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A desconsideração da personalidade juridica no Brasil.

Teorias e jurisprudência

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Agenda 09/11/2011 às 10:55

Trata-se da desconsideração da personalidade jurídica, que nada mais é do que, a possibilidade de, frente a alguns requisitos, conseguir de valer dos bens dos sócios, para pagamento de verbas provenientes das sentenças definitivas.

1 INTRODUÇÃO

Sabemos que em nosso ordenamento jurídico, o processo judicial é dividido em fases que possuem como objetivo precípuo, organizar a vida em litígio, e permitir que, diante da ampla defesa, e da possibilidade de contraditório entre as partes, propiciem o ambiente ideal para o julgamento com o mínimo de justiça para os litigantes.

No entanto, diante de sentenças em que o provimento deu-se com obrigação de pagar, mesmo diante do trânsito em julgado, inicia-se uma nova fase no processo, muitas vezes bem mais desgastante do que a instrução em si, a execução destes valores.

Por mais indignados que venhamos a ficar com a expressão de que "o Brasil é terra de devedores" ou mesmo " Brasil, país em que devedor nunca paga", a execução em nosso Poder Judiciário, tem reforçados estes ditos populares.

Mesmo diante da modernização da constrição de bens, como o BacenJud, as execuções em nossos processos judiciais tem se tornado verdadeiras fases de conhecimento, fazendo com que o suposto vencedor da demanda, consiga a sua satisfação somente em sede de sentença, sem conseguir trazê-la para a vida real.

Tais fatores se devem a constante evasão, principalmente de pessoas jurídicas, em que tentam, não somente por meio dos inúmeros recursos existentes em nosso ordenamento, como se utilizando de meios fraudulentos para conseguir se evadir das dívidas porventura adquiridas, impossibilitando inclusive o Judiciário de conseguir encontrar meios de efetivar as suas sentenças.

Assim, mesmo com a demora desgastante da execução, surge um instrumento jurídico que tem por objetivo evitar que meios fraudulentos possam impedir estas pessoas jurídicas de não cumpram suas obrigações. Trata-se da desconsideração da personalidade jurídica, que nada mais é do que, a possibilidade de, frente a alguns requisitos, conseguir de valer dos bens dos sócios, para pagamento de verbas provenientes das sentenças definitivas.

Desta forma, com objetivo de tecer alguns comentários sobre este instrumento, surge o presente trabalho, no qual iremos fazer considerações sobre a pessoa jurídica em si, bem como as teorias que envolvem a desconsideração da personalidade jurídica, tanto no Brasil como no direito comparado, finalizando com a sua utilização no panorama do atual ordenamento jurídico brasileiro.


2 PESSOA JURÍDICA

2.1 CONCEITO

O homem é um ser eminentemente social, já dizia Aristóteles, não sabe viver senão em grupos. Não obstante, com o surgimento de relações mais complexas, se fez necessário o reconhecimento pelo Estado de tais relações, lhes atribuindo capacidade para a realização de maiores empreendimentos em nome do grupo. [01]

Com desenvolvimento econômico, esta necessidade se tornou mais latente. Inicialmente existiam simples centros de produção, que se confundiam com a própria família, e, posteriormente, com a Revolução Industrial, e conseqüente florescer do desenvolvimento tecnológico, tornaram-se grandes complexos empresariais, impondo, logicamente ao Estado o dever de intervir nestas relações para coibir abusos e fraudes. [02]

Surgiu então o que entendemos por Pessoa Jurídica, que, em seu conceito mais suscinto, pode-se dizer que são entes aos quais a lei conferiu personalidade, isto é, consistem em seres que atuam na vida jurídica, com personalidade distinta dos seus membros, capazes de serem sujeitos de direitos e obrigações na ordem civil. Ocorre, portanto, uma atribuição de capacidade jurídica a entes abstratos, constituídos e gerados pela vontade e necessidade do homem. [03]

Ademais, em concepção de mais abrangente, apresenta Carlos Roberto Gonçalves, expondo a pessoa jurídica como proveniente de um fenômeno histórico e social, sendo, portanto uma necessidade "[...] de os indivíduos unirem esforços e utilizarem recursos coletivos para a realização de objetivos comuns, que transcendem as possibilidades individuais". [04]

Note-se que não há uniformidade entre os conceitos justapostos, e principalmente, entre as terminologias atribuídas a este ente. Basta que se verifique, nas suas conceituações, que a pessoa jurídica ora é chamada de pessoa moral, como também utilizado no direito francês, e ora é chamada pessoa coletiva, como veremos em outras acepções. No entanto, o nosso Código Civil adotou o termo Pessoa Jurídica, da mesma forma que o direito italiano e o espanhol [05]. Assim também demonstra Nelson Rosenvald:

Afirmada a necessidade de personalizar (conferir personalidade) agrupamentos sociais, permitindo que a pessoa humana possa desempenhar melhor seus papeis na sociedade, surge a chamada pessoa jurídica, acepção utilizada pelo direito brasileiro, italiano e espanhol, ou ente moral, como adota a legislação francesa, ou também dita ente coletivo, como lhe nomina o direito português. [06]

Superada a discussão no que diz respeito a melhor conceituação deste instituto, a moderna doutrina, como Pablo Stolze, passou a conceituá-la de forma mais objetiva. Conceitua pessoa jurídica como sendo "[...] o grupo humano, criado na forma da lei, e dotado de personalidade jurídica própria, para a realização de fins comuns" [07]. Trata-se de acepção mais utilizada, diante das inúmeras discussões em relação a sua correta conceituação, gerando, no estudo da sua natureza jurídica, diversas teorias explicativas.

Dentre estas teorias, podemos citar as teorias negativistas, que negam a existência da Pessoa Jurídica, não admitindo que algo formado por um grupo de indivíduos tenha personalidade jurídica própria. Defende que a pessoa jurídica é um recurso técnico que objetiva ocultar verdadeiros sujeitos, que serão sempre pessoas naturais. A pessoa jurídica seria "[...] uma máscara, um modo de designar as pessoas reais. É um biombo, atrás do qual se ocultam os verdadeiros protagonistas das relações jurídicas". [08]

Outra teoria muito aceita é a teroria afirmativista que se divide em teoria da ficção, que teve com um de seus maiores precursores Savigny, em que não reconhecia a existência real da pessoa jurídica, imaginando-a como abstração, ou seja, mera criação da lei, e a teoria da realidade objetiva, em que a pessoa jurídica não seria uma simples criação da lei, uma vez que teria existência própria como os indivíduos. Para essa teoria, como diz Washington de Barros Monteiro, "[...] junto à pessoa natural, como organismo físico, há organismos sociais, ou pessoas jurídicas, que tem vida autônoma e realidade própria, cuja finalidade é a realização do fim social". [09]

Com base no estudo das teorias anteriormente explicitadas, surge a teoria da realidade técnica, ou realidade jurídica, que para Washington de Barros Monteiro "[...] fornece a verdadeira essência jurídica da pessoa jurídica". [10] Reconhece que há uma parcela de verdade em cada uma das teorias anteriores, pois defendem que a noção de personalidade é uma noção eminentemente jurídica. [11]

2.2 INÍCIO E FIM DA PESSOA JURÍDICA

Para que se possa vislumbrar o nascimento da pessoa jurídica, mister se faz a existência de três pressupostos básicos, quais sejam: a vontade humana criadora, a observância das condições legais para a sua instituição e a licitude de seu objeto. [12]

Ao se trazer "vontade humana" como primeiro pressuposto, quer trazer "[...] o conteúdo anímico para a formação da pessoa jurídica" [13], para posteriormente, ser levada a registro, observando as condições estabelecidas na lei, como lembra Pablo Stolze quando nos fala que a pessoa jurídica "[...] para se formar validamente, não basta a simples manifestação de vontade dos interessados, que se concretiza ao firmarem os estatutos ou o contrato social" [14].

Surge assim a pessoa jurídica no ordenamento jurídico brasileiro, de acordo com o artigo 45 do Código Civil de 2002 [15], em que "[...] começa a existência legal das pessoas jurídicas de direito privado com a inscrição do ato constitutivo no respectivo registro" [16].

Note-se que para que determinado ente possa ter personalidade jurídica, o ordenamento jurídico impõe regra indispensável, que se consubstancia no próprio registro, a partir do qual este ente passa a existir no meio jurídico, com a exceção das hipóteses em que exige autorização do Poder Executivo para o seu funcionamento. Da mesma forma, observa-se que "[...] o registro da pessoa jurídica tem natureza constitutiva, por ser atributivo de sua personalidade, diferentemente do registro civil de nascimento da pessoa natural, eminentemente declaratório." [17]

A falta do registro público do ato constitutivo caracteriza o ente como sociedade despersonificada (irregular ou de fato), disciplinada a partir do artigo 986 do Código Civil de 2002 [18], gerando responsabilidade pessoal e ilimitada dos seus integrantes.

Ademais, com relação à dissolução da pessoa jurídica, esta se dará de três formas: convencional, administrativa ou judicial. A dissolução convencional, ocorrerá quando ajustada por deliberação dos sócios, ou seja, da mesma forma que a vontade destes fez surgir a pessoa jurídica, a mesma fará com que esta se extinga, o que deverá estar previamente determinado nos atos constitutivos. [19]

Com relação à dissolução administrativa, esta resulta da cassação de autorização de funcionamento, exigida para determinadas sociedades se constituírem. Contudo, no que se refere à dissolução judicial, podemos conceituar como aquela que ocorre quando, "[...] observada uma das hipóteses de dissolução previstas na lei ou no estatuto, o juiz, por iniciativa de qualquer dos sócios, poderá, por sentença, determinar sua extinção". [20]

2.3 AUTONOMIA EXISTENCIAL DA PESSOA JURÍDICA

Quando a pessoa jurídica passa a existir, e adquire personalidade jurídica, adquire concomitantemente a autonomia patrimonial, ou seja, os bens da sociedade não se confundem com os bens particulares dos sócios, assim como estes também não respondem pelas obrigações sociais da pessoa jurídica criada. [21] Tal disposição é bem aclarada pela leitura do Código Civil de 2002 em seu artigo 1.024, que "[...] os bens particulares dos sócios não podem ser executados por dividas da sociedade, senão depois de executados os bens sociais". [22]

Com idêntico entendimento, o artigo 596 do Código Processo Civil, expõe que "[...] os bens particulares dos sócios não respondem pelas dívidas da sociedade senão nos casos previstos em lei; o sócio, demandando pelo pagamento da dívida, tem direito a exigir que sejam primeiro executados os bens da sociedade". [23]

Desta forma, há que se observar que o legislador, ao editar tais dispositivos, teve com objetivo fazer com que a pessoa jurídica tivesse a maior autonomia para a prática de atos tendentes a seu regular funcionamento. Inicialmente este objetivo foi explanado no Código Civil de 1916, no seu artigo 20, quando enunciava que "[...] as pessoas jurídicas tem existência distinta de seus membros" [24], dispositivo este, retirado no novo diploma legal.

Trata-se do que Washington de Barros Monteiro chamou de "teoria da personalidade jurídica", em que diz ser dotada de três princípios fundamentais, a saber: "[...] personalidade jurídica distinta de seus membros (universitas distat a singulis), patrimônio distinto, e vida própria". [25]

Com a edição do Novo Código Civil em 2002, a autonomia patrimonial da pessoa jurídica permaneceu, porém, com novos objetivos. A função social exigida perante os novos ditames constitucionais editados em Carta Magna de 1988 impregnaram este novo diploma legal, fato que se observa com a retirada do artigo 20 do antigo código, e com a edição do artigo 52, atribuindo finalmente as pessoas jurídicas, proteção até então inexistente, ao expor que "[...] aplica-se às pessoas jurídicas, no que couber, a proteção dos direitos de personalidade" [26].

Em conseqüência da famigerada autonomia patrimonial da pessoa jurídica, as sociedades passaram a utilizá-la como instrumento de abusos e fraudes, levando com o amadurecimento dos estudos acerca do instituto, a buscar meios para coibir tais ações. Como importante difusor do tema, se encontra Fabio Ulhôa Coelho [27], que, em importante posicionamento a respeito, revela que algumas empresas ‘[...] a consideração da autonomia da pessoa jurídica importa a impossibilidade de correção da fraude ou do abuso’.

Entendemos, portanto, que, estando presente o abuso da autonomia patrimonial da pessoa jurídica, em regra, a solução para esta controvérsia não será suprimi-la, mas desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade, não somente para coibir os abusos e fraudes, mas visando preservar a pessoa jurídica e sua autonomia.

2.4 FUNÇÃO SOCIAL DA PESSOA JURÍDICA

Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, houve a necessidade de que toda a legislação infraconstitucional a ela se adequasse, ocorrendo o fenômeno conhecido como recepção constitucional. [28]

Contudo, a recepção do Código Civil de 1916 trouxe consigo inúmeras discussões diante dos novos preceitos que se instalavam. O diploma era repleto de normas eminentemente patrimonialistas, e que em nada se assemelhavam com os novos princípios constitucionais, como a dignidade da pessoa humana e a função social da propriedade.

As discussões porque passaram, levou a inevitável despatrimonialização do Direito Civil Brasileiro, materializada na promulgação do novo Código Civil, em 2002, que, entre outros avanços solidificou tais princípios.

Essa nova perspectiva afetou intimamente a autonomia patrimonial da pessoa jurídica, uma vez que esta precisou curvar-se a ordem constitucional então vigente, precisando assim, atender a uma função social, que dantes não era imposta, ou seja, submetendo-as agora ao "[...] império protetivo da pessoa humana". [29]

Há que se ressaltar, que o objetivo maior dessa nova perspectiva não era abolir esta autonomia patrimonial, mas retirar-lhe a eficácia todas as vezes que fosse empecilho ao atendimento da função social. Explicando o instituto, Nelson Rosenvald nos revela que "[...] a teoria da função social da empresa traz consigo a idéia do estabelecimento de comportamentos empresariais, positivos e negativos, instrumentalizando a utilização do capital a favor da pessoa humana." [30]

Observa-se que a função social da pessoa jurídica passa de simples ideal, a conceito a ser inserido neste instituto de forma intrínseca, fato que facilmente se verifica quando a Constituição Federal, ao trazer normas sobre a Ordem Econômica insere diversos princípios entre os quais, à valorização do trabalho humano, a função social da propriedade, redução das desigualdades sociais e regionais e da livre iniciativa, e a dignidade da pessoa humana. [31]

A discussão acerca da correlação entre a função social da empresa e a função social da propriedade, parte do pressuposto de que o proprietário possui como dever o de funcionalizar o exercício do seu direito de propriedade, que no caso, é exercido pela pessoa jurídica, para que disponha de proteção legal. O sócio deve ter por objetivo sempre o de conferir função social ao seu empreendimento [32]. De igual forma determina o Enunciado nº 53 da Jornada de Direito Civil: "[...] deve-se levar em consideração o principio da função social na interpretação das normas relativas a empresa, a despeito da falta de referencia expressa". [33]

O novo entendimento vem pautado na vertente de que "a exploração da atividade econômica, pela via empresarial, é manifestação do direito de propriedade". [34] Em artigo acerca dos aspectos processuais da desconsideração da pessoa jurídica, Fredie Didier assevera sobre a função social da empresa:

A personalidade jurídica das sociedades é instrumento fundamental para a chamada iniciativa privada, realizando importantíssimo papel na propulsão da atividade econômica – na verdade, o sistema de apropriação privada dos bens de produção, como o nosso, se organiza fundamentalmente em empresas. É possível, assim, relacionarmos o princípio da livre iniciativa (parágrafo único do artigo 170, CF/88) com o também principio constitucional da função social da propriedade (artigo 5º, XXIII e artigo 170, III, CF/88). É possível falar, portanto, em função social da pessoa jurídica empresaria, corolário da função social da propriedade, o que acaba por demonstrar a relação existente entre esses dois princípios constitucionais. [35]

Corroborando com o exposto, o constitucionalista José Afonso da Silva, acrescenta que a Ordem Econômica, segundo a Constituição, tem por fim "[...] assegurar a todos a existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os ditames do artigo 170 da Constituição Federal, princípios estes que, em essência, consubstanciam uma ordem capitalista". [36]

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Assim, a pessoa jurídica é um instrumento técnico-juridico desenvolvido para facilitar a organização da atividade econômica [37], sendo desta forma exercício legítimo do direito de propriedade, onde sua atuação deverá atender a função social que lhe é imposta, onde um dos instrumentos para tornar eficaz os referidos princípios é o instituto da desconsideração da personalidade jurídica, que passaremos a analisar. [38]


3 DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA

3.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A autonomia patrimonial sempre foi considerada o sério obstáculo a coibir abusos por meio da personalidade jurídica. Teve a sua origem no Código Civil de 1916, em que as pessoas jurídicas deveriam ter existência distinta dos seus membros. Apesar desta não mais existir tal determinação no atual diploma de 2002, encontra-se em plena utilização, pois permanece a separação patrimonial entre os bens dos sócios e da própria empresa.

Ocorre que, os abusos perpetrados pela pessoa jurídica, em nome dessa autonomia foram tamanhos e de maneira tão exacerbada, que levaria a inevitável decadência deste instituto, por sua reiterada utilização como instrumento para dissimular situações puramente ilícitas. Tais práticas ensejaram uma reação por parte dos juizes e tribunais, buscando mecanismos ágeis a atingir o patrimônio dos sócios, inibindo desta forma, a utilização da pessoa jurídica como escudo à prática de atos ilícitos.

Neste panorama, que não era uma realidade somente brasileira, surgiu a teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica, construção jurisprudencial positivada, a qual passa-se a estudar.

3.2 CONCEITO

Como vimos o Código Civil de 1916, não trazia quaisquer considerações acerca da possibilidade de atribuir responsabilidades aos sócios por práticas de fraudes ou abusos. Com a difusão pelos tribunais da Desconsideração da Personalidade Jurídica, foram surgindo inúmeros os conceitos dos mais diversos autores.

Na doutrina brasileira, a primeira conceituação conhecida foi empregada por Rubens Requião, para quem a referida teoria significa não considerar os efeitos da personificação, para atingir a responsabilidade dos sócios, chamada por ele de teoria da penetração, por adentrar a pessoa jurídica, sem destruí-la, com a finalidade de vincular o sócio e responsabilizá-lo. [39]

Objetiva aferir se o sócio, utilizando a personalidade jurídica da sociedade, buscou de forma fraudulenta, inadimplir suas obrigações em detrimento de terceiros de boa-fé, vinculando tais atos ao ente. Ocorre que, todas as deliberações no âmbito da sociedade se caracterizam por uma convergência de decisões, tomadas pelas pessoas físicas que a compõe, que hão de ser responsabilizadas quando restarem caracterizados tais atos ilícitos.

Assim, a teoria da desconsideração busca o desprezo episódico da personalidade autônoma de uma pessoa jurídica, a fim de permitir que os sócios respondam com seu patrimônio pessoal pelos atos abusivos e fraudulentos sob o véu societário. [40]

Utilizando-se da terminologia Superação da Pessoa Jurídica, Amador Paes de Almeida [41] defende que essa teoria visa permitir que o juiz, no caso concreto, vislumbrando-se fraude e de má-fé, "[...] desconsidere o princípio de que as pessoas jurídicas têm existência distinta de seus membros e os efeitos dessa autonomia, para atingir os bens particulares dos sócios à satisfação das dívidas da sociedade" [42]

Corroborando com este entendimento, Fabio Ulhôa Coelho, ao esclarecer a desconsideração, diz que seu objetivo maior é "[...] possibilitar a coibição de fraude, sem comprometer a própria pessoa jurídica, sem questionar a separação existente entre a sua personalidade e patrimônio em relação aos seus membros" [43], e ainda acrescenta:

Pela teoria da desconsideração, o juiz pode deixar de aplicar as regras de separação patrimonial entre sociedade e sócios, ignorando a existência da pessoa jurídica num caso concreto, porque é necessário coibir a fraude perpetrada graças à manipulação de tais regras. Não seria possível a coibição se respeitada a autonomia da sociedade. Note-se, a decisão judicial que desconsidera a personalidade jurídica da sociedade não desfaz o seu ato constitutivo, não o invalida, nem importa a sua dissolução. Trata, apenas e rigorosamente, de suspensão episódica da eficácia desse ato. Quer dizer, a constituição da pessoa jurídica não produz efeitos apenas no caso em julgamento, permanecendo válida e inteiramente eficaz para todos os outros fins. [44]

Nota-se na passagem supracitada que, todas as vezes que a pessoa jurídica for utilizada, como meio para fugir do adimplemento de uma obrigação, desrespeitando a autonomia patrimonial, deve o juiz, levar em consideração quem está agindo em nome do ente. Esta decisão terá, como se percebe, efeitos inter-partes, continuando a pessoa jurídica autônoma e eficaz em relação a todos os outros entes e pessoas com quem possuir relações jurídicas.

A questão tem sido muito discutida, levando inclusive a disseminação de artigos e teses a esse respeito. Entre eles, esta a tese de doutorado, da Juíza da 61ª Vara do Trabalho de São Paulo, Thereza Chistina Nahas, para quem somente pode-se aplicar a teoria da desconsideração sobre entes dotados de personalidade, onde o tem por fim "[...] penetrar no âmago da personalidade atribuída por concessão legislativa a um ente jurídico, permitindo que se encontre seus administradores a fim de responsabilizá-los por atos praticados através do uso da pessoa jurídica" [45]

O ato de desconsiderar, como evidenciado pelos conceitos supra, até o momento somente poderia se concretizar quando se observassem fraudes e abusos. No entanto, foram surgindo outras hipóteses para que se caracterizasse o ato ilícito, de modo que facilitasse ainda mais a sua averiguação, requisitos estes que se solidificaram em momento posterior a Constituição de 1988.

Desta forma, com a promulgação do Código Civil de 2002, pautado na dignidade da pessoa humana, surgiu uma nova sistemática de aplicação da teoria, chamada pela doutrina de concepção objetiva da teoria da desconsideração. Entre os seus defensores estão Fabio Konder Comparato e Carlos Roberto Gonçalves, que assim a explica:

Foi adotada, aparentemente, a linha objetivista de Fabio Konder Comparato, que não se limita as hipóteses de fraude e abuso, de caráter subjetivo e de difícil prova. Segundo a concepção objetiva, o pressuposto da desconsideração se encontra, precipuamente, na confusão patrimonial. Desse modo, se pelo exame da escrituração contábil ou das contas bancarias apurar-se que a sociedade paga dividas dos sócios, ou este recebe créditos dela, ou inverso, ou constata-se a existência de bens de sócios registrados em nome da sociedade, e vice-versa, comprovada estará a referida confusão. [46]

A concepção mencionada justifica-se pelo fato de ser praticamente impossível a vítima conseguir demonstrar, no caso concreto, a fraude perpetrada pelo empresário, sendo facilitada, com a simples demonstração da confusão patrimonial para que sejam tutelados os interesses dos credores e de terceiros. [47]

Aglutinando os conceitos por ora evidenciados, seria a Desconsideração da Personalidade Jurídica, em conceito mais amplo, um mecanismo utilizado por entes dotados de personalidade jurídica, atribuição esta, imposta por concessão legislativa, em que, diante do caso concreto, autoriza os juizes e tribunais, de forma temporária e restrita, desconsiderar os efeitos dessa personalidade, desde que configuradas fraudes, abusos ou confusões patrimoniais, capazes de causarem prejuízos a terceiros de boa-fé, a fim de responsabilizar os sócios, ou seja, os indivíduos que dão vida ao ente personalizado.

3.2.1 Despersonalização x Desconsideração

A teoria da desconsideração, como já avençado, visa um afastamento temporário e eventual da personalidade jurídica, voltando à sociedade a funcionar após o ressarcimento dos prejuízos causados [48].

Não se trata, pois, de extingui-la, mas da ocorrência de uma "[...] suspensão episódica do ato constitutivo da pessoa jurídica, de modo a buscar, no patrimônio dos sócios, bens que respondam pela divida contraída" [49]. A desconsideração objetiva de certa forma, garantir que as atividades da sociedade continuem, preservando, assim, direitos e interesses tanto de terceiros, como dos próprios trabalhadores que nela se encontram. [50]

No entanto, existem casos de maior gravidade, em que há necessidade de aplicação da despersonalização, instituto entendido como a extinção compulsória pela via judicial da personalidade jurídica [51]. Explica Pablo Stolze de forma clara e objetiva a distinção entre tais institutos:

Assim sendo, o rigor terminológico impõe diferenciar as expressões: despersonalização, que traduz a própria extinção da personalidade jurídica, e o termo desconsideração, que se refere apenas ao seu superamento episódico, em função de fraude, abuso ou desvio de finalidade.

Ambas, porém, não se confundem com a responsabilidade patrimonial direta dos sócios, tanto por ato próprio quanto nas hipóteses de co-responsabilidade e solidariedade.

Por isso, vale registrar que, tecnicamente, pelo fato de a desconsideração ser uma sanção que se aplica a um comportamento abusivo, ela é decretada, e não declarada, como muitas vezes se utiliza a expressão.

Nessa mesma linha, também se decreta a despersonalização (extinção) da pessoa jurídica, pondo fim a ela, ao contrário da responsabilidade patrimonial direta, em que há um reconhecimento de uma situação fática ensejadora, declarando-se a ocorrência do fato e as suas conseqüências jurídicas. [52]

Nota-se que, apesar da semelhança na grafia, são institutos totalmente opostos, um com natureza de sanção momentânea, e o outro pondo fim a pessoa jurídica, o que não deixa de ser uma sanção. Portanto, torna-se equivocada a utilização do termo despersonalização da pessoa jurídica, posto que tal fenômeno, como evidenciado, em nada se coaduna com a questão ora estudada, pois esta acarreta a dissolução da pessoa jurídica ou mesmo a cassação da autorização para seu funcionamento. [53]

3.2.2 Teoria Maior e Teoria Menor da Desconsideração

Dependendo da forma e do momento de aplicação da teoria da desconsideração, surgiram em nossa doutrina duas "subteorias" acerca do tema, chamadas teorias maior e menor da desconsideração da personalidade jurídica, desenvolvida em nosso ordenamento por Fabio Ulhôa Coelho as quais se expõe a seguir.

3.2.2.1 Teoria Maior

Pela teoria maior, assim como na teoria menor, o juiz é autorizado a ignorar autonomia patrimonial das pessoas jurídicas, como forma de coibir fraudes e abusos praticados através dela. Ocorre que nesta modalidade, deverão ser atendidos alguns requisitos estabelecidos legalmente. É considerada como uma teoria mais elaborada, de maior consistência e abstração. [54]

Remete-nos, a teoria maior, o trabalho de Rolf Serick, que a partir da jurisprudência norte-americana, buscou definir os critérios que autorizam a desconsideração, resultando na formulação de quatro princípios, descritos em sua obra nos seguintes termos:

O primeiro afirma que o juiz, diante de abuso da forma da pessoa jurídica, pode, para impedir a realização do ilícito, desconsiderar o principio da separação entre sócio e pessoa jurídica. Entende Serik por abuso da forma qualquer ato que, por meio do instrumento da pessoa jurídica, vise frustrar a aplicação da lei ou o cumprimento de obrigação contratual, ou, ainda, prejudicar terceiros de modo fraudulento. Ressalta, também, que não se admite a desconsideração sem a presença desse abuso, mesmo que para a proteção da boa-fé. O segundo princípio da teoria da desconsideração circunscreve, com mais precisão, as hipóteses em que a autonomia deve ser preservada. Afirma que não é possível desconsiderar a autonomia subjetiva da pessoa jurídica apenas porque o objetivo de uma norma ou a causa de um negócio não foram atendidos. Em outros termos, não basta a simples prova da insatisfação de direito de credor da sociedade para justificar a desconsideração. De acordo com o terceiro principio, aplicam-se a pessoa jurídica as normas sobre a capacidade ou valor humano, senão houver contradição entre os objetivos desta e a função daquela. Em tal hipótese, para atendimento dos pressupostos da norma, levam-se em conta as pessoas físicas que agiram pela pessoa jurídica. É este o critério recomendado para resolver questões com a nacionalidade ou raça de sociedades empresarias. O derradeiro principio sustenta que , se as partes de um negocio jurídico não podem ser consideradas um único sujeito apenas em razão da forma da pessoa jurídica, cabe desconsiderá-la para aplicação de norma cujo pressuposto seja diferenciação real entre aquelas partes. Quer dizer, se a lei prevê determinada disciplina para os negócios entre dois sujeitos distintos, cabe desconsiderar a autonomia da pessoa jurídica que o realiza com um de seus membros para afastar essa disciplina. [55]

Afirma como evidenciado supra, que tais princípios são pressupostos de aplicação da teoria. Entre os mais importantes destacamos o primeiro princípio, em que é observada sua natureza preventiva, de forma a buscar meios para impedir que o ato ilícito ocorra, e o segundo, onde descreve que não são todos os casos que haverá a necessidade de desprezar a autonomia patrimonial e que não bastará a insatisfação dos direitos do credor para que se justifique a desconsideração. [56]

O Código Civil de 2002, conforme já mencionado, adotou a teoria maior da desconsideração, consubstanciada em seu artigo 50, onde determina que em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, poderá ser desconsiderada a personalidade jurídica, confirmando a teoria objetiva deveras explanada. [57]

3.2.2.2 Teoria Menor

No entanto, existem casos específicos em algumas legislações, onde não há necessidade de atender nenhum dos requisitos acima descritos. Trata-se da teoria menor da desconsideração.

Considerada por Fabio Ulhôa como menos elaborada, defende a desconsideração em todas as hipóteses em que necessitar a execução do patrimônio do sócio condicionada ao afastamento do princípio da autonomia por simples insatisfação do crédito perante a sociedade. [58] No que se refere a aplicação as sociedades empresárias, explica:

Ela reflete, na verdade, a crise do principio da autonomia patrimonial, quando referente às sociedades empresárias. O seu pressuposto é simplesmente o desatendimento de crédito titularizado perante a sociedade, em razão da insolvabilidade ou falência desta. De acordo com a teoria menor da desconsideração, se a sociedade não possui patrimônio, mas o sócio é solvente, isso basta para responsabilizá-lo por obrigações daquela. A formulação menor não se preocupa em distinguir a utilização fraudulenta da regular do instituto, nem indaga se houve ou não abuso na forma. Por outro lado, é-lhe todo irrelevante a natureza negocial do direito creditício oponível a sociedade. Equivale, em outros termos, a simples eliminação do princípio da separação entre a pessoa jurídica e seus integrantes. Se a formulação maior pode ser considerada um aprimoramento da pessoa jurídica, a menor deve ser vista como o questionamento de sua pertinência, enquanto instituto jurídico. [59]

Verifica-se no posicionamento acima levantado, que o aludido autor considera a teoria menor como um retrocesso à teoria menor, pois acredita que sem o atendimento aos requisitos delineados pela teoria maior, estaremos incorrendo em figura sem o devido cabimento no meio jurídico, o que não merece prosperar.

Apesar deste autor não considerar adequada a aplicação da teoria menor, o entendimento majoritário aplicável hoje, dentro das searas que merecem proteção, se configuram a teoria menor como uma evolução em relação à teoria maior.

Sabemos que não são todos os casos que se verificam merecedores de aplicação da teoria acima delineada, mas somente nas hipóteses em que exige maior proteção do Estado para determinados segmentos sociais, como resta comprovado em se tratando de consumidores, empregados, meio ambiente, entre outros, também protegidos em maior escala pela nossa Constituição Federal.

Para a teoria menor, basta a inexistência de bens sociais, para atribuir ao sócio à obrigação da pessoa jurídica. [60] Trata-se de novo pensamento trazido pela moderna doutrina frente aos novos conflitos emergentes em nosso ordenamento, que, como descreve Nelson Rosenvald, "[...] emprestando-lhe maior funcionalização diante de determinados casos concretos". [61] A título de exemplo de positivação da teoria, está o Código de Defesa do Consumidor, que em seu artigo 28, § 5º, deixa clara nova vertente de utilização desta teoria pós Constituição de 1988.

Há de se ressaltar que, a distinção entre as duas teorias trazidas pelo autor, se referem, simplesmente, a questões metodológicas. Iniciado o estudo da desconsideração, pretendia-se investigar quanto à forma de aplicação da teoria, em outras palavras, buscavam-se critérios a serem utilizados, no caso concreto pelos juizes, para tornar justa a desconsideração. Sobre o assunto esclarece novamente o autor:

Cabe falar em formulação menor, e não em desconhecimento dos exatos pressupostos da teoria da desconsideração, por uma questão de método. Em outros termos, não seria propositado apenas dizer que os juizes brasileiros, em momentos de descuido, não se dedicaram ao prévio e suficiente estudo da matéria e passaram a fazer apressado e inadequado uso da expressão ‘desconsideração’. De fato, como a teoria maior nasce do esforço doutrinário, realizado a partir de decisões judiciais, o mesmo método, adotado em vista da jurisprudência brasileira, conduziria ao resultado de uma formulação diferente da teoria. Conforme já assinalado, o objetivo da investigação de Serick era a identificação do critério a partir do qual os juizes norte-americanos consideravam-se autorizados a ignorar a separação patrimonial entre sociedade e sócios. Assim, valendo-se do mesmo argumento, a doutrina brasileira, ao se debruçar sobre os julgados relativos ao assunto proferidos pela Justiça nacional, deve concluir que alguns juízes brasileiros se entendem autorizados a desconsiderar o principio da autonomia patrimonial da pessoa jurídica tendo como pressuposto unicamente a frustração do credor da sociedade. [62]

Por derradeiro, entende-se que a teoria menor não pode ser considerada como um descuido dos juízes no momento de aplicação da mesma, mas de uma utilização diferenciada, para casos específicos, em virtude a natureza do crédito inadimplido que gerou a desconsideração.

Apesar de nos remeter a idéia de que, os tribunais aplicam a teoria menor "em momentos de descuido, quando não se dedicaram ao prévio e suficiente estudo da matéria", e por tal fato, se entendem autorizados a desconsiderar, por simples inadimplemento da obrigação, Fabio Ulhôa Coêlho se antepõe à função social que a pessoa jurídica precisa desempenhar na nova ordem constitucional existente.

O nascimento da teoria menor pode ser considerado como uma conseqüência da inviabilidade apresentada pela teoria maior, quando aplicada a ramos do direito fragilizados com os excessos de abusos e fraudes, como o Direito do Consumidor e o Direito do Trabalho, onde a referida desconsideração não atinge os objetivos para o qual foi criada, obrigando não somente os magistrados, como os legisladores e doutrinadores a evoluírem no seu estudo, fazendo nascer a teoria menor.

3.3 NASCIMENTO DA TEORIA

Inúmeras são as versões, no que diz respeito ao momento exato de nascimento da teoria da desconsideração. Diz Nelson Rosenvald, que o primeiro caso de sua aplicação foi norte-americano, por volta de 1809, no caso entre Bank of United States vs. Deveaux, relatado pelo conhecido Juiz Marshall da Corte Suprema norte-americana.

O referido magistrado, considerando a constituição norte-americana, limitou o alcance da jurisdição federal as causas entre "cidadãos de diferentes estados", proclamou que "[...] substancialmente e essencialmente as partes do processo são acionistas, e que os seus diretos e deveres como cidadãos reconhecidos podem ser alcançados". [63] O caso norte-americano também é descrito por outros doutrinadores, entre eles, Thereza Nahas, que assim o descreve:

O juiz Marshall manteve a jurisdição das cortes federais sobre as corporations (Constituição Americana, art 3º, seção 2ª, que reserva a tais órgãos judiciais as lides entre cidadãos de diferentes estados). Ao fixar a competência acabou por desconsiderar a personalidade jurídica, sob o fundamento de que não se tratava de sociedade, mas sim de ‘sócios contentore’. [64]

Note-se que, em 1809, o Poder Judiciário de diversos países, buscavam meios de coibir as fraudes perpetradas pela pessoa jurídica, não detendo êxito em sua maioria. O aludido caso, mostra de forma clara uma desconsideração da personalidade jurídica, no momento em que o juiz busca a verdade dos fatos e dos débitos da empresa diretamente em seus sócios, que mascaravam uma situação inexistente, para fraudar a lei local.

Embora hoje este seja o primeiro caso conhecido de aplicação da teoria da desconsideração, não foi os Estados Unidos que se tornou o berço de desenvolvimento doutrinário, mas a Inglaterra, no famoso caso Salomon vs. Salomon Co. em 1897, que é descrito com riqueza de detalhes por Rubens Requião, precursor do tema no Brasil:

Em 1897, a justiça inglesa ocupou-se com um famoso caso – Salomon vc. Salomon & Co. – que envolvia o comerciante Aaron Salomon. Este empresário havia constituído uma company, em conjunto com outros seis componentes de sua família, e cedido seu fundo de comércio a sociedade que fundara, recebendo em conseqüência vinte mil ações representativas de sua contribuição, enquanto para cada um dos outros membros coube apenas uma ação para integração do valor da incorporação do fundo de comercio na nova sociedade. Salomon recebeu obrigações garantidas no valor de dez mil libras esterlinas. A sociedade logo em seguida se revelou insolvável, sendo o seu ativo insuficiente para satisfazer as obrigações garantidas, nada sobrando para os credores quirografários.

O liquidante, no interesse dos credores quirografários, sustentou que a atividade da company era atividade de Salomon, que usou de artifício para limitar a sua responsabilidade e, em conseqüência, Salomon deveria ser condenado ao pagamento dos débitos da company, devendo a soma investida na liquidação de seu crédito privilegiado ser destinada a satisfação dos credores da sociedade. O juízo de primeira instancia e depois a Corte aconselharam essa pretensão, julgando que a company era exatamente uma entidade fundiária de Salomon, ou melhor umseu agent ou trustee, e que ele, na verdade, permanecera como efetivo proprietário do fundo de comércio. Era a aplicação de um novo entendimento, desconsiderando a personalidade jurídica de que se revestia Salomon & Co.

A Casa dos Lordes reformou, unanimemente, esse entendimento, julgando que a company havia sido validamente constituída, no momento em que a lei simplesmente requeria a participação de sete pessoas, que haviam criado um pessoa diversa de si mesmas. Não existia, enfim, responsabilidade pessoal de Aaron Salomon para com os credores de Salomon & Co, e era válido o seu crédito privilegiado. [65]

Embora houvesse inúmeras decisões no mesmo sentido à época, foram reformadas em quase que sua totalidade por questões políticas, em outros casos por não existir legislação que a determinasse, sendo pontuais os posicionamentos sobre o tema, até que a mentalidade se modificasse e permitisse, como hoje, a aplicação reiterada da teoria.

Mesmo com a reforma da decisão exposta, a tese perquirida nas instâncias inferiores repercutiu, inclusive nos Estados Unidos, local de larga jurisprudência sobre a teoria, expandindo-se ainda pela Alemanha, onde obteve maior desenvolvimento doutrinário, influenciando toda a Europa, em especial a Itália e a Espanha.

A teoria da desconsideração ganhou força da década de 50, com a publicação do trabalho de Rolf Serick, professor da Universidade de Heidelberg, na Alemanha, maior estudioso da teoria no mundo, e que causou forte influência na Itália, na Espanha e inclusive no Brasil. [66]

Na Itália, foi difundida por Piero Verrucoli, professor da Universidade de Pisa, com o estudo "Il Superamento della personalitá giuridica della Societá di Capitali nella "Common Law" e nella "Civil Law"". Na Espanha, a teoria ficou conhecida pelo professor Antonio Pólo, de Barcelona (Aparencia y Realidad em lãs Sociedades Mercantiles – El Abuso de derecho por médio de la persona jurídica). [67]

Mesmo com a ampla aceitação da desconsideração na maioria dos paises europeus, somente no século XX se constatou sua vasta aplicação pelo Judiciário. Com a Revolução Industrial, em que houve crescimento das cidades, modernização dos meios de produção e conseqüentemente surgimento das grandes empresas, tornou inevitável a mudança de mentalidade da população com o fim de impedir que tais injustiças se perpetuassem como de exploração de mão-de-obra, fraudes e trabalhos degradantes por seus empregados.

3.4 DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NO DIREITO BRASILEIRO

3.4.1 Histórico

O ponto de partida da teoria da desconsideração no Brasil, remonta ao final da década de 60, quando o doutrinador Rubens Requião traduziu a monografia Rolf Serick, e posteriormente publicou, através da Revista dos Tribunais, no artigo "Abuso de Direito e Fraude através da personalidade Jurídica", considerado o marco inicial de desenvolvimento da teoria no Brasil. [68]

Com a divulgação do artigo através de uma conferência proferida pela Universidade Federal do Paraná em 1969, surge no cenário brasileiro a Desconsideração da Personalidade Jurídica, sendo, nestas linhas, o primeiro jurista no país a tratar da matéria. Desta forma, assumiu posição pioneira, dando ensejo ao aprimoramento acerca do tema, visto que, se propôs a compatibilizar a teoria ao direito pátrio, sem que houvesse legislação em nosso ordenamento que permitisse essa aplicação de forma expressa. [69]

Como se refere o próprio Rubens Requião, "[...] esse fascinante tema objeto de nosso estudo, mereceu a atenção da Comissão Revisora do Código Civil, presidida pelo professor Miguel Reale, que inspirou o artigo 49 do anteprojeto", porém, de forma muito radical. [70]

Ocorre que o referido artigo previa a dissolução da pessoa jurídica, e não a sua desconsideração temporária. Neste contexto, face ao desenvolvimento da teoria trazida por pelo autor supra, o anteprojeto foi modificado, somente ficando de forma satisfatória em 2002, com o novo Código Civil.

Na jurisprudência, antes da década de 50 eram poucas as manifestações determinando a aplicação da desconsideração às empresas executadas. Com a divulgação e o empenho dos magistrados no intuito de evitar a continuidade dessas práticas ilícitas, tornou-se freqüente a sua utilização, levando a conseqüente positivação do instituto.

3.4.2 Evolução no direito positivo

A legislação brasileira, como atualmente ainda ocorre, não acompanha a rigor a evolução de nossa doutrina e jurisprudência. O Código Civil de 1916, mesmo diante do intenso desenvolvimento da teoria no Brasil, não trouxe a possibilidade de Desconsideração da Personalidade Jurídica, muito ao contrário, vigorava de forma absoluta e ilimitada o princípio da separação, em que a pessoa jurídica, como dispunha o seu artigo 20, tinha patrimônio e personalidade distintos de seus membros, sem que estes obtivessem qualquer responsabilização em caso de abusos e fraudes.

Por não existir legislação que de forma latente a determinasse, algumas leis, com o objetivo de tentar coibir possíveis fraudes, trouxeram alguns dispositivos que vislumbravam a responsabilização dos sócios pelas obrigações contraídas pela sociedade, como o artigo 10, do Decreto nº 3.708, de 1919 [71], que regulava a constituição das sociedades por quotas de responsabilidade limitada, em casos de excesso de mandato, pelos atos praticados com violação ao contrato ou a lei.

Art. 10 - Os sócios-gerentes ou que derem o nome à firma não respondem pessoalmente pelas obrigações contraídas em nome da sociedade, mas respondem para com esta e para com terceiros solidária e ilimitadamente pelo excesso de mandato e pelos atos praticados com violação do contrato ou da lei.

Entre outros exemplos ainda podemos citar diversas leis, como a de preservação ao abuso do poder econômico, editada em 1962, sob nº 4.137 [72], em 1965, a Lei nº 4.729 [73], contra a sonegação fiscal, o Código Tributário Nacional [74], editado em 1966 (artigos 134, VII e 135) e finalmente em 1976, com a Lei nº 6.404 [75] em que dispõe sobre a sociedade anônima (artigo 158, caput e §§ 2º e 5º). [76]

Entretanto, somente em momento posterior a 1988, sob a égide da nova ordem constitucional, impregnada pelo pensamento da função social da propriedade, que impulsionou a incipiente despatrimonialização do direito civil. O primeiro reflexo surgiu com o desenvolvimento de microssistemas, como o Código de Defesa do Consumidor [77] (Lei nº 8.078 de 1990), em que trouxe pela primeira vez de forma expressa, no seu artigo 28, §5º a desconsideração da personalidade jurídica.

Hoje é pacífico, quer na doutrina, quer na jurisprudência, que a forma de aplicação da desconsideração trazida pelo aludido código, é perfeitamente plausível, mesmo a despeito de das severas críticas perpetradas por doutrinadores de notável gabarito, como Fabio Ulhôa Coelho, que a considera como fonte de incertezas e equívocos, a saber:

Contudo, tais são os desacertos do dispositivo em questão que pouca correspondência se pode identificar entre ele e a elaboração doutrinária da teoria. Com efeito, entre os fundamentos legais da desconsideração em beneficio dos consumidores, encontram-se as hipóteses caracterizadoras de responsabilização de administrador que não pressupõe nenhum superamento da forma da pessoa jurídica. Por outro lado, omite-se a fraude, principal fundamento da desconsideração. A dissonância entre o texto da lei e a doutrina nenhum proveito traz à tutela dos consumidores, ao contrario, é fonte de incertezas e equívocos. [78]

Mesmo sabendo da atualidade em que se encontram os pensamentos do autor, não há que prosperar tais críticas, tendo em vista o caráter protetivo que envolve a relação consumerista, merecendo tratamento realmente diferenciado, o que foi certamente sentido pelo legislador pátrio.

Além disso, a teoria da desconsideração, consagrada no nosso Código Civil atual, buscou disciplinar a regra geral de aplicação da respectiva teoria, deixando para a jurisprudência a as legislações específicas tratarem das possíveis exceções à regra, como ocorre com o Código de Defesa do Consumidor, a Lei Antitruste, entre outras, devendo fazer com que haja equilíbrio entre as relações, colocando o consumidor ou o trabalhador em posição de igualdade com a pessoa jurídica, caso contrário, levaria a inevitável injustiça e afronta a princípios constitucionais intangíveis, como a dignidade da pessoa humana. [79]

Acompanhando a positivação da teoria, o artigo 18 da Lei Antitruste [80] (nº 8.884 de 1994), foi o segundo dispositivo no ordenamento brasileiro a fazer menção a desconsideração, que, como lembra Fabio Ulhôa: "[...] uma das primeiras manifestações da disregard doctrine no direito norte-americano, operou-se exatamente em sede de direito antitruste" [81]. Ratifica, pois, a tutela das estruturas de livre mercado trazidas pela lei em dois momentos: na configuração de infração da ordem econômica e na aplicação da sanção.

A terceira referência legislativa foi trazida em 1998 pelo artigo 4º da lei 9.605, que dispõe sobre a responsabilidade por lesões ao meio ambiente. Apesar de nitidamente este dispositivo fazer opção pela teoria menor, como também entende Nelson Rosenvald [82], Fabio Ulhôa a identifica como teoria maior:

Desta feita, não cabe criticar o legislador por confundir a desconsideração com outras figuras do direito societário, impropriedade em que incorreu ao editar o Código de Defesa do Consumidor e a Lei Antitruste. Mas não se pode, também, interpretar a norma em tela em descompasso com os fundamentos da teoria maior. Quer dizer, na composição dos danos à qualidade do meio ambiente, a manipulação fraudulenta da autonomia patrimonial não poderá impedir a responsabilização de seus agentes. [83]

Percebe-se nitidamente que o autor não aceita a teoria menor como trazida pela lei, pois entende que somente pode ser decretada se houver a manipulação fraudulenta da sociedade, para finalmente responsabilizar seus membros. Ocorre que os legisladores não se confundiram ao editarem tais leis. Aplicam a desconsideração quando a pessoa jurídica for obstáculo ao ressarcimento dos prejuízos causados ao meio ambiente, por se referirem a bens que merecem tratamento diferenciado, estando correta a aplicação da teoria menor neste caso.

Enfim, com a edição do Novo Código Civil em 2002, a teoria da desconsideração ganhou novos contornos, voltados ao direito privado, conforme dispõe artigo 50 da referida lei:

Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica. [84]

Trouxe inovação ao estabelecer a necessidade de requerimento da parte ou do Ministério Público, além de atingir em sua redação, não somente os sócios, mas também os administradores, como esclarece Pablo stolze:

Um dos dados mais relevantes, porém, que parece estar passando despercebido é o fato de que a nova norma genérica não limita a desconsideração dos sócios, mas também a estende aos administradores da pessoa jurídica.

Esse dispositivo pode se constituir em um valiosíssimo instrumento para a efetividade da prestação jurisdicional, pois possibilita, inclusive, a responsabilização dos efetivos "senhores" da empresa, no caso – cada vez mais comum – da interposição de "testas de ferro" (vulgarmente chamados de laranjas) nos registros dos contratos sociais, quando os titulares reais da pessoa jurídica posam como meros administradores, para efeitos formais, no intuito de fraudar o interesse dos credores. [85]

Como elucidado, o Código Civil não somente apresentou a possibilidade da teoria, como permitiu ao magistrado, diante do caso concreto, responsabilizar o real autor da fraude, como ocorre com as empresas em que existe a figura do "testa de ferro". Proporcionou assim, um enorme avanço, posto que por diversos anos se deixou de coibir estas espécies de fraudes, por ausência de legislação que a permitisse.

3.4.2.1 Projeto de Lei 2.426/2003 [86]

Com o objetivo de aperfeiçoar a disciplina da desconsideração da personalidade jurídica, esteve em tramitação no Congresso Nacional o Projeto de Lei nº 2.426 de 2003, de autoria do Deputado Ricardo Fiúza [87], que se destina a disciplinar a aplicação da sanção da disregard doctrine. Esta lei federal busca regulamentar a aplicação da teoria, com seu emprego a todos os órgãos do Poder Judiciário, e em qualquer grau de jurisdição, seja civil, incluindo o direito ambiental e do consumidor, seja fiscal ou trabalhista. [88]

Para que a parte a solicite em fase de execução, determina o projeto, que este precisará fazê-lo em solicitação específica, indicando o ato praticado com fraude e as pessoas favorecidas, podendo ser declarada nula esta solicitação caso não sejam atendidos esses requisitos no ato do seu requerimento.

Assim, requer que haja um nexo de causalidade entre o agente causador do dano e o ato abusivo praticado, posto que esta relação é fundamental para a responsabilização do sócio da empresa executada. [89]

Estabelece, por conseguinte, como serão atendidos os princípios do contraditório e da ampla defesa, determinando o projeto, que este se processará em autos apartados, intimando todos os que forem atingidos pela execução, os quais terão a possibilidade de produzirem provas.

Neste ponto merece elogios o projeto, porém há que ser lembrado, que trata-se de incidente na fase executiva, e por não possuírem natureza de ação, não haverá discussão sobre qualquer assunto, somente merecendo abrigo a produção de provas, se versar sobre as hipóteses do artigo 475-L do CPC:

Art. 475-L. A impugnação somente poderá versar sobre:

I – falta ou nulidade da citação, se o processo correu à revelia;

II – inexigibilidade do título;

III – penhora incorreta ou avaliação errônea; http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2005/Lei/L11232.htm - art4

IV – ilegitimidade das partes;

V – excesso de execução;

VI – qualquer causa impeditiva, modificativa ou extintiva da obrigação, como pagamento, novação, compensação, transação ou prescrição, desde que superveniente à sentença. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2005/Lei/L11232.htm - art4

Quando a causa da desconsideração for simulação ou fraude, diz o projeto que deverá ser declarada a ineficácia dos atos de alienação e configurar a constrição de desses bens. Determina ainda que, não poderá haver a desconsideração por insolvência do patrimônio para pagamento dos débitos pela pessoa jurídica, somente atingindo os bens particulares dos membros nos casos de fraudes e abusos, conforme artigos 5º e 6º do referido diploma.

Entretanto, há casos conforme já esmiuçado, em que a insatisfação dos créditos é suficiente para restar configurada a desconsideração. A exemplo, os ramos consumerista, ambiental e trabalhista citados anteriormente. Concordamos com o posicionamento de Fredie Didier acerca do tema, onde expõe:

Nada impede que a lei crie hipóteses de responsabilidade ilimitada dos sócios, como fez em relação as questões ambientais e relativas do Direito do Consumidor. Quando o fizer, porém, já não se falará mais em desconsideração, mas de responsabilidade patrimonial ilimitada e subsidiaria. [90]

Note-se que o autor não se refere ao ramo trabalhista, por não existir legislação regulamentando, o que levaria a aplicação subsidiária do Código Civil. Nada obstante, este não poderá ser aplicado por ser nitidamente contrário aos princípios trabalhistas, sendo hoje utilizado o Código de Defesa do Consumidor, conforme será esclarecido no decorrer do trabalho.

Por derradeiro, quanto à legitimidade para postular a desconsideração da sociedade empresária, não somente reconhece como legítimos a parte e o Ministério Público, mas também admite a possibilidade de ser instaurado de ofício pelo magistrado, havendo discussões somente com relação à irrazoabilidade apresentada, quando identifica a participação do Parquet como conditio sine qua non para o deferimento da medida. Esta intervenção, de acordo com Pablo Stolze, somente se verificará necessária quando houver interesse público nesta intervenção, o que nem sempre ocorrerá. [91]

3.4.2.2 A Desconsideração da Personalidade Jurídica nos nossos Tribunais

Como se percebe em todo este trabalho, a distinção entre pessoa jurídica e pessoa física surgiu para resguardar os bens pessoais dos sócios em caso de falência das empresas. Para estas, permitiu mais segurança nos investimentos, e conseqüente benefícios para as atividades econômicas.

Infelizmente, paralelo a isso, muitos sócios se aproveitaram desta proteção para lesar seus credores, e saírem lucrando com a possível decretação de falência.

Como era de se esperar, esta situação não seria aceita pelo ordenamento jurídico, e assim, como deveras evidenciado, surgiu o instituto da desconsideração da personalidade jurídica, que permite adentrar a pessoa jurídica para que se investigue as possíveis fraudes, e se consiga satisfazer as obrigações dos respectivos credores.

Apesar das incessantes tentativas as empresas de impedirem a utilização dos bens dos sócios, nos nossos tribunais tem sido firmes no entendimento de que esta teoria deve ser aplicada, conforme de pode depreender da recente decisão do Superior Tribunal de Justiça, a saber:

RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE RESOLUÇÃO DE CONTRATO DE PROMESSA DE COMPRA E VENDA DE IMÓVEL PROPOSTA CONTRA A CONSTRUTORA E SEUS SÓCIOS. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. ART. 28, CAPUT E § 5º, DO CDC. PREJUÍZO A CONSUMIDORES. INATIVIDADE DA EMPRESA POR MÁ ADMINISTRAÇÃO.

1. Ação de resolução de contrato de promessa de compra e venda de imóvel movida contra a construtora e seus sócios.

2. Reconhecimento pelas instâncias ordinárias de que, em detrimento das consumidoras demandantes, houve inatividade da pessoa jurídica, decorrente da má administração, circunstância apta, de per si, a ensejar a desconsideração, com fundamento no art. 28, caput, do CDC.

3. No contexto das relações de consumo, em atenção ao art. 28, § 5º, do CDC, os credores não negociais da pessoa jurídica podem ter acesso ao patrimônio dos sócios, mediante a aplicação da disregard doctrine, bastando a caracterização da dificuldade de reparação dos prejuízos sofridos em face da insolvência da sociedade empresária.

4. Precedente específico desta Corte acerca do tema (REsp. nº 279.273/SP, Rel. Min. ARI PARGENDLER, Rel. p/ Acórdão Min. NANCY ANDRIGHI, Terceira Turma, DJ de 29.03.2004).

5. RECURSO ESPECIAL CONHECIDO E PROVIDO.

(REsp 737.000/MG, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, TERCEIRA TURMA, julgado em 01/09/2011, DJe 12/09/2011) [92]

Perceba que na decisão se utilizou a mais recente legislação utilizada para a desconsideração da personalidade jurídica, o Código de Defesa do Consumidor, microssistema do Direito Civil, que permitiu que não se tivesse dúvidas quanto a aplicação da teoria no Direito Consumerista.

Note-se que inclusive na ocorrência de grupo econômico, situação em que por diversas vezes é mais difícil a configuração de desvio na utilização da pessoa jurídica, já existe decisão firmada pelo STJ:

PROCESSO CIVIL. FALÊNCIA. EXTENSÃO DE EFEITOS. POSSIBILIDADE.PESSOAS FÍSICAS. ADMINISTRADORES NÃO-SÓCIOS. GRUPO ECONÔMICO. DEMONSTRAÇÃO. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. CITAÇÃO PRÉVIA. DESNECESSIDADE. AÇÃO REVOCATÓRIA. DESNECESSIDADE.

1. Em situação na qual dois grupos econômicos, unidos em torno de um propósito comum, promovem uma cadeia de negócios formalmente lícitos mas com intuito substancial de desviar patrimônio de empresa em situação pré-falimentar, é necessário que o Poder Judiciário também inove sua atuação, no intuito de encontrar meios eficazes de reverter as manobras lesivas, punindo e responsabilizando os envolvidos.

2. É possível ao juízo antecipar a decisão de estender os efeitos de sociedade falida a empresas coligadas na hipótese em que, verificando claro conluio para prejudicar credores, há transferência de bens para desvio patrimonial. Inexiste nulidade no exercício diferido do direito de defesa nessas hipóteses.

3. A extensão da falência a sociedades coligadas pode ser feita independentemente da instauração de processo autônomo. A verificação da existência de coligação entre sociedades pode ser feita com base em elementos fáticos que demonstrem a efetiva influência de um grupo societário nas decisões do outro, independentemente de se constatar a existência de participação no capital social.

4. O contador que presta serviços de administração à sociedade falida, assumindo a condição pessoal de administrador, pode ser submetido ao decreto de extensão da quebra, independentemente de ostentar a qualidade de sócio, notadamente nas hipóteses em que, estabelecido profissionalmente, presta tais serviços a diversas empresas, desenvolvendo atividade intelectual com elemento de empresa.

5. Recurso especial conhecido, mas não provido.

(REsp 1266666/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 09/08/2011, DJe 25/08/2011) [93]

Importante destacar que, nem sempre se consegue demonstrar a confusão patrimonial, ou mesmo a fraude na pessoa jurídica, existindo também decisões em contrário, pois muitas vezes a falência de uma empresa não significa insegurança jurídica de seus sócios, caso contrário, não teríamos porque existir a pessoa jurídica, se desordenadamente se pudesse se valer dos bens dos sócios.

A título de exemplo podemos citar a decisão recente do STJ, em que não foram comprovados os requisitos necessários para a utilização do instituto, o que não permitiu o uso dos bens dos sócios para pagar os credores, conforme abaixo de mostra:

RECURSO ESPECIAL Nº 693.235 - MT (2004/0140247-0) RELATOR: MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO RECORRENTE: FRANCISCA ELIZABETH CONSOLI E OUTRO ADVOGADO: OSMAR SCHNEIDER E OUTRO RECORRIDO: OLVEPAR S/A - INDÚSTRIA E COMÉRCIO - MASSA FALIDA ADVOGADO: DÉCIO JOSÉ TESSARO E OUTRO(S) EMENTA FALÊNCIA. ARRECADAÇÃO DE BENS PARTICULARES DE SÓCIOS-DIRETORES DE EMPRESA CONTROLADA PELA FALIDA. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA (DISREGARD DOCTRINE). TEORIA MAIOR. NECESSIDADE DE FUNDAMENTAÇÃO ANCORADA EM FRAUDE, ABUSO DE DIREITO OU CONFUSÃO PATRIMONIAL. RECURSO PROVIDO.

1.A teoria da desconsideração da personalidade jurídica - disregard doctrine -, conquanto encontre amparo no direito positivo brasileiro (art. 2º da Consolidação das Leis Trabalhistas, art. 28 do Código de Defesa do Consumidor, art. 4º da Lei n. 9.605/98, art. 50 do CC/02, dentre outros), deve ser aplicada com cautela, diante da previsão de autonomia e existência de patrimônios distintos entre as pessoas físicas e jurídicas.

2. A jurisprudência da Corte, em regra, dispensa ação autônoma para se levantar o véu da pessoa jurídica, mas somente em casos de abuso de direito - cujo delineamento conceitual encontra-se no art. 187 do CC/02 -, desvio de finalidade ou confusão patrimonial, é que se permite tal providência. Adota-se, assim, a "teoria maior" acerca da desconsideração da personalidade jurídica, a qual exige a configuração objetiva de tais requisitos para sua configuração.

3. No caso dos autos, houve a arrecadação de bens dos diretores de sociedade que sequer é a falida, mas apenas empresa controlada por esta, quando não se cogitava de sócios solidários, e mantida a arrecadação pelo Tribunal a quo por "possibilidade de ocorrência de desvirtuamento da empresa controlada", o que, à toda evidência, não é suficiente para a superação da personalidade jurídica. Não há notícia de qualquer indício de fraude, abuso de direito ou confusão patrimonial, circunstância que afasta a possibilidade de superação dapessoa jurídica para atingir os bens particulares dos sócios.

4. Recurso especial conhecido e provido. [94]

A teoria da desconsideração da personalidade jurídica surgiu como forma de resguardar bens e direitos, e como pudemos verificar ao longo deste trabalho, não pode significar afronta ao princípio da segurança jurídica, penalizando a pessoa jurídica e causando temor na sua instituição.

Cuida-se de instrumento imprescindível na defesa dos interesses dos credores, e no combate as fraudes através da pessoa jurídica, e que deve sempre ser utilizado quando atendidos os requisitos legalmente estabelecidos.

Os nossos tribunais nada mais fizeram do que ratificar a teoria da desconsideração, conseguindo de forma equânime e justa, identificar os casos de fraude e abusos, e fazendo com que aquelas sentenças que antes somente se efetivavam nos autos do processo, pudesse se efetivar na vida dos credores.

Sobre a autora
Livia Gomes Muniz

Advogada. Graduada pela Faculdade de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas de São Luis. Faculdade São Luis - Maranhão. advogados da Companhia Energética do Maranhão - CEMAR.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MUNIZ, Livia Gomes. A desconsideração da personalidade juridica no Brasil.: Teorias e jurisprudência. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3052, 9 nov. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20395. Acesso em: 22 nov. 2024.

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