A História tem nos mostrado, invariavelmente, que um Estado democrático de direito sustenta-se em alguns princípios fundamentais, geralmente presentes nas Cartas Constitucionais dos países modernos. Entre eles, podemos destacar os da dignidade da pessoa humana, o da participação popular nas decisões políticas através do sistema representativo e, sobretudo, o princípio da isonomia.
No Brasil, com o advento da Constituição Federal de 05.10.1988, não se inaugurou apenas uma nova etapa na evolução política do país, mas sim se firmou um marco entre o que nos era imposto pelo sistema ditatorial e o que foi amplamente discutido e aprovado em Assembléia Nacional Constituinte pelos representantes do povo brasileiro. Assim, como fruto dessa verdadeira revolução política, social e jurídica da ordem então vigente, como não poderia deixar de ocorrer, incorpora-se no ordenamento jurídico pátrio idéias e princípios universais que caracterizam um Estado Democrático de Direito. É assim que, no preâmbulo da Carta maior, com verdadeira inspiração poética, os constituintes dispuseram: "Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos...".(grifo nosso)
Desde a sua promulgação, é verdade que a Constituição foi alterada várias vezes, para sermos precisos, trinta e sete (seis emendas constitucionais de revisão e trinta e uma emendas constitucionais). Essas modificações foram necessárias para adaptar o texto constitucional à atual conjuntura social do país e, segundo alguns, garantir aos governantes "condições de governabilidade". É verdade também, que quando dessas emendas, procurou-se respeitar implacavelmente os princípios e disposições fundamentais presentes na própria Carta no Título IV, Capítulo I, Seção VII, Subseção II, que disciplinam o procedimento de alteração das normas constitucionais. Dessa forma, respeitou-se a imposição do §2º do art. 60 que prevê a necessidade de três quintos dos votos dos respectivos membros do Senado Federal e da Câmara dos Deputados, bem com a limitação material presente nas chamadas "cláusulas pétreas", as quais vedam a deliberação de proposta de emenda tendente a abolir, ente outros, os direitos e garantias individuais. (art. 60, §4º, IV da CF/88).
Vamos aos fatos. O Brasil está vivenciando, certamente, a maior e mais grave crise no setor energético desde sua descoberta em 1500. Os reservatórios das hidroelétricas estão perto da capacidade mínima, houve um decréscimo substancial na quantidade de chuva normalmente esperada para o primeiro quadrimestre deste ano e, o que em outras épocas seria motivo de orgulho e uma demonstração de acerto nos rumos políticos e econômicos do país, o sensível aumento do consumo são, em parte, alguns dos motivos fáticos responsáveis pela tal crise. Mas é preciso enumerar os verdadeiros motivos, aqueles que realmente importam para a verificação do porquê dessa situação.
Após seis anos de governo, uma reeleição, uma série de metas de crescimento, empréstimos contraídos, inúmeras privatizações de setores estratégicos, tais como o da telefonia fixa e móvel e o do setor energético, seria de se esperar que os governantes e seus auxiliares tivessem conhecimento da maioria dos problemas sociais e, sobretudo, infra-estruturais que o país possui. É indesculpável no estágio do atual mandato, a clara falha de previsão e de pronta mobilização em relação à provável escassez de energia elétrica que aflige nosso país. Não se trata, ainda, de questionamentos ao melindroso plano de racionamento de energia, engendrado pela Câmara de Gestão da Crise de Energia elétrica, a GCE. O que está em pauta é a responsabilidade do governo Fernando Henrique Cardoso diante da completa estagnação de investimentos, não apenas no setor de geração e distribuição de energia elétrica, mas em outros, como por exemplo de saneamento básico. Como foi possível implementar um plano de crescimento e expansão econômica intitulado "Avança Brasil", sem uma efetiva preocupação com este setor, não se restringindo a apenas criar uma agência regulamentadora e transferir para a iniciativa privada o ônus de investir em sua ampliação? É fato notório que o empresário, diferentemente do administrador público, antes de tudo, organiza a exploração de sua atividade econômica com o fim exclusivo de auferir lucro. Como esperar, portanto, que tais indivíduos deixem de lado estes objetivos para se dedicarem, de forma imediata e comprometida, à ampliação do parque gerador existente, suprindo a crescente e previsível demanda do setor?
Infelizmente, somos forçados a levantar três hipóteses para o fracasso atual: ou o governo FHC é ingênuo o suficiente para acreditar que compromissos registrados em contratos de cessão de serviços públicos essenciais serão cumpridos por seus signatários (fato, aliás, que em nenhum lugar do mundo realmente acontece); ou agiu conscientemente, mas em erro evidente, preferindo dedicar-se ao saneamento do mercado de investimentos e suporte a instituições financeiras sob intervenção, relegando a último plano as questões infraestruturais; ou, por fim, deixou-se influenciar por interesses financeiros escusos e não relevantes, pelo contrário, prejudiciais ao país. De qualquer forma, não há dúvidas de que o caos energético e a ameaça do "apagão", sem prejuízo da ineficiência das anteriores administrações, são o reflexo indiscutível da irresponsabilidade administrativa que perdura no atual governo.
Não bastasse a, já irremediável, crise interna instalada especificamente no setor energético, a comunidade jurídica assiste estupefata as recentes medidas e decisões da Câmara de Gestão da Crise de Energia Elétrica, transformadas posteriormente pelo Presidente da República em Medida Provisória. A criação das quotas de consumo e da "sobretaxa" (que não passa de uma pena pecuniária), por si só, já são objeto de questionável legalidade, quiçá constitucionalidade. A "gota d’água", por assim dizer, veio com a reedição da MP nº 2148 (agora 2148-1), que prevê, clara e expressamente no seu art. 25, a revogação temporária dos artigos 12, 14, 22 e 42 do Código de Defesa do Consumidor. Diz a MP: "art. 25. Não se aplica a Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990, em especial os seus arts. 12, 14, 22 e 42, às situações decorrentes ou à execução do disposto nesta Medida Provisória e das normas e decisões da GCE".
O Código de Defesa do Consumidor, certamente, está entre os diplomas legais mais modernos do mundo em matéria de respeito aos direitos individuais e coletivos. É fruto não só de profundas discussões e estudos de conceituados e renomados juristas, mas também de décadas de batalhas jurídicas voltadas para a fixação dos direitos de consumidores, bem como dos deveres de fornecedores. Além disso, é a concretização da previsão constitucional do art. 5º, inciso XXXII: "O Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor". Portanto, percebe-se que o legislador constituinte, com o respaldo do poder constituinte originário, elevou a defesa dos direitos do consumidor ao status de direito fundamental protegido pela Constituição, sendo dever do Estado a sua promoção e não a sua dilaceração como propõe a MP. Por estar presente entre os direitos e garantias individuais, não se permite nem ao menos discutir a possibilidade de se modificar este comando constitucional, nem por Emenda Constitucional, haja vista o §4º do art. 60 da CF/88, que o prevê entre as cláusulas pétreas já citadas, quiçá indiretamente como está se procedendo via Medida Provisória.
Os arts. 12, 14, 22 e 42 do Código de Defesa do Consumidor que foram suspensos pela Medida Provisória, quando a matéria tratar de assuntos relativos às relações jurídicas originárias entre o consumidor e o fornecedor de serviços de energia elétrica, tratam respectivamente: a) do dever de indenizar o dano causado por acidentes de consumo; b) da responsabilidade objetiva do fornecedor de serviços que causem dano aos consumidores por defeitos relativos à prestação, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fuição; c) da obrigação de serviços públicos adequados, eficientes, seguros e , quanto aos essenciais, contínuos; e, por fim, d) da não exposição do consumidor ao ridículo pela cobrança de débitos, e a sua não submissão a qualquer tipo de constrangimento ou ameaça.
Enfim, diante de tantos atos impensados e medidas descabidas, conclui-se que, ou o governo federal está pessimamente assessorado, jurídica e administrativamente, ou não tem noção nenhuma dos reflexos que tais atos produzirão na questão da própria segurança do ordenamento jurídico existente.