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Ensaio acerca do conceito ético-político incompleto de justiça na constelação pós-metafísica para uma racionalidade principiológica realizável

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Agenda 02/11/2011 às 11:28

Discute-se a especialidade do conceito ético-político incompleto de justiça a partir da sua fundamentação pós-metafísica para que haja possibilidade real e efetivamente justa de se obter resultados favoráveis a partir da aplicação de uma racionalidade principiológica no discurso jurídico.

Resumo: Emerge na contemporaneidade a necessidade do Direito, pela sua atuação, encarar os desafios propostos pela multiplicidade, o que, outrossim, traz o problema da justiça, e seu conceito, no bojo da reflexão. O presente artigo objetiva discutir a especialidade do conceito ético-político incompleto de justiça a partir da sua fundamentação pós-metafísica para que haja possibilidade real e efetivamente justa de se obter resultados favoráveis a partir da aplicação de uma racionalidade principiológica no discurso jurídico.

Palavras-chave: Justiça – Incompletude – Pós-metafísica – Racionalidade principiológica.


1. Alguns breves comentários para início de discussão

A ideia de que estamos inseridos em contextos plurais, característicos dos modos diferenciados de pensamento e vida, não significa dizer que estamos ligados por vínculos político-culturais absolutamente herméticos. Ao contrário, surge dentro dos mais variados grupos sociais, possibilidades novas de autodeterminação dos sujeitos, portanto, em suas subjetividades. Esse dado não nos informa que os grupos sociais possam estar sendo desfeitos, no entanto, se houve até hoje um discurso dominante acerca da formação de comunitarismos fortes em contrapartida à opção da pessoa em livremente dotar sua vida, trata-se somenos de relato histórico.

Com efeito, o individualismo não deve ser confundido com esta mesma capacidade de autodeterminação, pois que o individualismo designa imediatamente um arquétipo marcado pelo egocentrismo, enquanto que a autodeterminação é propriedade real de toda pessoa, justamente por assim ser. Logo, reputa-se um certo preconceito àquele em contrapartida a este.

O problema fundamental é identificar que na organização dos grupos sociais, cada vez mais tem surgido o ímpeto de rompimento com o discurso dominante do comunitarismo forçado, que se impõe, seja de um modo direto ou atravessado, isto é, transfigurado em falsos motivos. Por conseguinte, a pessoa sente a vontade natural de avançar nos horizontes próprios do esclarecimento e, caso haja equivalência ou oportunidade, a comunidade em torno de algum pensamento, comportamento ou cultura, é apenas o resultado inevitável do contato entre duas esferas, a priori, distintas, mas que, para certas questões, frutificou a elevação primeira de um status subjetivo à uma formação lógica de comunidade, aspectos que denotam um processo discursivo e interpretativo dialético quanto às vontades e expressões acerca da vida dos então constituintes comunitários.

Disso, a contemporaneidade está diante de uma nova emergência do sujeito que, em sua subjetividade, busca realizar-se concretamente na vida, além das influências notadamente culturais que permearam sua formação biopsicossocial enquanto historicidade. O fundamento de dominação comunitária pela cultura, política e até pela religião cede espaço à capacidade de autodeterminação, enfrentando, a pessoa, inclusive, ou ao menos estando disposta a enfrentar, os óbices impeditivos dessa conquista pessoal, as vezes no interior do próprio direito, quando eivado, prima facie, de preconceitos hermenêuticos ou de deficiências instrumentais quanto à efetividade substancial dos princípios. Alain Touraine acrescenta que "o sujeito torna-se busca de si através da construção do Estado e da sociedade sem os quais a historicidade, a capacidade de construção e de transformação das condições de vida seriam impossíveis, mas que opõem constantemente obstáculos à relação imediata do sujeito consigo mesmo". 1

Implica um confronto inevitável de forças a nível político-ideológico, especialmente se pensarmos na ingerência de tais assuntos na nossa vida. O sujeito, deslocando-se do eixo ideológico obrigacional, meramente opta por aceitar, mediante suas possibilidades existenciais, o caminho cultural, denotando responsabilidade. A aceitação, por conseguinte, torna-se corolário indispensável para a referida ascensão do sujeito, porque induz o processamento dialético na junção e disjunção dos argumentos colocados a sua apreciação racional. A síntese então originada constitui o reflexo mediato do seu querer e, sobremaneira, o resultado próprio do seu modo de encarar o mundo da vida. O sujeito, abrindo seu ser à realização existente de suas possibilidades ônticas (de facticidade) cria, logo em seguida, diversas outras alternativas, as quais, no decorrer da vida, conglobar-se-ão no propósito direto de assumir seu papel e por ele firmar-se como responsável e consciente no palco das pluralidades.

Tão-logo, a comunidade é formada na intersubjetividade e, sendo desta maneira, uma comunidade nunca é verdadeiramente perfeita ou equilibrada ideologicamente, política e culturalmente, porque no seu bojo residem pessoas dotadas da potência de autodeterminação, algo que sempre é renovado e desenvolvido, de acordo com os sucessivos avanços ou retrocessos da concepção de mundo da vida e de relações sociais sustentadas. Se for para existir alguma correspondência hermenêutica acerca do mundo da vida, ou seja, se mais de uma subjetividade comungue em certo tipo ou conceito é em função do encontro ôntico-ontológico respectivamente nas esferas de liberdade, portanto, no contexto da mundanidade. Essa mundanidade cria expectativas sérias em padrões pré-estabelecidos, por sua vez subjacentes a períodos históricos e espácio-temporais determinados ou minimamente fixados a ponto de serem formalmente aceitos.

O que devemos ter em mente é que a dimensão ontológica da liberdade é onde se determinam, afirmam, ratificam, as propriedades quiditativas do ser do ente privilegiado enquanto postulados de declaração subjetiva, ôntica, performática. O que está imediatamente atrás,ou no núcleo quiditativo mesmo, próprio a todo ente é o que, a priori, não se modifica, pois que é justamente o que permite que seja algo e porque certifica suas essencialidades, mormente, a vida e a dignidade. Não quer dizer, inobstante, que a subjetividade, ou impropriamente a essência do ente, seja anterior e pré-determinada ao fato da sua existência. Concordamos com o paradigma existencialista do existir precedente ao ser (essência ou subjetividade), mas, de forma alguma, isso implica em dizer que não existem propriedades umbilicais no ente, independente do que venha a ser, de tal sorte que essas mesmas são as que o estabilizam ontologicamente e, no campo do direito, são as que permitem um discurso principiológico perseverante na normatividade. A base, plasmada na quididade do ser do ente – aí sim – vai admitir que, na liberdade, no estar-aí-no-mundo-da-vida, o ente seja determinado onticamente quanto ao seu modo, nunca para a sua forma, devido à irrenunciabilidade daquela. 2


2. Notas vestibulares ao conceito ético-político incompleto de justiça

Positivamente, o art. 3º, inc. IV, da CRFB/88 proclama como objetivo fundamental da República: "promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação". Neste dispositivo, de dimensão constitucional e densidade principiológica fundamental, encontra-se o lógico e imediato lastro para um conceito ético-político incompleto de justiça, cuja adequação, por sua vez, é realizada a partir da existência das diversidades éticas, culturais e políticas dentro do Estado, previstas na própria estrutura genética da norma.

Indica-nos que, a norma constitucional responsável pelo estabelecimento dos objetivos fundamentais da República, no artigo 3º, a despeito das justificativas principiológicas do artigo 1º, torna evidente suas possibilidades intrínsecas, pois condizentes ao núcleo ontológico essencial, ou quiditativo, presentes na totalidade estrutural da norma em si.

Quer dizer que não subsiste apenas uma análise prima facie do dispositivo, o qual na verdade revela-se enquanto corolário pertencente à substancialidade da vida intersubjetiva jurisdicionada. Daí, não representar mera diretriz da Carta Política, porém o meio pelo qual, racionalmente, se extraem as teses plurais de uma sociedade marcada pelas diferenças e por múltiplos meios de autodeterminação subjetiva, coletiva e comunitária.

Além disto, adverte, nesse aspecto, a pós-positividade da norma constitucional, e deveras das normas constitucionais presentes no Título IDos Princípios Fundamentais da CRRB/88, por revelar suas alternativas hermenêuticas transcendentais, as quais demandam, para o intérprete legiferante, judicial e para o operador, a busca da legitimidade de tudo aquilo que esteja em conformidade com a dignidade, a vida e a liberdade – princípios estes que, antes de estarem a nível positivo, habitam a esfera ôntico-ontológica da pessoa, como ente privilegiado, portanto, que os atribui status valorativo substancial para motivarem minimamente a vida compartilhada e, assim, a existência mínima.

Os princípios devem obrigatoriamente presumir a melhor hermenêutica possível. Significa que devem elaborar o melhor mundo sociopolítico mediante um processo de formação ideológica sem se preocupar, pois, com pequenas variações incidentes. A base normativa dos princípios deve querer dizer o que é melhor a partir de qualquer circunstância para o ente em seu ser. E o melhor é sempre o que o beneficia, sempre garante sua vida e sua dignidade, pois indica o mínimo de proteção, o mínimo necessário, o que há de mais básico, fundamental, porquanto prejudicial. Sem isso, o ente não é, à medida que, faltando-lhe elementos que os disponibilizam para algo ser¸ nada, de resto, sobrará de si mesmo, inteiramente. Sendo o ente criado a partir de algo, isto é, não provém do nada absoluto, ex nihilo, também ocorre com o Direito que, não sendo gerado simploriamente pela dotação valorativa da propriedade privada e sua imposição pela força, surge ex principium, ou seja, do princípio. Primeiro há, nos princípios, uma hermenêutica que lhes fixe os horizontes de expectativa, por outro lado, existe o efetivo campo de experiência, momento no qual a abstrata expectativa de outrora converte-se em experiência realizada. Mais a frente tentaremos aprofundar tais perspectivas.

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3. O conceito ético-político incompleto de justiça e o emprego in utilibus ad principium et esse percipi a partir de uma fundamentação pós-metafísica

Disso decorre o emergir de uma nova postura conceitual acerca da justiça, algo que, mesmo movendo-se substancialmente na aceitação de discursos inéditos relativos aos direitos e garantias fundamentais, preserva-se rígida quanto à qualidade ética e, sobretudo, quanto à principiologia subjacente a sua perfeição. Esse tal conceito, deslocado materialmente do conceito de justiça formal, que, neste caso, institui mesmas normas e regras as quais permitem o acesso e à incidência sistemática do ordenamento jurídico, contempla possibilidades discursivas correspondentes aos vários mundos sócio-políticos. Plástico será seu fundamento lógico, de tal sorte a realizar o concurso dialético entre o melhor mundo sócio-político possível, cujos alicerces encontram-se plasmados nos direitos humanos irredutíveis, e o mundo sócio-político apresentado enquanto circunstância necessária e circundante do discurso sobre determinada tese, a partir de variantes hermenêuticas elaboradas à nível do uso racional da liberdade equivalente.

Há, pois, uma co-habitação conceitual entre a justiça formal, de modo a estruturar sistematicamente o debate em mesmas normas e regras numa situação a priori estática, concedendo equanimidade de poderes, designando, por conseguinte, a parte somenos formalística, importante e garantidora de segurança; e, por outro lado, um conceito sobre cuja estatura se verifica a abertura hermenêutica do Direito, em atendimento à condição da pessoa e, correlatamente, do mundo sócio-político dominante na sua esfera de liberdade, e, sobremaneira, a chance de firmar o debate principiológico de facticidade (porquanto se trate de condição da pessoa, isto é, particularidade de existência e uso de liberdade) com aptidão à normatividade jurídica e, assim sendo, com aptidão para não apenas produzir efeitos que outrora se pretendia, mas para produzir satisfatoriamente resultados interpretativos indexados no emprego in utilibus ad principium et esse percipi (na utilidade do princípio do ser percebido). Somente neste conceito é realizável a percepção do ente em seu ser.

Decorre, outrossim, que o referido conceito incompleto de justiça, a despeito do aduzido, é metafísico na medida em que permite a transcendência da potência de normatividade obtida no discurso racional empenhado pelas partes num processo judicial. Ser, pois, metafísico, em nada significa dizer sua não-experiência, o que, com efeito, diz-nos, ao contrário, um sentido de total experimentação jurídica e principiológica, a partir de enfoques ôntico-ontológicos distribuídos na argumentação e posterior correção interpretativa dos mesmos, pelo juiz ou pelo tribunal. A transcendência, por assim dizer, atinge os efeitos postulatórios profundos da argumentação, momento em que a utilização do conceito alhures dar-se-á na modalidade de técnica de julgamento, quiçá, método de julgamento conduzido pelo órgão judicante. O juiz ou tribunal, garantindo o assessoramento produtivo da justiça em sua incompletude ética fundamental, tenciona a jurisdição em seu poder de satisfação e, ainda, obtém a correção razoável do processo e do Direito pela co-participação dialógica das partes.

Teorias de justiça que utilizam como premissa a dicotomia igualdade-desigualdade, partem do pressuposto aristotélico de que ser justo implica em tratar os iguais igualmente e os desiguais desigualmente. Com efeito, o mesmo não pode ser interpretado equivocadamente, deslocado de seu sentido original, o qual faz sentido. 3 "Aristóteles jamais acreditou que duas pessoas pudessem ser exatamente iguais". 4

Na realidade, a consideração dicotômica igualdade-desigualdade se insere no tratamento equânime que é conferido a uma ou outra pessoa. O tratamento para os iguais deve ser equânime, já para os desiguais, segundo essa perspectiva, não equânime. Nisto há uma diferença fundamental, à medida que o conceito não alude a alguma diferença ontológica entre as pessoas, todavia, afirma que, dada uma situação, aquela pessoa pode se inserir numa necessidade ou aspecto diferente da de outra. Simplesmente verifica-se um contexto de pessoas em aspectos não semelhantes. Ora, toda pessoa é única, logo, não há razão para tratá-las igualmente – leia-se, equaninemente ou não-equanimemente em relação a um dado aspecto particular.

Logo, surge o conceito ético-político incompleto de justiça como principal referencial teórico apto a ser perfeito como substância e práxis de justiça. O corolário deste conceito é justamente a multiplicidade. Multiplicidade aqui aposta ao processo judicante, lato sensu, formado por pessoas diferentes (enquanto aspectos), de acordo com um corpo estruturado de normas e regras procedimentais basilares iguais a priori (esse é o ponto teórico preservado do conceito formal de justiça). Porém, que "não pretende moldar modos de vida em um único padrão ‘ideal’. Nem recomenda uma única ética intrínseca para tal padrão ideal. Ele posiciona a existência simultânea de modos de vida [diferentes] ligando uns aos outros por laços de reciprocidade simétrica." 5 O conceito ético-político incompleto de justiça apenas estabelece uma base normativa para cuidar da multiplicidade; e essa base normativa é a própria pluralidade de modos de vida ou multiplicidade ética 6 – daí ser incompleto, modulável e complexo.

Existência simultânea de modos de vida ligados por laços de reciprocidade simétrica pode ser de duas formas, como nos indica Agnes Heller: "a) se eles têm certas normas em comum, e b) se são ‘igualados’ por normas comuns". 7 Ele "não é capaz de delinear o melhor modo de vida possível", 8 ele, simplesmente aceita as possibilidades. No entanto, reside nele outra importantíssima base normativa que é a circunstância sociopolítica. 9 Essa circunstância formula premissas axiológicas a partir de normas já selecionadas e interpretadas na visão de um "modelo ideal alegadamente conjeturado". 10

Quer dizer, um consenso pode ser gerado em relação a alguma teoria que contemple o melhor modo de vida possível, servindo como baliza, como dado de razoabilidade, mas não algo que precisa ser operado por todos – basta que uma pessoa possua essa capacidade reflexiva. A estrutura de um modelo sociopolítico tem somente uma "base empírica", 11 ou seja, não devendo ser provado e refletido por todos, já que pelo menos uma delas estará comprometida com os verdadeiros valores do "melhor mundo sociopolítico possível". 12

A abertura da justiça corresponde à tarefa inata do direito na perspectiva principiológica. No que tange à hermenêutica, por exemplo, os princípios encontram-se, a priori, completamente abstratos e isso, também a priori, permite que se façam interpretações irracionais acerca dos mesmos. O limite objetivo é aquele melhor mundo sociopolítico possível, algo que deve ser empreendido como mínimo garantidor de segurança à própria hermenêutica e à própria justiça. Logo, o alcance dos princípios é medido pelo que é razoável e, razoável, para todos os efeitos é apenas o que pode fazer bem à pessoa. Já são cediças as teorias de ponderação de princípios, como as de Dworkin e Alexy, inobstante, o denominador comum, mesmo numa casuística em que seja necessária a sobredita ponderação, é o que vai querer preservar a vida, a dignidade e a liberdade. É interessante que a vida seja predicada, adjetivada pela dignidade, porque essa representa a qualidade representativa da vida boa, enquanto que a liberdade, isto é, onde se goza a vida boa, não deve ser cerceada por acaso, porquanto constitua o lugar comum de satisfação dos princípios da vida e da dignidade. Assim, quando se diz fazer bem ou vida boa surge a questão de que tais expressões tratam-se, sobretudo, de conceitos verdadeiramente indeterminados e, sinceramente, o são. Por outro lado, todo conceito indeterminado apenas o é em relação à alguma coisa e, neste caso, alguma coisa deve, peremptoriamente, ser determinada.

O que, então, devemos determinar para que seja a base lógica de um conceito a posteriori indeterminado? Aqui há a indeterminação a posteriori e, isso quer dizer que tudo aquilo que irá vir a completar o bojo do conceito que já preserva em si uma parte determinada, precisa, prejudicialmente ao perfeito encaixe, ser compatível. Portanto, surge a possibilidade de vislumbrar alternativas, inobstante não meras tentativas, mas tentativas/alternativas qualificadas por uma certa identidade. A identidade da indeterminação é sua base mesma. Isto é, a indeterminação simplesmente está fora do conceito. Estando fora, porém tem identidade com o conceito. Simplesmente por estar fora, por isso é indeterminação. A indeterminação liga-se à determinação, a qual é a base do conceito. Quando isso ocorre, perde-se o in ou o prefixo indicativo de exclusão, ou melhor, o índex que nos informava que estava fora – significava apenas que estava fora. Colar a indeterminação na determinação demanda conhecer a identidade da indeterminação com a determinação, para que, juntas, formem uma só coisa. E, logo, conhecendo a base da indeterminação, que é a determinação, conhecemos o que, dentre todas as possibilidades hermenêuticas se coloca enquanto um dado indeterminado apto à juntar-se com o conceito determinado que irá ser aplicado numa determinada situação. Logo, apenas os dados indeterminados que tiverem identidade com a determinação hermenêutica inicial do conceito a ser aplicado podem estar aptos a determinarem-se, aperfeiçoarem-se. Os demais, são meros conceitos abertos que nada preservam de idêntico ao conceito original determinado. Para saber se algo é indeterminado ou aberto, basta visualizar a sua base quanto ao conceito chave ou conceito determinado.

Somente o que pode colar devidamente num conceito determinado é que detém legitimidade. Daí que a determinação do conceito é o estabelecimento do que lho diz respeito e, no caso dos princípios em correlação com o conceito ético-político, diz respeito a atenção aos diferentes modos de vida possíveis na sociedade em conformidade com os postulados essenciais, universais – vida, dignidade e liberdade. O alcance verdadeiramente legítimo destes princípios é medido na razoabilidade com que são suscitados em sede da liberdade discursiva permitida por um conceito ético-político incompleto de justiça, hipótese na qual o emprego in utilibus ad principium et esse percipi se dá dialogicamente, pela pluralidade de agentes presentes no discurso que, co-protagonizando a correção empírica da justiça, corroboram para que, nesse itinerário, as necessidades reais sejam atendidas, proporcionalmente quanto à distribuição do devido, racionalmente quanto ao atendimento da carência a partir de sua fundamentação legítima e de boa-fé e razoavelmente quando ao afastamento não-excludente dos princípios, e assim do mundo sociopolítico, posto a si enquanto contrapartida argumentativa/discursiva.

O conceito ético-político incompleto de justiça insiste numa cosmovisão em que não há uma prevalência absoluta, apriorística do bem sobre o justo. A ideia de uma vida boa, tal como apresentada por cosmovisões religiosa-metafísicas, no império da moral teológica em relação à moral deontológica , cai por terra, à medida que nas sociedades contemporâneas não é mais possível identificar coesão quanto à estima e à capacidade de acreditar e também de concretizar um único ideal de vida boa. A vida boa transmutou-se para a vida concreta, cujo qualificativo reside na pluralidade e na utilização emancipadora da subjetividade. Nenhuma visão, com efeito, é total a ponto de abranger a universalidade de pessoas e grupos. A aplicação, desta feita, de um conceito, no caso do Direito e do processo de organização político-democrático, meramente formal de justiça obnubila a concretização da paz social, no sentido realizável do termo.

Isso implica que uma moral que levante a pretensão de validade para configurar normativamente a vida individual e coletiva de nossas sociedades modernas só pode ser uma moral radicada na racionalidade, partilhada por todas as pessoas, portanto, uma moral autônoma, imparcial e crítica que se possa constituir como a instância normativa suprema e imparcial da vida individual e social e torne possível, em uma sociedade pluralista, uma convivência baseada no respeito mútuo e na consciência universal dos seres racionais. 13

É relativamente pacífico que os discursos promovidos por tais pluralidades, isto é, pelas pessoas e pelos grupos marcados em suas diferenças mesmas, representa uma linguagem específica, característica de um certo contexto, a partir de instituições sociais já delimitadas e configuradas conforme perspectivas rubricadas no dia a dia. O problema que a transição de um mundo dogmático e perseverante nessa cultura ratificada do dia a dia para um onde seja possível legitimar um discurso universal pode passar por duas considerações diferentes. A primeira é se a origem do discurso normativo universal deve ater-se a ressaltar os elementos que são coevos aos diferentes discursos já existentes e, assim, promover uma unidade sintética que, a priori, juntasse a todos num conglomerado de direitos e garantias razoável e explicado segundo um modelo complexo de interações. A segunda é – e talvez essa que acatemos – elaborar um discurso cuja normatividade seja elevada ao outro nível que não a consideração prejudicial de pressupostos socioculturais existentes, mas um nível onde seja admissível vislumbrar novas possibilidades para a vida boa e para o convívio intersubjetivo de um modo que não se anule as subjetividades e, portanto, a capacidade racional de cada pessoa, em seu existir, de determinar-se a si mesma.

No primeiro caso apresentado, há somenos o estatuto de um espírito objetivo a lá Hegel, o que nos parece um comunitarismo universalista deveras arbitrário, devido justamente à evidente modificação de ideias e conceitos que vão ocorrendo no seio das sociedade; além disso, perde completamente o objeto, de tal sorte que não visa a elaboração de um mundo onde seja viável viver bem mesmo que cada vida boa seja gozada nos limites volitivos de cada subjetividade e, havendo intersubjetividade comunitária específica, no caso da formação de grupos culturais, como já vimos será uma forma somenos autêntica da pessoa em sua consciência deliberativa, com outros pares, acerca da constituição desse grupo e, desta maneira, gerando-se uma identidade cujo vínculo é a liberdade de adesão formativa de um contexto normativo próprio.

Destarte, a segunda alternativa afigura-se mais oportuna, visto que permite a elaboração de mecanismos pelos quais a hermenêutica da vida boa pode substanciar-se na avaliação de pressupostos outros, a exemplo dos ontológicos, que, por conseguinte, não estão ligados tão diretamente à vida boa, mas que, pela sua densidade, podem promover cosmovisões diferenciadas acerca da existência. Logo, é pós-metafísica tamanha elaboração e, o conceito ético-político incompleto de justiça, senão um indício do avanço de tal perspectiva, então, pelo menos, é uma porta que se abre para que aquela alternativa entre no rol de preocupações da própria filosofia do direito.

O sentido pós-metafísico do conceito de justiça está na aceitação de diferentes mundos sociopolíticos. Por outro lado, não existe a simples aceitação desses mundos sociopolíticos como é necessário, obrigatoriamente, que eles sejam devidamente fundamentados em razões claras de existir. Esse limite argumentativo do discurso sociopolítico impede que haja uma utilização francamente estratégica da comunicação, quando pretende-se obter a proteção do conceito ético-político incompleto de justiça para a perfeição de um fim desejado. Daí o limite objetivo do conceito ético-político incompleto de justiça consistir na proibição da fundamentação aberta e deliberadamente injustificável do mundo sociopolítico usado como motivo hermenêutico para a conquista de certo bem da vida. É, por outro lado, dado à razão da justiça a empresa que visa a justificação do discurso, sob pena de responsabilidade e contradição em si mesmo. Na verdade, a justificativa do discurso que se utiliza de parâmetros sociopolíticos de mundo para a conquista de algum bem da vida dirige-se automaticamente ao outro sujeito, ao qual se inclina a pretensão de veracidade daquilo que se aduz, se afirma. No plano social vulgar é impossível prever quando haverá o uso justificado de um argumento racionalmente válido e quando haverá a mera intenção de obter vantagens francamente implícitas. Nesse caso, apenas um imperativo categórico moral seria capaz de evitar a subversão do discurso, devido ao fato de que o princípio de auto-reflexão estaria subjacente à toda e qualquer tentativa de ludibriar outrem em qualquer espécie de argumentação, lugar onde a qualidade da verdade estaria protegida pelos prejuízos internos obtidos com a mesma.

Já no caso do Direito, onde a justiça em seu sentido teórico fundamental se insere, é possível que haja a correção da argumentação que não traga em seu bojo o fundamento de validade, devido ao fato que, no procedimento argumentativo da práxis jurídica, segundo os moldes presentes, o conceito ético-político incompleto de justiça traz em seu núcleo uma condição específica do discurso argumentativo com pretensão de verdade que ora lhe é conexo. É preciso, pois, que todos os participantes da relação estejam aptos a situar um consenso razoável quanto aos discursos surgidos, sob pena de se verificar a flagrância da não-justificabilidade do mesmo. Logo, não havendo consenso há que se dizer que aquele discurso não se reveste com competência suficiente para almejar alguma verdade naquela determinada situação, momento em que sua queda será inevitável. A justiça, destarte, vai querer promover um certo entendimento, cujo núcleo linguístico é a formação do consenso mínimo.

Por isso, os discursos devem ser razoáveis, e aqui identificamos outra importante medida que é a compatibilidade contextual com aquilo que se refere. Esse limite hermenêutico indica que, noutra hipótese por exemplo do conflito entre princípios, apenas haveríamos que falar em ponderação de princípios se os princípios envolvidos no problema, de prevalência, de peso, de incidência ou seja lá qual for o nome, fossem da mesma cadeia conceitual. Trata-se de um impedimento lógico da fundamentação principiológica do discurso jurídico. O que hoje pode ser visto, no campo doutrinário e jurisprudencial, e até dogmático, é a insurgência de inúmeros conceitos colocados deliberadamente enquanto princípios, quando, na verdade, ou tratam de regras de perfeição daquilo que de fato é princípio ou, o que é pior, são meras regras procedimentais, no sentido ordinário. Deve ser identificado a cadeia conceitual dos princípios em zonas ontológicas propriamente ditas, isto é, deve o intérprete situar os princípios envolvidos segundo argumentos plausíveis dentre inúmeras possibilidades viáveis. Os princípios não podem ser utilizados com fundamentação aberta de qualquer discurso, sob pena de inaugurar um sistema jurídico onde é aceita a estratégia argumentativa suntuosamente maldosa.

Por conseguinte, a constelação pós-metafísica no campo conjuntural de um conceito ético-político incompleto de justiça deve querer dizer que não existem modelos prontos de direito, seja quanto à hermenêutica de temas básicas seja para temas complexos. As regras devem servir para o cumprimento meramente formal do procedimento, no que se diz em sentido estrito um processo devidamente principiológico, porque respeita, a princípio, todos os envolvidos no seu debate. Talvez sequer poderíamos falar numa utilização substantiva das regras de direito positivo, levando em consideração a doutrina da legalidade substantiva, e a explicação pode até ser simples. Regras e normas que coabitam um sistema jurídico organizado geralmente ponderam as circunstâncias nas quais a experiência lhes cobra a incidência, isto é, as causas primeiras de tudo o que ordinariamente acontece é baseada nas próprias regras e normas. Para todos os efeitos, regras e normas dentro do contexto de direito positivo representam, outrossim, praticamente a mesma coisa, ainda que alguns positivistas queiram dizer o contrário. Logo, o máxima que uma regra e uma norma de natureza positiva fechada pode conseguir é fazer a extensão de sua validade para casos não albergados por essas ou por outras mais compatíveis. Esse corolário é um dos que habitam a teoria hermenêutica do direito positivo. Resta provada a insuficiência e, nesse caso, o surgimento dos princípios de status de fundamentalidade acabou por comprovar ainda mais a necessidade de caminhar para um outro lado na argumentação e na interpretação jurídica.

Justamente o que é muito interessante é que, em verdade, os princípios carecem de uma hermenêutica básica, de viés ontológico que realmente lhes fixe o alcance dentro do quadro geral da existência do homem imerso numa liturgia obrigatória de intersubjetividade. O fato é que, igualmente, os princípios, ainda que obtivessem algum postulado reconhecidamente válido a nível universal, sempre estariam dispostos a apresentar novas interpretações, inobstante, há que concordarmos apenas com os limites lógicos da racionalidade principiológica que, como vimos alhures, consiste em colocar princípios de mesma envergadura ontológica para serem confrontados – essa é uma dimensão procedimental absolutamente necessária antes mesmo de cogitarmos de fazer qualquer tipo de ponderação entre princípios e, consequentemente, de interesses. Este conceito ético-político incompleto de justiça assume uma tarefa deveras hercúlea que, fundamentado pós-metafisicamente, quer dizer o seguinte: não existe uma única moral no direito, como, com efeito, não há que se dizer nesse momento que uma moral precede ao direito, a exemplo dos sistemas jusnaturalistas e teológicos. Tais metafísicas são abolidas e, especialmente, por motivos de ordem de filosofia teórica, a exemplo dos embates gerados no plano ontológico, do ser, do ente, elementos dificilmente plasmados em considerações únicas; e um problema de filosofia prática e, nesse caso em específico, alguns dados de sociologia empírica e alguns elementos conquistados pela teoria da ciência, podem, então, ser utilizadas para que se chegue à conclusão de que vivemos num mundo marcadamente plúrime quanto à cultura e, sobretudo, quanto à moral.

A fundamentação pós-metafísica da justiça e, consequentemente, do direito é importante devido ao fato que permite a evidência condicional do sujeito, em seu agir situado, daí uma inevitável pragmática. O conceito ético-político incompleto de justiça faz essa aproximação e também permite que esse sujeito utilize de uma racionalidade principiológica com fins ilocucionários, isto é, que sejam capazes de gerar aceitação e compreensão. 14 Para os fins que desejamos com este trabalho não carece explicitar de modo mais específico e analítico as questões problemáticas da comunicação, a exemplo das que envolvem o debate sobre princípios. Por outro lado, devemos ter em mente o sentido preciso da fundamentação pós-metafísica enquanto uma constelação na qual ora se insere o conceito ético-político incompleto de justiça. Trata-se de uma alternativa que vislumbra o caráter apropriado da justiça no interior do Estado de Direitos Humanos e, sobretudo, num ponto nevrálgico da pós-modernidade que é, justamente, a diversidade de mundos sociopolíticos constituintes das outridades morais. Assim se anteriormente era pretendido fundamentar a legitimidade do direito através da moral, devemos caminhar para outro sentido, porquanto sequer a moral poderia ser subjacente à formação consensual pré-teórica sobre princípios essenciais do homem, como a vida e a dignidade.

O direito, portanto, não seria somente uma derivação contextual, intersubjetivamente validada a partir de normas-de-ação sujeitas à sanções grupais, por imperativos morais construídos, mas uma formulação ôntica, no sentido de performance de atores, pelo reconhecimento multilateral de princípios essenciais ao convívio, por sua vez garantidores da coexistência espácio-temporal minimamente organizada. A moral nasceria concomitante ao dever-agir desse modo inevitável pelo reconhecimento de princípios essenciais, lugar onde a sanção estimada derivaria de uma eticidade temporal, história e conjuntural de validade em razão da supremacia integradora da ordem social e, tão logo, estatal. Ocorre que a validade alhures é uma validade criticável e, de certo, variável quanto aos seus aspectos extrínsecos, isto é, sobre tudo aquilo que pode ser levantado enquanto discurso de base para argumentos cujo fim é a perseguição de bens da vida, em sentido amplo. Logo, as propriedades íntimas dos princípios essenciais não se modificam, pois que são elas que garantem o mínimo, qual seja, a possibilidade primitiva de existir e, contemporaneamente, ser dotado de diversos direitos. Daí que nem mesmo esses princípios possam ser modificados por qualquer metafísica que vise sustentar uma teoria do direito, à medida que apenas colocaram questões discutíveis, porquanto não peremptórias e não absolutas. Esse critério é, pós-metafisicamente, entendido na racionalidade principiológica do direito que, dando a oportunidade de discussão dos diversos meios interpretativos acerca das coisas extrínsecas dos princípios essenciais, equilibra e informa um postulado irrenunciável de justiça. Para a justiça, então, não é mais importante situar verdades pré-conceituais acerca de temas fundamentais, mas o problema é especificar os atores-agentes dentro do discurso travado, para que seja viável a contemplação de uma razão comunicativa elaborada num mesmo horizonte de conhecimento e, de quebra, a possibilidade hermenêutica dos princípios utilizada numa racionalidade realizável para a coordenação das diferentes pretensões levantadas, desta maneira, no emprego in utilibus et esse percipi – a justiça volta seus olhos para o ser que, percebido substancialmente como ator-agente, pode sempre transformar a relação na mesma intensidade dos demais.

O principium do conceito ético-político incompleto de justiça é perceber o ser, i. e., o ser do ente e, por conseguinte, deixá-lo expressar-se a si mesmo a partir de regras discursivas pertencentes à arquitetônica de uma racionalidade principiológica que só pode realizar-se num contexto marcadamente discursivo e aberto à pluralidade argumentativa com potência de veracidade e justificabilidade. A linguagem como meio do discurso abre o ser do homem em suas características indizíveis a partir do momento em que é instaurado o procedimento dialógico com princípios essenciais, tornando a efetividade um resultado inequívoco de todos aqueles que estão inclinados à consecução do telos próprio da justiça, qual seja a distribuição dinâmica/razoável do bem procurado. Para tanto a justiça, e o direito, não podem perceber apenas uma alternativa acerca da realidade, com quisera o positivismo jurídico; ao invés, legitima-se outra oportunidade, que é proporcionar o diálogo entre diferentes perspectivas do todo, por sua vez plasmados hermeneuticamente pelos atores-agentes. Quer-se a pluralidade para que se possa explorar o não-dito pelo direito positivo, pois que nem sempre o dito vai expressar a correta justiça, inversamente, na maioria das vezes normas e regras postas servem somenos enquanto passo inicial, conquanto se deva partir, seguramente, de dados e noções pré-fixados, malgrado não vinculativas hermeneuticamente.

Sobre o autor
Luiz Felipe Nobre Braga

Mestre em Direito pela Faculdade de Direito do Sul de Minas; Advogado; Consultor e Parecerista; Professor de Direito Constitucional e Lógica Jurídica na Faculdade Santa Lúcia em Mogi Mirim-SP; Professor convidado da pós-graduação em Direito Processual Civil e no MBA em Gestão Pública, da Faculdade Pitágoras em Poços de Caldas/MG. Autor dos livros: "Ser e Princípio - ontologia fundamental e hermenêutica para a reconstrução do pensamento do Direito", Ed. Lumen Júris, 2018; "Direito Existencial das Famílias", Ed. Lumen Juris-RJ, 2014; "Educar, Viver e Sonhar - Dimensões Jurídicas, sociais e psicopedagógicas da educação pós-moderna", Ed. Publit, 2011; e "Metapoesia", Ed. Protexto, 2013.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BRAGA, Luiz Felipe Nobre. Ensaio acerca do conceito ético-político incompleto de justiça na constelação pós-metafísica para uma racionalidade principiológica realizável. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3045, 2 nov. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20348. Acesso em: 26 dez. 2024.

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