cerceio da liberdade de ir e vir, mas na caserna representa um grau de liberdade acima do razoável para a autoridade policial militar.

Cumpre notar que o RDPMAL possui duas espécies de prisão, uma cautelar ou processual e outra prisão pena ou punição. No que toca a esta última, há divergência quanto à terminologia, pois ora se fala prisão-pena, ora se fala em prisão punição. No entanto, prevalece a expressão prisão punição, que é a utilizada pelo regulamento disciplinar, mesmo porque só há que se falar em pena no mundo do Direito Penal, porquanto é o próprio Código Penal que usa este vocábulo. No âmbito disciplinar castrense existe punição, não pena, no que andou bem o legislador infralegal quando escolheu o termo punição, ao invés de pena, valendo salientar que o anteprojeto do Código de Ética da PMAL utiliza os termos pena e punição, indistintamente, como sendo termos semelhantes.

Assim, existem, no RDPMAL, duas espécies de prisão: a prisão punição e a prisão cautelar.

3.1.3.1. Prisão Punição Administrativa

De acordo com o artigo 40, do Regulamento Disciplinar da PMAL, as punições disciplinares a que estão sujeitos os policiais militares são advertência, repreensão, detenção, prisão e, finalmente, licenciamento a bem da disciplina. Deste modo, dependendo da transgressão praticada e, considerando-se as circunstâncias do artigo 34 do Estatuto Repressor, tais sejam, a culpabilidade, os antecedentes do transgressor, as causas que determinaram a transgressão, a natureza dos fatos, as consequências que dela possam advir e as causas que as justifiquem ou as circunstâncias que as atenuem ou as agravem, o policial militar pode ser punido com a simples advertência até o licenciamento a bem da disciplina. A prisão punição, como se vê, encontra-se no rol das punições disciplinares, não podendo ultrapassar o lapso temporal de trinta dias, consoante a regra do artigo 35, § 2°, da Lei 5.346/92.

A prisão punição consiste em manter o transgressor circunscrito às dependências do alojamento de seus pares. Caso não exista essa condição, deve ficar em local determinado e adaptado, sem grades, na própria Organização Policial Militar (OPM) do sancionado. Outrossim, a depender da autoridade que o puniu, o preso se submete a instrução e a trabalho interno na sua unidade, conforme as suas aptidões ou ocupações anteriores, desde que compatíveis com a execução da punição. Se oferecer perigo à integridade física própria ou de terceiros, bem como se se comportar de modo contrário à disciplina, será recolhido a compartimento fechado na sua unidade ou em local determinado. Também o preso pode cumprir a reprimenda em sua residência, desde que em casos especiais e mediante justificativa da autoridade que infligiu a reprimenda no próprio ato sancionador.

O Anteprojeto do CEPMAL usa outra nomenclatura para a privação de liberdade do policial militar. Trata-se da permanência disciplinar. De acordo com o seu artigo 20, a permanência disciplinar é a sanção em que o transgressor ficará na OPM, sem estar circunscrito a determinado compartimento, devendo comparecer a todos os atos de instrução e serviço, internos e externos. Um outro ponto a ser destacado é que esta sanção somente será aplicada para as transgressões médias e graves, não podendo exceder a vinte dias. Entretanto, a requerimento do transgressor e devidamente autorizado e motivado pela autoridade que aplicou a punição, poderá esta ser convertida em prestação de serviço operacional extraordinário, à razão de um dia de prestação de serviço operacional extraordinário por um dia de permanência disciplinar, desde que não implique tal medida prejudicial à manutenção da hierarquia e da disciplina. Aqui, o Anteprojeto do Código de Ética da PMAL traz uma novidade. Observa-se, claramente, a aplicação do instituto da remição disciplinar administrativa, instituto buscado na remição prevista no §1°, do artigo 126, da Lei 7.210/84 (Lei de Execuções Penais).4

Impende destacar que a prisão punição somente é possível após ser comprovada a responsabilidade administrativa do acusado por meio do devido processo legal, previsto no inciso LIV, artigo 5°, da Constituição Federal, segundo o qual ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal. Igualmente devem ser atendidos os seus consectários lógicos, a ampla defesa e o contraditório, posto que, de acordo como o inciso LV, do mesmo artigo, aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes. Ademais, todo ato administrativo que impõe sanção, conforme a dicção do artigo 50, inciso II, da Lei 6.161/00, deve ser motivado, com indicação dos fatos e dos fundamentos jurídicos.

De resto, não estando a prisão punição permeada com esses mandamentos de ordem constitucional e legal, a Administração Pública Militar Estadual deverá declará-la nula, pois é desta forma que estabelece o artigo 53, da Lei 6.161/00: "A Administração deve anular seus próprios atos, quando eivados de vício de legalidade, e pode revogá-los por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos." Além disso, o STF já sumulou a matéria por meio do Enunciado 473, verbis:

A administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial.

Agindo deste modo, a Administração Militar assume o compromisso de produzir um processo disciplinar hígido, sem qualquer vício e, por conseguinte, afastando qualquer intervenção do Poder Judiciário no sentido de tornar nulo o ato que puniu o policial transgressor.

3.1.3.2. Prisão Cautelar Administrativa

A prisão cautelar, como se tem conhecimento, tecnicamente falando, não é uma sanção. Cuida-se de um meio utilizado pelo Estado para garantir a proteção da sociedade em face do comportamento delituoso do infrator, bem assim para a instrumentalização do processo. Como visto no Capítulo 2, para materializá-la, são necessários os seus pressupostos, a saber: o fumus comissi delicti e periculum libertatis. No que tange ao primeiro, fala-se da existência de prova da materialidade do crime, ao passo que o último ocorre quando a liberdade o indivíduo consista em perigo para a sociedade e para os interesses do processo.

No artigo 12, do RDPMAL, esses pressupostos estão bem nítidos na medida em que se faz necessária a prisão do policial militar que esteja praticando uma transgressão disciplinar grave, exigindo-se medidas enérgicas e imediatas para fazer cessar a conduta lesiva aos bens jurídicos protegidos pela Administração Pública Militar. Vê-se que, a exemplo da cautelar processual penal, a cautelar administrativa em decorrência de ato transgressional em estado de flagrância, igualmente não possui características de punição disciplinar.

São nesse sentido, as palavras de Costa et al (op. cit., p. 166),ao comentar o artigo 26, do RDPMSP, o qual também versa sobre cautelar administrativa:

Por meio de uma análise gramatical do artigo mencionado, verifica-se a primeira noção a respeito do recolhimento disciplinar, em que este instituto não possui o caráter de punição disciplinar, uma vez a sua existência não está relacionada à medida punitiva resultante da decisão proferida em processo administrativo disciplinar. A segunda noção vem a ser que esta espécie de prisão possui caráter de medida assecuratória, pois propicia à autoridade administrativa militar condições, durante a apuração de uma infração, de garantir a coleta de todas as provas pertinentes aos fatos, viabilizando a instauração do devido processo administrativo.

Ao contrário do que sucede com a prisão punição, não é preciso, para efetuar esta cautelar, a motivação do ato, o devido processo legal com os seus consectários, a ampla defesa e o contraditório. Por existir um estado de flagrância em transgressão disciplinar, restará afastada neste momento a motivação, pois esta, conforme a melhor doutrina, deve ser anterior ou concomitante ao ato constritivo em comento, e, neste caso, a prisão é efetivada antes da fundamentação ou motivação. Da mesma forma, não pode ser exigida a instauração do processo administrativo devido, eis que a prisão cautelar em flagrante transgressional exige um procedimento inquisitório administrativo, que dispensa requerimento por parte da defesa no sentido de diligências quanto à oitiva de testemunhas, perícias, documentos, perguntas ao condutor e às testemunhas. Entretanto, alguns direitos e garantias constitucionais devem ser observados, como será visto.

O Anteprojeto do Código de Ética também manteve a prisão cautelar, mas com outra terminologia: recolhimento cautelar. Diz o seu artigo 29:

Art. 29. O recolhimento cautelar não constitui sanção disciplinar, sendo medida preventiva e acautelatória da ordem social e da disciplina policial militar, consistente no desarmamento e recolhimento do policial militar a OPM, sem nota de punição publicada em boletim, podendo ser excepcionalmente adotada quando houver fortes indícios de autoria de crime propriamente militar ou transgressão policial militar e a medida for necessária:

I. ao bom andamento das investigações para sua correta apuração; ou

II. à preservação da segurança pessoal do policial militar e da sociedade, em razão dele:

a) mostrar-se agressivo e violento, pondo em risco a própria vida e a de terceiros; ou,

b) encontrar-se embriagado ou sob ação de substância entorpecente.

No ponto, verifica-se que no artigo 29, com algumas modificações, encontram-se os mesmos pressupostos da prisão cautelar administrativa previstas no RDPMAL: o fumus comissi delicti e periculum libertatis, consoante foi abordado no Capítulo 2.

Por fim, infere-se que as prisões em flagrante transgressional e a prisão em flagrante delito guardam profundas semelhanças, a começar pelos seus pressupostos, referindo-se ao mesmo bem: a liberdade de locomoção. Ademais, possuem características idênticas. É o que será abordado a seguir.

3.1.4. Características da Prisão em Flagrante Delito ou Flagrante Transgressional

São Características destas espécies de prisão:

3.1.4.1. Acessoriedade

A prisão cautelar em flagrante é sempre acessória, não podendo ser o objeto principal, pois será instaurado o processo, futura e obrigatoriamente, para apurar o fato.

3.1.4.2. Provisoriedade

Justifica-se em razão da exigência de uma pronta intervenção, dada a situação emergencial. A prisão em flagrante deve perdurar o tempo que em estiverem presentes os seus pressupostos. Trata-se de medida provisória. Cessado o motivo que a desencadeou, desnecessária se torna a sua manutenção.

3.1.4.3. Preventividade

A prisão cautelar é eminentemente preventiva. Objetiva evitar que o indivíduo em liberdade se traduza em perigo para a sociedade e para os interesses e fins do processo.

3.1.4.4. Revogabilidade

Como extensão da provisoriedade, pode ser revogado assim que se ausentarem os motivos da medida extrema. Na prisão cautelar administrativa pode ser revogada a ordem de recolhimento antes das setenta e duas horas previstas no RDPMAL.

3.1.4.5. Instrumentalidade

Como consectário lógico da acessoriedade, serve de instrumento para a eficácia prática do processo. Refere-se ao instrumento utilizado para se alcançar a medida principal que é o bom e regular desenvolvimento do processo.

3.1.4.6. Necessidade

A prisão em flagrante é medida necessária para a solução útil do processo, bem como para evitar ameaça à existência ou à integridade de pessoas.

3.1.5. Natureza Jurídica da Prisão em Flagrante Delito

De todas as prisões cautelares previstas no Código de Processo Penal, a única que, ao menos para ser efetuada, não necessita da autorização judicial é a prisão em flagrante. É claro que, logo após, precisa ser conhecida e ratificada, motivadamente, pelo juiz detentor da competência para o caso. Mas a verdade é que esse poder, inclusive de qualquer um do povo, deriva da Constituição Federal, posto que, na conformidade do artigo 5°, inciso LXI, ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente. O artigo 301, do CPP, regulamenta esta norma constitucional ao determinar que qualquer do povo poderá e as autoridades policiais e seus agentes deverão prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito. Deste dispositivo se extrai duas espécies de prisão em flagrante: o flagrante facultativo e o fragrante obrigatório. O primeiro é efetuado, ou não, de acordo com critérios discricionários, oportunidade e conveniência. Pode ser perpetrado por qualquer pessoa. Quanto ao segundo, somente o agente do Estado está obrigado a efetuá-lo, ou seja, os policiais. Inclusive, o artigo 243, Código de Processo Penal Militar, com redação semelhante ao CPP, obriga também o militar a prender o indivíduo que se encontre em estado de flagrância.

Como a prisão em comento não necessita de prévia autorização judicial, a sua realização fica condicionada a uma das hipóteses previstas no artigo 302, do CPP, e do artigo 244, do CPPM.

Portanto, se não existe a obrigatoriedade de autorização pela autoridade judicial, resta concluir que a prisão em flagrante delito não passa de um ato meramente administrativo, ao menos até o momento da homologação do juiz competente. E aqui toma relevo a doutrina de Tourinho Filho (2006, p. 599) que aduz:

Não obstante se trate de medida cautelar, o ato de prender em flagrante não passa de simples ato administrativo levado a efeito, grosso modo, pela Polícia Civil, incumbida que é de zelar pela ordem pública. Pouco importa a qualidade do sujeito que efetive a prisão. É sempre um ato de natureza administrativa. (grifo nosso).

Há também quem defenda ser a prisão em flagrante uma prisão precautelar, conforme entende Brasileiro de Lima (op. cit., p. 182):

Não se trata de uma medida cautelar de natureza pessoal, mas sim precautelar, porquanto não se dirige a garantir o resultado final do processo, mas apenas objetiva colocar o capturado à disposição do juiz para que adote uma verdadeira medida cautelar.

A verdade é que, sendo um ato administrativo ou uma precautelar, a prisão em flagrante prescinde de intervenção judicial, não deixando dúvidas quanto ao seu caráter administrativo. Em decorrência disso, por ser a prisão em flagrante delito um ato administrativo, conclui-se, inevitavelmente, que a sua irmã gêmea, a prisão em flagrante transgressional, de modo semelhante, tem a mesma natureza jurídica, é dizer, ambas são atos administrativos, daí a semelhança entre as duas.

3.1.6. Semelhança entre a Prisão em Flagrante Delito e a Prisão em Flagrante Transgressional

Quando se ouve falar que um indivíduo foi preso, logo alguém indaga: por que? Quando? Onde? Como? Por quem foi preso? São perguntas inevitáveis, mormente quando se trata de pessoas notórias, conhecidas. Em algumas situações, inclusive, causa surpresa, dada a importância daquele indivíduo na sociedade. Porém, o que mais causa sobressalto é a medida violenta imprimida àquele cidadão preso. Se fosse outra medida, mesmo que judicial, no sentido de que, por exemplo, houvesse bloqueio de suas contas bancárias ou da indisponibilidade de seus bens, certamente não existiria tamanha repercussão tal como a prisão, pois o ato de tolher a liberdade de ir e vir desencadeia um "processo" de humilhação, de constrangimento, fazendo com que a boa reputação, antes existente, talvez jamais seja restaurada. Não poucas vezes, a autoestima é seriamente afetada, ocorrendo a deterioração do ser humano.

É dizer, a prisão, seja ela penal, processual penal ou extrapenal, não importa. Prisão sempre será prisão, perdoe a redundância, mas é preciso. Isso tudo é apenas para reiterar que a liberdade de locomoção é um estado tão necessário na vida de qualquer pessoa que somente em hipóteses excepcionalíssimas deve ser adotada a sua limitação. Não é pelo fato de o cerceamento ser, na hipótese prevista no RDPMAL, determinado pela Administração Pública, e não pelo Código Processual Penal ou Código Processual Penal Militar, que não possa ter as mesmas características e garantias da prisão processual penal. A essência é a mesma. A privação é a mesma. Só não a repercussão. Esta é bem maior por se tratar da prisão de alguém cujo ofício é também prender.

Apenas para reiterar que ambas as prisões têm a mesma natureza, é interessante assentar que inúmeros institutos do Direito Penal e do Direito Processual Penal são utilizados pelo Direito Administrativo Disciplinar Militar. Tanto isso é verdade que existem alguns dispositivos previstos no Código Penal que igualmente fazem parte do RDPMAL, a saber: os tipos trangressionais previstos nos artigos 30, 31 e 32. No artigo 34 estão presentes algumas circunstâncias que no Código Penal seriam as circunstâncias judiciais. No artigo 35 pode-se observar a previsão do erro de tipo putativo, legítima defesa própria ou de outrem, estado de necessidade e duas das causas excludentes de culpabilidade, a coação irresistível e a obediência hierárquica, elementos da exigibilidade de conduta diversa. No artigo 38 estão previstas as causas de isenção de punição que no Código Penal seriam também causas de exclusão da culpabilidade pela inimputabilidade. Isso somente para citar alguns.

Com relação aos institutos processuais que o Direito Administrativo Disciplinar Militar busca no Direito Processual Penal é até redundante elencá-los, pois quase todos estão presentes no processo administrativo disciplinar militar, a começar pelo fato de se estar lidando com direito de liberdade de locomoção, direito indisponível, sendo premissa básica a feitura de um processo administrativo que busque a verdade material. Princípios como o da presunção da não-culpabilidade ou da inocência, in dubio pro reo, devido processo legal, ampla defesa, contraditório, motivação, estrita legalidade, razoabilidade, proporcionalidade. Portanto, todas as garantias constitucionais devem ser atendidas, sob pena de nulidade do feito. Tanto é assim que o legislador, preocupado com tais garantias, foi mais além, ao fazer constar no artigo 126, das Instruções Normativas para a Elaboração de Processo Administrativo Disciplinar através de Sindicância, instituídas por meio da Portaria n° 01/2000-ASS/CG, de 04 de janeiro de 2000, uma norma subsidiária nos termos seguintes: "Os casos omissos nestas normas serão solucionados à luz das disposições contidas no Código de Processo Penal Militar, no que couber."

Enfim, não há, em essência, distinção entre as prisões penal ou processual e a administrativa, do mesmo modo que, como asseguraGomes (1995), apud ROSA (2007, p. 10) "não existe diferença ontológica entre crime e infração administrativa ou entre sanção penal e sanção administrativa."

Acrescenta ainda o autor:

[...] todas as garantias do Direito Penal devem valer para as infrações administrativas, e os princípios como os da legalidade, tipicidade, proibição da retroatividade, da analogia, do ‘non bis in idem’, da proporcionalidade, da culpabilidade etc, valem integralmente inclusive no âmbito administrativo.

É bem de observar que em todas as prisões, penal, extrapenal ou civil, sem exceção, o indivíduo deve ser recolhido a certo local restrito, incluindo é claro, quando se cuida de prisão em virtude de cometimento de transgressão disciplinar, eis que o militar se recolhe à unidade em que serve para cumprir a reprimenda. Vale destacar que não é pela simples razão de esta medida limitativa do direito de locomoção ser promovida administrativamente que não a caracteriza como uma verdadeira prisão. O policial militar, de fato, fica preso, mesmo no alojamento. E o pior. É que, em virtude de as suas atribuições consistirem em, inclusive, prender quem haja cometido infração penal, o policial militar pode ser submetido igualmente à mesma medida privativa de liberdade, o que o afeta psicologicamente, sobretudo quando se trata da prisão cautelar prevista no artigo 12, do RDPMAL, cujo impacto no PM e, principalmente, na família é imensurável.

A diferença, portanto, que separa as duas prisões é simplesmente formal, pois uma tem endereço no Código de Processo Penal e a outra, no RDPMAL. A primeira é prisão em razão de prática de suposto ilícito penal, a segunda, em virtude de infração administrativa disciplinar, mas no âmago nada as diferencia. Em virtude da similitude entre essas prisões, toma destaque o princípio da igualdade, que deve ser evidenciado. É sobre princípios e regras que se encarregará o próximo tópico.

3.2. DISTINÇÃO ENTRE PRINCÍPIOS E REGRAS

Antes, a discussão existente na doutrina tradicional envolvia a distinção entre normas e princípios. Assim sendo, as normas deveriam ser observadas cegamente ao passo que os princípios consistiam apenas em marcos norteadores para a aplicação daquelas, destituídos de qualquer cunho obrigatório. Vale dizer, o Direito era equiparado às normas legais, interessando destacar que muitas barbáries foram cometidas em razão da obediência "cega" à lei, em nome da lei, a exemplo do que fizeram o Nazismo e o Fascismo. Essa concepção entra em crise na medida em que já não mais atendia às demandas sociais, porquanto tal movimento considerava apenas a aplicação literal da lei, sem se incomodar com outras áreas do conhecimento humano, tais como a moral, a filosofia, a sociologia etc. que influenciavam na decisão do hermeneuta.

Neste cenário, surge o pós-positivismo ou neopositivismo. Segundo este movimento, o Direito é interpretado levando-se em consideração os aspectos éticos, filosóficos e, sobretudo, os principiológicos, dando proeminência à dignidade da pessoa humana, tão desprezada nos Estados totalitários. Busca-se, aqui, harmonizar os preceitos do jusnaturalismo com os do positivismo. Como consequência, advém a elevação dos princípios à condição de normas e uma valoração maior ao conteúdo destas. A partir dessa metamorfose, é abolida a diferença entre normas e princípios, passando estes a ter uma posição de destaque, passando a ser uma espécie de norma jurídica. Desta forma, a distinção antes existente é substituída pela idéia de que as normas são gêneros cujas espécies são os princípios e as regras, o que "representa uma importante chave para a solução de problemas centrais na aplicação dos direitos fundamentais." (MARINELA, 2010, p. 24). Portanto, existem normas-princípios e normas-regras.

Com efeito, não se pode falar acerca da distinção entre princípios e regras sem antes mencionar Alexy (1993, p. 81-113) que, por meio da sua obra, Teoría de los Derechos Fundamentais, foi o responsável pelo desenvolvimento deste estudo iniciado por Dwork (1978).

Os princípios orientam e fundamentam toda a ordem jurídica por intermédio do universo de valores, preenchendo as lacunas existentes na lei, vez que possuem grau de abstração ou generalidade máximo, ao contrário das regras que têm grau de abstração ou generalidade mínimo. Existindo conflito entre duas regras, dando tratamento distinto à idêntica matéria, o problema será resolvido na esfera da validade, ou seja, uma delas será afastada, pois não podem existir duas regras antinômicas no mesmo ordenamento jurídico, devendo ser aplicados os critérios hierárquico, cronológico e especial para a resolução de tal problema. Ou uma ou outra. São aplicáveis na base do "tudo-ou-nada", conforme popularizou Dworkin (1978), apud Alexy (op. cit., p. 99).Também, caso haja possibilidades, pode ser resolvido o conflito introduzindo-se numa das regras conflitantes uma cláusula de exceção, sobrevivendo ambas as normas.

Ao contrário, se houver colisão entre princípios, a solução dada ao caso concreto será a utilização de um critério hermenêutico de ponderação dos valores que envolvem cada uma dessas normas, cada um desses princípios, chamado este critério de máxima da proporcionalidade, composta por três subprincípios, a saber: adequação, necessidade e proporcionalidade stricto sensu. Assim, o intérprete, na resolução da colisão entre princípios, utilizando-se dessa técnica de ponderação, deve privilegiar um em detrimento do outro no momento dessa ocorrência. É dizer, existe princípio que, a depender da situação concreta analisada, tem uma maior densidade, um maior peso que o outro. Deste modo, deve ser dispensada maior prevalência ao mais denso, ao que possuir maior carga valorativa. Porém, nada impede que, numa outra hipótese envolvendo os mesmos princípios, o preferido antes, ou seja, o que teve maior densidade, não seja aplicado em benefício do anteriormente afastado. Como se vê, os princípios não se eliminam, pelo contrário, harmonizam-se.

Além destas distinções, Alexy (op. cit., p. 86-87)aponta o fator principal para estabelecer a diferença entre regras e princípios:

El punto decisivo para la distinción entre reglas y principios es que los principios son normas que ordenan que algo sea realizado en la mayor medida posible, dentro de las posibilidades jurídicas y reales existentes. Por lo tanto, los principios son mandatos de optimización, que están caracterizados por el hecho de que pueden ser cumplidos en diferente grado y que la medida debida de su cumplimiento no sólo depende de las posibilidades reales sino también de las jurídicas. El ámbito de las posibilidades jurídicas es determinado por los principios y reglas opuestos.

En cambio, las reglas son normas que sólo pueden ser cumplidas o no. Si una regla es válida, entonces de hacerse exactamente lo que ella exige, ni más ni menos. Por lo tanto, las reglas contienen determinaciones en el ámbito de lo fáctica y jurídicamente posible. Esto significa que la diferencia entre reglas y principios es cualitativa y no de grado. Toda norma es o bien una regla o un principio. (grifo nosso).

É de se verificar que o autor alemão bem faz a diferença entre regras e princípios. Os princípios são mandatos de otimização, caracterizados pelo fato de que podem ser cumpridos em diferentes graus, aplicados gradualmente, enquanto as regras devem ser cumpridas plenamente, sem qualquer margem de abstração. Ordenam os princípios que algo seja realizado do melhor modo possível dentro das possibilidades reais - ou práticas – e jurídicas. Com relação às regras, não existe essa possibilidade. Nelas, já houve as considerações reais e jurídicas para cada caso, devendo ser cumpridas ou não.

Outro fator que, igualmente, deve ser considerado é que a diferença é de qualidade, não de grau. Ou melhor, constitucionalmente falando, não existe diferença qualquer de grau ou graduação entre ambas as normas. Implica isso dizer que inexiste relação alguma de hierarquia entre as duas espécies normativas. Se assim não fosse, existiria hierarquia entre as normas constitucionais, a começar por aquelas consagradoras de direitos e garantias fundamentais nas quais também estão inseridas regras e princípios. Pelo contrário, todas possuem o mesmo grau hierárquico, estando no mesmo nível de gradação. Portanto, as regras e os princípios, por exemplo, constitucionais estão na mesma estatura. Tal afirmação é procedente na medida em que não existe, no regime constitucional pátrio, normas constitucionais inconstitucionais, conforme teoriza Bachof5, ao menos no que se refere àquelas editadas pelo Poder Constituinte Originário.

Isso é tão acertado que a Constituição, no Título II (Dos Direitos e Garantias Fundamentais), estabeleceu regras para disciplinar determinadas matérias cujo grau de abstração é baixo ou quase nenhum, a exemplo da prevista no artigo 12, § 3°, segundo a qual são privativos de brasileiros natos os cargos de Presidente e Vice-Presidente da República, de Presidente da Câmara dos Deputados, de Presidente do Senado Federal, de Ministro do Supremo Tribunal Federal, da carreira diplomática, de oficial das Forças Armadas e de Ministro de Estado da Defesa. Ou seja, indiscutivelmente, consoante a teoria alexyana, trata-se de uma regra, não de um princípio, vez que o grau de abstração é o mínimo possível, se é que existe. Neste sentido, havendo, por exemplo, alguém naturalizado que pleiteie a Presidência da República nem conseguirá candidatar-se em virtude da vedação constitucional. E, diga-se de passagem, nenhuma norma de cunho principiológico – mesmo o da isonomia - afastaria esta regra, pois se trata de cargo estratégico, que visa à proteção da soberania nacional, que somente pode ser exercido exclusivamente por brasileiro nato.

Também à guisa de exemplo, pode-se mencionar os incisos II e XLII, do artigo 5°, respectivamente, pelos quais "ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante" e "a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei". Pelo que se verifica, não há como aplicar estas normas de modo gradual, dado o baixo grau de abstração desta espécie de norma, impondo-se a sua aplicação in totum. E, a bem da verdade, nenhuma outra norma constitucional poderá derrogá-las, mesmo que seja norma de caráter principiológico, eis que são normas gravadas de cláusula pétrea, pois, irremovível, consoante determina o artigo 60, § 4°, inciso IV, da Constituição Cidadã. Por isso é correto afirmar que os princípios e as regras constitucionais estão no mesmo plano. É claro que se tratam de normas-regras constitucionais que devem ser cumpridas, mas que igualmente existe um princípio que lhe dá sustentação, fundamento, vale dizer, o princípio da dignidade da pessoa humana, talvez o mais valioso previsto na Constituição. Assim ocorre com outros princípios e regras. Como diz Canotilho (2011, p. 1163), "os princípios são fundamento de regras, isto é, são normas que estão na base ou constituem a ratio de regras jurídicas, desempenhando, por isso, uma função normogenética fundamentante. E continua: "são o fundamento de regras jurídicas e têm uma idoneidade irradiante que lhes permite ‘ligar’ ou cimentar objectivamente todo o sistema constitucional" (op. cit., p. 1161). (grifo do autor).

Como a Constituição é permeada por regras e princípios, são aquelas que materializam estes, consoante pontua novamente Canotilho (op. cit., p. 1173), in verbis:

A articulação de princípios e regras, de diferentes tipos e características, iluminará a compreensão da constituição como um sistema interno assente em princípios estruturantes fundamentais que, por sua vez, assentam em subprincípios e regras constitucionais concretizadores desses mesmos princípios.

Neste sentido, as regras são normas que corporificam, materializam os princípios, especificam as suas regulações. Sendo assim, não existe antinomia entre princípios e regras constitucionais. Entretanto, ao ocorrer colisão entre princípios, sendo um deles preterido, as regras que o corporificam, também são afastadas. No entanto, permanecem válidas na ordem jurídica.

E, como assentado antes, normas-princípios e normas-regras não possuem entre si relação de hierarquia, notadamente em razão do princípio da unidade da constituição. Trata-se de um princípio de interpretação constitucional pelo qual não pode haver antinomia entre as normas constitucionais, mas, sim, harmonia.

Neste sentido, afirma Barroso (2004, p. 372):

Para solucionar eventuais conflitos entre normas jurídicas infraconstitucionais utilizam-se, como já visto, os critérios tradicionais da hierarquia, da norma posterior e o da especialização. Na colisão de normas constitucionais, especialmente de princípios – mas também, eventualmente, entre princípios e regras e entre regras e regras – emprega-se a técnica da ponderação. Por força do princípio da unidade, inexiste hierarquia entre normas da Constituição, cabendo ao intérprete a busca da harmonização possível, in concreto, entre comandos que tutelam valores ou interesses que se contraponham. (grifo do autor).

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Na mesma linha, leciona Canotilho (p. 1183-1223):

O princípio da unidade hierárquico-normativa significa que todas as normas contidas numa constituição formal têm igual dignidade (não há normas só formais, nem hierarquia de supra-infra-ordenação dentro da lei constitucional) [...]

O princípio da unidade da constituição ganha relevo autônomo como princípio interpretativo quando com ele se quer significar que a constituição deve ser interpretada de forma a evitar contradições (antinomias, antagonismos) entre as suas normas.

Por fim e por óbvio, no plano infraconstitucional, evidente é que nenhuma disposição normativa pode (ou deve) afrontar as normas constitucionais, sobretudo as normas principiológicas, sob pena de serem declaradas inconstitucionais e expulsas do ordenamento.

Portanto, ferir uma norma constitucional, seja um princípio ou uma regra, é lesar toda a ordem jurídica, posto que, nas palavras de Streck (2004, p. 247), "representando a violação de um princípio constitucional na ruptura da própria Constituição, tendo essa inconstitucionalidade conseqüências muito mais graves do que a violação de um simples dispositivo [...]".

No mesmo sentido, Mello (2009b, p. 949), em passagem célebre, dada a sua profundidade, declara:

Violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma qualquer. A desatenção a um princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra.

É bem de lembrar que a lesão provocada a um princípio não é uma ofensa a uma simples norma. É muito mais que isso. É ferir todo o sistema de normas, "porque sem princípio não há ordem constitucional e sem ordem constitucional não há garantia para as liberdades, cujo exercício somente se faz possível fora do reino do arbítrio e dos poderes absolutos." (BONAVIDES, op. cit., p. 435). E são alguns princípios constitucionais que darão suporte à formalização relativa à prisão em flagrante nas situações de transgressão disciplinar, como será visto a seguir.

3.3. PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS E A PRISÃO EM FLAGRANTE DE TRANSGRESSÃO DISCIPLINAR

Consoante os ensinamentos de Barroso (op. cit., 58), "a Constituição escrita ordena sistematicamente os princípios fundamentais da organização política do Estado e das relações entre esse Estado e o povo que o compõe. É documento único e supremo." Sob o aspecto material, tomando por base o constitucionalismo moderno, segundo Canotilho (op. cit., p. 52), a Constituição consiste na "ordenação sistemática e racional da comunidade política através de um documento escrito no qual se declaram as liberdades e os direitos e se fixam os limites do poder político." Observa-se que nas afirmações dadas no que diz respeito ao conceito de Constituição os autores gizam como ponto central os princípios fundamentais, dentre os quais aqueles que protegem as liberdades.

Já se passaram vinte e três anos da promulgação da Constituição Federal e ainda não houve o devido condicionamento às suas prescrições. É bem verdade que isso é um processo longo, pois remover práticas sedimentadas há anos não é uma tarefa fácil, mas o certo é que esse processo de mudanças ainda é lento. O Código de Processo Penal, editado no início da década 40, por exemplo, ainda está em fase de adaptação à Carta Magna, que tem como mira principal os direitos e garantias fundamentais, notadamente, os princípios da presunção de não-culpabilidade, da dignidade da pessoa humana, da legalidade, da isonomia e da proporcionalidade, que dão suporte ao direito de liberdade de ir e vir e permanecer, num reconhecimento de que o homem é o centro, é o fim de todas as normas.

É fato que na sua concepção, o Texto Maior, com supedâneo nos tratados internacionais então firmados, trouxe inúmeras disposições normativas sobre o direito de liberdade de locomoção, de sorte que a legislação infraconstitucional se vê na obrigação de acompanhá-lo, harmonizando-se com os seus mandamentos, precisamente com as suas normas principiológicas. Assim, foram eleitos, neste tópico, cinco princípios constitucionais, aplicáveis à prisão cautelar administrativa, ou prisão em flagrante de transgressão disciplinar, objeto de perquirição deste ensaio monográfico. São eles: princípio da dignidade da pessoa humana, da presunção de não-culpabilidade, da legalidade, da isonomia e da proporcionalidade, os quais serão abordados em seguida.

3.3.1. Princípio da Dignidade da Pessoa Humana

Considerado, neste trabalho monográfico, princípio dos princípios, a dignidade da pessoa humana é o principal direito fundamental do homem. E não poderia ser diferente, pois o nosso país está firmado sob a égide de um Estado Democrático de Direito. Tanto é assim que a própria Constituição Federal colocou o princípio em comento logo no rol dos fundamentos da República Federativa do Brasil, de acordo com o artigo 1°, inciso III. É dele que se desdobram todos os direitos fundamentais, devendo ter aplicação imediata, vinculando todos os órgãos do ente estatal aos seus preceitos. Trata-se de um obstáculo às investidas indevidas do Estado em face do particular e das atrocidades do particular em detrimento dos seus semelhantes.

A expressão dignidade da pessoa humana não é de conceituação fácil, vez que, por se tratar de locução indeterminada, varia de acordo com os rumos da sociedade e a depender do tempo e do espaço. No entanto, deve-se ter, ao menos, uma noção do que representa esse direito individual em forma de princípio.

Nesta senda, ensina Canotilho (op. cit., p. 225):

Perante as experiências históricas de aniquilação do ser humano (inquisição, escravatura, nazismo, stalinismo, polpotismo, genocídios étnicos) a dignidade da pessoa humana como base da República significa, sem transcendências ou metafísicas, o reconhecimento do homo noumenon, ou seja, do indivíduo como limite e fundamento do domínio político da República. Neste sentido, a República é uma organização política que serve o homem, não é o homem que serve os aparelhos político-organizatórios.

Assim, tal princípio foi introduzido nas constituições dos países ocidentais para destacar mais a proteção ao homem. Está presente na proteção à vida, à integridade física e moral, ao respeito aos cultos religiosos, à liberdade sexual, à família, aos contratos firmados entre as partes, ao ambiente saudável, à educação, à saúde, à alimentação, ao trabalho, à moradia, ao lazer, à segurança, à previdência social, à proteção à maternidade e à infância, à assistência aos desamparados. Enfim, é o princípio da dignidade da pessoa humana que faz rechaçar os abusos praticados, seja pelo Estado, seja pelo particular em face do cidadão. Não é uma mera norma programática dentre muitas existentes na Constituição, mas norma que possui eficácia plena e aplicação imediata, gozando de valor fundamental, por isso frui de maior efetividade.

Não é à toa que a Declaração Universal dos Direitos do Homem, no seu artigo I, reza que: "Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade." Esta norma se dirige sobretudo ao Estado, de forma que qualquer conduta proveniente deste ente deve ser realizada com observância à dignidade da pessoa humana, sob pena de se estar violando um direito fundamental. A dignidade da pessoa humana é um bem inalienável, indisponível, imprescritível, irrenunciável, sendo defeso, inclusive, ao seu titular abdicar do seu exercício.

Este princípio é importante no respeitante à prisão em flagrante de transgressão disciplinar em virtude de que a dignidade da pessoa humana é algo que deve acompanhar o indivíduo em todos os lugares pelos quais se desloque. É ele que vai garantir um tratamento humano, digno em quaisquer momentos de sua vida, inclusive na hipótese de ser submetido à prisão. Quando a Constituição Federal estabelece, no artigo 5°, que é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral (inciso XLIX), a pena será cumprida em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado (inciso XLVIII), a prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre serão comunicados imediatamente ao juiz competente e à família do preso ou à pessoa por ele indicada (inciso LXII), o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado (inciso LXIII), o preso tem direito à identificação dos responsáveis por sua prisão ou por seu interrogatório policial (inciso LXIV) e o Estado indenizará o condenado por erro judiciário, assim como o que ficar preso além do tempo fixado na sentença (inciso LXXV), nada mais está garantindo ao preso, que também é um indivíduo humano, senão o direito de cumprir a sua pena com dignidade, dentro de condições humanas minimamente aceitáveis.

Deste modo, não somente em relação ao preso, mas a qualquer pessoa, bastando ser-lhe dispensado tratado humilhante, com menoscabo, posto ao ridículo, mesmo declarando aceitar, restará lesado o referido princípio, devendo responder os responsáveis pelos abusos cometidos. É o que se observa, por exemplo, nos programas de reality show, promovidos pelas emissoras de televisão em todo mundo. Tal direito em forma de princípio constitucional é o limitador das condutas ofensivas a uma vida humana digna, que é o desejo de todos. Como afirmado, trata-se o princípio em comento de um dos fundamentos do Estado Brasileiro e por isso exige das autoridades - e de todos - a sua aplicação imediata e irrestrita, vez que se traduz no cerne da ordem jurídica pátria. Nesta medida, o princípio da dignidade da pessoa humana se revela o ponto de convergência de todos os direitos fundamentais previstos constitucionalmente, porquanto todos os demais princípios, mormente o presunção inocência ou da não-culpabilidade, devem com ele estar conforme, não podendo nunca ser transgredido. Caso contrário, todo sistema também sofrerá, posto que as maiores injustiças foram praticadas pelo Estado na medida em que era o acusado quem deveria provar a sua inocência. Será este o princípio o objeto do próximo tópico.

3.3.2. Princípio da Presunção de Inocência ou de não-Culpabilidade

"Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória." Esta é a expressão contida no inciso LVII, do artigo 5°, da Constituição Federal. Trata-se do princípio da não-culpabilidade que muitos chamam de princípio da presunção de inocência.

Este princípio está também presente em várias cartas internacionais protetoras dos direitos civis e políticos. Institucionalmente, tem suas bases na França, vez que a Assembleia Nacional Constituinte, instituída após a Revolução de 1789, movida pelos ideais iluministas, aprovou na Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, em seu artigo 9°, o seguinte: "Todo acusado é considerado inocente até ser declarado culpado e, se julgar indispensável prendê-lo, todo o rigor desnecessário à guarda da sua pessoa deverá ser severamente reprimido pela lei." Como assinala Tourinho Filho (op. cit., p. 29):

Foi um movimento de ruptura com a mentalidade da época, em que, além das Acusações secretas e torturas, o acusado era tido como objeto do processo e não tinha nenhuma garantia. Dizia Beccaria que ‘a perda da liberdade sendo já uma pena, esta só deve preceder a condenação na estrita medida que a necessidade o exige’ (Dos delitos e das penas, São Paulo, Atena Ed, 1954, p.106).

Anos depois foi proclamada a Declaração Universal de Direitos Humanos que, de igual modo, traz o referido princípio no seu artigo XI, 1, nos seguintes termos: "Toda pessoa acusada de um ato delituoso tem o direito de ser presumida inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa." Em seguida, o princípio foi estabelecido nos sistemas regionais, a começar pela Convenção Europeia de Direitos Humanos, em 1950 (artigo 6°, 2), pela Convenção Americana de Direitos Humanos, em 1969 (artigo 8°, 2) e, finalmente, pela Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, no ano de 1981 (artigo 7°, 1, b). No que se refere à Ásia, não existe documento oficial que trate dos direitos civis e políticos do homem naquele continente.

É preciso lembrar que existe discussão no que toca à nomenclatura deste princípio. Como bem afirma Brasileiro de Lima (op. cit., p. 14), diferentemente da nossa Constituição, que se refere à não-culpabilidade, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos não deixa dúvidas quanto à terminologia a ser utilizada, ou seja, princípio da presunção de inocência. Diz o processualista:

A par dessa distinção terminológica percebe-se que o texto constitucional é mais amplo, na medida em que estende referida presunção até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória, ao passo que a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Decreto n° 678/92, art. 8°, n° 2) o faz tão somente até a comprovação legal da culpa. Com efeito, em virtude do Pacto de São José da Costa Rica, poder-se-ia pensar que a presunção de inocência deixaria de ser aplicada antes do trânsito em julgado, desde que já estivesse comprovada a culpa, o que poderia ocorrer, por exemplo, com a prolação de acórdão condenatório no julgamento de um recurso, na medida em que a mesma Convenção Americana também assegura o direito ao segundo grau de jurisdição (art. 8°, § 2°, ‘h’).

Na verdade, em todos os tratados acima descritos constam dispositivos semelhantes, consagrando a expressão "presunção de inocência". Com a devida venia, trata-se mais de uma discussão inócua, pois o resultado é o mesmo.

Este princípio consiste na maior garantia do indivíduo frente ao jus puniendi estatal. Como poderia o cidadão ter que provar a sua inocência diante de uma máquina onipotente, como é o todo-poderoso Estado, com os seus tentáculos? Por outro lado, essa mesma instituição criou mecanismos para limitar as próprias ações, ao lançar e consagrar os direitos e garantias fundamentais no grupo seleto de normas gravadas de cláusula pétrea. Desta forma, graças a esse "contrapeso", não pode o Estado jamais descumprir as regras por ele mesmo concebidas, criadas. Não fosse isso, retornar-se-ia ao Estado Absolutista que Nicolau Maquiavel, Thomas Hobbes, Jean Bodin e outros tanto propugnaram, que teve no monarca Luís XIV a sua figura mais marcante, sobretudo pela expressão cunhada e que representa bem aquela concepção de Estado: L'État c'est moi (O Estado sou Eu).

A respeito disso, até bem pouco tempo se via, às claras, essa presença violenta do ente estatal no Código de Processo Penal, que, em algumas disposições, ignorava, com a condescendência dos tribunais superiores, o que a Constituição proíbe desde 05 de outubro de 1988. É que, mesmo após a promulgação da Carta Magna, a legislação processual penal ainda mantinha as prisões em virtude de pronúncia, a prisão decorrente de sentença recorrível e a exigência de o réu recolher-se para apelar. Assim, consoante os mandamentos constitucionais, o indivíduo, com a presunção de inocência militando em seu favor, não pode ser preso senão após sentença penal condenatória transitada em julgado. Caso seja preso antes desse momento, importa em antecipação da pena, o que é vedado. Apenas na hipótese de prisão cautelar, estando presentes, como dito antes, os seus pressupostos: o fumus comissi delicti e o periculum libertatis, é que a privação da liberdade, antes da sentença penal condenatória com trânsito em julgado, é permitida. É o que afirma Oliveira (2010, p. 504):

Assim, as privações da liberdade antes da sentença final dever se judicialmente justificadas e somente na medida em que estiverem protegendo o adequado e regular exercício da jurisdição penal. Pode-se, pois, concluir que tais prisões devem ser cautelares, acautelatórias do processo e das funções da jurisdição penal. Somente aí se poderá legitimar a privação da liberdade de quem é reconhecido pela ordem jurídica como ainda inocente.

Desta forma, se não houver sentença condenatória com trânsito em julgado, o indivíduo não pode ser preso, devendo ser presumivelmente considerado inocente. Vale dizer, não pode ser submetido à privação da liberdade, exceto apenas na hipótese de prisão cautelar. Do mesmo modo ocorre no regime disciplinar castrense, posto que, se a prisão do policial militar não for aplicada após a instauração e conclusão de um processo administrativo para apurar a suposta transgressão cometida, sendo-lhe assegurados a ampla defesa e o contraditório, a reprimenda somente será possível na conformidade do artigo 12, do RDPMAL, e, neste caso, ele ainda se encontra sob o manto da presunção de inocência.

E qual a repercussão que o princípio da presunção de não-culpabilidade traz para a prisão em flagrante trangressional? A certeza de que a prisão cautelar administrativa não significa necessariamente que o conduzido tenha, efetivamente, praticado a infração disciplinar que motivou o seu recolhimento. Portanto, essa prisão não pode ser considerada sanção disciplinar, punição administrativa, prisão punição. Cuida-se, pois, de prisão acautelatória, preventiva, longe de ser uma prisão administrativa definitiva, logo, punição. Devem estar, de plano, presentes os seus pressupostos, sob pena de nem ser cautelar, nem ser punição, mas uma prisão arbitrária. Assim sendo, a exemplo do princípio da presunção de não-culpabilidade, outros princípios fundamentam o processo administrativo disciplinar militar a que o policial militar preso em flagrante transgressional possivelmente seja submetido, confirmando a infração disciplinar praticada ou não, tais como o princípio da ampla defesa, do contraditório, do direito aos recursos e, notadamente, da legalidade, sendo este o próximo a ser analisado.

3.3.3. Princípio da Legalidade e da Reserva Legal

O princípio da legalidade é a presença viva do Estado Democrático de Direito na Constituição, segundo a qual ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. Assim, o princípio da legalidade impõe que o Estado, nas suas três esferas, Executivo, Legislativo e judiciário, submeta-se ao império da lei com o fito de evitar abusos.

É o que atesta Afonso da Silva (2002, p. 121):

O princípio da legalidade é também um princípio basilar do Estado Democrático de Direito. É da essência do seu conceito subordinar-se à Constituição e fundar-se na legalidade democrática. Sujeita-se, como todo Estado de Direito, ao império da lei, mas da lei que realize o princípio da igualdade e da justiça não pela sua generalidade, mas pela busca da igualização das condições dos socialmente desiguais.

Serve este princípio de "norteamento ao proceder dos órgãos públicos, que ficarão jungidos a ele, pois que tal comando axiomático configura uma sujeição, e não uma prerrogativa." (COSTA, 2005, p. 55).

Neste aspecto, é relevante afirmar que o princípio da legalidade assenta as suas bases no Século das Luzes, como noticia Prado (2002, p. 112):

Origina-se no ideário da Ilustração (Montesquieu, Rousseau), em especial na obra Dei delitti e delle pene (1764) de Beccaria e deve sua formulação latina – Nullum crimen, nulla poena sine praevia lege, a Feuerbach (Lehrbuch des gemeinen in Deutschland gültigen peinlichen Rechts – 1810). A partir da Revolução francesa, o princípio da legalidade – verdadeira pedra angular do Estado de Direito – converte-se em uma exigência de segurança jurídica e de garantia individual.

É importante destacar que a Declaração Universal dos Direitos do Homem, mesmo implicitamente, já dava sinais de que seria preciso lei para limitar a liberdade das pessoas, ao determinar, no artigo XXIV, 2, que "no exercício de seus direitos e liberdades, toda pessoa estará sujeita apenas às limitações determinadas pela lei". Já o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, artigo 9°, 1, in fine, determina expressamente que é imperioso a existência de lei para que se proceda à prisão do indivíduo, nos seguintes termos: "Ninguém poderá ser privado de sua liberdade, salvo pelos motivos previstos em lei e em conformidade com os procedimentos."

De modo semelhante, trata a matéria a Convenção Americana de Direitos Humanos, no artigo 7°, 2: "Ninguém pode ser privado de sua liberdade física, salvo pelas causas e nas condições previamente fixadas pelas Constituições políticas dos Estados-partes ou pelas leis de acordo com elas promulgadas."

Assim, é cláusula irremovível no Direito interno e nos tratados internacionais que nenhum indivíduo poderá ter o seu direito de locomoção restringido a não ser em razão de norma legal anteriormente estabelecida, em obediência ao princípio da legalidade. E, como desdobramento deste princípio, encontra-se o princípio da reserva legal, pelo qual determinadas matérias somente deve ser veiculada por meio de lei, excluindo-se outras espécies normativas para tratar do assunto. O princípio da reserva legal é menos abrangente, posto que, de acordo com o magistério de Moraes (2008, p. 42), "opera de maneira mais restrita e diversa. Ele não é genérico e abstrato, mas concreto. Ele incide tão somente sobre os campos materiais especificados pela Constituição."

Em função deste princípio, decorrem as seguintes garantias para o indivíduo ao mesmo tempo obrigações para o legislador ordinário penal: a) lex praevia - a lei não pode retroagir para fundamentar ou agravar a punição imposta; b) lex scripta – proibição de fundamentação ou agravamento da punibilidade pelo direito consuetudinário, ou seja, não pode existir norma penal costumeira; c) lex stricta – proibição da analogia in malam partem, salvo para beneficiar; d) lex certa – a lei penal tem que ser certa, exata, clara, não deixando margem para expressões abertas, sendo proibida a elaboração de leis penais indeterminadas.

Em síntese, em decorrência do princípio da legalidade, norma penal nenhuma pode retroagir para prejudicar o réu, salvo em seu benefício, e apenas e tão somente a lei, ato normativo expedido pelo Legislativo, pode definir crimes e impor sanção penal, devendo ela ser prévia, escrita, estrita e certa, precisa. Desta última característica se extrai um outro princípio penal, o princípio da taxatividade. É ele quem proíbe o legislador de construir normas genéricas, imprecisas, portanto, inconstitucionais.

Neste diapasão, infere-se que qualquer hipótese de prisão em flagrante delito está submetida ao princípio não somente da legalidade, mas também da reserva legal, de sorte que qualquer prisão que não observe esses princípios está inquinada de inconstitucionalidade. E, como a prisão em flagrante delito é uma das espécies de cautelar, deve obedecer aos seus pressupostos, sob pena de ser relaxada pelo Poder Judiciário.

Como o Direito Administrativo Disciplinar Militar, conforme se verificou, guarda profundas semelhanças com o Direito Penal, de modo semelhante deve ser observado o princípio da legalidade e, conforme se entende, o princípio da reserva legal, o que conduziria à inconstitucionalidade do Regulamento Disciplinar da PMAL por se tratar de um decreto. Todavia, tal discussão não faz parte desta monografia, posto que a matéria é polêmica, com opiniões favoráveis e contrárias, devendo ser suscitada em outro momento, mesmo porque o Estatuto Repressor Castrense está vigente e plenamente eficaz.

Nesta medida, efetuada a prisão cautelar prevista no artigo 12, do RDPMAL, deve esta, consoante se assentou, preencher os correspondentes pressupostos e o fato deve subsumir-se a um dos tipos transgressionais previstos no artigo 32, bem assim ao artigo 33, combinado com o artigo 27, e no que tange ao Código de Ética Disciplinar da PMAL, no artigo 17. Portanto, não tendo natureza cautelar a prisão administrativa do artigo 12, do Regulamento Disciplinar, desvela-se abusiva, ilegal, passível de impetração de habeas corpus, na forma do artigo 5°, inciso LXVIII, vez que não se estaria dando tratamento semelhante ao que ocorre na prisão processual, artigos 301 e seguintes do CPP, e 243 e seguintes do CPPM, o que lesa, também, o princípio da isonomia, matéria que será enfocada a seguir.

3.3.4. Princípio da isonomia

A igualdade é uma busca incessante do homem. Começou a ter a importância devida a partir do movimento burguês que derrocou a Monarquia Absolutista, cujo governante tinha poderes ilimitados, passando para o Estado de Direito, limitador do poder de atuação do rei em face dos súditos, convertendo-se em Estado Liberal de Direito por influência do Liberalismo. No entanto, ao passar do tempo, essa nova concepção de Estado já não mais atendia às demandas sociais, posto que a igualdade existia apenas na lei, formalmente.

O próprio Estado, criado para resolver as questões de desigualdade antes existentes, abstinha-se, deixando os menos aquinhoados à margem dos direitos antes prometidos.

É o que diz Afonso da Silva (op., cit., p. 115):

O individualismo e o abstencionismo ou neutralismo do Estado liberal provocaram imensas injustiças, e os movimentos sociais do século passado e deste especialmente, desvelando a insuficiência das liberdades burguesas, permitiram que se tivesse consciência da necessidade da justiça social [...].

Logo, vê-se que a igualdade formal estava consagrada, mas substancialmente, mantinha-se semelhante ao período anterior. Só com o advento do Estado Social de Direito, "efetivador dos direitos humanos, imagina-se uma igualdade mais real perante os bens da vida, diversa daquela apenas formalizada perante a lei", conforme aponta Lenza (2011, p. 875). E, posteriormente, com o Estado Democrático de Direito, pelo menos no Brasil, ao que parece, o princípio da igualdade está cada vez mais se sedimentando.

Tem razão Afonso da Silva (op. cit., p. 213), ao afirmar:

Nossas constituições, desde o Império, inscreveram o princípio da igualdade, como igualdade perante a lei, enunciado que, na sua literalidade, se confunde com a mera isonomia formal, no sentido de que a lei e sua aplicação tratam a todos igualmente, sem levar em conta as distinções de grupos.

Corroborando o que já foi dito, a Constituição Federal de 1988, no seu artigo 5°, caput, com relação ao princípio da igualdade, traz, praticamente, o mesmo texto: "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade."

Por outro lado, é preciso notar que na expressão sem distinção de qualquer natureza, o intérprete pode ser levado a equívocos, porquanto se houver uma interpretação puramente literal, infere-se que essa igualdade é absoluta, de forma que esse raciocínio conduz à conclusão de que não pode haver distinção alguma entre as pessoas, mesmo nos casos em que a igualdade se declare injusta.

Mas, enfim, o que é a igualdade? Já na Antiguidade, Aristóteles, na sua obra Ética a Nicômaco (2001, p. 108-109), preocupava-se em que consistia a igualdade. Assevera o filósofo: "Se as pessoas não são iguais, não receberão coisas iguais; mas isso é origem de disputas e queixas (como quando iguais têm e recebem partes desiguais, ou quando desiguais recebem partes iguais)". Traduzindo, igualdade é tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na medida de sua desigualdade. Mas como saber quem são os iguais e quem são os desiguais?

Na sua magistral obra, Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade, Mello (2005a, p. 21), ao que se observa, encontrou a resposta para justificar as semelhanças e distinções para cada caso ao ser aplicado o referido princípio. Elege o administrativista três pontos cujo desrespeito de um deles fere o princípio da igualdade, a saber: a) elemento escolhido como fator de desequiparação; b) correlação lógica entre o fator de discrímen e a desequiparação procedida; c) consonância da discriminação com os interesses protegidos na Constituição. Seria o exemplo de um concurso público para Procurador da República cujo edital exigisse para o ingresso na carreira a altura mínima de um 1,80m. Portanto, os candidatos com altura abaixo deste limite não poderiam ingressar no Ministério Público Federal. Assim, tem-se que o fator de desequiparação ou de descrímen é a altura mínima de 1,80m; a desequiparação procedida é a não possibilidade de ingresso na carreira de Procurador da República por pessoas com altura inferior a 1,80m. Além disso, esta discriminação deve guardar consonância com os interesses constitucionais. Nesta medida, para que não haja lesão ao princípio da igualdade deve existir correlação lógica entre a altura exigida e a carreira de promotor. Esta exigência fere ou não o princípio da igualdade? Para responder a esta pergunta, é necessário outra: necessitaria um Procurador da República ter a altura mínima de 1,80m para desempenhar as suas atividades? A resposta é, por demais, óbvia.

Por outra via, existem discriminações justificáveis, tais como a exigência de sanidade física para o ingresso nas Forças Armadas e nas Polícias Militares. Neste caso, é a própria Constituição Federal quem promove essa distinção, posto que o artigo 37, inciso II, estabelece que a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei. Vale dizer, tal discriminação se desvela razoável, justificável, não ferindo o princípio da igualdade, na medida em que um portador de deficiência física, com todo respeito que lhe é devido, não seria capaz de labutar nas referidas Forças, em função de suas limitações físicas, o que prejudicaria a autuação efetiva desses órgãos. Todavia, essa restrição deve está prevista nos estatutos de cada Força Armada e das respectivas Polícias Militares.

É imperioso destacar que este postulado constitucional não se dirige apenas ao aplicador da lei, mas, notadamente, ao legislador infraconstitucional, pois, ao editar o texto legal, deve fazê-lo em observância aos ditames da Lei Maior. Impõe este princípio tratamento idêntico a todos que se encontrem em situação semelhante, evitando distinções arbitrárias, odiosas, pois seguir estas premissas é ir em busca do ideal de justiça, consoante ensina Ulpiano (1979), apud Nader (2001, p. 101) nos seguintes dizeres: "Justitia est constants et perpetua voluntas jus suum cuique tribuendi (Justiça é a constante e firme vontade de dar a cada um o que é seu)."

Nessa dimensão, o princípio da igualdade tem aplicação na prisão em flagrante de transgressão disciplinar na razão em que, por ser uma prisão cautelar de natureza administrativa, deve ser dado tratamento idêntico àquele dispensado à prisão em flagrante delito no que diz respeito às formalidades. Sem dúvidas, ambas são prisões com todas as suas peculiaridades. E, nessa direção, são valiosas as palavras de Hortêncio(2010, p. 3), segundo o qual "prender alguém é ato da mais alta seriedade e requer medida motivada nos fatos e justificada na lei. Isso em decorrência da prática de delito penal ou de transgressão disciplinar castrense."

Nesse passo, em virtude de a prisão cautelar administrativa estar sendo efetuada sem as formalidades devidas e para demonstrar que esse ato fere o princípio da igualdade, utilizando os ensinamentos de Mello (op. cit., p. 21), acima discorrido, tem-se que: a) o fator de desequiparação é a não autuação do policial militar ao ser preso em flagrante trangressional; b) a desequiparação procedida é a impossibilidade desta autuação, no momento, por se tratar de transgressão disciplinar; c) esta discriminação não guarda consonância com os interesses protegidos na Constituição. Logo, o princípio constitucional da igualdade está sendo lesado, o que não pode. Daí a sua aplicação na prisão em flagrante trangressional.

3.3.5. Princípio da proporcionalidade

Nos dias atuais, as atividades são dirigidas de acordo com a medida da proporcionalidade. Assim, tem-se que a presença da proporcionalidade é indispensável em todos os sentidos. No Direito, já no Século XVIII, proclamava-se a proporcionalidade como meio de refutar os tormentos horríveis provocados pelas penas cruéis. E o grande precursor dessa manifestação foi Beccaria (2001, p. cit., p. 68-69), para o qual "os meios de que se utiliza a legislação para impedir os crimes devem, portanto, ser mais fortes à proporção que o crime é mais contrário ao bem público e pode tornar-se mais frequente. Deve, portanto, haver uma proporção entre os crimes e as penas." E, hoje, utilizando os ensinamentos daquela época, as leis penais não prescindem da atuação desse princípio para estabelecer qual a pena adequada, necessária e a relação de custo-benefício com a medida tomada.

Como é cediço, a Constituição Federal não o prevê expressamente, tratando-se de um princípio constitucional implícito, mas, de acordo com a doutrina e jurisprudência pacíficas, está inserido materialmente no devido processo legal.

Assim, para que esse princípio se realize totalmente é preciso que estejam presentes três subprincípios, quais sejam: adequação, necessidade e proporcionalidade stricto sensu. Nesse passo, existindo a ausência de qualquer deles, resta desnaturada a aplicação do princípio.

Em síntese apertada, a adequação exige que haja compatibilidade entre o fim pretendido pelo ato ou pela norma produzida e os meios utilizados pelo agente ou enunciados pela norma em prol do interesse coletivo. Ou seja, sendo inidôneo para atingir o resultado a que se visa, tanto o ato praticado quanto a norma devem ser afastadas. É o vínculo de conformidade existente entre o fim desejado e os meios utilizados. É uma relação de cumplicidade entre o que se faz e o que se quer.

O subprincípio da necessidade tem como objetivo evitar que medidas danosas ao interesse público sejam efetivadas, de modo que se estabeleçam parâmetros para a sua execução e, por conseguinte, alcance os fins desejados. Na hipótese de prisão cautelar administrativa, impõe-se que a medida privativa de liberdade seja indispensável e a menos violenta, a menos tirânica dentre todas as medidas que poderiam ser adotadas à preservação da discplina, do interesse coletivo. É que para o alcance dos fins propostos não foi possível meio menos gravoso que a restrição de liberdade do indivíduo.

Por sua vez, o subprincípio da proporcionalidade stricto sensu, consoante acentua Brasileiro de Lima (op. cit., p. 33), "impõe um juízo de ponderação entre o ônus imposto e o benefício trazido, a de se constatar se se justifica a interferência na esfera dos direitos do cidadão." Este subprincípio autoriza a realização de um equilíbrio lógico, envolvendo o meio utilizado e o fim desejado. Uma medida constritiva de liberdade de ir e vir, conquanto adequada e necessária, pode muito bem ferir a Constituição se permeada de excessos, de desproporção.

Santiago Filho (1989), apud BARROSO (op. cit., p. 229), condensa os três subprincípios afirmando: "Resumidamente, pode-se dizer que uma medida é adequada, se atinge o fim almejado, exigível, por causar o menor prejuízo possível e, finalmente, proporcional em sentido estrito, se as vantagens que trará superarem as desvantagens".

Por sua vez, Canotilho (op. cit., p. 268), ao comentar a importância deste postulado no continente europeu, assim declara:

[...] o princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso é, hoje, assumido como um princípio de controlo exercido pelos tribunais sobre a adequação dos meios administrativos (sobretudo coactivos) à prossecução do escopo e ao balanceamento concreto dos direitos ou interesses em conflito. (grifo do autor).

Nesta senda, aplicando-se o princípio da proporcionalidade ao âmbito da PMAL, indaga-se: será adequada, necessária e proporcional a prisão cautelar administrativa na hipótese de o policial militar praticar transgressão disciplinar grave, sem haver demonstração inequívoca de perigo à coletividade, sem que haja prejuízo à coleta de provas? É o que na maioria das vezes ocorre, pois existem casos em que o policial militar pratica a infração disciplinar grave, como por exemplo, concede uma entrevista para uma emissora de televisão e se dirige para o seu domicílio. Logo após é preso. Pergunta-se: a medida limitativa da liberdade de locomoção foi adequada, necessária e proporcional? Pelo contrário, o ato foi totalmente inadequado, pois há um descompasso entre o ato praticado e a prisão. É desnecessária na medida em que o meio utilizado foi o mais lesivo ao interesse comum, à liberdade, porquanto a prisão poderia ocorrer após instauração do processo administrativo que lhe garantisse a ampla defesa e o contraditório. É desproporcional em sentido estrito porque, realizado o juízo de proporcionalidade, de ponderação, concluiu-se que foi excessiva, abusiva, pois, inconstitucional, quando poderia ser efetuado o cerceamento a posteriori, garantindo-lhe os direitos constitucionais. Nesta medida, leciona Di Pietro (2010a, p. 80): "Se a decisão é manifestamente inadequada para alcançar a finalidade legal, a Administração terá exorbitado dos limites da discricionariedade e o Poder Judiciário poderá corrigir a ilegalidade."

Dito isto, impõe-se que, se o princípio da proporcionalidade é aplicado às prisões em flagrante delito, com a mesma razão também se aplica às prisões cautelares administrativas na Polícia Militar de Alagoas, em razão de possuírem a mesma natureza jurídica, prisão administrativa.

É como leciona Freua (2010, p. 7):

Na questão do recolhimento disciplinar em casos de transgressão, deve também haver proporcionalidade entre o ato que, em tese, tenha cometido o policial militar e a limitação de sua liberdade, pois no Estado Democrático de Direito não há amparo para limitar a liberdade interpretando apenas o RDPM, desprezando os demais mandamentos legais e princípios que norteiam os atos estatais.

Inobservar tal princípio, é ferir os mandamentos constitucionais e os tratados internacionais subscritos pelo Brasil, a exemplo da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, tema a ser debatido no próximo item.

3.4. A CONVENÇÃO AMERICANA SOBRE DIREITOS HUMANOS (PACTO DE SÃO JOSÉ DA COSTA RICA)

É de conhecimento de todos que, após o fim da Segunda Guerra Mundial, os países, notadamente os ocidentais, não só os europeus, bem assim africanos e os americanos, resolveram firmar entendimentos no sentido de evitar as barbáries antes praticadas contra a pessoa humana, notadamente durante a Segunda Guerra Mundial. Para isso, elaboraram tratados cujas normas deveriam ser seguidas pelos signatários. Inicialmente, com a criação do Sistema de Direitos Humanos das Nações Unidas e, seguidamente, com os sistemas continentais, tomando como norte os institutos previstos na Declaração Universal dos Direitos do Homem, proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em 10 de Dezembro de 1948.

No sistema europeu, quinze países assinaram, em 04 de novembro de 1950, a Convenção Europeia dos Direitos do Homem, que entrou em vigor em 03 de setembro de 1953, com a finalidade de proteger e desenvolver os direitos do homem e das liberdades fundamentais, instituindo o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, objetivando garantir o respeito aos direitos humanos.

No continente africano, o seu sistema regional instituiu, em 27 de junho de 1981, em Nairobi, Quênia, a Carta Africana sobre Direitos Humanos e dos Povos, entrando em vigor em 21 de outubro de 1996. Está prevista, no seu artigo 30, a criação da Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, composta por onze membros, encarregada de promover os direitos humanos e dos povos e de assegurar a respectiva proteção na África.

Por fim, na América, com objetivos semelhantes, em 22 de novembro de 1969, foi instituída a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH), também conhecida como Pacto de São José da Costa Rica, a qual entrou em vigor em 18 de julho de 1978. Inicialmente, vinte e cinco países assinaram a convenção. Foram eles: Argentina, Barbados, Bolívia, Brasil, Colômbia, Costa Rica, Chile, Dominica, Equador, El Salvador, Granada, Guatemala, Haiti, Honduras, Jamaica, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, República Dominicana, Suriname, Trinidad e Tobago, Uruguai e Venezuela.

São competentes para conhecer dos assuntos relativos ao cumprimento dos compromissos assumidos pelas nações partes, de acordo com o artigo 33, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a Corte Interamericana de Direitos Humanos, tendo o Brasil reconhecido a competência contenciosa desta por intermédio do Decreto Legislativo 89, de 03 de dezembro de 1998. A primeira tem como função principal promover a observância e a defesa dos direitos humanos, ao passo que a última é um órgão jurisdicional, tendo competência para conhecer de qualquer caso relativo à interpretação e aplicação das disposições da Convenção que lhe seja submetido.

A Convenção Americana sobre Direitos Humanos contempla inúmeros direitos civis e políticos, sendo obrigadas as nações signatárias a cumpri-la, de acordo com o seu artigo 1°, o qual prescreve:

Artigo 1. Obrigação de respeitar os direitos

1. Os Estados Partes nesta Convenção comprometem-se a respeitar os direitos e liberdades nela reconhecidos e a garantir seu livre e pleno exercício a toda pessoa que esteja sujeita à sua jurisdição, sem discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo, idioma, religião, opiniões políticas ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra condição social.

2. Para os efeitos desta Convenção, pessoa é todo ser humano.

No artigo 2°, a Convenção afirma o seguinte:

Artigo 2. Dever de adotar disposições de direito interno

Se o exercício dos direitos e liberdades mencionados no artigo 1 ainda não estiver garantido por disposições legislativas ou de outra natureza, os Estados Partes comprometem-se a adotar, de acordo com as suas normas constitucionais e com as disposições desta Convenção, as medidas legislativas ou de outra natureza que forem necessárias para tornar efetivos tais direitos e liberdades.

Cumprindo o mandamento acima estabelecido, somente em 1992 é que a Convenção ingressou no nosso ordenamento jurídico por meio do Decreto n° 678, de 06 de novembro de 1992 , com estatura de lei ordinária. Ou seja, depois de vinte e três anos. Esta inserção no Direito brasileiro somente foi possível em virtude de previsão constitucional. É que desde o seu texto original, o § 2°, do artigo 5°, da Carta Política, já previa (e ainda prevê) que os direitos e garantias expressos na Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. Sendo assim, o Congresso Nacional ratificou o documento, por intermédio do Decreto Legislativo n° 27, de 26 de maio de 1992. Em seguida, o Governo brasileiro depositou a Carta de Adesão a essa Convenção em 25 de setembro de 1992 e, finalmente, o Chefe do Executivo, através do Decreto 678, de 06 de novembro de 1992, promulgou a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, ordenando o seu fiel e integral cumprimento.

Sucede que, em 30 de dezembro de 2004, foi editada a Emenda Constitucional n° 45, que acrescentou o § 3° ao artigo 5°. Diz o parágrafo: "Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais."

Em razão deste dispositivo, no julgamento do HC 87.585-TO e do RE 466.343-SP, em sessão plenária, houve uma das decisões mais importante da história do Supremo Tribunal Federal. A Corte Maior da Justiça brasileira reconheceu que os tratados de direitos humanos se posicionam em condição hierárquica superior às leis ordinárias. Duas correntes estavam em pauta: a do Ministro Gilmar Mendes, que sustentava o valor supralegal desses tratados, e a do Ministro Celso de Mello, que lhes conferia valor de norma constitucional. Por cinco votos a quatro, foi vencedora a primeira tese.

Vale a pena consignar a ementa dos arestos:

PRISÃO CIVIL. Depósito. Depositário Infiel. Alienação fiduciária. Decretação da medida coercitiva. Inadmissibilidade absoluta. Insubsistência da previsão constitucional e das normas subalternas. Interpretação do art. 5°, inc. LXVII, e §§ 1°, 2° e 3°, da CF, à luz do art. 7°, § 7, da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica). Recurso Improvido. Julgamento conjunto do RE n° 349.703 e dos HCs n° 87.585 e n° 92.566. É ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade de depósito

(STF. Tribunal Pleno. RE n° 466.343/SP. Relator Ministro Cezar Peluso. Data: 03.12.2008).

DEPOSITÁRIO INFIEL - Prisão. A subscrição pelo Brasil do Pacto de São José da Costa Rica, limitando a prisão civil por dívida ao descumprimento inescusável de prestação alimentícia, implicou a derrogação das normas estritamente legais referentes à prisão do depositário infiel.

(STF. Tribunal Pleno. HC n° 87.585-8/TO. Relator: Ministro Marco Aurélio. Data: 03.12.2008).

Diante dessas decisões, cabe registrar que, se algum tratado sobre direitos humanos for aprovado pelas duas Casas do Congresso Nacional com quorum qualificado de três quintos, em duas votações em cada Casa e ratificado pelo Presidente da República, terá ele status de Emenda Constitucional, portanto, norma constitucional. Exceto isso, todos os demais tratados desta espécie vigentes no Brasil contam com valor supralegal, é dizer, valem mais do que a lei e menos que a Constituição. Ou seja, a lei (complementar ou ordinária) encontrava fundamento de validade direto na Constituição. Deste modo, a partir de 03.12.08, data dos arestos, essa espécie normativa deu o seu lugar aos tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos incorporados ao Direito brasileiro. Trata-se do instituto jurídico da supralegalidade ou convencionalidade, porquanto os tratados de direitos humanos, não internalizados pelo quorum qualificado do Parlamento Nacional, passam a ser paradigma apenas do controle difuso de convencionalidade, podendo qualquer tribunal ou juiz se manifestar quando provocado.

Outrossim, é interessante ressaltar que, em virtude destes precedentes, o STF foi mais adiante, ao editar a Súmula Vinculante n° 25, segundo a qual "É ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade do depósito." Com isso, o Pretório Excelso, além de revogar a Súmula n° 619 – "A prisão do depositário judicial pode ser decretada no próprio processo em que se constituiu o encargo, independentemente da propositura de ação de depósito" -, obrigou os órgãos do Poder Judiciário e da Administração Pública a obedecer o artigo 7°, n° 7, da Convenção Americana.

Neste caso, mesmo existindo conflito entre o Pacto, que versa sobre direitos humanos, e a Constituição, e não havendo hierarquia entre tais espécies normativas, resolve-se o problema aplicando-se a norma que proporcione o mais alto grau de proteção ao homem. Isso é nada mais que a aplicação do princípio pro homine, pelo qual tem primazia a norma mais benéfica ao indivíduo, sem, é claro, revogar a norma constitucional preterida, ocorrendo apenas o afastamento da sua eficácia, de tal sorte que "todas as normas continuam vigentes. Mas no caso concreto será aplicada a mais favorável" (GOMES e MAZZUOLI, 2010, p. 77). Há o efeito paralisante da eficácia normativa do dispositivo constitucional, não a sua revogação, em virtude da impossibilidade de aplicação das disposições infraconstitucionais que tratam da matéria, porquanto "o status normativo supralegal dos tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil, dessa forma, torna inaplicável a legislação infraconstitucional com ele conflitante, seja ela anterior ou posterior ao ato de adesão."6

O Pacto de São José da Costa Rica, mesmo antes das decisões supra, já representava uma grande conquista no respeitante aos direitos civis e políticos. É mais um instrumento destinado a garantir os direitos reproduzidos na nossa Constituição Federal, exigindo-se do nosso legislador a efetivação de suas normas, como bem leciona Mazzouli (op. cit., p. 30):

O exercício dos direitos e liberdades reconhecidos pela Convenção Americana devem estar efetivamente garantidos no plano do direito interno de seus Estados-partes, quer por disposições legislativas (v.g., uma norma constitucional, uma lei etc.), quer por disposições de qualquer outra natureza (v.g., um decreto presidencial, uma normativa ministerial etc.).

A CADH é uma ferramenta normativa muito importante para que se vindique direitos e garantias, como cidadãos, como homens. As normas constantes no Pacto não são normas quaisquer, não são normas programáticas ou de intenções. São normas que devem ser aplicadas imediatamente. Na pior das hipóteses, têm elas natureza supralegal, devendo assim ser considerada. Portanto, num Estado Democrático de Direito, cuja obediência à lei deve ser a tônica, não existe espaço para negar a aplicação de tratado que versa sobre direitos humanos, como bem decidiu o STF. Ignorar a existência do Pacto de São José da Costa Rica é negar a própria existência dos direitos e das garantias instituídos constitucionalmente. Não é por acaso que a nossa Carta Política é chamada de Constituição Cidadã, pois foi ela própria quem agasalhou a Convenção com o manto de supralegalidade ou convencionalidade. E foi mais longe ainda a Lei Maior: alçou as normas sobre direitos humanos a patamares constitucionais, na hipótese do 3°, do seu artigo 5°.

Não é demais anotar que, dentre todos os direitos e garantias, a Convenção Americana não se olvidou de um direito civil dos mais importantes para o ser humano, que é a liberdade de ir, vir e permanecer. O documento se ocupou desse direito no seu artigo 7°, verbis:

Artigo 7º - Direito à liberdade pessoal

1) Toda pessoa tem direito à liberdade e à segurança pessoais.

2) Ninguém pode ser privado de sua liberdade física, salvo pelas causas e nas condições previamente fixadas pelas Constituições políticas dos Estados-partes ou pelas leis de acordo com elas promulgadas.

3) Ninguém pode ser submetido a detenção ou encarceramento arbitrários.

4) Toda pessoa detida ou retida deve ser informada das razões da detenção e notificada, sem demora, da acusação ou das acusações formuladas contra ela.

5) Toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais e tem o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo.

6) Toda pessoa privada da liberdade tem direito a recorrer a um juiz ou tribunal competente, a fim de que este decida, sem demora, sobre a legalidade de sua prisão ou detenção e ordene sua soltura, se a prisão ou a detenção forem ilegais. Nos Estados-partes cujas leis prevêem que toda pessoa que se vir ameaçada de ser privada de sua liberdade tem direito a recorrer a um juiz ou tribunal competente, a fim de que este decida sobre a legalidade de tal ameaça, tal recurso não pode ser restringido nem abolido. O recurso pode ser interposto pela própria pessoa ou por outra pessoa.

7) Ninguém deve ser detido por dívidas. Este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar.

Logo, verifica-se que todo artigo acima descrito está presente no artigo 5°, da Constituição Federal, pois, direitos fundamentais. Como tais, têm aplicação imediata. Além disso, são etiquetados com cláusula pétrea, devendo o Estado brasileiro respeitá-los e cumpri-los.

Vale referir, a esse respeito, a valiosa lição de Mazzouli (op. cit., p. 28):

Para além da obrigação genérica que os Estados têm de respeitar os direitos e liberdades consagrados pela Convenção, também existe o dever dos Estados em garantir o livre e pleno exercício desses direitos e liberdades ‘a toda pessoa que esteja sujeita à sua jurisdição’, sem excluir da proteção qualquer cidadão.

É de se observar, todavia, que a comunidade jurídica brasileira ainda não está dando o tratamento devido ao Pacto de São José da Costa Rica em função da sua grande importância, vez que até o momento não foi introjetado por completo no Brasil, conquanto seja de elevada aplicação nos países vizinhos, o que é lamentável. Somente após as históricas decisões recentes do Supremo é que a sua utilização iniciou-se efetivamente.

Em vista disso, muito há que se lutar para que os direitos formalmente estabelecidos sejam materializados por intermédio das garantias que a Constituição proporciona a todos brasileiros. E a Convenção Americana de Direitos Humanos consiste em mais um instrumento normativo para essa efetivação, mais um conjunto de normas jurídicas capaz de obrigar o Estado a cumprir os seus mandamentos sob pena de ser-lhe imputada a responsabilidade internacional devida em virtude da violação aos direitos humanos, especialmente no que se refere à liberdade de locomoção, pois, de acordo com o seu artigo 7°, 3, "Ninguém pode ser submetido a detenção ou encarceramento arbitrários", item a ser discorrido.

3.5. LIBERDADE DE LOCOMOÇÃO: DIREITO FUNDAMENTAL DA PESSOA HUMANA. DIREITO INDISPONÍVEL

Indiscutivelmente, a vida e a liberdade são os dois maiores bens que o indivíduo humano detém. É tão certo isso que nem o próprio titular pode dispor deles. Assim, o Estado criou mecanismos para essa proteção. A Constituição Federal e a legislação ordinária dão os contornos de suas importâncias. Na Carta Magna, por exemplo, no artigo 5°, caput, são garantidos aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.

Na legislação infraconstitucional, por ser a vida o bem mais precioso, o Código Penal logo se encarregou de protegê-la ao iniciar a Parte Especial, no Capítulo I, Dos Crimes Contra a Vida (artigo 121 usque 128), do crime de homicídio simples. No que tange à liberdade, o Decreto-lei nº 2.848/40 também não se olvidou quando, no Capítulo VI (artigos 146 usque 154), arrolou os crimes contra a liberdade individual. Isso sem falar na legislação penal especial que igualmente contém inúmeras figuras típicas cujos bens jurídicos tutelados são, na mesma medida, a vida e a liberdade.

Todavia, inobstante serem indisponíveis, estando elencados no Capítulo I - Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos - da nossa Carta Maior, esses direitos sofrem limitações. É que, como se tem conhecimento, nenhum direito fundamental é absoluto, a começar pela própria vida em que a Constituição faculta ao Estado a sua eliminação, nos termos do artigo 5°, inciso XLVII, segundo o qual não haverá pena de morte, salvo em caso de guerra declarada. Em virtude da previsão constitucional, o Código Penal Militar estabelece trinta e cinco figuras típicas7, tendo a morte como grau máximo na aplicação da pena.

No caso da liberdade, trata-se de direito de primeira geração, traduzidos nos direitos civis e políticos, consoante noticia Bonavides (op. cit., p. 563-564):

Os direitos de primeira geração ou direitos da liberdade têm por titular o indivíduo, são oponíveis ao Estado, traduzem-se como faculdade ou atributos da pessoa e ostentam uma subjetividade que é seu traço mais característico; enfim, são direitos de resistência ou de oposição perante o Estado.

O direito de liberdade possui várias acepções, porquanto é um termo polissêmico. Daí a Constituição, precisamente no artigo 5°, inciso VI, referir-se à liberdade nos seus vários aspectos, dando-lhe sentidos diversos. Geralmente o vocábulo liberdade é acompanhado de uma locução adjetiva para dar-lhe a qualidade exata no sentido de garantir e bem especificar esse direito. Afonso da Silva (op. cit., p. 234), bem esclarece as distinções extraídas do vocábulo liberdade, emprestando-lhe interpretação em consonância com o Texto Constitucional:

Liberdades, no plural, são formas da liberdade, que, aqui, em função do Direito Constitucional positivo, vamos distinguir em cinco grandes grupos:

1) liberdade da pessoa física (liberdades de locomoção, de circulação);

2) liberdade de pensamento, com todas as suas liberdades (opinião, religião, informação, artística, comunicação do conhecimento);

3) liberdade de expressão coletiva em suas várias formas (de reunião, de associação);

4) liberdade de ação profissional (livre escolha e de exercício de trabalho, ofício e profissão);

5) liberdade de conteúdo econômico e social (liberdade econômica, livre iniciativa, liberdade de comércio, liberdade ou autonomia contratual, liberdade de ensino e liberdade de trabalho). (grifo do autor).

Não é à toa que o autor arrolou no primeiro item a liberdade de locomoção. Sem dúvidas, todas essas formas de liberdade são importantes, mas, talvez, seja esta a que a pessoa humana mais valora, constituindo-se na primeira forma de liberdade que o Homem teve que conquistar (AFONSO DA SILVA, op. cit., p. 236).As demais ocupam o seu lugar de importância na vida do homem, porém não como a liberdade de se deslocar para os lugares que lhe interessa, de ir, vir, circular, ficar, viajar.

Nesses termos, o direito à liberdade de locomoção se reputa tão necessário e importante à nossa vida que, no artigo 5°, inciso XV, o Poder Constituinte Originário o erigiu isolado das demais formas de liberdade, numa intenção inequívoca de dizer que não há como confundi-lo com as outras, nos seguintes termos: "É livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens".

A despeito de haver dedicado um inciso apenas para esta forma de liberdade, o legislador constituinte, não satisfeito, aumentou ainda mais a proteção deste direito, como se vê nos incisos LXI, LXII, LXIII, LXIV, LXV, LXVI, LXVII e LXVIII, todos do artigo 5°.

O indivíduo, na verdade, quer estar livre, em condições de se deslocar para qualquer lugar sem ser obstruído ou impedido, claro que dentro dos limites autorizados pelo ordenamento jurídico, posto que, para sair do país, por exemplo, terá que adquirir passaporte, dentre outras medidas legais exigidas.

A regra – e esta deve ser respeitada – é a manutenção do indivíduo no estado de liberdade, de modo que possa desenvolver as suas atividades, profissionais ou não, livremente, sem as amarras estatais, ao contrário do que se via no regime escravagista do passado. Pode-se até privar o ser humano das inúmeras liberdades a ele dirigidas, seja de opinião, religião, informação, artística, comunicação do conhecimento, reunião, associação, livre escolha e exercício de trabalho, ofício e profissão. Mas, quando se trata da liberdade de locomoção, é diferente, dada a necessidade de o homem viver natural e livremente. Assim sendo, nenhuma privação se pode admitir sem que haja motivo de caráter legal. Mesmo sendo ilegal a restrição de qualquer das formas de liberdade, não há nada que se compare à redução da liberdade de locomoção, vez que esta é da essência humana. Retirar esse direito do homem, é quase condená-lo à morte em muitas situações.8

Daí se entender ser a liberdade de locomoção, de ir e vir, a liberdade das liberdades, dada a necessidade que, principalmente, o ser humano, gregário que é, tende a viver livremente, para conduzir a sua vida com dignidade. Ninguém vive bem, satisfeito, sem a liberdade de ir de um lugar para outro. Não se trata de uma simples forma de liberdade, mas de uma liberdade que se encontra acima das outras, no sentido de ser mais valiosa que todas.

Assim, como posto antes, um homem cuja liberdade de religião, de opinião, do exercício de profissão tenha sido cerceada é algo que não deve e não pode acontecer. No entanto, aquele que tem o seu limite de locomoção suprimido, ou seja, aquele que é preso ou detido não só é afetado fisicamente. Sofre, igualmente, lesões morais na medida em que a sociedade já o vê com reservas. Os transtornos para a família em decorrência disso são devastadores. E, se a prisão for injusta, ilegal, nem se fala, pois não existe indenização que elida a dor sofrida.

É, portanto, por esses motivos que a liberdade de locomoção ocupa o lugar de destaque em face das demais. Como dito, não que as outras formas de liberdade não tenham a sua importância, não sejam necessárias, mas, verdadeiramente, o cerceamento da liberdade física é a mais gravosa de todas.

Como se trata de um direito tão valioso, mesmo que o indivíduo pratique uma conduta delituosa, deve ser dispensado o tratamento que ele merece. Vale dizer, devem ser obedecidos, principalmente, os mandamentos constitucionais descritos nos incisos acima declinados, do artigo 5°, quais sejam, incisos LXI, LXII, LXIII, LXIV, LXV, LXVI, LXVII e LXVIII. Seguidamente, deve-se atender às normas previstas na legislação infraconstitucional, especificamente as processuais. Ou seja, havendo dispositivo legal que desafie preceito constitucional, sem dúvidas, deve este prevalecer, mesmo sem declaração de inconstitucionalidade. Tal entendimento é deveras procedente, vez que não se pode ignorar as normas constantes no Título II (Dos Direitos e Garantias Fundamentais). É que, segundo a inteligência do § 1º, artigo 5°, "as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata", sendo estas esculpidas com cláusulas pétreas, de acordo com o inciso IV, § 4°, do artigo 60, da Lei Maior.

À evidência, como asseverado, por ser a liberdade de locomoção um direito indisponível, não pode a autoridade, ao seu juízo, prender ou mandar prender o indivíduo, inobservando o que determina a legislação. E, no caso da prisão administrativa em face do policial militar, também se deve proceder do mesmo modo, pois, seja uma prisão por crime ou por transgressão disciplinar praticada, o infrator não deixa de ser um indivíduo humano, de maneira que todos os direitos constitucionalmente previstos, traduzidos por meio das normas principiológicas, devem ser respeitados.

Nesse diapasão, vale a pena conferir o escólio de Vasconcelos (2010, p. 8):

Uma vez que a restrição da liberdade pode redundar na violação desses direitos, a sua aplicação deve ser interpretada a partir de outros princípios que induzem a uma maior necessidade de formalização, de modo a assegurar ao militar eventualmente punido o máximo possível de garantias. Esta é a verdadeira lógica do sistema, em que os princípios interagem e chegam a um ponto ótimo dentro do caso concreto.

Logo, o policial militar preso provisoriamente em decorrência de se encontrar em estado de flagrância de transgressão disciplinar, estando presentes os pressupostos, deve ser imediatamente recolhido. Entretanto, a Administração terá que formalizar o ato dentro das exigências constitucionais, caso contrário o ato poderá ser combatido por um dos remédios constitucionais, conforme será exposto.

3.6. A IMPOSSIBILIDADE DE HABEAS CORPUS NAS PRISÕES DISCIPLINARES - SERÁ QUE É RAZOÁVEL ESSA INTERFERÊNCIA ESTATAL PARA RESTRINGIR O DIREITO À LIBERDADE DE LOCOMOÇÃO DO INDIVÍDUO, APROVEITANDO-SE A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA MILITAR DESSA PRERROGATIVA?

No Brasil, a liberdade de locomoção é considerada um direito sagrado para qualquer indivíduo, mesmo para aqueles que não possuem domicílio no país, somente podendo ser obstada nos casos específicos contidos no ordenamento jurídico. Porém, é necessário lembrar que, havendo ilegalidade ou abuso de poder no ato de prisão, o paciente acionará o Poder Judiciário, por meio de um dos remédios constitucionais previstos, o habeas corpus, a fim coibir o cerceamento. A Constituição Federal, para efeito deste item, faz menção ao habeas corpus em dois dispositivos, quais sejam: o artigo 5°, inciso LXVIII, e o artigo 142, § 2°. O primeiro prescreve: "conceder-se-á ‘habeas-corpus’ sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder." Já na segunda hipótese, diz o texto constitucional: "Não caberá ‘habeas-corpus’ em relação a punições disciplinares militares."

O instituto do habeas corpus, no Brasil, tem sua origem no Decreto de 23 de maio de 1821, não obstante tal espécie normativa não lhe tenha feito expressa menção. Contudo, somente no Código de Processo Criminal de 1832 é que explicitamente foi previsto, no artigo 340, nos seguintes termos: "Todo cidadão que entender que ele ou outrem sofre prisão ou constrangimento ilegal em sua liberdade, tem o direito de pedir ordem de habeas corpus em seu favor."

No âmbito constitucional, tem-se notícia de que, conquanto implicitamente, esta garantia já estivesse presente mesmo na Carta de 1824, de acordo com os ensinamentos de Assis (2008b, p. 179).

Neste sentido, é interessante saber o que tratam as Constituições acerca deste instituto e a sua vedação no respeitante às transgressões disciplinares, a saber:

CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1824

Das Disposições Geraes, e Garantias dos Direitos Civis, e Politicos dos Cidadãos Brazileiros

Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos Cidadãos Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Imperio, pela maneira seguinte.

X. A excepção de flagrante delicto, a prisão não póde ser executada, senão por ordem escripta da Autoridade legitima. Se esta fôr arbitraria, o Juiz, que a deu, e quem a tiver requerido serão punidos com as penas, que a Lei determinar.

O que fica disposto acerca da prisão antes de culpa formada, não comprehende as Ordenanças Militares, estabelecidas como necessarias á disciplina, e recrutamento do Exercito; nem os casos, que não são puramente criminaes, e em que a Lei determina todavia a prisão de alguma pessoa, por desobedecer aos mandados da justiça, ou não cumprir alguma obrigação dentro do determinado prazo.

CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1891

TÍTULO IV - Dos Cidadãos Brasileiros

Art 72 - [...].

§ 22 - Dar-se-á o habeas corpus , sempre que o indivíduo sofrer ou se achar em iminente perigo de sofrer violência ou coação por ilegalidade ou abuso de poder.

CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1934

CAPÍTULO II

Dos Direitos e das Garantias Individuais

Art 113 - [...].

23) Dar-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer, ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade, por ilegalidade ou abuso de poder. Nas transgressões, disciplinares não cabe o habeas, corpus. (grifo nosso).

CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1946

CAPÍTULO II

Dos Direitos e das Garantias individuais

Art 141- [...].

§ 23 - Dar-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder. Nas transgressões disciplinares, não cabe o habeas corpus. (grifo nosso).

CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1967

CAPÍTULO IV

Dos Direitos e Garantias Individuais

Art 150 - [...].

§ 20 - Dar-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder. Nas transgressões disciplinares não caberá habeas Corpus. (grifo nosso).

EMENDA À CONSTITUIÇÃO FEDERAL N° 1 de 1969

CAPÍTULO IV

Dos Direitos e Garantias Individuais

Art. 153. - [...].

§ 20. Dar-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder. Nas transgressões disciplinares não caberá habeas corpus. (grifo nosso).

CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

TÍTULO II

Dos Direitos e Garantias Fundamentais

Art. 5° - [...].

LXVIII - conceder-se-á "habeas-corpus" sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder;

[...].

TÍTULO V

Da Defesa do Estado e Das Instituições Democráticas

CAPÍTULO II

DAS FORÇAS ARMADAS

Art. 142. - [...].

§ 2º - Não caberá "habeas-corpus" em relação a punições disciplinares militares. (grifo nosso).

Apenas em 1891, como posto na citação, é que esta garantia individual foi erguida pela primeira vez, claramente, à estatura de norma constitucional, como se verifica no artigo 72, § 22: "Dar-se-á habeas corpus sempre que o indivíduo sofrer ou se achar em iminente perigo de sofrer violência, ou coação, por ilegalidade, ou abuso de poder."

É bem de ver que a figura do habeas corpus está presente em praticamente todas as Constituições brasileiras, o que comprova a sua necessidade para o cidadão que tem o seu direito de ir e vir abreviado, restringido. Isso não se discute. Com mais razão ainda por estar consagrado no título que reza sobre os direitos e garantias fundamentais, estando gravado, na Constituição de 1988, como cláusula pétrea, portanto, irremovível. Não há como retirar-lhe essa condição, nem por meio de Emenda constitucional, nos termos do artigo 60, § 4°, IV, da Lei Maior.

Sucede que, como foi pontuado, conforme a dicção do artigo 142, § 2°, da Constituição, o cidadão militar sofre restrição da liberdade de locomoção, não sendo alcançado por este remédio heróico. Até parece que os militares, sejam das Forças Armadas, das Polícias Militares ou dos Corpos de Bombeiros Militares, não são cidadãos, e muito menos indivíduos humanos. Como se vê, é o único segmento da sociedade que é desprezado pelo ordenamento jurídico no que tange a esta garantia constitucional. Ou seja, todas as pessoas, inclusive os estrangeiros, podem utilizar-se desta prerrogativa, os militares, infelizmente, não.

É indiscutível que tal restrição deve ser aplicada, sobretudo por ser matéria de caráter constitucional, não podendo ser olvidada. Contudo, se for analisada a essência desta negação, depreende-se que não há sentido algum neste descrímen, o que aponta para uma desigualdade inexplicável, para não dizer odiosa. É que, sendo a liberdade de locomoção um bem indisponível, a exemplo da vida, não se poderia fazer distinção entre a liberdade do militar e a do civil. Ambos estão em situação semelhante, logo, é dispensar tratamento desigual a pessoas que estão no mesmo plano de igualdade.

Efetivamente, não se quer nesta discussão pleitear direito a greve, a sindicalização, a fundo de garantia, a horas-extras, a filiação político-partidária, dentre outros previstos constitucionalmente para os civis. Está-se falando de direito à liberdade de ir e vir, liberdade das liberdades.

Por outra via, como se vê assentado acima, das vezes em que a restrição do habeas corpus esteve presente nas constituições, o legislador constituinte o fez nos títulos ou capítulos consagradores dos direitos e garantias fundamentais. Todavia, sua posição topográfica, na Carta Cidadã de 1988, verifica-se no Título V (Da Defesa do Estado e das Instituições Democráticas), Capítulo 2 (Das Forças Armadas), o que deixa bem explícito que não houve a mesma preocupação, o tratamento semelhante com relação às constituições anteriores. E esta observação é procedente na medida em que o § 2°, do artigo 142, pode ser objeto de deliberação pelo Poder Constituinte Derivado, ao contrário da norma do inciso LXVII, do artigo 5°, que não poderá ser removida, em condições normais, sob hipótese alguma.

Observa-se que existem duas normas constitucionais aparentemente conflitantes. Uma se encontra cravada no Título II - Dos Direitos e Garantias Fundamentais e a outra no Título V, Capítulo II – Das Forças Armadas. Esse conflito reside apenas na aparência, pois bem se sabe que não existe antinomia entre normas constitucionais, pelo contrário elas se harmonizam como um todo, em observância ao princípio da unidade da Constituição.

De mais a mais, o artigo 142, § 2°, não pode - e nem deve – ser interpretado isoladamente, na sua literalidade, mas, sim, de forma sistemática, combinando-se com o inciso LXVII, do artigo 5°.

Nesta medida, é interessante o magistério de Gouveia (1996, p. 128):

Expressa, pois, realmente e de fato, a CF/88 no dispositivo sub examine litteris : ‘ não caberá habeas corpus em relação a punições disciplinares militares ’ (§ 2º Art. 142), o que leva ao intérprete, prima facie , entender o não cabimento do habeas corpus , pelo menos, assim, transparece que a questão estaria definitivamente resolvida, i.e. , quando se tratar de punição disciplinar, conforme os RD, no interior das casernas, aplicadas a PM, o conhecido ‘ remédio heróico’ , não poderia ser usado em favor do prejudicado ou do assim punido. Entrementes - reitere-se - não é isso que se deve entender. (grifo do autor).

A respeito do tema, já se pronunciou o STF:

RECURSO EXTRAORDINÁRIO. MATÉRIA CRIMINAL. PUNIÇÃO DISCIPLINAR. Não há que se falar em violação ao art. 142, § 2°, da CF, se a concessão de habeas corpus, impetrado contra punição disciplinar militar, volta-se tão-somente para os pressupostos de sua legalidade, excluindo a apreciação de questões referentes ao mérito. Concessão de ordem que se pautou pela apreciação dos aspectos fáticos da medida punitiva militar, invadindo seu mérito. A punição disciplinar militar atendeu aos pressupostos de legalidade, quais sejam, a hierarquia, o poder disciplinar, o ato ligado à função e a pena susceptível de ser aplicada disciplinarmente, tornando, portanto, incabível a apreciação do habeas corpus. Recurso conhecido e provido

(STF – RE 338.840/RS – 2ª Turma – Rel. Min. Ellen Gracie, j. 19.08.2003, grifo nosso).

Da mesma forma, o Superior Tribunal de Justiça:

Concede-se ordem de habeas corpus para o fim de obstar aplicação de punição administrativa, consubstanciada em processo administrativo disciplinar que inobservou as formalidades legais pertinentes, cerceando o direito de defesa do paciente.

(STJ – RHC 6529 – 5ª Turma – Rel Min. Cid Fláquer Scartezzini – j. 23.06.97, DJU 1.09.97, p 40854).

E a prova inconteste de que o habeas corpus não é vedado por completo nos casos de punições disciplinares é que, consoante lembrado anteriormente, a Constituição de 1988 o deslocou para o Título V - Da Defesa do Estado e das Instituições Democráticas -, pois historicamente as Constituições sempre o mantiveram inserido no rol dos direitos e garantias fundamentais. Neste diapasão, afirma Rosa (2009b, p. 132):"Caso fosse intenção do constituinte limitar o seu cabimento nas transgressões disciplinares, tê-lo-ia feito expressamente no capítulo dos direitos e garantias do cidadão, o que não ocorreu."

De resto, segundo o § 1°, do artigo 5°, a Constituição impõe: "As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata." Por isso, não há como impedir a utilização desta garantia aos militares, quando houver ilegalidade ou abuso de poder, mesmo porque, apesar de se submeterem ao regime castrense, estes servidores públicos, espécie militares estaduais, ainda são cidadãos, são indivíduos humanos, pois, gozam dessa garantia fundamental.

Em função disso, existe doutrina que prega a inconstitucionalidade do § 2° supracidado, por ferir o artigo 5°, LXVIII, e o artigo 7°, n° 6, da Convenção Americana de Direitos Humanos, a exemplo de Rosa (2007b, p. 37), a saber:

[...] O mesmo ocorre com a vedação do cabimento de habeas corpus nas transgressões disciplinares militares. O art. 5°, LXVIII, da CF, não limita o seu cabimento. Esse cerceamento constante do art. 142, § 2°, da CF, é inconstitucional. Segundo o art. 60, § 4°, inciso IV, da CF, os direitos e garantias fundamentais assegurados aos brasileiros ou aos estrangeiros residentes no país não admitem nem mesmo Emenda Constitucional. Como pode um outro artigo da Constituição Federal pretender limitar o cabimento desse remédio? (grifo nosso)

Nesta discussão, merece destaque o artigo 7°, n° 6, da CADH:

Artigo 7° - Direito à Liberdade Pessoal

[...].

§ 6. Toda pessoa privada da liberdade tem direito a recorrer a um juiz ou tribunal competentes, a fim de que decida, sem demora, sobre a legalidade de sua prisão ou detenção e ordene sua soltura, se a prisão ou a detenção forem ilegais. Nos Estados Membros cujas leis prevêem que toda pessoa que se vir ameaçada de ser privada de sua liberdade tem direito a recorrer a um juiz ou tribunal competentes, a fim de que este decida sobre a legalidade de tal ameaça, tal recurso não pode ser restringido nem abolido. O recurso pode ser interposto pela própria pessoa ou por outra pessoa.

É verdade que se fala de inconstitucionalidade em virtude de a mencionada norma contrariar a liberdade de ir e vir dos militares, diferenciando-os dos demais indivíduos, o que revela uma flagrante e indiscutível discriminação, em oposição ao LXVIII, do artigo 5°, da Constituição Federal, e ao artigo 7°, 6, da CADH. Mas, com a devida venia, tecnicamente, não há se falar em inconstitucionalidade neste caso, pois a exceção dirigida aos militares foi estabelecida pelo Poder Constituinte Originário, portanto, poder inicial, incondicionado, ilimitado e autônomo. Desta forma, não existe inconstitucionalidade entre normas editadas pelo Poder Constituinte Originário. No entanto, quando se cuida de norma produzida pelo Poder Constituinte Derivado, sim, pode haver inconstitucionalidade, pois se trata de um poder derivado, condicionado, limitado e subordinado, podendo tranquilamente ser as normas dele oriundas declaradas inconstitucionais se incompatíveis com aquelas estabelecidas pelo outro. Definitivamente, não é o caso do § 2°, do artigo 142, editado pelo Poder Inaugurador da atual ordem constitucional.

De toda esta análise, suscitam-se inúmeras indagações, quais sejam: esta vedação constitucional seria pelo fato de serem simplesmente militares? De trabalharem armados? Em virtude da preservação da disciplina? Será que os valores éticos previstos nos estatutos dos servidores públicos civis não são semelhantes àqueles constantes nos castrenses? Será que o mérito administrativo – e aqui envolve inevitavelmente as figuras da oportunidade e conveniência, ou seja, discricionariedade -, é tão intocável que não possa sofrer interferência do Poder Judiciário nas hipóteses de cerceamento de liberdade de locomoção quando, além de ilegal e abusivo, o ato lese princípios constitucionais, tais como os princípios da razoabilidade, da moralidade, da igualdade, da impessoalidade, do contraditório e da ampla defesa, da razoável duração do processo ou da impessoalidade? Por fim, é sensato, razoável que a Administração Pública, em função do que determina o artigo 142, § 2°, da CRFB, interfira como queira na liberdade do indivíduo, utilizando-se desta prerrogativa? Já não bastam as limitações constitucionalmente impostas aos militares em muitos direitos sociais estendidos aos civis? Será que os militares são (e sempre serão) os mártires, o braço armado do Estado, o aparelho repressivo do Estado e por isso serão sempre lesados nos seus direitos?

Em vista disso, apesar de ter certa liberdade para a prática de atos discricionários, é preciso lembrar que a Administração, não obstante, deve obedecer aos limites legais. Assim, tem-se que o agente público deve ter em mente que a discricionariedade está longe de ser absoluta, e isso também inclui as autoridades militares, que, em nome da hierarquia e da disciplina excessivas, ultrapassam as barreiras da legalidade, convertendo o ato discricionário em ato arbitrário. Igualmente, é preciso dizer que as arbitrariedades nas prisões disciplinares não são privilégios apenas das Polícias Militares. Esses atos, que transpõem as fronteiras legais, também são praticados em excessiva escala pelas Forças Armadas.

O que deve ocorrer - e isso muitos por interesses escusos se esquecem de fazer - é uma interpretação sistemática, harmonizando-se os dois dispositivos, tendo prevalência o princípio da unidade constitucional, devendo, no caso concreto, preponderar o inciso LXVIII, do artigo 5°, desde que o ato seja ilegal ou abusivo.

Por conseguinte, se a autoridade militar proceder à prisão de subordinado seu que praticou ato lesivo à disciplina policial militar, dentro da linha demarcatória de suas atribuições, ou seja, observando os princípios constitucionais e a legislação infraconstitucional pertinente, é induvidoso que a sua decisão não será objeto de declaração de nulidade pelo Poder Judiciário, o que demonstra, também, a efetividade do artigo 142, § 2°, da Constituição Federal, sendo mitigado ou tendo menor densidade, nesta hipótese, o inciso LXVIII, do artigo 5°, do Texto Magno, portanto, deve ser afastada a possibilidade de concessão do habeas corpus.

3.7. O ARTIGO 12 DO REGULAMENTO DISCIPLINAR DA PMAL

3.7.1. A Insuficiência da Parte Disciplinar e da Comunicação Disciplinar no que concerne à Prisão Cautelar Administrativa

Na conformidade do artigo 15, do RDPMAL, Parte Disciplinar é a narração escrita, obrigatória, feita por policial militar, e dirigida à autoridade competente, pertinente a ato ou fato de natureza disciplinar praticado por policial militar de posto ou graduação igual à do signatário e de menor antiguidade ou de posto ou graduação inferior à do signatário.

O artigo seguinte afirma que a Parte deve ser clara, concisa e precisa; conter os dados capazes de identificar as pessoas ou as coisas envolvidas, o local, a data e a hora da ocorrência; e caracterizar as circunstâncias que a envolveram, sem tecer comentários ou opiniões pessoais. Ademais, consiste o documento Parte na expressão da verdade, devendo a autoridade a que foi dirigida adotar as providências de sua competência, na conformidade do estabelecido no regulamento disciplinar. Finalmente, a sua apresentação deve ser feita em duas vias e no prazo de dois dias úteis, contados da observação ou conhecimento do fato. Em outras palavras, a Parte Disciplinar é o documento subscrito por policial militar de posto ou graduação superior àquele que supostamente praticou a conduta presumivelmente transgressional, dirigido à autoridade policial militar competente dando-lhe conhecimento.

Simetricamente falando, a Parte está para a transgressão disciplinar assim como a notitia criminis está para o delito. Sendo esta premissa, de fato, verdadeira, então se pode afirmar que, em qualquer situação, é a Parte quem dá ensejo à Portaria. Esta, por sua vez, nos termos do artigo 2°, das Instruções Normativas para a Elaboração de Sindicância, instituídas pela Portaria nº 01/2000-ASS/CG, de 04 de janeiro de 2000, dá ensejo à instauração de processo administrativo, na espécie, sindicância administrativa disciplinar. Por outro lado, na mesma razão, é a denúncia ministerial que possibilitará a instauração do processo criminal. Nesta linha de raciocínio, não é demais asseverar que a Portaria está para o processo administrativo na mesma medida em que a denúncia está para o processo criminal.

No entanto, no âmbito administrativo, a função da Parte Disciplinar não é somente no sentido de deflagrar o processo administrativo. Tem ela uma utilidade a mais. Ao menos é o que estabelece o parágrafo único do artigo 15: "Quando, por força do disposto no art. 12, o transgressor for preso antes da nota de punição9 publicada em Boletim, a Parte deve ser apresentada nas primeiras vinte e quatro horas subsequentes à prisão."

Até que se tratando de uma peça que pode desencadear um processo administrativo disciplinar não há o que se discutir, posto que a Parte Disciplinar se trata de um documento apto a provocar a portaria de instauração do referido feito. Todavia, traduzir-se esta, a exemplo da Comunicação Disciplinar, na única formalidade essencial para ensejar uma prisão cautelar administrativa é forçar em demasia.

É que a Parte Disciplinar reputa-se insuficiente para formalizar tal medida privativa de liberdade. Não possui os componentes necessários para legitimar essa medida cautelar, a começar pelos elementos constitutivos do seu conceito, pois, na dicção do caput, do artigo 16, três requisitos a delimitam bem: clareza, concisão e precisão. Somente isso não basta, como será destacado.

Nesta senda, com respeito ao significado destes vocábulos, leciona Ferreira (1999), que clareza é a qualidade do que é claro ou inteligível, limpidez, nitidez, transparência; concisão é exposição das idéias em poucas palavras, laconismo, brevidade. Precisão como sendo aquilo que é preciso, necessário.

Assim, pelas expressões que compõem o seu conceito, vê-se que a Parte deve ser "enxuta", lacônica, com poucas palavras, sem os detalhes necessários exigidos para que haja o convencimento de que houve a transgressão grave e que, por isso, a constrição de liberdade provisória é medida necessária. Não se exigem dados que, ao menos, possam dar certeza acerca da grave transgressão imputada, além daqueles capazes de identificar o envolvido, o local, a data e hora da ocorrência, bem como caracterizar as circunstâncias que a envolveram. É por isso que não raras vezes estas prisões cautelares são praticadas ao sabor da autoridade militar, que, em nome da discricionariedade, ultrapassa os seus poderes institucionais, traduzindo-se essas medidas em atos ilegais ou abusivos.

É interessante alertar que, além da Parte Disciplinar, existe outro documento que pode deflagrar um processo administrativo: a Comunicação Disciplinar. É que, de acordo com o artigo 21, do RDPMAL, a Comunicação Disciplinar "é a narração escrita, feita por policial militar, e dirigida à autoridade competente, pertinente a ato ou fato de natureza disciplinar praticado por superior hierárquico."

Observa-se que existe uma diferença substancial entre a Parte Disciplinar e a Comunicação Disciplinar. Aquela se refere a um ato praticado pelo policial militar de posto ou graduação igual à do signatário e de menor antiguidade ou de posto ou graduação inferior à do signatário. Já a Comunicação se refere a uma conduta transgressional praticada por superior hierárquico em que o subordinado se vê na obrigação de procedê-la.

Existe, no entanto, regulamento disciplinar que confere à Comunicação os mesmos efeitos da Parte, tendo as duas o mesmo sentido semântico. É o caso da Lei Complementar nº 893, de 09 de março de 2001, que instituiu o RDPMSP. Diz o seu artigo 27: "A Comunicação Disciplinar dirigida à autoridade policial militar competente destina-se a relatar uma transgressão disciplinar cometida por subordinado hierárquico."

Neste diapasão, observa Costa et al (op. cit., p. 171):

Um dos documentos emanados de autoridade subalterna e dirigidos a superiores hierárquicos é a chamada parte. Este documento, ao trazer em seu bojo a comunicação de um fato de cunho transgressional, ganha o adjetivo disciplinar. Nestes termos, a parte disciplinar, ou comunicação disciplinar, relata evento transgressional praticado por um subordinado hierárquico do comunicante, vinculado ou não a ele (funcionalmente), pertencente à mesma Unidade ou não. (grifo do autor).

Vê-se que, na Polícia Militar de São Paulo, são indiferentes as expressões Parte Disciplinar e Comunicação Disciplinar, pois ambas têm significado idêntico. Entretanto, no RDPMAL, tal não ocorre, pois, conforme afirmado, Parte é uma figura, Comunicação, outra, mas com finalidades comuns.

Esta distinção produz repercussão na medida em que se a Comunicação é um instrumento que cientifica um fato à autoridade policial militar, dando suporte à futura instauração de um processo disciplinar, por razões semelhantes também pode, a exemplo da Parte, formalizar uma prisão cautelar administrativa. É que se, por exemplo, o policial militar, em serviço, deparar-se com um superior hierárquico praticando transgressão grave, que exija providências imediatas e enérgicas, deverá, em nome de uma das autoridades arroladas no artigo 11, incisos I, II, III, IV e V, do RDPMAL 10, a depender da situação, mantê-lo no local aguardando a presença do superior hierárquico do infrator, ou, para evitar problemas, conduzi-lo à presença da autoridade detentora de competência para que adote as providências necessárias, inclusive prendê-lo. Pergunta-se: caso a situação exija, pode ele proceder à prisão ou não? Feriria o princípio da hierarquia? É claro que, não existindo mesmo alternativa outra, poderá fazê-lo apenas em situação excepcionalíssima, posto que, nesta hipótese, a vida e a integridade física de terceiros, bem como outros bens juridicamente protegidos de mesma ou maior estatura, são bem mais valiosos que a hierarquia. Desta forma, não poderá deixar de fazer a condução do superior hierárquico à autoridade competente e o encaminhamento da Comunicação Disciplinar, o que põe este documento, em caso tal, nas mesmas condições da Parte Disciplinar.

No que tange à condução do suposto infrator, observa-se, v.g., no artigo 33, II, da Lei Complementar n° 35/79 (Dispõe sobre a Lei Orgânica da Magistratura Nacional), caso em que a autoridade, nos crimes inafiançáveis praticados por membros do Poder Judiciário, fará imediata comunicação e apresentação do Magistrado ao Presidente do Tribunal a que esteja vinculado. De modo semelhante se vê no artigo 17, II, d, da Lei Complementar n° 75/93 (Dispõe sobre a organização, as atribuições e o estatuto do Ministério Público da União). E, também, no artigo 40, III, da Lei 8.625/93 (Institui a Lei Orgânica Nacional do Ministério Público, dispõe sobre normas gerais para a organização do Ministério Público dos Estados e dá outras providências). Depreende-se que não é pelo fato de o infrator ser Magistrado, Procurador da República, Procurador de Justiça ou Promotor de Justiça que não deva ser conduzido à presença da autoridade competente. Da mesma forma o policial militar que é flagrado, por um subordinado em serviço, praticando um ato de indisciplina grave que obrigue o subordinado a tomar medidas enérgicas e imediatas para coibir tal prática e conduzi-lo ao seu superior hierárquico. Deste modo, a ordem jurídica está protegendo, naquele momento, bens jurídicos de maior relevância que a hierarquia.

De resto, tanto a Parte Disciplinar quanto a Comunicação Disciplinar, conforme a sistemática do RDPMAL, são meios capazes de formalizar a medida cautelar de natureza pessoal em desfavor do policial militar, tolhendo-lhe o direito de ir, vir, ficar, o que constitui um equívoco gritante, eis que, conforme afirmado antes, a Parte é um documento simples, unilateral, cujas características - clareza, concisão e precisão - já dão uma ideia do seu conteúdo. Assim sendo, não pode a privação da liberdade de locomoção ser formalizada por um expediente tão lacônico, sem qualquer manifestação do suposto transgressor ou de testemunhas. Além disso, pode ser confeccionado e entregue à autoridade competente em até vinte e quatro horas após o ato encarcerador, conforme o artigo 15, parágrafo único do RDPMAL, servindo a Parte Disciplinar e a Comunicação Disciplinar de meio para dar legitimidade a atos abusivos de administradores iníquos.

3.7.2. Breve Análise Comparativa do Artigo 12, do RDPMAL, com o Artigo 29, do Anteprojeto do Código de Ética da PMAL (CEPMAL)

O artigo 12, do RDPMAL, como se sabe, traz a discutível figura da prisão cautelar administrativa, sendo aplicado nos moldes em que se encontra. Assim, para atender às exigências constitucionais foi elaborado o Anteprojeto do Código de Ética da PMAL para posterior aprovação. Um dos pontos que se observa no possível futuro estatuto repressor é a manutenção da prisão cautelar.

A prisão cautelar do referido artigo 12 ocorre quando, como já dito, para preservação da disciplina e do decoro da Corporação e a ocorrência exigir uma pronta intervenção. A autoridade policial militar de maior antiguidade que presenciar ou tomar conhecimento do fato, mesmo sem possuir ascendência funcional sobre o transgressor, deverá tomar imediatas e enérgicas providências, inclusive, prendê-lo em nome da autoridade competente. Contudo, para se aplicar esse artigo, deve-se fazer uma interpretação sistemática, buscando a sua completude no artigo 54, inserido no Capítulo II, do Título III, que versa sobre regras de aplicação das punições disciplinares. Diz o artigo 54: "O tempo de detenção ou prisão, antes da respectiva publicação em Boletim Interno da OPM, não deve ultrapassar de 72 horas e só poderá ocorrer nas hipóteses previstas no art. 12."

Ademais, deve ser observado o artigo 16, parágrafo único, segundo o qual, quando, por força do disposto no art. 12, o transgressor for preso antes da nota de punição publicada em Boletim, a Parte deve ser apresentada nas primeiras vinte e quatro horas subsequentes à prisão. Em outras palavras, a prisão do artigo 12, além das condicionantes impostas, não poderá exceder o lapso temporal de setenta e duas horas, devendo a Parte – documento singelo, conciso - pertinente à ocorrência ser redigida e entregue à autoridade competente nas vinte e quatro horas posteriores ao fato, cabendo relembrar que a Comunicação, outrossim, pode provocar a referida prisão.

Assim, os pressupostos desta prisão cautelar são: 1 transgressão disciplinar de intensidade grave, 2 preservação da disciplina e do decoro da Corporação; 3 exigência de pronta intervenção da autoridade policial militar de maior antiguidade que presenciar ou tiver conhecimento do fato e 4 providências imediatas e enérgicas por parte da autoridade mencionada.

Tomando por base o artigo 12, do RDPMAL, o artigo 26, inciso II, do RDPMSP, e o artigo 12, § 2°, do RDE, Assis (op. cit., p. 158) elenca os pressupostos desta prisão. Ensina o autor:

São pressupostos desta prisão (detenção) cautelar: a) ocorrência de transgressão disciplinar de natureza grave; b) necessidade de preservação da disciplina e do decoro da instituição militar; c) exigência de pronta intervenção; d) o dever de ofício da autoridade militar de maior antiguidade que presenciar ou tiver tomado conhecimento do fato de tomar providências enérgicas e imediatas; e) a prisão do infrator é feita em nome da autoridade competente; f) tal restrição da liberdade do infrator antecede a solução da comunicação da transgressão cometida.

Por sua vez, o Anteprojeto do Código de Ética da PMAL igualmente traz a mesma prisão, chamado-a de Recolhimento Cautelar. De acordo com o seu artigo 29, consiste esta prisão em medida excepcional. Pode ser adotada quando houver fortes indícios de autoria de crime propriamente militar e transgressão policial militar. Nesta última hipótese, ocorre a prisão, caso a medida seja necessária ao bom andamento das investigações para sua correta apuração, ou à preservação da segurança pessoal do policial militar e da sociedade, em virtude de o infrator mostrar-se agressivo e violento, pondo em risco a própria vida e a de terceiros, ou encontrar-se embriagado ou sob ação de substância entorpecente. Estes são os pressupostos para se efetuar o Recolhimento Cautelar, que na verdade é uma prisão cautelar nos moldes da prevista no artigo 12. Ademais, diz o § 2° do Anteprojeto que esta restrição à liberdade é de competência exclusiva do Comandante Geral.

É de se notar que houve um grande avanço, com relação ao artigo 12, do atual regulamento, no entanto, em função do nível de excepcionalidade da medida, deveria ter ido mais longe o Anteprojeto. Das mudanças propostas, duas situações se destacam: a competência exclusiva do Comandante Geral para impor a medida e que as hipóteses para a prisão são mais específicas, ao contrário do outro, que deixa uma margem de discricionariedade excessiva às autoridades enunciadas no artigo 11, incisos I, II, III, IV e V. Também deve haver comunicação imediata do local onde se encontra o recolhido à pessoa por ele indicada.

Estabelece também o Anteprojeto que o recolhimento dar-se-á quando houver fortes indícios de autoria de crime propriamente militar. Parece que, neste ponto, o texto em destaque foi além do que deveria ir, vez que a norma constitucional presente no artigo 5°, inciso LXI, in fine, em nenhum momento se refere a indícios de crime propriamente militar, mas na existência do delito propriamente militar, e qualquer interpretação a ser dada deve sê-lo de forma restritiva. Portanto, somente se houver crime - não meros indícios – praticado por algum militar no momento é que pode, sim, haver a prisão tal como a cautelar administrativa, pois, conforme leciona Oliveira (op. cit., p. 450) "os indícios não se qualificam, a rigor, como meio de prova." Deste modo decidiu o Supremo Tribunal Federal 11 para o qual "indícios de autoria não têm o sentido de prova indiciária – que pode bastar à condenação – mas, sim, de elementos bastantes a fundar suspeita contra o denunciado." Logo, interpretar diversamente é ir de encontro à hermenêutica constitucional, posto que as normas restritivas de direitos devem ser interpretadas restritivamente.

A sabendas, já que possui disposição semelhante, é interessante observar o que o artigo 26, I, do Regulamento Disciplinar da PMSP estabelece, in litteris.

Artigo 26 - O recolhimento de qualquer transgressor à prisão, sem nota de punição publicada em boletim, poderá ocorrer quando:

I - houver indício de autoria de infração penal e for necessário ao bom andamento das investigações para sua apuração;

II - for necessário para a preservação da ordem e da disciplina policial-militar, especialmente se o militar do Estado mostrar-se agressivo, embriagado ou sob ação de substância entorpecente. (grifo nosso).

Verifica-se que o regulamento paulista excedeu-se ainda mais em relação ao que prevê o Anteprojeto do Código de Ética da PMAL. Ou seja, atribuiu competência para as autoridades elencadas no artigo 31, quais sejam, Governador, Secretário da Segurança Pública, Comandante Geral etc., prender o policial militar quando houver indício de autoria de infração penal quando for necessário ao bom andamento das investigações para sua apuração, mesmo não se tratando de crime propriamente militar, de acordo com a Constituição, portanto em qualquer crime.

Efetivamente, tanto a regra prevista no nosso Anteprojeto quanto a do artigo 26, I, do RDPMSP, encontram óbice no artigo 254, do Código de Processo Penal Militar, que versa acerca da prisão preventiva, pois somente a autoridade judiciária competente, vale dizer, o Auditor e o Conselho de Justiça, podem decretar a prisão cautelar do policial militar quando houver prova do fato delituoso e indícios suficientes de autoria, exceto nos casos de prisão em flagrante delito, hipótese em que qualquer pessoa poderá e os militares deverão prender quem for insubmisso ou desertor, ou seja, encontrado em flagrante delito, de acordo com o artigo 243, do CPPM. Além do mais, seria de flagrante inconstitucionalidade o referido dispositivo do Anteprojeto, visto que legisla sobre processo penal, matéria privativa da União, o que afronta o artigo 22, inciso I, da Constituição Federal. Com muito mais razão, goza deste vício o supracitado dispositivo do regulamento paulista.

3.7.3 O Conflito Aparente de Normas envolvendo os Artigos 11, 12, 31, inciso XLIV, 47, caput, e 54, com o Artigo 47, parágrafo único, do RDPMAL

O regime disciplinar castrense tem suas bases assentadas nos princípios da disciplina e da hierarquia, não deles podendo afastar-se, caso contrário estará em xeque a própria existência do militarismo, amparado este por disposições constitucionais, as quais exigem o respeito a esses dois princípios. O artigo 12, do RDPMAL, deixa bem evidente essa exigência da Lei Maior, ao autorizar, mesmo implicitamente, a prisão cautelar do policial militar em homenagem à disciplina e ao decoro da Corporação. Entretanto, não é apenas havendo lesão a esses dois bens jurídicos que se deve prender o policial militar transgressor. É imperioso que haja extrema necessidade para a realização do recolhimento e que seja esta limitação da liberdade efetivada em nome da autoridade competente, que são aquelas elencadas no artigo 11, incisos I, II, III, IV e V, do regulamento disciplinar. E essa prisão envolve, além dos artigos 11 e 12, igualmente os artigos 31, inciso XLIV, 47, caput, 47, parágrafo único, e 54, do mesmo diploma.

Cabe alertar que, ao fazer uma leitura perfunctória do artigo 12 combinado com o artigo 47, parágrafo único, pode-se chegar à conclusão de que há conflito entre as normas evidenciadas.

Nesse cenário, é relevante atentar para o que dizem os preceptivos em comento:

Art. 12. - Quando, para preservação da disciplina e do decoro da Corporação, a ocorrência exigir uma pronta intervenção, mesmo sem possuir ascendência funcional sobre o transgressor, a autoridade policial militar de maior antigüidade que presenciar ou tiver conhecimento do fato deverá tomar imediatas e enérgicas providências, inclusive, prendê-lo em nome da autoridade competente, dando ciência a esta, pelo meio mais rápido, da ocorrência e das providências em seu nome tomadas.

[...]

Art. 31. - São transgressões disciplinares médias:

[...]

XLIV - prender subordinado sem nota de punição publicada em Boletim, a não ser pelas razões previstas no art. 12, ou permitir que permaneça preso, nessa circunstância, por período superior a setenta e duas horas;

[...]

Art. 47. - A prisão de qualquer transgressor, sem nota de punição publicada em Boletim Interno da OPM, só poderá ocorrer por ordem das autoridades referidas nos nºs I, II, III, IV e V do Art. 11.

Parágrafo Único - Excluem-se da aplicação deste artigo as disposições contidas no art. 12.

Art. 54. - O tempo de detenção ou prisão, antes da respectiva publicação em Boletim Interno da OPM, não deve ultrapassar de 72 horas e só poderá ocorrer nas hipóteses previstas no art. 12.

Em breves palavras, o artigo 31, inciso XLIV, representa um tipo transgressional de intensidade média, visto que é esta a regra do artigo 57, II, do regulamento disciplinar, in verbis:

Art. 57. - A punição deve ser proporcional à gravidade da transgressão, dentro dos seguintes limites, sem prejuízo do disposto nos §§ 1.º, 2.º e 3.º do art. 48:

I - de advertência ou de repreensão para as transgressões leves;

II - de quatro a vinte dias de detenção para as transgressões médias;

III - de quatro a vinte dias de prisão para as transgressões graves. (grifo nosso)

Verifica-se, portanto, que a prisão não pode exceder o período de setenta e duas horas, podendo a autoridade que a determinou incorrer na sanção do artigo 31, inciso XLIV, do RDPMAL, caso ultrapasse esse lapso de tempo, não se justificando a prisão sem nota de punição se ela não atender aos pressupostos do artigo 12.

No que se refere ao artigo 47, caput, a prisão de qualquer transgressor sem a nota para publicação da punição somente poderá ser determinada pelas autoridades previstas nos incisos I, II, III, IV e V, do artigo 11, do RDPMAL. Nesses termos, cabe mencionar a regra do aludido dispositivo:

Art. 11. - A competência para aplicar as prescrições contidas neste Regulamento é conferida ao cargo e não ao grau hierárquico. São competentes para aplicá-las:

I - o Governador do Estado e o Comandante Geral, a todos aqueles que estiverem sujeitos a este Regulamento;

II - o Chefe do EMG, a todos os que lhe são subordinados, na qualidade de Subcomandante da Corporação;

III - os Chefes de Gabinetes e Assessorias Militares, aos que estiverem sob suas ordens;

IV - os Comandantes Intermediários, Diretores e Ajudante Geral, aos que servirem sob suas ordens;

V - o Subchefe do EMG e Comandantes de OPM, aos que estiverem sob suas ordens;

É de se observar que apenas essas autoridades podem determinar a prisão cautelar do subordinado, entretanto deve-se atentar para os pressupostos do artigo 12, bem assim, conforme dito, para o tempo estabelecido para essa privação da liberdade, que é de setenta e duas horas, sob pena de incorrer na regra do inciso XLIV, do artigo 31.

Resumindo, somente essas autoridades podem determinar a prisão prevista no artigo 12. Entretanto, como se trata de uma modalidade de prisão em flagrante e, por imposição lógica, o ato de prender não se restringe a elas, mas a qualquer policial militar que se encontre presente à cena na qual a transgressão exija providências imediatas e enérgicas para preservação da disciplina e do decoro da Corporação.

E assim o é porque se o artigo 12 afirma que o policial militar de maior antiguidade, que presenciar ou tiver conhecimento do fato, deverá tomar imediatas e enérgicas providências, inclusive prender o transgressor em nome da autoridade a que o transgressor se subordina, com muito mais razão as próprias autoridades descritas no artigo 54, caput, comandante do respectivo PM preso, decerto, também pode recolhê-lo à prisão. Seria até absurdo alguém prender um policial militar em nome da autoridade, e esta não poder fazer o mesmo.

3.8. PRISÃO CAUTELAR ADMINISTRATIVA ILEGAL OU ABUSIVA: ABUSO DE AUTORIDADE?

A Constituição Federal, no artigo 5°, inciso LXI, segunda parte, excepciona a prisão para os militares, quando nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei. Como foi visto no início deste Capítulo, trata-se esta cautelar administrativa de uma prisão extrapenal, na espécie militar. Divide-se em duas: uma para os crimes propriamente militar e a outra para as transgressões disciplinares. Ambas podem ser efetuadas, mesmo sem existir flagrante delito ou ordem judicial escrita devidamente fundamentada.

No caso das transgressões disciplinares, a que interessa a este tópico, a prisão ainda pode ocorrer em razão de uma medida cautelar ou quando for confirmada a transgressão por meio do devido processo legal. Tanto na ocorrência da prisão cautelar quanto na prisão punição, a autoridade sancionadora, havendo ilegalidade ou abuso, poderá ser responsabilizada.

Realmente, quando se aplica a prisão punição a possibilidade da prática de ato abusivo, ilegal, é bastante reduzida, mormente em virtude de serem facultados os direitos constitucionais da ampla defesa e do contraditório, porquanto se tem um Oficial encarregado de conduzir o processo administrativo podendo opinar pelo arquivamento do feito ou mesmo pela sanção do acusado. Em resumo, é uma providência mais consistente, dada a observância dos direitos e garantias fundamentais.

Contudo, no respeitante à prisão cautelar administrativa, não se pode afirmar com certeza que todas são realizadas dentro dos estritos preceitos legais. A certeza é de que, em razão da liberdade que as autoridades policiais militares arroladas no artigo 11, incisos I, II, III, IV e V, possuem, não poucas vezes essas prisões têm sido efetuadas de modo excessivo desde a criação da PMAL. É relevante frisar que, até hoje, essas prisões não são privilégios da Polícia Militar de Alagoas. Ao contrário, existe em todas as instituições brasileiras militarizadas.

Com efeito, somente para lembrar o que foi dito antes, no Direito brasileiro, existe a prisão penal, prisão processual, prisão administrativa disciplinar e a prisão civil, significando dizer que é somente por meio delas que o status libertatis do indivíduo poderá ser afetado. E, se qualquer dessas prisões não estiver calcada na legalidade, inclusive a cautelar administrativa, caracterizado estará o abuso de autoridade, nos termos do artigo 4°, a, da Lei 4.898/65, pelo qual constitui abuso de autoridade ordenar ou executar medida privativa da liberdade individual, sem as formalidades legais ou com abuso de poder. Desse modo, a prisão ilegal, realizada pelo agente público, será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária (art. 5°, LXV, da CF). Da mesma forma, conceder-se-á habeas-corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder (art. 5°, LXVIII, da CF). Vê-se que o pedido de relaxamento da prisão e o habeas corpus, a depender do caso concreto, são medidas que se impõem. São dois institutos de grandeza constitucional idôneos a fazer cessar qualquer ilegalidade ou abuso na prisão do indivíduo.

Poder-se-ia, no caso da prisão cautelar administrativa, alegar que o abuso aí praticado seria crime militar em razão do que prevê o artigo 9°, II, do Código Penal Militar, porquanto estaria a autoridade policial militar infligindo sanção ilegal ou abusiva em face de subordinado seu, pois, policial militar, havendo subsunção entre a norma do artigo mencionado e a conduta praticada.

No entanto, analisando o Código Penal, entende-se não existir tipo que agasalhe a conduta em evidência. A que mais se aproxima é a figura delituosa do artigo 174 – Rigor Excessivo -, mas, ao que parece, esta não corresponde à conduta desejada porque o que se reclama para o preenchimento dos elementos constitutivos da infração penal em comento é a existência, antes de tudo, de uma prisão legalmente aplicada, excedendo-se a autoridade na sua execução.

Neste sentido, Lobão (1975), apud Assis (2010a, p. 357), divide o referido crime em duas modalidades:

Na primeira, o superior usa rigor não permitido nos regulamentos ao punir o subordinado. É o caso de recolhê-lo à prisão deixando-o sem alimento ou colocando-o em prisão infecta, para tornar o castigo mais severo. Na segunda, ao aplicar punição verbal ou por escrito, o superior usa palavras ofensivas ao subordinado, inclui-se a ofensa por meio de gestos.

Verifica-se que, para a consumação do delito acima, deve existir uma prisão legal efetivada pelo superior hierárquico. Todavia, sendo a prisão cautelar administrativa determinada ilegalmente não há se falar no crime do artigo 174, do Código Penal Militar. Vale dizer, essa prisão deve ser realizada com o fito de preservar a disciplina e o decoro da Corporação, quando houver cometimento de transgressão disciplinar de natureza grave que exija intervenção da autoridade policial presente, bem assim quando a liberdade do transgressor oferece perigo à sociedade. Sem tais pressupostos, ilegal será a prisão e, assim, restará descaracterizada o aludido crime do CPM.

Assim sendo, como no Código Penal Militar não existe previsão para a conduta do superior hierárquico que prende o subordinado ilegal ou abusivamente, resta enquadrá-lo no artigo 4°, a, da 4.898/65, posto que abuso de autoridade não se trata de um crime previsto no Código Penal Militar. Deste modo, o policial militar, ao impor medida privativa de liberdade individual abusiva ou ilegalmente contra o seu subordinado, mesmo existindo a norma do artigo 9°, II, do CPM, pratica abuso de autoridade, sendo a competência da Justiça Comum.

A respeito da matéria, a Súmula 172, do STJ, também não deixa margem para dúvidas, nos seguintes termos: "Compete à justiça comum processar e julgar militar por crime de abuso de autoridade, ainda que praticado em serviço."

Por fim, no julgamento do Habeas Corpus n° 92.912/RS, a Ministra Cármen Lúcia, Relatora, corroborou o entendimento já firmado pela Suprema Corte, consoante se observa no aresto abaixo:

HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. AÇÃO PENAL. TRANCAMENTO. ALEGAÇÃO DE DUPLICIDADE DE PROCESSOS SOBRE OS MESMOS FATOS. CRIMES DE NATUREZA COMUM E CASTRENSE. CUMPRIMENTO DE TRANSAÇÃO PENAL E EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE NA JUSTIÇA ESTADUAL. COISA JULGADA MATERIAL. PERSECUÇÃO PENAL NA JUSTIÇA MILITAR. PRINCÍPIO DO NE BIS IN IDEM: AUSÊNCIA DE PLAUSIBILIDADE JURÍDICA DOS FUNDAMENTOS APRESENTADOS. HABEAS CORPUS INDEFERIDO.1. Eventual reconhecimento da coisa julgada ou da extinção da punibilidade do crime de abuso de autoridade na Justiça comum não teria o condão de impedir o processamento do Paciente na Justiça Castrense pelos crimes de lesão corporal leve e violação de domicílio.2. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal firmou entendimento no sentido de que, por não estar inserido no Código Penal Militar, o crime de abuso de autoridade seria da competência da Justiça comum, e os crimes de lesão corporal e de violação de domicílio, por estarem estabelecidos nos arts. 209. e 226 do Código Penal Militar, seriam da competência da Justiça Castrense. Precedentes. 3. Ausência da plausibilidade jurídica dos fundamentos apresentados na inicial.4. Habeas corpus indeferido

(STF. HC 92.912/RS. Primeira Turma. Relatora: Ministra Cármen Lúcia. Data de Julgamento: 19.11.2007, Data de Publicação: DJE n°165. Divulgação: 18.12.2007. Publicação: 19-12-2007. DJ 19-12-2007, grifo nosso)

Nesses termos, a autoridade pública que não respeitar essa liberdade pública do indivíduo, mesmo que seja um policial militar em detrimento de outro, estará incurso nas sanções previstas no artigo 4°, a, da Lei de Abuso de Autoridade.

Logo, praticada a conduta da Lei 4.898/65, o seu autor ficará sujeito às sanções administrativa, civil e penal nela previstas, podendo, dentre outras penalidades, sofrer detenção e perda do cargo público.

3.9. A OBRIGATORIEDADE DE AUTUAÇÃO DO POLICIAL MILITAR ENCONTRADO EM SITUAÇÃO DE FLAGRANTE TRANSGRESSIONAL

Já faz quinze anos de vigência do RDPMAL e vinte e três anos da promulgação Constituição Federal e a Polícia Militar de Alagoas ainda não atendeu aos mandamentos constitucionais. A própria Carta Magna exige que ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal. Igualmente, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, determina que ninguém pode ser submetido a detenção ou encarceramento arbitrários e toda pessoa detida ou retida deve ser informada das razões da sua detenção e notificada, sem demora, da acusação ou acusações formuladas contra ela. Ou seja, as prisões efetuadas na PMAL, nos dias atuais, ferem o ordenamento jurídico na medida em que são operacionalizadas sem a observância dos mandamentos constitucionais e dos tratados assinados.

As mudanças não passaram de meros discursos na intenção de ajustar o regulamento à Constituição. E, como não poderia ser diferente praticamente continuam as mesmas condutas de antes, as mesmas prisões de outrora, até porque o texto do artigo 11, § 2°, do antigo RDPMAL (Decreto 4.598/81) continua o mesmo no artigo 12 do atual regulamento (Decreto n° 37.042/96). Houve, literalmente, a utilização de uma das figuras mais conhecidas do mundo da Informática, o conhecido "control C-control V". Ou seja, verdadeiramente, a Constituição, neste aspecto, ainda não adentrou nos quarteis. Infelizmente, ainda persiste essa chaga nos quadrantes da caserna, posto que exemplos não faltam. Basta apenas fazer uma visita às unidades da Corporação para se constatar que ainda perdura esse mal que precisa ser extirpado imediatamente do nosso convívio.

Acerca disso, são interessantíssimas as palavras de Rosa (2009, p. 130):

A possibilidade de a prisão administrativa ser decretada sem qualquer autorização judicial não significa que o militar tenha perdido o seu status de cidadão ou que os direitos e garantias fundamentais assegurados pela CF perderam a sua eficácia. O Estado apenas concedeu a possibilidade de cerceamento da liberdade por ato de autoridade diversa da autoridade judiciária nos casos expressamente previstos em lei como crime militar ou transgressão disciplinar militar.

É bem de ver que existem mecanismos no regulamento disciplinar que coíbem condutas que lesam gravemente a Instituição. É preciso dizer que não se está aqui pleiteando ou pregando a abolição da prisão cautelar administrativa, pois, nos vocábulos de Peniche(2008, p. 5) "a necessidade de reprimir a prática da indisciplina impõe à autoridade militar a adoção de medidas incisivas, em benefício da ordem disciplinar, que, por dever de ofício, tem que preservar."

Bem por isso assim averba Santana (2009, p. 6):

Sem dúvida, os atos de natureza disciplinar deveriam ser preservados até em respeito à vontade do constituinte pátrio, já que desconstituí-los sem base jurídica (praticados com excesso ou com abuso de poder) é torná-los sem razão e sem objetivo, coisa inaceitável em Direito, já que uma Constituição jamais traz em seu bojo princípios sem sentido [...]. (grifo do autor).

Trata-se essa prisão, efetivamente, de um instrumento necessário e valioso para a preservação da disciplina e do decoro da Corporação, mas somente quando a ocorrência exigir uma pronta intervenção. Sabe-se que em situações que não exija a prisão imediata, o policial militar, ao incorrer em qualquer das transgressões disciplinares previstas no RDPMAL sofrerá a reprimenda correspondente, devendo antes ser instaurado, por óbvio, o devido processo administrativo, observando-se o contraditório e a ampla defesa. Nesse caso, o instrumento deflagrador do aludido processo administrativo pode ser uma Parte, uma Comunicação, um Termo de Declarações – os expedientes mais utilizados na PMAL -, ou qualquer outro meio idôneo para a abertura do feito, a exemplo de uma requisição do órgão do Poder Judiciário, do Ministério Público, ou solicitação da OAB.

Entretanto, a prisão prevista no artigo 12 do nosso regulamento – e esta é medida excepcionalíssima – ocorre de modo diverso. É que, nessa hipótese, o policial militar pode ser preso ao talante da autoridade que presenciar ou tiver conhecimento do fato. Vale dizer, é essa autoridade que, imersa no seu juízo de valor, aferirá, ou não, acerca da conveniência e oportunidade da medida extrema. É preciso lembrar, conforme aduz LIMA (2007, p. 2), que "a prisão administrativa não deve ser um instrumento de coação, mas uma medida excepcional, devendo ser assegurado ao infrator todas as garantias processuais."

Com efeito, de outro modo não pode ser a interpretação dada ao comando expresso no artigo 12 do estatuto repressor castrense, ou seja, de que é lesivo à Constituição, uma vez que dispõe sobre um dos bens mais valiosos do homem, a liberdade e não prevê os direitos a que o preso goza. Logo, a sua exegese há de ser operada em conformidade com os valores constitucionalmente consagrados, cujo tema foi erigido à categoria de direito fundamental, pois, inviolável, indisponível, não podendo nem mesmo o suposto infrator dele dispor.

É interessante destacar que essa prisão prevista no artigo 12, do RDPMAL, não deve ser operada em decorrência de um processo administrativo disciplinar, sendo esta a regra. Ao contrário, cuida-se de medida coercitiva de exceção. Daí, a necessidade de maior ponderação ao se efetivar a medida extrema.

Entretanto, é efetivada sem haver a formalidade que a medida requer desde a criação da PMAL, pelo simples "achismo" da autoridade superior, o que não pode, sobretudo pelo fato de que existe violação do direito de um bem indisponível.

Vê-se que é de evidência solar que se trata de violência desarrazoada, desmedida, violadora dos preceitos constitucionais, o que, invariavelmente, traz revolta àqueles que, em alguns casos, mesmo em serviço, por um simples ato praticado e mais singelo que seja, são submetidos ao recolhimento, sem que na maioria das vezes se saiba acerca do verdadeiro fundamento da prisão.

A propósito, cabe uma indagação: quantas vezes, ao longo da existência da PMAL, o policial não foi recolhido à "masmorra" sem ao menos saber o motivo da medida? Isso sem falar que, em algumas situações, nem a família tomava ciência do seu recolhimento. Além do mais, essa prisão, na maioria das vezes, baseia-se, em tese, na verdade sabida, desprovida de qualquer prova consistente, mesmo testemunhal, lembrando que essa figura jurídica foi banida de uma vez por todas do ordenamento jurídico pátrio a partir de 05 de outubro de 1988. No entanto, ainda se observa, aqui e acolá, esses abusos. É que a autoridade se encontra numa situação extremamente confortável, eis que é ela mesma quem infere se cabe ou não a prisão naquele momento. Indiscutivelmente, trata-se de um poder discricionário, ficando ao seu alvedrio mensurar se a medida, no caso concreto, é oportuna e conveniente. E, sinceramente, como é que se determina a prisão de alguém somente por que "acha" e entende que tem esse "poder"?

Depreende-se, deste modo, que se trata de um poder imenso nas mãos do administrador, o que quer dizer que, a rigor, não está ele vinculado a praticamente nenhuma norma, apenas ao texto indeterminado, aberto do artigo 12 e ao seu juízo de valor em cada caso concreto. A prisão é efetuada como se fosse algo natural em nossas vidas, o que jamais poderia ocorrer, vez que, para se efetuar a prisão de um civil em flagrante delito, a formalidade é da essência do ato, sob pena de ser relaxada pela autoridade judiciária.

Sobre o assunto, esclarece bem Heuseler (2007, p. 29):

As autoridades administrativas militares, de um modo geral, ainda não recepcionaram e não aceitaram o fato de que vige no país um ‘novo’ ordenamento jurídico a que toda e qualquer espécie de atividade administrativa, até mesmo a militar, está sujeita.

Mas, o respeito à hierarquia e à disciplina não pressupõe o descumprimento dos direitos fundamentais assegurados ao cidadão, uma vez que a Constituição Federal em nenhum momento diferenciou, no tocante às garantias fundamentais disciplinadas no art. 5°, o cidadão militar do cidadão civil, uma vez que o miliciano antes de estar na caserna foi um dia civil, e após a sua aposentadoria voltará novamente a integrar os quadros da sociedade.

E é exatamente isso que a Constituição prega, ao dispor no inciso LXII, do artigo 5°, que a prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre serão comunicados imediatamente ao juiz competente e à família do preso ou à pessoa por ele indicada. No mesmo passo segue o inciso LXIV, pelo qual o preso tem direito à identificação dos responsáveis por sua prisão ou por seu interrogatório policial.

Ao se referir ao Pacto de São José da Costa Rica, afirma Rosa (op. cit., p. 131) que "em nenhum momento, a Convenção Americana de Direitos Humanos fez qualquer distinção entre o cidadão civil ou militar ou mesmo vedou a possibilidade de interposição de habeas corpus nas transgressões disciplinares militares."

Não diz outra coisa senão isso a CADH, no seu artigo 7, números 3 e 4. Ela não faz distinção alguma acerca do indivíduo preso, ao empregar as expressões indefinidas "alguém" e "toda pessoa", impondo que, independente de ser homem, mulher, branco, preto, cidadão, estrangeiro, civil ou militar, ninguém pode ser preso arbitrariamente, sendo direito de toda pessoa, ao ter a sua liberdade cerceada, a informação dos motivos e das acusações imputadas a ela. Eis o artigo:

ARTIGO 7

Direito à Liberdade Pessoal

[...]

3. Ninguém pode ser submetido a detenção ou encarceramento arbitrários.

4. Toda pessoa detida ou retida deve ser informada das razões da sua detenção e notificada, sem demora, da acusação ou acusações formuladas contra ela.

Infelizmente, não é isso que se vê nos quartéis da PMAL ao longo dos anos e, também, das outras vinte e seis Polícias Militares, bem como das Forças Armadas. Muito pelo contrário, essa modalidade de prisão ainda é praticada, sem o menor respeito aos princípios constitucionais da presunção de não-culpabilidade, da dignidade da pessoa humana, da legalidade, igualdade, da proporcionalidade, posto que são normas principiológicas de status constitucional, as quais não podem ser olvidadas, lesadas, sob pena de ferir o próprio sistema jurídico, precisamente a Constituição Federal, que emergiu de um contrato social, de um pacto político firmado entre o Povo Brasileiro e o Poder Constituinte, personalizado nos membros do Parlamento Nacional, a partir de 5 de outubro de 1988.

Nessa medida, em trecho digno de nota, ensina o professor Streck (op. cit., 2004, p. 244-245):

[...] violar a Constituição ou deixar de cumpri-la é descumprir essa constituição do contrato social. Isto porque a Constituição – em especial a que estabelece o Estado Democrático de Direito, oriundo de um processo constituinte originário, após a ruptura com o regime não-constitucional autoritário -, no contexto de que o contrato social é a metáfora na qual se fundou a racionalidade social e política da modernidade, vem a ser a explicitação desse pacto social. (grifo do autor).

Assim, para que sejam atendidas as normas previstas na Constituição Federal e a legislação infraconstitucional que lhe é consonante, cumprindo o contrato avençado, deve-se proceder ao auto de prisão em flagrante por ato infracional disciplinar, nas hipóteses que sejam verdadeiramente necessárias, pois se trata de uma prisão cautelar, mesmo que administrativa. Desta forma, deve estar provida das formalidades que lhe são devidas.

É importante notar que, em função da Súmula Vinculante n° 5 – "A falta de defesa técnica por advogado no processo administrativo disciplinar não ofende a Constituição" -, apenas na hipótese de o conduzido constituir o próprio causídico é que haveria a presença do advogado para dar-lhe assistência técnico-jurídica. Nos demais casos, ou melhor, quando o policial militar não tiver essa possibilidade, a Administração Pública Militar deverá indicar um Oficial, de preferência, com formação jurídica para acompanhá-lo, podendo este ser substituído a critério do policial militar em comento.

Nessa linha de raciocínio, precisa-se lembrar de que para haver a institucionalização e, por conseguinte, a operacionalização do referido auto de prisão em flagrante transgressional é necessário existir mudança legislativa. Ou seja, o artigo 12, do RDPMAL, deve ser alterado com o fito de atender a essas modificações. Em face disso, como proposta, foi elaborada uma minuta de decreto, acrescentando os artigos 12-A, 12-B e 12-C ao Regulamento Disciplinar, os quais tratam da matéria em referência, conforme se vê no Apêndice D.

Impende, ademais, consignar que nenhuma dessas medidas importa em ameaça à disciplina e à hierarquia. Pelo contrário, todos esses institutos podem e devem ser aplicados e conviver conjuntamente, de forma harmônica, com os dois princípios, o que diminui o risco de uma prisão ser eventualmente relaxada por vício de inconstitucionalidade em razão de ilegalidade. Trata-se, em última análise, de garantia constitucional, assim como é a autuação nos casos de prisão em flagrante delito.

Sobre o assunto, é importante destacar o escólio de Brasileiro de Lima (op. cit., p. 202):

Efetuada a prisão em flagrante delito do agente, é indispensável que se proceda a sua documentação, o que será feito por meio da lavratura do auto de prisão em flagrante delito (CPP, art. 304).

Cuida-se, o auto de prisão em flagrante delito, de instrumento em que estão documentados os fatos que revelam a legalidade e a regularidade da restrição excepcional do direito de liberdade, funcionando, ademais, como uma das modalidades de notitia criminis (de cognição coercitiva), e, portanto, como peça inicial do inquérito policial.

Todas as formalidades legais devem ser observadas quando de sua lavratura, seja no tocante à efetivação dos direitos constitucionais do preso em flagrante, seja em relação à documentação que deve ser feita, sob pena de a prisão ser considerada ilegal, do que deriva seu relaxamento.

Na mesma esteira, Rangel (2006, p. 586);

Entendemos que os depoimentos tanto do condutor como das testemunhas devam ser prestados na presença do preso a fim de que, conhecendo do teor dos depoimentos, possa se defender da suspeita que recai sobre ele. Claro, desde que a presença do detido não vá influir no ânimo da testemunha (art. 217. do CPP). Não se trata do exercício do contraditório, pois não há acusação, mas simplesmente do direito de resposta inerente a toda e qualquer pessoa humana (art. 5°, V, da CR). Até porque poderá permanecer em silêncio (art. 5°, LXIII, da CR) diante de tudo que for apontado contra ele.

De modo semelhante, Nucci (2006, p. 597) assegura:

Sendo a prisão em flagrante uma exceção à regra da necessidade da existência de ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária, é preciso respeitar, fielmente, os requisitos formais para a lavratura do auto, que está substituindo o mandado de prisão expedido pelo juiz.

Nesses termos, é exatamente por ser uma prisão cautelar que devem ser observados os direitos e as garantias fundamentais previstos na Constituição de 1988. É por esse motivo que não se deve descurar das formalidades necessárias, porquanto há, indubitavelmente, constrição da liberdade humana, devendo ser lavrado o indispensável auto de prisão em flagrante por ato transgressional, considerando que a sanção apontada trata-se de privação da liberdade, porquanto todo cuidado se revela pouco ao decidir por uma reprimenda dessa natureza.

Quando a Constituição Federal estabelece no artigo 5°, inciso LXI, "salvo nos casos de transgressões disciplinares", efetivamente não proibiu que se procedesse à autuação em flagrante transgressional ou que não houvesse a devida formalização. Autorizou, tão somente, que a autoridade administrativa disciplinar promovesse a prisão sem determinação judicial, o que é plenamente correto. O que se propugna aqui é que, na hipótese de cometimento de transgressão disciplinar grave e a situação exija o recolhimento, o policial militar seja tratado como deve, assegurando-lhe todos os direitos e garantias que o ato de prisão exige para todos os indivíduos, pois, o PM não pode ser tratado como uma figura vã.

É bem de lembrar que, a despeito de a Lei 6.161/00, no seu artigo 50, I, estabelecer que os atos administrativos devem ser motivados quando neguem, limitem ou afetem direitos ou interesses, igualmente, consoante prescrevem alguns regulamentos disciplinares, a exemplo do Código Disciplinar da PMCE, Código de Ética e Disciplina da PMPA, RDPMRO e RDPMSP, no caso de prisão cautelar, é de se entender que o instituto jurídico da motivação não seria aplicado nessa hipótese em razão de a ocorrência da privação de liberdade ser invariavelmente anterior à fundamentação do ato administrativo cerceador. É que a motivação deve ser prévia ou contemporânea à prática do ato. Apenas em situações excepcionais é que se admite que seja posteriormente ao ato. A sua principal e essencial característica é o momento em que é ofertada em relação ao ato administrativo. E este momento, no caso da prisão cautelar, é sempre a posteriori, e não antes. Tal exigência ocorre em virtude de que motivações posteriores possam ser produzidas para eventualmente dar legitimidade a atos ilegais, mascarando a realidade, o que não é difícil de ocorrer principalmente quando se refere a fatos ocorridos no Brasil.

Neste sentido, são esclarecedoras as palavras de Mello (2009b, p. 396)

Parece-nos que a exigência de motivação dos atos administrativos, contemporânea à prática do ato, ou pelo menos anterior a ela, há de ser tida como uma regra geral, pois os agentes administrativos não são ‘donos’ da coisa pública, mas simples gestores de interesses de toda a coletividade, esta, sim, senhora de tais interesses, visto que, nos termos da Constituição, ‘todo o poder emana do povo (...)’ (art. 1°, parágrafo único). (grifo do autor).

Nesse diapasão, por ser medida extrema, prisão em flagrante, prisão administrativa, sem intervenção da autoridade judiciária, não supre uma simples motivação. Deve a prisão ser formalizada por um instrumento que dê condições ao conduzido de se pronunciar acerca da ocorrência que, em tese, ele praticou; que sejam ouvidas testemunhas, além de outras medidas. Essa formalidade deve se assemelhar ao que sucede no auto de prisão em flagrante delito, na forma dos artigos 304 e seguintes, do Código de Processo Penal, e nos termos dos artigos 245 e subsequentes, pois, como visto anteriormente, as duas prisões visam ao mesmo bem jurídico – liberdade de locomoção -, têm a mesma natureza jurídica – trata-se de um ato administrativo – e devem obediência aos princípios constitucionais da não culpabilidade, da dignidade da pessoa humana, da legalidade, da igualdade e da proporcionalidade. No que se refere ao princípio da igualdade, como já averbado, revela-se este aplicável à prisão em flagrante transgressional, posto que, se na prisão em flagrante delito é da sua essência a autuação, o que lhe atribui validade e eficácia, da mesma forma deve ocorrer com a outra prisão pelo fato de tratarem do mesmo bem jurídico tutelado e possuírem a mesma natureza jurídica. E, sendo assim, não há motivos razoáveis para dar tratamento diverso a situações idênticas, porque, se do contrário for, restará ferido o postulado da isonomia. Logo, esses princípios devem ser respeitados porquanto, sendo inobservados, lesada estará a Constituição Federal, devendo o ato de prisão ser fulminado pela própria Administração ou pelo Poder Judiciário por meio de invalidação.

Em verdade, a prisão para a garantia da disciplina, conforme determina o artigo 12, desvela-se indiscutível na medida em que muitos policiais militares transgridem os dispositivos do RDPMAL, tornando-se imprescindíveis medidas enérgicas e imediatas, sob pena de tal conduta se espraiar por toda a instituição, o que seria o caos. No entanto, deve guardar obediência aos princípios e regras constitucionais, aos comandos da Lei Maior, pois, do contrário, a prisão será nula, inclusive podendo a autoridade policial militar responder pelos abusos cometidos.

No que diz respeito ao projeto do Código de Ética da PMAL, não está prevista a figura da motivação para o ato de recolhimento cautelar. Mas, apesar dos avanços que se pode notar no seu artigo 29, como observado, ainda assim carece de alguns ajustes para ser reconhecidamente um estatuto repressor que corresponda à realidade constitucional quando se trata de direito de liberdade de ir e vir.

Com efeito, a sugerida autuação se reputa importante na medida em que o policial militar tomará ciência do motivo de estar sendo submetido à medida extrema, ou seja, qualificado e interrogado, com o direito de externar a sua versão; oitiva dos seus condutores; oitiva das testemunhas; declaração do dispositivo legal em que incorreu; comunicação do fato à pessoa da família a que indicar; direito à presença de um defensor, se julgar necessário, caso contrário será indicado um Oficial, se possível com para funcionar no feito e futuro processo administrativo a ser instaurado; nota de culpa; cópia dos autos à autoridade militar competente, a qual determinou a prisão, e ao Juiz-auditor, dentre outras medidas, consoante se observa no Apêndice E, à semelhança do auto de prisão em flagrante delito. Tudo isso em homenagem ao que prescreve o Texto Maior e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, devendo estar em consonância com o Código de Processo Penal, no que couber.

O recolhimento do suposto infrator às dependências do quartel, portanto, continua ocorrendo, na prática, sem a mínima formalidade para a medida, exigindo-se, a depender da situação, apenas a feitura de uma Parte Disciplinar ou de uma Comunicação Disciplinar, documentos simples, que não supre as medidas necessárias para manter o policial militar preso. Assim sendo, a prisão cautelar administrativa do policial militar, consoante a regra concebida e estabelecida pelo legislador infralegal, nos moldes em que se encontra no RDPMAL, não se harmoniza com a nova ordem constitucional, porque ainda continua com o mesmo texto do antigo regulamento disciplinar, Decreto n° 4.598/81, que vigia sob a égide do anterior regime constitucional. E, sendo ilegal ou abusiva a medida encarceradora, também inconstitucional o será. Portanto, caberá a impetração do remédio heróico, habeas corpus, e, em sentido contrário, incidirá a Lei 4.898/65, na forma do artigo 4°, alínea a, em desfavor da autoridade policial militar que praticou a conduta lesiva.

Sobre o autor
Moab Valfrido da Silva

Major do Quadro de Oficiais Combatentes da Polícia Militar do Estado de Alagoas. Graduado em Segurança Pública pela Academia de Polícia Militar Senador Arnon de Mello - CFO (APMSAM - 1991 a 1993). Curso de Aperfeiçoamento de Oficiais - CAO (APMSAM - 2003). Curso Superior de Polícia - CSP (APMSAM - 2011). Graduado em Direito pela Universidade Federal de Alagoas (2001 a 2005). Pertencente à Corregedoria Geral da PMAL.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Moab Valfrido. A imprescindibilidade da autuação em flagrante nas situações de prisão cautelar administrativa, na Polícia Militar de Alagoas, em observância à ordem constitucional vigente. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3024, 12 out. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20211. Acesso em: 19 dez. 2024.

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