Resumo: O presente trabalho pretende abordar a dignidade da pessoa humana na Constituição de 1988. Parte de sua evolução histórica no contexto universal, passa por sua fundamentação teórica, o estudo de sua natureza, para, focando-se então no Brasil, alcançar o significado no texto constitucional e sua aplicabilidade. Palavras-chave: Constituição de 1988. Princípios, fundamentos e valor. Direito e Política. Razão prática. Pluralismo.
Abstract: This paper intends to aproach human dignity as it is stated in the Constitution of 1988. The argument is divided in two sections. The first explores the subject in a universal context, from its historical origin to the postwar meaning. The second section focuses on the constitution of 1988; it begins with the precedent constitutions, following the effective article and its applicability. Key words: Constitution of 1988. Principles, groundings and value. Law and Politics. Pratical Reason. Pluralism.
Sumário: 1 Introdução; 2. A dignidade da pessoa humana no contexto mundial; 2.1 Lineamento Histórico 2.1.1 O período pré-constitucional; 2.1.2 A Constitucionalização do Conceito; 2.2 Fundamentos Teóricos; 2.3 Natureza Jurídica; 3 A dignidade da pessoa humana na Constituição de 1988; 3.1 Lineamentos Históricos; 3.2 O art. 1º, III; 3.3 Aplicabilidade; 4 Conclusão; 5 Referencias bibliográficas.
1 Introdução
A dignidade da pessoa humana representa o mais alto ponto axiológico da Constituição brasileira e, não obstante, pouca convergência tem agregado em torno do seu significado. Mesmo a sua qualificação jurídica desperta controvérsias, sendo reputada como princípio absoluto, como valor supremo, e outras categorias mais. O instituto vive assim uma situação paradoxal: é tido como o mais nobre do ordenamento e, ao mesmo tempo, não há consenso quanto à sua significação.
A relevância do tema não se restringe à seara teórica; em verdade sua importância é premente, dada a realidade brasileira, tão carente de dignidade humana. Nesse sentido, todo o esforço que contribua para um melhor entendimento do instituto estará auxiliando a sua maior efetividade. O presente trabalho pretende apresentar um contributo para uma melhor determinação do conteúdo e significado do art. 1°, III da Constituição, em especial no que tange à sua aplicabilidade e suas implicações institucionais para a ordem jurídico-política brasileira. Tal ambição, todavia, passa longe de simplesmente apresentar uma definição; considerando que, de um lado, a dignidade da pessoa humana diz respeito à própria condição humana e, de outro, representa o que de mais elevado e abstrato há no direito, parece mais válido analisar a idéia do que submetê-la à constrição de uma definição, talvez mesmo incompatível com a natureza de sua significação.
Nessa trilha, é de se notar que o instituto não é original do Direito brasileiro, mas é importado do direito constitucional europeu, de modo que abre o trabalho o item 2, situando a dignidade da pessoa humana no contexto mundial. Importante daí traçar o desenvolvimento da idéia, ainda enquanto conceito religioso e filosófico, até o momento em que ingressou nos textos constitucionais e, especificamente, como se deu essa juridicização, sob quais condições e com que propósitos, o que vem tratado no subitem 2.1.
O subitem 2.2 versa sobre os fundamentos teóricos da dignidade da pessoa humana, isto é, quais são os motivos que justificam sua proteção pelo Direito e a que título se dá esta proteção. Despontam duas teorias (a da dádiva e a da prestação) que possuem importância determinante no tratamento que o direito dispensará ao tema. No subitem seguinte, é abordada a natureza jurídica da dignidade da pessoa humana. A seção procura responder às perguntas que surgem após a sedimentação do instituto como parte integrante da Constituição, tais como a posição em que se situa dentro do ordenamento, que papel desempenha e como se relaciona com os demais institutos no âmbito do Estado Democrático de Direito.
O item 3 versa sobre a dignidade da pessoa humana no Brasil. Inicia-se por um breve histórico (subitem 3.1), discorrendo-se sobre como as Constituições anteriores enfrentaram o tema, até a forma como ocorreu sua adoção pela Constituição de 1988 no mais alto plano. No subitem 3.2, é abordado, de forma específica, o art. 1°, Inc. III da Lei Republicana, desde sua interpretação gramatical, passando por seus desdobramentos jurídicos até o status que o instituto possui no ordenamento pátrio.
O quanto até ali versado permite, na última seção do item 3, precisar a real incidência do conteúdo jurídico da dignidade da pessoa humana e o que se pode tirar in concreto de sua significação. Para tanto, será necessário estabelecer a relação entre a dignidade da pessoa humana com os demais fundamentos da República, sua relação com os direitos fundamentais, e, ao fim, o próprio papel da ordem jurídica no Estado Democrático de Direito e a harmonia necessária entre os três níveis do ordenamento.
Findo o desenvolvimento do trabalho, advém o item 4, com as conclusões a que se pode alcançar a partir dos fundamentos trazidos. Por derradeiro, no item 5, as referências bibliográficas, com as fontes de consulta.
2. A dignidade da pessoa humana no contexto mundial
2.1 Lineamento Histórico
2.1.1 O período pré-constitucional;
A dignidade da pessoa humana somente veio a integrar o texto constitucional com a acepção que hoje possui no segundo pós-guerra; porém, à sua juridicização precedeu um extenso percurso filosófico e teológico que remonta à Antiguidade [01]. No curso desse período pré-constitucional, a matéria foi objeto de estudo da Teologia e da Filosofia, que "preparam culturalmente o terreno" [02] para que a dignidade da pessoa humana viesse a se tornar um imperativo jurídico com o sentido que atualmente possui. A análise destas idéias é enriquecedora para a atual compreensão do instituto, de forma que cumpre apontar, ao menos, algumas das posições mais destacadas.
Para a Teologia cristã, a criação do Homem à imagem e semelhança de Deus (Gênesis, 1, 26) se apresenta como fundamento suficiente para a dignidade humana [03], pois que tal proximidade ao Criador a justificaria em si e por si [04]. Do Novo Testamento, é possível extrair ao menos dois postulados que integram o atual conceito jurídico da dignidade da pessoa humana. Primeiro, quando indagado por descumprir a lei sabática, redargúi Cristo que "o Sábado foi feito por causa do homem e não o homem por causa do Sábado" (Marcos, 2, 27), o que expõe a prevalência da pessoa humana sobre as normas, situando-a como fim e não instrumento. Outrossim, ao considerar que "não é o senhor maior do que seu servo" (João, 13, 16) apresenta o que hoje é considerado elemento indissociável da dignidade da pessoa humana, que é a igualdade entre todos os seres humanos.
A igualdade foi trazida de dogma religioso a princípio ético secular por São Tomás de Aquino [05]. A igualdade, para ele, decorre do fato de que todos os homens são por natureza iguais, o que resulta em uma igual dignidade de todos os seres humanos. A partir daí, é possível construir um sistema em que todos têm iguais direitos e deveres para com todos, donde exsurge uma natureza de reciprocidade que caracteriza o viver em sociedade como comunidade fraterna.
Ainda hoje, passados já dois mil anos, o pensamento cristão proporciona um sistema de idéias amplo e profundo com desdobramentos filosóficos riquíssimos. O fato de o ser humano ser feito "à imagem e semelhança de Deus", mas, ao mesmo tempo, moldado em "carne fraca" (Mateus, 26, 41) resulta na "transcendência como dimensão constitutiva de sua existência" [06], ou seja, o homem tem uma missão na Terra, ele é "chamado a ultrapassar a si mesmo" [07], conforme palavras do Papa João Paulo II. Neste passo, a dogmática católica oferece uma origem, um fim e um caminho para a pessoa humana, dotada de um código de ética completo e plenamente adaptável às circunstâncias mundanas mutáveis ao longo da História. A dignidade da pessoa humana consiste justamente nesta capacidade de transcender, sendo que qualquer circunstância capaz de impedir a pessoa de cumprir essa missão divina será atentatória à sua dignidade.
No campo da Filosofia, as primeiras menções que se colhe da Idade Antiga dizem com o status social, de acordo com distinção devida aos integrantes de cada estamento. [08] Também foi utilizada a dignidade para distinguir o respeito próprio a cada espécie de ser vivo, sendo a máxima dignidade atribuída ao homem. Durante o Medievo, os pensadores de maior escol se inserem dentro da corrente teológica do pensamento, cujo eixo principal já foi acima delineado. [09]
A partir da Idade Moderna, é possível, na esteira do magistério de MAURER [10], distinguir três principais linhas de pensamento acerca da dignidade: a que a considera como atributo inato da pessoa humana; a que a considera como adquirida (ou não) pela pessoa humana e, por fim, a que nega dignidade à pessoa humana. Esta última, por estar em descompasso com o atual estágio de desenvolvimento do direito, deixará de ser aqui abordada.
O primeiro grupo, no qual se destaca KANT, tem por principal característica considerar o homem como um fim em si mesmo, o que "significa que ele possui uma dignidade (um valor interno absoluto), pela qual obriga ao respeito de sua pessoa todas as demais criaturas racionais (...)" [11]. A dignidade é, assim, tida por atributo inato, universal e absoluto da pessoa humana. Essa posição, como adiante se verá, veio a exercer notável influência sobre o pensamento jurídico justamente por seu caráter absoluto, que traz por conseqüência tornar inaceitável toda e qualquer degradação a que se possa submeter a pessoa humana. Seu atual prestígio advém, igualmente, do alçar a pessoa à condição irrenunciável de sujeito, na medida em que, sendo um fim em sim mesmo, tudo o mais (e aí se inclui o Estado e o Direito) se lhe revela como instrumental. Ainda no ensinamento de KANT, é a razão que possibilita a liberdade, a autonomia da pessoa e, daí, a sua dignidade. Um ser livre e autônomo deve ter sua dignidade respeitada, é a conclusão que se impõe. [12] É o reconhecimento da dignidade em cada um, que permite reconhecer em todos a mesma dignidade, de sorte que todos são iguais em dignidade, ou, mais simplesmente, todos são iguais [13].
De acordo com a segunda linha, que possui raiz em HEGEL, a dignidade da pessoa humana não é um atributo inerente, mas condicionada à própria conduta do indivíduo, bem como a condições externas [14]. Esta posição sofre a crítica de, ao deixar de considerar toda e qualquer pessoa humana como dotada de dignidade, dar margem a um tratamento degradante àqueles a quem não seja reconhecido o atributo [15]. Por outro lado, não se pode deixar de notar que possui uma feição pragmática interessante, pois, em sendo algo a ser conquistado, o papel da sociedade e do Estado de contribuir para que todos a alcancem torna-se mais destacado. Ademais, ante a realidade da ordem concreta, principalmente de países periféricos, o reconhecimento de uma dignidade inerente contrasta com a situação real, ou seja, embora as pessoas sejam dignas, elas não estão em situação digna. Sob esse aspecto, pode-se considerar que o fato de a pessoa humana ser sempre, invariavelmente, digna, torna indiferente a ação do Estado, ao passo que, se a dignidade depende da criação de condições propícias externas, a atuação estatal torna-se assaz mais relevante. [16]
Examinando-se mais de perto o pensamento de HEGEL, tem-se que difere de KANT não tanto em sua conceituação da dignidade da pessoa humana, mas no enfoque com que aborda o tema. Lembre-se que KANT não considera o respeito à dignidade do outro como um dever jurídico [17] (mas tão somente um dever de virtude), por ter um significado demasiado vago. Já para HEGEL, a respeitabilidade da dignidade pessoa humana é um imperativo jurídico, o que justifica seu cumprimento por si só, tornando dispensável apelar para a razão ou para a autonomia. [18] Pode-se daí inferir que dignidade é compreendida como um fenômeno puramente normativo, pois sendo norma jurídica, sua efetividade não provém de um atributo da pessoa humana. E o papel que desempenhará como norma não será de outorgar uma prestação, mas de possibilitar a prestação, o que se mostra em perfeita harmonia com uma concepção jurídica da dignidade da pessoa humana. [19]
Essa diferenciação de KANT, por conta da natureza jurídica do dever de respeito, fica ainda mais clara ao se observar como HEGEL trata a matéria em sua dimensão religiosa, pois aí são encontradas referências ao homem como "fim último" [20], dotado de um "valor infinito" [21], "universal" [22] (no sentido igual para todos homens, independente de nacionalidade e de forma proibitiva à escravidão) e capaz de "determinar a si mesmo" [23]. Ou seja, quando se trata de considerar a dignidade da pessoa humana do ponto de vista religioso, ou antropológico, há notável proximidade entre os dois pensadores. E mesmo naquilo que se diferenciam, não se contrapõem, mas se complementam, de forma ainda hoje particularmente significativa. Pode-se perceber que a dignidade, como fundamento do direito, como elemento abstrato, ainda que de função justificadora e legitimadora, representa um valor absoluto e inafastável. Porém, considerada como direito (como norma) ou do ponto de vista concreto, a dignidade pode ser violada, corrompida, suprimida [24].
2.1.2 A Constitucionalização do conceito
A Constituição de Weimar pode ser considerada como precursora, pois foi a primeira a fazer expressa alusão à dignidade, em seu art. 151, III: "a disciplina da atividade econômica deve corresponder aos princípios da justiça, com vista a assegurar uma existência humana digna para todos. Nesses limites assegurar-se-á a liberdade econômica dos indivíduos." Seu pioneirismo consiste em limitar a liberdade de acordo com as necessidades de uma vida digna para todos; contudo essa limitação se dá em um âmbito assaz limitado e de aplicabilidade questionável, estando longe de constituir o valor do ser humano como centro de todo o ordenamento jurídico. A positivação da dignidade da pessoa humana com esta qualidade vai surgir apenas na década de 1940, em três documentos que podem ser considerados como marcos de uma nova fase do Direito. O primeiro é a Carta das Nações Unidas de 26 de junho de 1945, em que já se encontra a noções de dignidade e valor do ser humano, embora os direitos humanos ficassem restritos às liberdades individuais [25]. Particularmente significativo é o seguinte trecho do preâmbulo, em que os povos das Nações Unidas se declararam "resolvidos a preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra, que por duas vezes, no espaço de nossas vidas, trouxe sofrimentos indizíveis à humanidade e reafirmar a fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor do ser humano, na igualdade de direitos dos homens e das mulheres, assim como das nações grandes e pequenas". De maior influência, e ainda no âmbito do Direito Internacional, é a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 10 de dezembro de 1948, em que já no art. 1º que "todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. Eles são portadores de razão e de consciência e devem tratar uns aos outros em espírito de fraternidade". E já no âmbito do Direito Nacional, a Lei Fundamental de Bonn, que dispõe ser a dignidade do Homem intangível, a alçou à colocação mais alta da hierarquia axiológica e influenciou praticamente todas as constituições que lhe sucederam [26].
Esse, portanto, o momento histórico em que a dignidade humana, após longo trafegar através dos séculos de estudos teológicos e filosóficos, ingressou positivamente no Constitucionalismo Ocidental. Há pouco mais de meio século nenhuma Constituição prestigiava a dignidade como princípio fundamental. O que precipitou, com essa desenvoltura, a dignidade da pessoa humana de campos mais abstratos do conhecimento para a realidade jurídica dos textos constitucionais até tornar-se "centro e fim do direito" [27] para os ordenamentos constituídos após a Lei Fundamental de Bonn, podendo-se mesmo falar que alcançou o patamar de um "consenso teórico universal" [28], foram os eventos ligados à Segunda Guerra Mundial. A resposta ao totalitarismo e a autoritarismo [29] desempenhou substancial papel para a incorporação da dignidade da pessoa humana ao texto constitucional, bem como às cartas internacionais de direitos humanos.
2.2 Fundamentos Teóricos
A literatura jurídica alemã atual destaca duas dimensões da dignidade humana [30]: como valor, no sentido de ser um atributo inato, concedido a todos seres humanos (teoria da dádiva); como prestação, sendo a dignidade uma tarefa (prestação), da subjetividade humana [31], que a pessoa pode, ou não, realizar, sendo missão do Estado garantir as condições para seu cumprimento. Essas teorias pretendem descobrir não só o conteúdo da dignidade da pessoa humana, como também assentar o fundamento para sua proteção jurídica. Como ensina BARZOTTO [32], as circunstâncias históricas explicam a causa ou gênese de determinado fenômeno, ou seja, como ele veio a ocorrer; o que vai responder a pergunta "Por quê", é o fundamento, este é que o justifica.
A idéia da dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado e do Direito encontra inspiração já em ARISTÓTELES. Na obra do Estagirita, lê-se claramente que o homem existe para ser feliz [33] e que a Polis existe como meio para alcançar o bem comum [34]. Daí se extraem dois postulados de suma relevância: o de que o homem existe como um fim em si mesmo, isto é auto-realizar-se, ser feliz; o de que o Estado existe para o homem, auxiliando-o em sua missão de vida.
Dessa idéia de realização, fica patente uma visão finalística do homem, dotado de potencialidades de realização [35]. A realização dessas potencialidades está diretamente ligada às dimensões do humano, e podem ser consideradas as seguintes: econômica, ligada à satisfação de necessidade ilimitadas a partir de recursos finitos; científica, ligada ao conhecimento ou técnica como indispensável à própria sobrevivência; estética, ligada à necessidade de equilíbrio de sentimentos e emoções; religiosa, ligada à busca de um sentido para a existência; ética, ligada à persecução da felicidade por meio do livre arbítrio; política, ligada à sua natureza social. [36]
Também BARZOTTO, estribado no pensamento dos clássicos, traz uma visão da vida humana vinculada a um propósito, em que a comunidade existe como meio para a sua realização, para atingir uma "vida boa". E arrola três traços constitutivos da natureza humana: animalidade (que lhe legitima os direitos à vida e saúde), racionalidade (que demanda direitos de liberdade, educação) e sociabilidade (que se concretizará na família, no círculo social, na comunidade). [37] É esse ideal de "vida boa", tirada do pensamento grego clássico (ou de harmonia entre as diversas dimensões do humano [38]), que torna a Democracia preferível a outros regimes de governo, sendo ilustrativa, nesse sentido, a lição de DAHL, que a enaltece por propiciar as melhores condições para o florescimento das características humanas desejáveis (potencialidades) como a honestidade, a justiça, a coragem e o amor. [39]
As posições acima referenciadas se harmonizam com o pensamento de KANT no sentido de ser a dignidade da pessoa humana "uma qualidade inerente a todo e qualquer ser humano (..) constituindo um valor próprio que identifica o ser humano como tal" [40], seguindo a linha conhecida hoje como "Teoria da Dádiva". Outrossim, também conjuga elementos da Teoria da Prestação, na medida em que, se o valor do ser humano reside na sua potencialidade de se realizar, é necessária a garantia estatal para o cumprimento desta tarefa.
Como destaca SARLET, essas duas teorias não são auto-excludentes já que repousam ambas na subjetividade e autonomia do indivíduo [41], vale dizer, é a faculdade de exercício da Razão que permite à pessoa humana se auto-determinar e auto-realizar. Essa interpretação também pode ser extraída da Declaração Universal dos Direitos do Homem. Sem embargo, imediatamente após afirmar que "Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos", vem o período seguinte, como que apresentando o fundamento: "São dotados de razão e consciência e devem agir em relação aos outros em espírito de fraternidade". Assim, a razão e a consciência, que são atributos inatos de todos os seres humanos, ao menos em seu aspecto potencial, tornam todas as pessoas iguais em dignidade e direitos [42].
Não se pode deixar de notar, porém, que o dever de fraternidade proclamado não encontra fundamento na razão e consciência antes enunciados, pois a pessoa pode agir de forma consciente, racional e não fraterna. [43] Assim, há de se acrescentar também a sensibilidade [44], ou a capacidade de amar, como atributo do ser humano e que fundamenta o dever de fraternidade. Com isto, a ordem jurídica aproxima-se dos três traços de animalidade, racionalidade e sociabilidade antes apontados.
Outro aspecto de relevância diz com as diferenças culturais da humanidade, de que decorrem distintas visões do humano, e, por conseguinte, de sua dignidade. Há de se determinar, pois, se as diversas matrizes culturais culminam em posições incompatíveis entre si, ou se há uma unidade a guardá-las. HÄBERLE, com base em estudos sociológicos e psicológicos, aponta para o papel fundamental que a cultura desempenha para a própria construção da identidade. [45] Sem embargo, se a construção da identidade, ou seja, o que faz de um indivíduo ele mesmo, pode se creditado, ao menos em parte, aos elementos culturais específicos, resta claro que esse componente mutável demandará uma proteção jurídica dotada de igual flexibilidade. Todavia, tal flexibilidade, ainda na lição de HÄBERLE [46], não é ampla o bastante para impedir que se alcance uma essência una e invariável, o que acarreta um conteúdo de dignidade insuscetível de reduções culturais. Dessa feição cultural resultará que irradiações da dignidade, os direitos fundamentais, se manifestem de forma diferente nas diferentes civilizações. Contudo, há um mínimo compartilhado em todas elas que não impede que a liberdade, por exemplo, seja vivenciada dentro de uma gama de variáveis sem que perca sua natureza de liberdade. [47] Daí concluir que as dimensões natural e cultural da pessoa influenciam-se mutuamente, [48] o que acarretará que se tenha o conceito dignidade como um processo em permanente evolução. [49]
2.3 Natureza Jurídica
O momento histórico em que o conceito de dignidade da pessoa humana ingressa nos textos constitucionais, que é o segundo pós-guerra, como acima visto, caracteriza-se por um momento de questionamento quanto ao modo de se operar o direito. [50] Afinal, o direito até então vigente não serviu como meio hábil a impedir a conflagração e o aviltamento da dignidade humana. Em que pese a construção estritamente lógica elaborada por KELSEN tenha elevado o direito constitucional à condição de ciência jurídica nas primeiras décadas do século XX, a Constituição de Weimar [51], assim como a própria Democracia [52], não impediram a ascensão do Nacional-Socialismo ao poder e a seqüente nazificação da Alemanha. [53] Conforme se tira das palavras do próprio Kelsen, o ato de encerrar um indivíduo em um campo de concentração não é necessariamente um ato contrário ao direito, [54] pois a Justiça "não é um elemento do conceito de Direito." [55] Assim, uma das principais características da teoria pura do direito, é a ausência de valor, ou a ausência de pré-vinculação do direito a qualquer fim, [56] o que torna-o apto a servir a todas ideologias.
Os resultados trágicos que tal concepção do Direito trouxe para a Alemanha e para o mundo, fez surgir a questão de como impedir o Direito de vir a servir a fins desumanos. E a resposta que se teve foi a incorporação pela Constituição dos fins condizentes com a pessoa humana, isto é, a positivação de valores no texto constitucional. [57] A forma mais eficaz de impedir o Direito de se fazer servil à desumanidade é tornando indistinguível direito e humanidade; o direito é a própria justiça, e a dignidade da pessoa humana, seu expoente máximo. Ao menos no nível mais abstrato, ou fundamental, ocorre uma identificação entre direito e dignidade da pessoa humana, ou como diz BARZOTTO [58]: "Pensar a ordem jurídica a partir da consideração das pessoas humanas como fins em si mesmas significa identificar como juridicamente válido somente aquilo que favorece sua realização como pessoas." Há uma estrita vinculação do direito a um fim, ao valor, à justiça e o que escapa dessa concepção já não pode mais ser considerada como direito. A resposta ao totalitarismo marca esta nova fase do direito.
Assim ocorre o surgimento do constitucionalismo de valores, com as Cartas Políticas da Alemanha, da França e da Itália, trazendo o valor para dentro do direito, que se reedifica centrado na dignidade da pessoa humana. Destarte, se é certo que o ingresso da dignidade no Constitucionalismo seguiu a uma tradição do pensamento ocidental, também é inegável que ocorreu sob forte impacto de uma das mais agudas crises de humanidade da História, e daí seu objetivo de impedir o Direito de servir à opressão, trazendo o Homem como centro do ordenamento e estabelecendo o valor universal e incondicional da pessoa humana. Aí a Constitucionalização da dignidade ocorre da forma mais elevada, mas também mais abstrata possível, construindo uma indissociável ligação com a ciência jurídica, referenciada como "o ponto central do sistema de valores", como "princípio constitutivo", ou ainda "valor jurídico supremo", nas palavras do Tribunal Constitucional alemão [59]. Estando sua origem vinculada à proteção contra o próprio direito (ao menos ao direito vazio de valor de antes da Segunda Guerra, a exemplo das desditosamente célebres leis de Nuremberg de 1936) não é de se estranhar, que tenha sido, em um primeiro momento, associada a um conceito jusnaturalista, como um valor pré-estatal. [60]
Ainda que a abordagem jusnaturalista não seja indispensável [61], é conveniente observar que a dignidade da pessoa humana efetivamente se apresenta como o fundamento sobre o qual se assenta o Estado e a Sociedade [62]. Ela é mais do que um princípio de direito, ela é a própria origem e fim do direito [63], é a base sobre a qual se origina o ordenamento jurídico e sua proteção e promoção constitui a finalidade do Estado.
A soberania, como exercício do poder político, ao mesmo tempo em que é a manifestação da vontade do povo, também é, sempre que não exercida em consenso, a voz de sua dominação, na medida em que consiste na sujeição da coletividade à vontade de um grupo, ainda que majoritário. [64] A Política, mesmo obedecendo a regra da maioria, não oferece, por si só, proteção aos direitos humanos, aos direitos das minorias [65]. Daí a dignidade da pessoa humana exercer um verdadeiro contraponto à soberania, uma limitação ao poder [66]. Ora, se a dignidade da pessoa humana é o "fundamento de todo o direito" [67] e, se "em primeiro lugar, política diz respeito à vontade", o equilíbrio entre vontade popular e dignidade da pessoa humana diz respeito ao próprio equilíbrio entre o direito e a política. Isso resta textual na Constituição de Portugal, logo ao art. 1º: "Portugal é uma república soberana, baseada no princípio da dignidade humana e na vontade popular". Portanto, a dignidade da pessoa humana, junto com a vontade popular, constituem os dois fundamentos sobre os quais se assenta o Estado Democrático de Direito, que se influenciam e se limitam mutuamente em busca de um equilíbrio. [68]
Esse equilíbrio vem preceituado logo no art. 1° da Constituição Portuguesa, por ser realmente essencial ao arranjo institucional que constitui o Estado Democrático de Direito apoiado no Constitucionalismo de valores do segundo pós-guerra. O papel crucial desempenhado por esse ajuste deve-se ao fato de que o desequilíbrio para qualquer dos lados (i.e., a dominação de um sobre o outro) transforma-se, inevitavelmente, em opressão. Sem embargo, uma política sem a limitação do direito (concebido à luz do Constitucionalismo de valores) pode facilmente tornar-se opressão – afinal, não há limites ao poder; já o Direito que deixe de respeitar o espaço da política carecerá de legitimidade e imparcialidade, degenerando-se igualmente em opressão, o que poderia ser denominado totalitarismo jurídico. [69] Agora, quando se fala em equilíbrio, não se quer, com isso, dizer que não há supremacia do direito, como critério último de verificação de validade; quer-se, sim, dizer que o direito não pode anular a política, de forma a tomar o seu espaço e ferir a sua autonomia. [70] É esse arranjo institucional que faz com as leis sejam elaboradas por políticos, e não juristas, ao mesmo tempo em que também vai permitir que haja o controle de constitucionalidade.
Não obstante, deve ser afastada uma visão isolada de cada um dos fundamentos. Se a dignidade da pessoa humana constitui base para a Sociedade, o Estado e o Direito (de acordo com a tradição que remonta à Aristóteles) então também a vontade popular nela encontra assento, vale dizer, o fato de todos os poderes estatais emanarem do povo já tem sua premissa na dignidade humana. [71] Os direitos políticos constituem conseqüência direta da dignidade da pessoa humana e cumprem a função de materializar a autodeterminação do indivíduo e impedir que outros arroguem para si a titularidade da Justiça e dela façam uso tiranicamente, de acordo com clássica lição de MONTESQUIEU [72]. Assim, a dignidade da pessoa humana serve não só como limite à vontade popular (com o fim de evitar leis que violem os direitos humanos), mas também contribui à concepção do que seja essa vontade; de outro, o conceito jurídico de dignidade não deve ser atribuído de forma despótica, mas democraticamente. [73]
Nisto cabe destacar que a incorporação dos valores ao Direito Constitucional, na Europa do Segundo pós-guerra, foi acompanhada pela institucionalização do Tribunal Constitucional, tornando separadas as jurisdições ordinária e constitucional, em um traço essencial do Estado Democrática de Direito [74]. No arranjo institucional europeu, é ao Tribunal Constitucional que cabe à guarda dos valores constitucionais, da correspondência do direito à dignidade da pessoa humana, com o poder de decretar a inconstitucionalidade das leis contrárias. O poder de afastar uma lei, aprovada pelos representantes do povo, do ordenamento, não é anti-democrática, pois a Democracia não se esgota no princípio da maioria. A democracia exige também o respeito aos direitos fundamentais, à minoria e a igual dignidade de todos os cidadãos, o que o processo legislativo, elaborado no contraditório e na alternância, nem sempre pode salvaguardar. [75] O poder último, ou fundamental, como ensina JORGE MIRANDA, apoiado em JOHN RAWLS, não constituiu monopólio da Assembléia Legislativa ou do Supremo Tribunal, mas é detido pelos três poderes harmonicamente. [76]