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A questão das intervenções humanitárias diante da nova ordem internacional

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Agenda 21/11/2011 às 06:27

3 INTERVENÇÕES HUMANITÁRIAS: OS FINS JUSTIFICAM OS MEIOS?

Dispondo as peças sobre o tabuleiro, colocaríamos de um lado do jogo a figura soberana do rei, que exala, de primeira, a imponência do seu valor. Este por si só não representaria nada sem a presença das outras peças inferiores, que merecem o devido respeito por sua contribuição ao prosseguimento das jogadas e ao tão reclamado fair play. Elas servem como trunfos fundamentais, capazes de aflorar saídas ainda não privilegiadas pelos participantes. Assim como tais trunfos, apresenta-se o fardo inato das garantias daqueles que sustentam todo padrão de soberania, os direitos humanos. O embate entre esses dois elementos, direitos do homem e soberania, jamais será restrito a uma singela partida de xadrez, pois os valores em questão são infinitamente maiores do que qualquer xeque-mate do jogador vitorioso. Estes valores invadem uma classe superiora de ideias e certifica a ordem e a paz sobre a imperiosa humanidade. Dois valores distintos, mas primordiais para a composição das relações entre pessoas internacionais. [65] São responsáveis também por basear uma das práticas mais polêmicas do âmbito do direito internacional: as intervenções humanitárias.

Essas intervenções são tidas como o aglomerado de atividades externas que interferem direta ou (até mesmo) indiretamente sobre a soberania de determinado Estado violador dos direitos fundamentais de sua sociedade, almejando interromper a perpetuação das manifestações contrárias à essência natural do ser humano, tendo em vista as correntes e os planos humanísticos da comunidade internacional. Trata-se de uma atitude tão arriscada quão necessária à defesa dos direitos humanos passíveis de injusta agressão. É um prisma complexo e que divide opiniões. No entanto, revela-se como alternativa para a coibição dos atos extremistas dilacerados durante o estender da Segunda Guerra Mundial e que ainda subsistem com teimosia em nossos dias.

Há, outrossim, quem conteste o próprio termo "intervenção humanitária". Parte dos doutrinadores segue a pretensão de uma titulação substituta sob a terminologia de "proteção humanitária", excluindo quaisquer confusões que rodeiem a denominação. Gareth Evans e Mohamed Sahnoun são alguns desses estudiosos que simpatizam com tal adequação.

Noutro foco, intervenção equivale a uma espécie de ingerência ocorrida no vácuo internacional com norte no suprimento da carência humanitária. Em aspecto conceitual do jus gentium, intervenção e ingerência compreendem diferentes investidas sobre o espaço estrangeiro, apesar de esporádica paridade, pois:

Tanto a ingerência quanto a intervenção partem da mesma fonte imediata, qual seja, a igualdade soberana dos Estados. Todavia, o conceito de ingerência é muito mais abrangente, sendo a intervenção uma de suas modalidades. A ingerência poderia ser classificada com uma intromissão ilícita em território estrangeiro, quando se tratando e assuntos e competência exclusiva interna de Estados soberanos. Ocasião esta totalmente contrária à situação dos direitos humanos, uma vez que fazem parte da jurisdição da sociedade internacional, tornando lícita, portanto, as chamadas intervenções humanitárias [....]. [66]

A proteção dos direitos humanos autentica cada uma dessas intervenções. É fato que esta moda já se proliferou entre povos de muitas etnias, religiões e culturas. É um tema especial que merece, sobretudo, toda a atenção que lhe é empregada. Prova disso são as constantes expressões de repulsa popular a governos, facções e demais entes transgressores do ordenamento humanitário. Por exemplo, a China (país que condiciona incisivamente a vida dos seus habitantes) sofreu nítidos protestos contra seu posicionamento em face dos direitos humanos, quando da sua exposição nos Jogos Olímpicos de 2008. Os sessenta anos da Declaração Universal dos Direitos do Homem foram comemorados com euforia diante do Portão de Brandenburgo numa Alemanha livre do nazismo, onde a queda do muro de Berlim traduziu a vontade de unificação do povo clemente por dignidade. A comoção internacional pela libertação da senadora colombiana Íngrid Betancourt ainda em 2008, depois de ficar anos flagelada em poder das FARC [67] é outra amostra disso, bem como a aplicação da pena capital ao estadista iraquiano Saddam Hussein em 2006, condenado por vitimar milhares de pessoas. As vibrações ocidentais com a morte de Osama Bin Laden, já em 2011, que aliviou uma vitória sobre a incessante batalha contra a Al-Qaeda, e tantos momentos ao redor do planeta são apenas reflexos de que os direitos humanos já deixaram de ser anseios temas secundários na repercussão internacional há muito tempo. É nesse sopro que se inspiram as correntes do intervencionismo.

À guisa de melhores considerações sobre o tema, serão concedidos profundos apontamentos nas páginas subsequentes. De certo, o mais relevante dos discursos em breve reside nas intenções embutidas no instrumento de intervenção. Aqui, sobra momentaneamente a corrosão do quesito maquiavélico: será que esses fins justificam mesmo os meios interventivos?

3.1 O DIREITO DE INTERVIR

A possibilidade de interferir no comando do espaço territorial, marítimo ou aéreo de determinado Estado soberano, por ter este violado o presumido senso de proteção dos direitos humanos, faz parte de um leque de repreensões ou punições a serem aplicadas sobre tais entes violadores. A intervenção funciona como uma opção para extirpar injustiças humanitárias que podem ocorrer em qualquer lugar sob os mais diversos formatos. Pode ser comparada, inclusive, como uma eficaz munição a ser utilizada na batalha pela paz universal. Consiste num direito arraigado dentro da comunidade internacional, e que pode ser acionado a todo tempo, sempre que as circunstâncias o exigirem. Sua natureza está adstrita na própria esfera das relações internacionais, sendo a quebra da soberania vista amiúde como penalidade jurídica, se homologada pela chefia competente da ONU. O seu fato gerador é representado pela incidência de lesões aos direitos fundamentais dos indivíduos.

A degradação da vida humana; a tirania opressora dos ditadores; as privações ilegais de liberdade; a coação exagerada; o desamparo da fome, da pobreza e da miséria; o perigo dos crimes contra a humanidade (genocídio, atos atrozes, perseguição grupal, repressão política); isso tudo demonstra a necessidade de medidas enérgicas de proteção aos direitos humanos como as intervenções internacionais, motivo por que o direito de intervir vem se tornando habitual na modernidade geopolítica mundial.

Em se tratando dos países estrangeiros como usuários do direito de intervenção, é preciso ressaltar que esta deve ser assimilada tanto no meio exterior como dentro do Estado interventor. Segundo André Regis, a assimilação supracitada tem coerência com o empreendimento democrático, pelo qual os cidadãos tomam conhecimento do limiar estratégico desse intervencionismo. O pensamento é traduzido com as seguintes palavras, in verbis:

Numa democracia, o suporte político dos cidadãos é uma condição moralmente necessária para qualquer intervenção humanitária. Se os cidadãos rejeitam a ideia de Guerra Justa, pois acreditam que as guerras só devem ser promovidas para garantir os próprios interesses estratégicos dos Estados, então intervenções humanitárias serão inviáveis do ponto de vista político. É interessante observarmos que, em regra, a opinião pública interna dos países com capacidade de intervenção tende a aceitar o custo, em termos de vidas dos combatentes, em guerras motivadas pelo interesse nacional, como, por exemplo, luta por aquisição ou manutenção de território; contudo, isso não acontece com relação às intervenções humanitárias. Ainda quanto à influência da política interna, devemos destacar que os governantes tendem, antes de tomar qualquer decisão sobre possível intervenção, a analisar o que eles poderão ganhar ou perder eleitoralmente com a intervenção. [68](grifo nosso)

Com isso, entende-se que nem sempre a teia intervencionista está desvencilhada do fenômeno democrático, haja vista que, de acordo com este, o povo se presume ciente plenamente acerca de todas as decisões concluídas pelo seu Estado. A Guerra Justa [69], neste caso, refere-se à luta intensa em benefício dos indefesos, daqueles que não reúnem condições de tutelar suas garantias essenciais. Enfim, as intervenções amoldam-se ao padrão de Guerra Justa, à medida que a reprovação imediata das injustiças já entrou num consenso geral entre todos (assim como vimos logo nos primeiros trechos deste trabalho).

Quanto ao emprego de força armada nas ações interventivas, ainda há um sério e controverso problema que assola a questão. Na Carta das Nações Unidas, inclusive, a recorrência bélica das intervenções é terminantemente proibida, excetuando-se a proteção do interesse comum. O problema concerne no fato de que ainda "não há uma definição pacífica do que seja o interesse comum, nem tampouco de quem tem autoridade para defini-lo". [70] A onda de desconfiança e de discórdia, notadamente resultante da performance duvidosa dos Estados Unidos na liderança mundial, também é outro agravante para esta situação, já que o Estado americano comanda boa parte das intervenções efetivadas.

É sensato lembrar que, além de zelar pelo arroubo dos direitos humanos, a investida dos interventores se contrapõe à manutenção da soberania estatal. Entra em cena, aqui, o dilema central da tática intervencionista: o que vale mais, os direitos humanos intrínsecos a cada indivíduo ou o favorecimento peculiar conferido aos Estados soberanos?

Esta pergunta é veemente para toda a metodologia do intervencionismo e provoca múltiplas deliberações quanto à impressão do mesmo. Pode ser simplificada por meio do seguinte esquema:

Organograma 1: Ilustração sobre a reflexão que cerca as intervenções.

DILEMA DAS INTERVENÇÕES HUMANITÁRIAS

 

Qual deles merece maior proteção?

A pessoa humana ou o Estado soberano?

Fonte: Próprio autor.

Já propomos que os dois conceitos (soberania e direitos do homem) são naturalmente contraditórios e dignos de grande e rebuscada análise. Desde os tempos do Tratado de Vestfália de 1648, a soberania vem se lapidando consoante matrizes de igualdade jurídica dos Estados. De lá para cá, "o princípio da soberania vem sofrendo progressivos desgastes no sentido de atender às necessidades de uma nova ordem jurídica internacional" [71] que vem se impondo de maneira bastante paulatina.

A conduta impiedosa adotada em nome do Estado, na Segunda Grande Guerra, e que lhe arrogou caráter totalitarista e militar, serviu como chamada emergencial para o apropriado trato dos direitos humanos e a criação de uma zona definidora da extensão soberana até então ilimitada. O Nazifascismo que se espalhou na Europa durante o século XVIII foi o baluarte para ações infames contra a vida e a democracia. A Alemanha nazista de Adolf Hitler e a Itália fascista de Benito Mussolini foram edificadas a partir de um nacionalismo extremado que cultuou o orgulho patriota, o combate à liberdade e a superioridade racial (arianismo para os alemães). A Segunda Guerra Mundial deflagrou um cenário de catástrofe, onde imperava a carnificina da caçada aos judeus, ciganos, homossexuais, comunistas, negros, soviéticos, eslavos e outros inocentes. Sobre isso:

O certo é que entre 1939 e 1945 desencadeou-se o mais cruel e generalizado conflito bélico entre potências mundiais, com um saldo de milhões de mortos e as piores atrocidades cometidas. Elementos ideológicos recolhidos do biologismo deram o discurso de justificação ao hitlerismo; a "ditadura do proletariado" marxista e a utopia da sociedade sem classes ou comunismo brindaram os instrumentos ideológicos de justificação do stalinismo; o liberalismo do século XVIII e começos do século XIX foi, junto com a teoria da necessidade, a ideologia de justificação do aniquilamento nuclear das populações civis de Hiroshima e Nagasaki. [72]

Como se percebe, muitas são as justificativas para violações dos direitos humanos em face do poderio soberanos de Estados-nações. A retórica dessas ideologias atraiu (e atrai até hoje) adeptos de amplos setores sociais, conseguindo força e voracidade. No tocante à influência persuasiva desses regimes sobre seus comandados, acrescenta-se que:

Cada atrocidade foi cometida em nome da "humanidade" e da "justiça". Cada um dizia que queria "libertar" o homem (o "super-homem" criador do "mito democrático", ou libertar todos os homens da exploração do capital ou do Estado). Cada ideologia tinha "sua" ideia do homem e, na medida em que a realizava, tudo estava justificado pela necessidade. Daí nenhuma delas poder deter-se em obstáculos formais e se orientar por seu próprio "direito natural". [73]

Realmente, o holocausto abrigou um desastre terrível, que jamais deverá ser reinventado, exterminando multidões em prol da exaltação do poder estatal, o que foi um alerta às autoridades mundiais para exercer com cautela a proteção dos direitos humanos. A constante empírica da Segunda Guerra aliada com a conscientização internacional pela prevenção de novos extermínios empreendeu os alicerces da fundação da ONU, organismo voltado à preocupação com os direitos humanos de porte nunca dantes visto na história. Assim como entidades da mesma linhagem, a ONU surgiu para conter a periculosidade de uma nova guerra entre superpotências, livremente se baseando na filosofia da harmonia eterna estatuída num opúsculo de Immanuel Kant. A Declaração Universal de 1948 veio justamente para pôr a termo os objetivos da ONU, surgindo concomitantemente com o diploma seccional da Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem.

A Guerra Fria, sucedida entre 1945 e 1991, não só repartiu o mundo em dois blocos hegemônicos (de um lado, o capitalismo americano e, do outro, o socialismo soviético) como também foi um período de enorme cautela para os defensores dos direitos humanos, razão por que a sociedade internacional ficou vigilante sobre as incertas ameaças de um conflito propriamente dito. Neste momento, transige-se a ideia de expandir o tema dos direitos humanos para o campo universal, não os deixando mais contidos na jurisdição doméstica dos Estados. Projetou-se, desse modo, a tendência da internacionalização dos direitos do homem.

O grau de respeito aos direitos humanos transformou-se num dos principais elementos para aferir-se a inserção de determinado país na Comunidade Internacional. Com isso, os direitos humanos deixaram de ser uma questão de domínio reservado dos Estados e ganharam o status de tema global [...]. [74](grifo nosso)

Por outra ótica, essa internacionalização (ponto já observado anteriormente) instiga o ânimo do direito de intervir, dado que esse processo eleva a pretensão humanitária a um patamar superior, não sobrando apenas nas míseras linhas do ordenamento de cada Estado. Com o sucedâneo internacionalista, a proteção dos direitos humanos avistou novos e amplos horizontes através de acordos, tratados e convenções mundiais acerca dessa questão. Em igual proporção, foram se torneando sistemas regionais e periféricos de direitos humanos, típicos de determinadas regiões ou continentes, ativando de forma subsidiária os remédios humanitários do regime autorizado de controle estatal. É o caso dos já citados complexos normativos Americano, Europeu e Africano, bem como a Liga Árabe. Flávia Piovesan complementa que:

[...] a Carta das Nações Unidas de 1945 consolida, assim, o movimento de internacionalização dos direitos humanos, a partir do consenso de Estados que elevam a promoção desses direitos a propósito e finalidade das Nações Unidas. Definitivamente, a relação de um Estado com seus nacionais passa a ser uma problemática internacional, objeto das instituições internacionais e do direito internacional. [75]

Como frisamos antes, os direitos humanos são universais e imprescritíveis, devendo ser alvo do respeito geral. Inclusive, sobre este entendimento repousam as previsões de inúmeras Constituições pelo mundo. Enquanto isso, o Estado vem se distanciando do modelo hobbesiano, tendo sua soberania abalada de maneira significativa na atualidade. Destarte, o direito de intervir ultrapassa o atributo soberano em detrimento dos desmandos do Estado, para pôr em efetividade os preceitos humanitários. Sobre a posição privilegiada dos direitos humanos neste ramo, o catedrático jurisperito Antônio Augusto Cançado Trindade pontua relevante opinião, in verbis:

[...] o Estado que não respeita os mais basilares direitos humanos, que oprime e castiga seus súditos, que faz discriminações graves contra parcelas de sua população por motivos étnicos, raciais, sexuais, religiosos e condutas similares, não têm, pelo menos do ponto de vistas moral, direito à soberania, à autodeterminação, à igualdade, entre outros. (grifo nosso)

No Brasil, a potencial valia dessas garantias básicas vem disposta nas palavras da Emenda Constitucional nº 45, publicada em dezembro de 2004, que confere caráter constitucional aos tratados e acordos internacionais de direitos humanos aprovados no Congresso Nacional. Além disso, os direitos humanos têm presença registrada no rol taxativo de cláusulas pétreas da nossa Carta Magna (art. 60, § 4º, IV, CF/88).

Pouco importando a nacionalidade, a luta incansável em favor dos direitos do homem passa a ser de preocupação internacional, responsabilizando todos aqueles que ousarem atentar contra a estabilidade humanitária. O direito de intervenção sobre a soberania alheia emerge como instrumento de proteção nessa causa. Ab alto, muito da disseminação desse ímpeto deve-se à popularização da Declaração Universal e à estruturação do Direito Internacional dos Direitos Humanos. O tratamento especial dos direitos fundamentais se arvora na feição simbólica e artificial dos mesmos, a qual embrenha o abismo havido entre a sua idealização e a sua concretização.

Antes de qualquer coisa, é cabível sublinhar que a segurança da intervenção logra de impressões subjetivas que constrangem a sensibilidade humana de tal modo que não se vê outra saída a não ser interferir drasticamente sobre o problema para acabar com o mal-estar. Eis o cunho subjetivo do direito de intervir em domínios estrangeiros. Ainda assim, é extremamente viável saber usar a prerrogativa intervencionista, visto que há momentos em que é possível dispensá-la, porquanto se desconhece grande porcentagem das crises humanitárias hodiernas, sendo que algumas delas poderiam ser apaziguadas sem necessidade de intervenções agressivas. O senso da ponderação é vital nesse tracejo.

3.2 COOPERAÇÃO INTERNACIONAL

Tendo como plataforma o ambiente exterior, revigora-se uma teia de contatos entre diferentes Estados estrangeiros. Este tem sido um fado cada vez mais presente no sistema internacional, que se ajusta aos moldes de relações políticas, sociais e econômicas mantida entre os países. O próprio sistema, com sua natureza anárquica, ainda se depara com pendências à defesa da soberania. De certa forma, isso diminui a resolução das lides humanitárias, especialmente no que se refere às intervenções, que encontram seu déficit nas barreiras levantadas pela imagem máxima da soberania.

Todo comportamento estatal surte reflexos nesse sistema, ensejando, direta ou indiretamente, efeitos sobre os demais Estados da comunidade. Essa é uma fórmula basilar para o conjunto internacional: toda ação sempre acaba gerando uma reação. Dessa condição advêm os conflitos externos, nos quais se opõem os interesses das nações. Isso representa, lamentavelmente, uma colaboração de fundo negativo para o sistema internacional. Resta prejudicado também o módulo de cooperação nessa rede, como explanaremos adiante.

Buscando amenizar a irrisão instaurada pelos reflexos nocivos que maculam a ordem da plataforma internacional, é conveniente que se elaborem regimes para conter tais malefícios. Muito se pensou acerca de um regime mundial de governo [76], que tomaria conta de setores específicos para a vivência da humanidade, exercendo supremacia sobre todos os Estados, projeto que fracassa na falta de unicidade do sistema internacional, devido à difícil conjugação deste que agrega divergências gritantes.

Para André Regis, o mundo precisa ser visto com exclusividade humanitária, porém a onda de estatalidade política não propicia esse intento:

Na realidade, o mundo hoje ainda é bastante parecido com o mundo de Vestfália quanto à sua divisão política. Ou seja, o sistema internacional, por ser formado a partir de células individuais – os Estados – não permite a substituição da fragmentação política responsável pela geração das visões parciais comprometidas com os interesses estatais. Como consequência, as políticas governamentais não levam em consideração o que seria melhor para o mundo como unidade humanística: o que prevalece sempre é o que é melhor para o próprio Estado. [77]

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Esse ponto de vista estatal representa obstáculo à consecução da plena cooperação porque, quando o Estado empenha-se em resolver discussões internas, esquecendo daquelas fora da sua abrangência, ele vira as costas para o movimento cooperativo prestigiado no seio internacional. Talvez fosse vantagem a estipulação de um organismo apto em articular relações internacionais no sentido da cooperação recíproca, já que a ONU assume limitadamente este encargo.

Por causa da lacuna de um regulamento geral, a cooperação passa a ser exercida de acordo com a especificidade de cada gênero das relações externas, tanto que aquela se rateia em contumazes segmentos: cooperação militar, cooperação cultural, cooperação tecnológica, cooperação econômica, etc. De acordo com tais naturezas, surgem entidades distintas para cada papel: Organização Mundial do Comércio (OMC), Organização Internacional do Trabalho (OIT), Fundo Monetário Internacional (FMI), dentre inúmeras outras.

Assim é ornamentado o sistema internacional, onde a falta de poder regulador universal é suprida pela atividade de instituições multilaterais sobre assuntos de interesse dos Estados. Nesse caso, a debilidade humanitária relaciona-se com o desleixo estatal em face da proteção da dignidade do homem. Disso aflora a precariedade dos direitos humanos que ainda desfigura o sistema internacional, o que omite a acepção cooperativa na seara em foco.

Questionamento necessário acerca do tema se instala no tocante à procedência do instinto da cooperação num mundo tomado pela hegemonia de pequeno número de Estados sobre outros menos desenvolvidos. Depois do Tratado de Vesfália, a política de relações internacionais tem sido conivente com a liderança hegemônica de uma superpotência estatal, posto insofismavelmente atribuído hoje aos Estados Unidos da América. Nihil obstat, até mesmo a fixação dessa hegemonia pode ajudar na missão cooperativa ao diligenciar regimes internacionais [78].

De acordo com Robert Keohane:

[...] manter um regime internacional é mais fácil do que criá-lo. Os regimes internacionais podem constituir-se nos principais responsáveis pela cooperação internacional. Os atuais regimes internacionais foram resultado do esforço americano para criar uma nova ordem internacional liberal que favorecesse o desenvolvimento do liberalismo para a promoção da expansão do capitalismo. Por isso, depois da 2ª Guerra Mundial as instituições criadas podem ser divididas em dois grupos. O primeiro liderado pela ONU, voltado para a garantia da paz internacional, e o segundo, voltado para a liberalização do comércio internacional. É nesse segundo grupo que encontramos o GATT, o FMI, o Banco Mundial, por exemplo. [...] A cooperação somente se torna necessária num contexto de discórdia. Assim, para evitarem os efeitos negativos da discórdia, os Estados negociam e barganham mediante o emprego de políticas de coordenação. [79]

Se o comportamento entre Estados é, em regra, tido como anárquico, o sistema em si deve lançar mão de mecanismos de cooperação, almejando amenizar a multiplicação da discórdia entre os estrangeiros. A própria anarquia foi e será eternamente ligada ao sistema internacional, cuja cooperação sobressai à existência dos conflitos. Mister, aqui, é aguçar o fato de que a cooperação embarca no êxito da supressão das desavenças reais e/ou potenciais. A conservação da harmonia em meio ao confronto de distintos anseios dos Estados consiste no objeto precursor da cooperação suficiente para reger os liames internacionais.

Diante da dificuldade em reprimir a anarquia do meio externo, a ideologia de distribuição da gestão sobre o sistema parece ter bom grado, ao passo que se inaugura a noção de balança (racionalização) de poder. Por meio desta, previne-se equívocos relativos ao exercício demasiado do poder por certa potência dominante. Desse jeito, a balança de poder tende a ser unipolar, bipolar ou multipolar, seguindo à risca toda a disputa dos Estados pela hegemonia universal.

Então, a expectativa colocada em cima da melhor cooperação entre países incorpora significativa exposição dos esforços mundiais pela paz e pela tranquila convivência entre os povos. Cooperar, neste instante, sintetiza a procura de um lugar-comum entre os interesses conflitantes dos Estados, apesar de muitas serem as provações que estorvam essa finalidade. Entretanto, questão da cooperação é vetor de suma importância e que deve ser pretendido hic et nunc.

3.3 PARADIGMAS DO INTERVENCIONISMO: REALISMO E GLOBALISMO

A radical transformação provocada pela globalização a partir do século XX, açodada com o pós-Guerra Fria [80], ofereceu a propositura de uma nova ordem para o mundo inteiro, na qual havia revolução contundente quanto ás relações internacionais. Desmoronou-se, assim, o arcaico protótipo de ter apenas Estados atuando em nível internacional, enquanto se descobrem outras figuras com habilidades para tanto. É o que acontece com as empresas transnacionais, as ONGs, os blocos econômicos e a pessoa humana em particular. De todas essas, surpreende-nos a participação individual do homem como agente decisivo em tal lista.

Em frente da sua nova condição, o ser humano não relutou em usufruir de suas funções como elemento justificado no recente diagrama mundial. Pelo contrário, ele se engajou ainda mais nessas causas, concorrendo em feitos e fazendo por merecer essa maior segurança à sua espécie. Em se tratando dessa realização, as forças intrépidas dispostas em tal órbita visam dirimir a barbárie que acarreta sofrimentos desumanos, mitigando as relações internacionais e corroborando a estabilidade global. Bastante se consome neste ponto a eficiência das intervenções humanitárias no que concerne á difusão dessa proteção.

Tendo como enfoque o intervencionismo, há a assunção de duas teorias para a análise das relações no meio internacional sob o contexto universal, quais sejam o realismo e o globalismo.

Das duas correntes, certamente a mais remota é o realismo. As aspirações de Tucídides (471-400 a.C) sobre a Guerra do Peloponeso entre Atenas e Esparta já revelavam inclinações realistas, no que se refere ao palco do poderio helênico. Mesmo tendo sua raiz histórica ligada à Antiguidade Clássica, o realismo só adquiriu esta denominação muito tempo depois. O realismo ganhou a forma como é visto hoje logo depois da Primeira Guerra Mundial. O surgimento da Liga das Nações [81] no cenário mundial para o trato de conflitos internacionais, tentando evitar o perigo de outra guerra, não foi apreciado com entusiasmo pelos chamados realistas, que nutriam descrença na capacidade de garantia da paz por parte da Liga. Inclusive, os mesmos realistas faziam menção aos simpatizantes da Liga das Nações como "utopistas", "idealistas" e "visionários". São princípios básicos do realismo:

- Especialidade: Os Estados são peças-chave de todo o sistema, sendo fundamentais para o desenvolvimento da política internacional;

- Exclusividade: Os Estados atuam como elemento unitário, isto é, eles são os únicos a exercer a representação oriunda da política internacional;

- Racionalidade: Os Estados dirigem suas decisões de modo racional, à medida que examinam possibilidades, maximizam proveitos e reduzem prejuízos para eles mesmos;

- Hierarquia das questões internacionais: Os temas mais relevantes do sistema internacional são aqueles envolvendo a segurança do Estado, restando, em segundo plano, as questões sociais, ambientais, culturais, etc. Primeiro vem a integridade estatal para que, depois, se possa garantir o esclarecimento de outros pontos.

Segundo a égide realista, propugna-se veementemente o poder pertencente ao Estado soberano. Nicolau Maquiavel e Jacques Bossuet foram exemplos de realistas natos que contribuíram para a edificação teórica do pensamento. A real e absoluta preponderância da arena internacional centra-se nos Estados, dos quais se extraem as demais concatenações exteriores.

No entanto, há intenso debate entre os realistas quanto à visão estática do poder estatal, podendo ser enxergado este de maneira isolada ou conjunta. Destarte, o poder de um Estado ou pode partir da junção de todas as suas próprias forças ou pode ser mensurado através da sua influência perante entes de igual magnitude. Terceira corrente realista acredita que o poder procede do índice de interação de um Estado com os demais. As diferentes prospecções em torno do advento desse poder prostram-se ante a noção de que o poder é fruto do influxo, do controle ou da ousadia dos Estados uns com os outros.

Ademais, os realistas asseveram que a anarquia [82] constante no sistema internacional "refere-se simplesmente à ausência de qualquer autoridade acima dos Estados soberanos" [83]. É plausível considerar ainda o realismo como premissa discutível nos pontos de vista neoliberal e cooperativo:

Tanto o realismo quanto o neoliberalismo partem do pressuposto de que a falta de uma autoridade soberana que possa fazer e garantir os acordos cria a oportunidade para os Estados buscarem seus interesses de modo unilateral, tornando a cooperação extremamente difícil de ser alcançada. Os Estados temem que os outros busquem obter vantagens sobre eles. Logo, os acordos devem ser moldados de modo a minimizar o perigo provocado pela desconfiança; as circunstâncias que possibilitaram um certo acordo numa determinada época podem mudar, tornando difícil o respeito ao acordo pactuado. As promessas e as ameaças devem ser levadas a sério. [...] A afinidade entre o realismo e o neoliberalismo institucionalista não é a única razão para duvidarmos da afirmação de que não existe lugar para cooperação no realismo. Essa visão implica dizer que os conflitos de interesses são totais, e que sempre que um Estado ganhar outros irão perder. Contudo, esse jogo de soma-zero não é plausível. A crença em uma política internacional caracterizada pela barganha constante, que é fundamental para o realismo (mas não apenas para o realismo), significa uma mistura de interesses comuns e conflitantes. [84]

Prima facie, o realismo prega a plena independência de cada Estado-nação, onde cada qual obtém autoridade irrestrita dentro da sua faixa territorial, porém peca nas disposições protetivas de direitos humanos. O porquê desta falha refere-se à negação do internacionalismo e á imposição de previsões humanitárias apenas ao ordenamento nacional de cada país. Entende-se, com tudo isso, que a doutrina do realismo impede qualquer atividade intervencionista que venha a se efetuar no âmbito internacional, pois a mesma revigora o obsoleto status intransponível da soberania dos Estados.

Em outro aspecto, o globalismo vem sendo encarado como uma plataforma de apuração das relações internacionais com cunho capitalista suscitado a partir da nova era de globalização. Na verdade, o globalismo é mais um produto da contemporaneidade, que atende às exigências da sociedade moderna e ávida por inovações. A propósito, os globalistas (fazendo jus à sua designação) apontam sua ideologia para a hodierna realidade do globo, na qual impera uma variedade de agentes (além dos Estados) na conexão das relações internacionais. Aqui reside uma das maiores (senão a maior) disparidades entre o globalismo e o realismo: a aceitação ou não de outras pessoas internacionais na provocação de pleitos desse porte. A visão providencial do globalismo acentua o fato de que os Estados tiveram sua autonomia relativizada com o lapso temporal, abrindo vaga no campo internacional para outros atores, até então secundários. A geração de empregos, a circulação de riquezas, o crescimento das economias, a equiparação de países emergentes e o limiar da nova ordem mundial foram alguns dos fatores que custearam a tese globalista. Isso se deu em virtude da relevância auferida pelas entidades subsidiárias (em especial, as multinacionais), que reúnem em suas mãos boa parte da faculdade decisória do mundo, o que reflete sua notoriedade para reger as balanças econômicas atuais. Os maus bocados vividos pelo FMI, ocorridos com a descentralização do capital, são um exemplar efeito deste fenômeno.

É imprescindível também a delimitação dos principais pontos sobre o conteúdo globalista, quais sejam:

- Pluralidade de agentes: Os Estados não atuam mais como os únicos sujeitos da esfera internacional, passando a integrar o conglomerado com outros sujeitos nunca antes assim considerados;

- Capitalismo: Tanto realistas como globalistas confirmam o sistema anárquico internacional, sendo que os primeiros acreditam na repartição de poderes entre os países, ao passo que os últimos confiam no predomínio capitalista para ofuscar o controle mundial dos Estados. O globalismo persiste na priorização do capitalismo como motor para o andamento do progresso econômico, porquanto o socialismo definhou-se a partir do fim da Guerra Fria e do fracasso pela divisão da Europa com a "cortina de ferro";

- Teoria da dependência: Patenteada pelos globalistas, explica o desenvolvimento e o subdesenvolvimento internacional ao estimar o grau de integração dos Estados no ambiente capitalista;

O neoliberalismo, que preza pela não-intermediação do Estado sobre os rumos da sua economia, mobiliza os Estados na direção da extensão dos caracteres anárquicos, altamente danosos a empresas e grupos transnacionais que monopolizam as relações comerciais.

Com fulcro na égide humanista, a corrente do globalismo convalesce a prática do intervencionismo, haja vista que retorna a tratar das relações internacionais conforme disposições neste ângulo. Vejamos:

[...] em primeiro lugar, observa-se que, num mundo marcado pela expansão do capitalismo e do agigantamento das empresas transnacionais, microconflitos intraestatais, responsáveis pela perpetração de crimes contra a humanidade, constituem uma ameaça para a liberdade de comércio de bens e serviços. Logo, esses conflitos só podem dar prejuízos às empresas transnacionais pela simples diminuição dos mercados consumidores. Em segundo lugar, num ambiente não dominado pelas questões militares, os fóruns internacionais poderiam dedicar-se à discussão sobre outros temas de natureza sócio-econômica, como, por exemplo, as intervenções humanitárias. E finalmente, caso os Estados se enfraqueçam a ponto de provocar uma redefinição do conceito de soberania, ficará mais fácil, em termos normativos, criar um sistema internacional de proteção humana. [85](grifo nosso)

Em suma, o realismo e o globalismo constituem elucidativa carga de estudo para o sistema internacional e todos os relacionamentos que dele exalam. Ademais, ambas carregam em si o caminho evolutivo das justificativas intervencionistas, tomando por base a soberania, os direitos humanos e a comunidade internacional, conforme explícito na tabela abaixo:

Tabela 1: Tipos de justificativas das intervenções segundo o realismo e o globalismo.

Realismo Puro

Comunidade internacional contemporânea

Globalismo Puro

 

(1)

O poder faz o direito.

(2)

Auto-preserva-

ção

(3)

Consenti-

mento do governo sujeito à interven-

ção.

(4)

Colapso da autorida-

de go-

verna-

mental do Estado sujeito à interven-

ção.

(5)

Consenso da comuni-

dade internacio-

nal.

(6)

Valores ou princípios universais.

(7)

Autoridade governa-

mental global.

Fonte: REGIS, André. Intervenções nem sempre humanitárias: O realismo nas relações internacionais. João Pessoa: Editora Universitária da UFPB, 2006, p. 129.

3.4 O PAPEL DA ONU E DO SEU CONSELHO DE SEGURANÇA

Logo após o desfecho da Segunda Guerra Mundial, alguns Estados, exaustos e sensibilizados com as abomináveis sequelas dos regimes totalitaristas, em 1943, durante reunião plena em Moscou, lançaram-se as pioneiras ideias de constituição de um órgão mundialmente humanitário, somente elencando, nesta ocasião, os fundamentos básicos deste projeto. Ainda neste mesmo ano, um quorum maior de Estados buscou, em Teerã, alicerçar ainda mais tal plano estratégico. No ano de 1944 que Washington, capital norte-americana, sediou mais um encontro internacional, onde houve avanço significativo nesta direção. Porém, somente em 26 de junho de 1945, imbuídos pela proteção das prerrogativas mínimas da humanidade, precisamente 51 Estados assinara a Carta de São Francisco, que vigorou a partir de 24 de outubro de 1945, a qual compreendia a base da conjuntura estrutural da Organização das Nações Unidas (ONU) e o seu comprometimento na luta contra massacres aos direitos humanos. Hoje, a ONU é entidade de enorme influência universal e externa as suas atividades por meio de seis idiomas oficiais: inglês, espanhol, árabe, russo, francês e chinês. Isto representa a meta onusiana de alcançar múltiplos públicos em torno do planeta.

O sistema das Nações Unidas para a proteção dos direitos humanos contém normas de alcance geral, quais sejam aquelas destinadas à proteção de todos e quaisquer indivíduos do mundo, de forma genérica e abstrata, e sistemas especiais de proteção, direcionados a grupos particulares de indivíduos, a exemplo dos refugiados. [86]

Todos aqueles países que se tornarem signatários do regime proposto pela ONU integram a comunidade internacional e, simultaneamente, abdicam de porção das suas soberanias para a fortificação da instituição universal. Por conseguinte, tal renúncia tácita remete à relativização da soberania, que serve de padrão para o intervencionismo. A ONU saiu da inércia quanto à condução de intervenções estrangeiras em 1967, na cautela humanitária incidente sobre conflitos no Terceiro Mundo (apartheid [87] e manifestações anticolonialistas).

A competência para intervir da ONU se demonstra a partir das violações concretas, praticadas pelos Estados soberanos, contrapostas à integridade dos direitos da pessoa humana. Com isso, deixa-se para o lado os anseios exclusivos do Estado para salvar os caracteres definidores do bem estar de cada indivíduo. Não obstante a expressividade de tais conceitos, muito se delibera ainda acerca da prevalência da matéria interventiva sobre assuntos internos da personalidade estatal.

Certamente, a repartição de maior prestígio na ONU é a sua Assembleia Geral. Ela é responsável por solver questões elementares para a instituição (como orçamento, admissão e expulsão de membros, etc.), sendo formada por 191 Estados, todos votantes nas decisões ativas da ONU, além de ser presidida por representante hábil, escolhido dentre os seus integrantes para exercer mandato de 2 anos.

Em outro ponto da hierarquia institucional, por mais que haja uma Comissão de Direitos Humanos dentro da organização onusiana, esta fica apenas restringida ao preparo de tratados e congêneres protetores da natureza humana. Em sede de intervenções humanitárias internacionais, o órgão das Nações Unidas com maior importância sobre o tema é o Conselho de Segurança. A ele é atribuída toda a responsabilidade para atingir a paz mundial, encarregado também de aprovar (ou não) providências repressivas contra atentados à humanidade. Dentre tais medidas encontram-se a diplomacia e as intervenções, armadas ou não-armadas, como o envio de Forças de Paz aos países suplicantes por amparo.

A composição do Conselho constitui-se por 15 membros, dos quais cinco são tidos como permanentes (representando os países que obtiveram vitória no término da Segunda Guerra: EUA, Reino Unido, Rússia, China e França). A renovação dos membros não-permanentes se procede a cada dois anos, vedada a reeleição. Suas deliberações envolvem basicamente duas qualificações: pendências de ramo processual e de ramos diversificados. Aliás, o Conselho destaca comitês especializados na consecução da harmonia entre as nações, dos quais se sobressaltam a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) e o Comitê de Combate ao Terrorismo (CCT).

São alvos precípuos do Conselho de Segurança a ONU as soluções ex officio para vingar o escopo ideológico da dignidade humana em meio aos conflitos externos. Inclusive, esse Conselho tem autonomia na aplicação de sanções e de embargos contra aqueles que forem de encontro às suas predisposições. Quanto a isto:

Suas funções podem ser resumidas a: a) manter a paz e a segurança internacionais; b) investigar toda a situação que possa conduzir a um conflito internacional; c) recomendar, na condição de mediador, condições para sua resolução; d) elaborar planos para o desarmamento; e) recomendar sanções econômicas contra Estados que deliberadamente ameacem a paz; f) recomendar o ingresso de novos Estados; g) recomendar à Assembleia Geral o candidato a Secretário-Geral e os juízes da Corte Internacional de Justiça. [88](grifo nosso)

De acordo com a concessão da chancela do Conselho de Segurança, apresentam-se dois tipos de intervenções: unilaterais e coletivas. Acerca dessa classificação, Renata Vargas Amaral ressalta que:

Importante diferenciar duas espécies de intervenção humanitária que existem do quadro contemporâneo do direito internacional, quais sejam, a intervenção humanitária unilateral, ou estrangeira, e a intervenção humanitária internacional ou coletiva. As intervenções unilaterais caracterizam-se por serem intervenções praticadas por país ou países estrangeiros nos domínios do território onde violações de direitos humanos estejam acontecendo. Este tipo de intervenção é aquela que precisamente não conta com a aprovação do Conselho de Segurança da ONU, mesmo que tenha a aprovação da sociedade internacional. Diferentemente, as intervenções coletivas, são aquelas que além de contarem com a aprovação da sociedade internacional, são legitimadas pelo Conselho de Segurança para agir. [89]

Desde os ataques de 11 de setembro de 2001, quando o mundo ocidental se afligiu e passou a temer pesados investimentos contra os direitos humanos, implantou-se na ONU como um todo o senso de proteção contra riscos dessa intensidade. Em 2005, legalizou-se em definitivo a doutrina The Responsability to Protect (responsabilidade de proteger), aprovada por vontade majoritária da Assembleia Geral. De acordo com este paradigma, a ONU autodetermina-se na responsabilidade legal de salvaguardar o equilíbrio mundial, diante da sua forte imposição diante das relações internacionais mantidas por Estados-membros. A subsunção normativa da Responsability to Protect consubstanciou avanço crucial para as intervenções humanitárias. Foi até mesmo bem posicionada a sugestão de alteração da nomenclatura "direito de ingerência" por "responsabilidade de proteger", pela Comissão Internacional sobre Intervenção e Soberania Estatal (ICISS) [90], ao contemplar o auxílio prestado em situações de incertezas humanitárias. Através da evolução da responsabilidade de proteger, as Nações Unidas limitaram com mais finco o clássico modelo de soberania, pautado no ingresso de novas instituições não-governamentais com poder sentencial em problemas internacionais. A expectativa é que os direitos humanos extingam completamente o preceito da não-intervenção, coisa nunca vislumbrada nos tempos áureos do estatismo.

A seguir, segue quadro explicativo dos diferentes momentos históricos da responsabilidade de proteger:

Tabela 2: Diferentes momentos do vínculo "direitos humanos versus responsabilidade de proteger" no Sistema Internacional de Estados (SIE).

Estatismo

Internacionalismo

Cosmopolitanismo

 

D.H. (1 e 2)

D.H. (3,4 e 5)

D.H. (6 e 7)

Área exclusiva do Estado

Área concorrente entre o Estado e a Comunidade Internacional

Área principal da Comunidade Mundial (Global Community)

Questão irrelevante para o SIE

Questão secundária para o SIE

Questão principal para o SIE

Anterior à Segunda Guerra Mundial (princípio de não-intervenção como valor absoluto do SIE)

Em vigor a partir da criação da ONU (predomínio do princípio de não-intervenção)

Possibilidade futura (fim da hegemonia do princípio de não-intervenção)

Fonte: REGIS, André. Op. cit., p. 130.

Há apreço em mencionar o caráter subsidiário da responsabilidade onusiana em proteger os direitos fundamentais de todas as populações [91]. Por esta razão, as soluções interventivas concedidas pela ONU se interpõem como remédio viável para tratar de condutas comissivas ou omissivas que contradizem os direitos humanos. A valorização dos direitos humanos é coordenada que precede os esforços das Nações Unidas. Por sua versão, os Estados são os primeiros vigilantes da estabilidade humanitária. Somente quando os próprios Estados, em vez de prosperar tal favor, se contrapõem à projeção humanística, é que a ONU é acionada para intervir sobre a irregular atuação estatal. Desta forma, fica óbvia a responsabilidade da ONU na segurança da incolumidade universal, promovida como "obrigação claramente subsidiária, só recebendo guarida quando o Estado não a cumpre, entrando em cena a comunidade internacional". [92]

Perspicaz parecer de Rodrigo Cogo corrobora a ascensão das intervenções a partir do aprimoramento dos valores da dignidade da pessoa humana e da racionalidade da soberania, in verbis:

Antes as intervenções só ocorriam em condições excepcionais, hoje, com a causa dos Direitos Humanos recebendo maior peso, e, com prenúncios de um Direito supranacional disciplinador das regras a serem adotadas nas relações interestatais, atos interventivos são cada vez mais frequentes, gerando, a partir disto, o retorno ao anseio kantiano de ordem jurídica única, com a aplicação de suas diretrizes aos Estados que desta organização fizerem parte. [93]

Na empiria interventiva haure-se o fôlego substancial que orienta a ONU no resguardo do homem no mundo. Entretanto, cabe, em específico, ao Conselho de Segurança desta mensurar o caráter humanitário dos meios usados para tanto, algo que prepondera de uma árdua tarefa em face da globalização que confunde o animus comportamental de todas as partes.

3.5 A RELAÇÃO INTERVENCIONISTA

3.5.1 Pólos da relação

Considerando a formação de uma relação dita como intervencionista, precisamos nos concentrar em pontos lógicos que definem o dimensionamento da causa humanitária. Quando acontece a violação os direitos humanos básicos, também nasce o anseio da intervenção para interceder sobre a ofensa, na tentativa de se evitar um colapso ainda maior e de proporções desagradáveis. Experimenta-se, assim, uma reação pela situação de injustiça que foi desencadeada.

Grosso modo, três são os pólos principais que fazem parte da composição de uma relação intervencionista. Primeiramente, a violação aos direitos humanos é situada na mira onde se acrescentam todos os esforços. Depois, se estabelecem ao seu redor dois vetores, um positivo e outro negativo, ou seja, um que intenta a benesse daqueles direitos e um que se opõe a tal prática. Basicamente, assim se dispõe a relação de intervenção humanitária:

Organograma 2: Ilustração da típica relação de intervenção.

PÓLOS DA RELAÇÃO INTERVENCIONISTA

Interventor (ou interveniente) – Direitos humanos – Estado soberano

 

Fonte: Próprio autor.

Segundo este realce, a convergência destes pólos arquiteta toda a relação num aspecto ideológico-formal, porque decifra amplamente o marco que o intervencionismo deve tomar: a atenção merecida aos direitos humanos, colocados num lugar privilegiado da contenda.

Assim, entende-se que o consenso de proteção humanitária deve estar situado como objeto da relação, sob o qual se retraem todas as atenções. É elemento fundamental, sem o qual deixa de existir a própria intervenção humanitária (ou, pelo menos, deixa de existir o arroubo humanitário). É pomo da universalidade arraigada na esfera do jus gentium, dando o verdadeiro sentido ao liame firmado:

A proteção internacional dos direitos humanos é um forte indicador da universalidade (tomando-se como paradigma as normas internacionais e a retórica argumentativa) ou da tendência à universalidade (tendo-se em conta o relativismo cultural, os mecanismos de proteção e a efetiva concretização) desses direitos. À luz dessa universalidade, os Estados teriam o dever de respeitá-los e de promovê-los, com abstração de qualquer particularidade nacional ou regional e das concepções próprias das distintas culturas existentes. [94]

Em outro prisma, situa-se o Estado soberano na posição de agente violador da plenitude humanitária. No caso em tela, onde o manifesto intervencionista entra em cena, cabe a esse Estado a posição de sujeito passivo, porque sofre os efeitos das investidas que flexibilizam a sua autonomia, em virtude da limitação da soberania com suporte na interrupção da continuidade anti-humanística.

Em condição de sujeito ativo da relação supracitada estão os agentes interventores, aqueles que agem sumariamente para assegurar o cumprimento dos preceitos de dignidade humana, corrigindo, através da interferência na soberania do sujeito passivo, as ofensas praticadas diante das vítimas desse abuso de poder. Neste diapasão, podem figurar no pólo ativo das relações os Estados estrangeiros, entidades não-estatais, organizações internacionais e a própria comunidade de países (por vezes, aprontados mediante corporações, como, por exemplo, a participação da OTAN [95] na intervenção sobre a Líbia). Como vimos anteriormente, para que vingue a relação interventiva internacional, todo seu procedimento deve ser de conhecimento das autoridades da ONU.

3.5.2 Legitimidade

A tensão em volta da legitimidade das intervenções humanitárias é uma das questões mais importantes no contexto atual das relações internacionais.

Uma intervenção legítima cumpre todos os pressupostos que lhe são peculiares, sejam eles a legalidade internacional, a finalidade humanitária ou a admissão por parte da comunidade de países. O que se percebe, no mundo contemporâneo, é que a tônica legítima do intervencionismo vem se corrompendo de forma paulatina, em razão da inconstância política que eiva o cenário mundial.

Este fatídico reflexo exsurge, mormente, por meio da atuação dos organismos interventores (pólo ativo da relação), que, na prática dos seus planejamentos, encontram-se movidos por interesses suscetíveis de amplos desvios. Estes interesses não podem fugir da alçada humanitária, tornando-se inconcebíveis intervenções humanitárias de interesses totalmente voltados à discricionariedade privativa de determinado Estado ou instituição. André Regis observa, acerca desse fato, que "a intervenção não deverá ser baseada na defesa de interesses estratégicos dos países interventores". [96]

Pouco importa o comportamento do Estado violador com os demais países, o que se procura interferir, aqui, é a violação contra os direitos humanos do povo, ou de parte dele, ensejada por ação/omissão governamental. A esta violação deve se prender esse tipo de atividade intervencionista, no sentido de exterminá-la.

No momento de intervir, o agente deve ter em mente a intenção de acabar com o crime humanitário, tão rapidamente quanto o surgimento do mesmo. É importante Destaque a esse respeito vai para o entendimento de Renata Vargas Amaral:

A Carta das Nações Unidas, em seu Capítulo VII, prevê o direito de intervenção humanitária e seus limites dentro do Direito Internacional, em casos de situações de extremo sofrimento humano, em que não é possível se manter um mínimo de padrão humanitário, onde as violações de direitos humanos sejam maciças e por atitudes continuadas dos violadores desses direitos por tempo prolongado, salientando-se que o consentimento do Estado receptor da ajuda não se faz necessário e, ainda, sendo o uso da força permitido, unicamente, para assegurar a garantia dos direitos humanos daqueles indivíduos. [97](grifo nosso)

Apesar de ser básica tal compreensão, a crise de legitimidade das intervenções tende a aumentar ainda mais quando elas são encaradas, de modo equivocado, como instrumentos colonialistas. [98] Isto é, a invasão dos agentes interventores sobre países opressores dos direitos humanos, algumas vezes, é vista como método disfarçado de manter o controle sobre eles, em analogia aos vestígios do Pacto Colonial, estipulado a partir do século XV. Essa suposta importunação das intervenções fez sobressair duas teorias a tal respeito. São elas a Teoria Relativista e a Teoria Universalista.

Segundo a Teoria Relativista, o procedimento de intervenção sobre o território de outros países nada mais é do que uma enrustida forma de colonização. Essa corrente enaltece o princípio da não-intervenção e o da absoluta soberania, pouco significando o teor dos problemas envolvidos. O injusto acometido em desfavor das garantias fundamentais não funciona como justificação para as intervenções. Alguns juristas, como Grigory Tunkin, partidários desta teoria, demonstram-se efusivamente contrários à noção de intervenção humanitária ante a soberania alheia. [99] Os relativistas também condenam o caráter universal dos direitos do homem, restringindo a matéria humanitária à jurisdição nacional de cada Estado. Assim, direitos humanos passam a ser temas internos de cada região. A atribuição de feições colonialistas às intervenções em nada pactua com as disposições contemporaneamente consolidadas no sistema internacional, ficando direcionada, assim, a um presumido desuso.

Em posição contrária se situa a Teoria Universalista, que confia impreterivelmente na iniciativa intervencionista como solução concreta para as emergências humanitárias. O direito internacional já tem maturidade suficiente para discernir as situações onde ocorrem calamidades aos direitos essenciais, e, portanto, consegue muito bem trazer a seara universal para o seu campo de abrangência. Os universalistas, neste caso, interpõem a dignidade do homem num patamar supraestatal, acima de qualquer circunscrição de soberania ou de ordem doméstica. Promover a paz e a segurança geral vale muito mais do que efetivar interesses limitados às fronteiras de um Estado nacional. A realização de intervenções é sim uma tática sadia, desde que tenha pela frente a defesa dos direitos humanos fundamentais. Esta é, sem dúvidas, a mais sensata das duas teorias descritas.

Por declarar este universalismo, as Nações Unidas, por meio da Carta de 1945 e da Declaração de 1948, legitimaram também as intervenções humanitárias, que estão legalizadas desde as suas proclamações, tornando impossível que o tratamento de um Estado para com seus súditos seja assunto somente de jurisdição doméstica. [100]

Vem sendo pacífica a concepção universalista das intervenções, ao passo que a internacionalização regozija a idéia de que a pessoa humana merece posição notável no que tange à nova realidade da soberania estatal perante o globo. Muito mais que uma mera reação contra ousadias humanitárias, a legitimidade das intervenções tem a ver com reflexões de um senso de bondade comum. J. J. Canotilho corrobora esta tese ao dispor que:

[...] qualquer que seja a incerteza perante a ideia de um standard mínimo humanitário e quaisquer que sejam as dificuldades em torno de um sistema jurídico internacional de defesa de direitos humanos, sempre se terá de reconhecer a bondade destes postulados quando se discute o problema das intervenções humanitárias. [101]

Questões a esse respeito merecem ser repisadas a todo o momento como forma de erradicar incoerências ainda mais sérias.

3.5.3 Situações de emergência humanitária

Da seguinte maneira, Renata Vargas Amaral descreve as situações de emergência humanitária:

Emergência humanitária é, pois, uma situação de extremo sofrimento humano provocado ou não pelo governo nacional, mas em que direitos humanos estão sendo violados de forma maciça e por tempo prolongado, e em que o Estado soberano não está agindo de forma a proteger tais direitos e, por isso, e por ser a dignidade da pessoa humana preocupação da sociedade internacional, faz-se legitimamente necessária uma iniciativa de órgãos internacionais. [102]

Destarte, configura-se emergência humanitária a partir dos requisitos: a) ultraje concreto e potencial aos direitos humanos; b) prolongação da ofensa por um determinado período; c) Estado desinteressado com a cautela humanitária; d) aviltamento ou grave sofrimento do povo por causa deste menosprezo. É sobre a situação de emergência humanitária que trabalha o movimento interventivo. A prática dos crimes contra a humanidade são exemplos leais de casos de emergência humanitária.

Não adianta fugir do âmbito de incidência emergencial. É inevitável a aparição de grupos de interesses por trás da técnica intervencionista, no intento de mascarar ou levar a erro a previsibilidade de tal emergência. No entanto, só serão legítimas as intervenções internacionais que abordarem as hipóteses de urgente segurança da dignidade humana. Por exemplo, os EUA (principal país interventor do planeta) esquecem a situação de emergência humanitária que passa a Chechênia, mas não intervêm lá porque isso ocasionaria represália não apenas por respostas nucleares dos russos, mas também pelo abalo na economia da Rússia, que é uma parceira financeira dos americanos. Fator parecido se dá com Cuba, cuja ditadura constrange certas liberdades das pessoas, pois ataques interventivos diretos pelos EUA acarretaram insurreições nos grupos de imigrantes cubanos que moram em Miami. A China, uma das maiores potências econômicas da atualidade, se enquadra ainda nesta espécie de receio estadunidense. Em razão disso tudo, precisam ser revistas as considerações latentes às emergências.

3.5.4 Procedimento

Inexiste imparcialidade no procedimento interventivo. Todos os sujeitos da relação comportam-se de modo a impor seus interesses (sejam humanitários ou anti-humanitários) em disputa. A intervenção tende, então, a ser parcial, condição que se atrela à própria legitimidade da mesma. Nesse diapasão, Kofi Annan credita o alcance da legitimidade das intervenções humanitárias ao apoio da maioria dos povos da comunidade internacional. [103]

Os esforços humanitários não podem forçar os Estados violadores a importar costumes, vontades ou conveniências diversas pelos atores intervenientes. Pelo contrário, a intervenção tem que almejar exclusivamente o fim da ofensa aos direitos humanos, sob pena de cassação da sua legitimidade conferida. Por isso, intervenções legítimas podem vir a se tornar ilegítimas durante o decurso do processo, modificando-se de acordo com a qualidade superveniente.

As intervenções humanitárias, ab initio, somente serão promovidas se esgotados todos os outros meios de solução pacífica das controvérsias. Primeiramente, cabe a chance de tentativas diplomáticas através de mediações para chegar a um comum acordo. O insucesso dessa possibilidade abre as portas para a utilização dos mecanismos interventivos, que por si mesmos perfazem esforços e dispêndios de várias categorias.

A decisão da necessidade de intervenção sobre certo conflito fica a critério do Conselho de Segurança das ONU.

Estas ações são permitidas apenas em situações de maciço sofrimento humano, que estejam ocorrendo por um longo período de tempo, a serem avaliadas pela Comissão de Direitos Humanos e, decididas pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas, que irá deliberar sobre a necessidade ou não de uma intervenção humanitária, pois é o órgão responsável pela manutenção da paz e segurança mundiais, sendo ele o titular do direito de usar medidas coercitivas. [104]

Em relação aos cuidados a serem tomadas para a outorga do direito de intervir, André Regis aduz que:

Neste sentido, algumas precauções são fundamentais, entre elas: 1) Deve haver um estudo que simule quais os custos, em termos de vida e de sofrimento, da intervenção. Ela não deve acontecer enquanto não ficar claro que os benefícios superarão os custos, inclusive levando-se em conta que deve pesar na decisão o estabelecimento de práticas costumeiras que indiquem a outros potenciais ou reais criminosos que graves crimes contra a humanidade não serão tolerados. 2) Os estudos prévios acerca da viabilidade da intervenção devem levar em consideração a existência de armas de destruição de massa ao dispor dos criminosos. Caso elas existam, os riscos da intervenção serão enormes. Nesse caso, deve-se buscar, preferencialmente, outros meios de pressão, principalmente via sanções diplomáticas, culturais, científicas e, principalmente, comerciais. [105]

Somente após a prolação do parecer favorável das entidades competentes é que as intervenções humanitárias são postas em prática. O uso de forças militares é permitido nas intervenções, desde que direcionado à proteção das vítimas indefesas. Toda a ação deve ser rápida, visando atender às urgentes súplicas pela resolução do conflito humanístico, podendo, até mesmo, proceder sem a aprovação final do Conselho de Segurança, em virtude do veto de membros permanentes, se aceita pela maior parte da sociedade internacional. Tais atividades expiram no instante em que desaparece inteiramente o desacato aos direitos humanos na localidade interferida. As intervenções perdem a sua finalidade com o fim da injustiça humanitária, ou seja, se persistirem em continuar mesmo depois de declarada a desnecessidade, a conduta interventiva será vista como um excedente não-legítimo.

Fazendo um apanhado geral, o próprio André Regis arrola as três etapas basilares do procedimento interventivo: a) a preventiva; b) a interventiva propriamente dia; c) a reconstrutiva. [106]

3.6 OCORRÊNCIAS DE INTERVENÇÕES HUMANITÁRIAS

Doravante, serão mostradas algumas considerações a respeito de casos práticos de intervenções humanitárias que já ocorreram pelo mundo. Dentre tantos, servem de modelos exemplares para o presente entendimento as intervenções em Ruanda, Kosovo, Timor Leste, Somália e Líbia.

3.6.1 O caso de Ruanda

Localizada num dos derradeiros continentes a passar pela descolonização [107] (talvez por sua autonomia tardia, a África tornou-se vulnerável foco de intervenções), Ruanda foi abatida por desastroso genocídio sobre sua população na década de 90. Tal calamidade ocorreu a partir de conflitos tribais entre os Hutus e os Tutsis, o que foi devidamente previstos meses antes num relatório expedido pela CIA. Entretanto, mesmo diante do risco iminente de genocídio naquele país, os EUA cruzaram os braços para esta causa, deixando inocentes a mercê do perigo humanitário.

Também não assumiram os riscos de intervir em Ruanda seus antigos colonizadores, Bélgica e França, responsáveis, inclusive, pelo surgimento dos atritos entre as duas tribos conflitantes. Mesmo sendo os governos mais aptos a prestar o auxílio interventivo, ambos vergonhosamente não saíram da inércia. Em pior situação ficou a França, quando, além de intervir depois da ocorrência do massacre, igualou a mesmo nível vítimas e genocidas.

Outro fator que agravou a crise em Ruanda foi a falha no envio de tropas pacificadoras em virtude da morosidade das exigências burocráticas dos EUA em liberar o empréstimo de veículos operacionais para os soldados africanos. Destarte, o maior ensinamento tirado da intervenção humanitária em Ruanda é que a burocracia muitas vezes atrapalha o pleno desempenho intervencionista (neste caso em particular, impediu-se a aquisição de materiais para salvar a vida de milhares de pessoas que padeceram com o genocídio).

O exemplo da intervenção em Ruanda fadou-se ao fracasso e não deve jamais ser repetido.

3.6.2 O caso de Kosovo

No início de 1998, a violência cometida em Kosovo, província ao sul da república iugoslava, teve cunho interétnico. Indivíduos de origem albanesa foram marginalizados em meio a uma sociedade com predominância sérvia.

Pessoas de etnia albanesa no Kosovo sentiam-se desconfortáveis como membros de uma RFI predominantemente sérvia (embora no próprio Kosovo os sérvios fossem apenas cerca de 10% da população). Esse crescente de tensões, que já durava dez anos, era acompanhado de perto pela Organização para Segurança e Cooperação na Europa (OSCE), a União Europeia e o Grupo de Contato – um grupo de seis Estados composto pela França, Alemanha, Itália, Rússia, Reino Unido e Estados Unidos. [108]

O confronto irrompeu com a iniciativa da facção terrorista separatista "Exército de Libertação do Kosovo" (KLA), que visava reprimir os sérvios por meio de ataques militares. A tragédia ganhou mais expressão em 15 de janeiro de 1999, num massacre de kosovares e albaneses, na cidade de Racak. Tempos depois, autoridades buscaram chegar a uma saída para a tempestuosa relação entre as partes, o que foi apoiado pelo Conselho de Segurança da ONU.

Denúncias de violações sérias dos direitos vitais dos albaneses por parte dos sérvios acirraram ainda mais a questão, que passou a ter concreta interferência das forças da OTAN. Desde o princípio, a OTAN destinava-se a findar as perseguições sérvias contra os albaneses, sendo, assim, a entidade mais adequada para efetuar a intervenção no território de Kosovo. Em março de 1999, começaram os ataques aéreos da OTAN contra a Iugoslávia.

Contudo, as investidas militares agravaram o problema humanitário no país, acentuando o desespero das pessoas vitimadas por bombardeios. Muitos se refugiaram e o êxodo aumentou desenfreadamente. Intensos foram os dias até a rendição sumária, com inúmeras mortes provocadas pelas alianças aéreas. Se fosse adotado um plano de estratégias terrestres, certamente muitas vidas teriam sido poupadas.

A partir da vitória da OTAN sobre as forças extremistas, comandadas por Slobodan Milosevic, Kosovo contou com a ajuda da União Europeia para reconstruir sua dignidade e implantou a democracia em sua sociedade com a cooperação de órgãos da ONU. Assim, foram obtidos os ideais visualizados pela intervenção em Kosovo, uma vez que houve a exclusão das opressões que assolavam os direitos humanos de uma minoria étnica, ficando os responsáveis pelos crimes em massa sob julgamento do Tribunal Internacional.

3.6.3 O caso do Timor Leste

Na luta pela independência de Portugal, o Timor Leste contou com o auxílio da Indonésia durante a guerra civil de 1974 contra a influência colonizadora. Só que, com a retirada dos portugueses, a Indonésia o incorporou ao seu território, na condição de 27ª província, o que indignou as forças timorenses. Por outro lado, a Indonésia temeu repressivas consequências em razão de uma possível libertação do Timor Leste dos seus domínios.

Em 1976, o Conselho de Segurança onusiano sugeriu a independência do Timor Leste, pautado no princípio da autodeterminação dos povos. O massacre de manifestantes ocorrido em 1991 chocou a comunidade internacional e funcionou como sinal para a independência do Timor. No entanto, a Indonésia não pretendia se livrar facilmente do território em jogo.

Mediante votação organizada pela própria ONU, o povo timorense decidiu pela imediata independência. Tal escolha acentuou o emprego de forças violentas pelos sujeitos contrários a tal sugestão. Apesar de ser declarada situação de emergência à segurança humanitária, a Indonésia não recuou, negando qualquer forma de interferência em seu espaço para tratar de matéria de competência interna.

Apenas em outubro de 1999, foi abolida a anexação do Timor Leste, restando este como país independente. A intervenção da ONU em prol dos timorenses simbolizou muito mais do que um simples acontecimento político ou humanitário:

O fato é que o Timor Leste representa a primeira experiência da ONU no chamado processo de construção estatal, ou state-building process. Daí sua verdadeira importância. Timor foi o primeiro Estado criado pela ONU. Acreditamos que as lições aprendidas com essa experiência podem ser valiosas para a implementação de um Estado palestino. [109]

3.6.4 O caso da Somália

Na intervenção sobre a Somália, a gravidade dos objetivos depositados tomou enormes proporções. Isso se demonstrou por meio de intenções abusivas de superpotências oportunizando os atentados contra os direitos fundamentais ensejados naquele país.

No caso da Somália, a derrubada do governo por facções políticas inicia o conflito, sendo que três grupos conhecidos como Movimento Nacional Somali (MNS), Movimento Patriótico Somali (MPS) e Congresso Somali Unido (CSU) comandaram a tomada da capital do País. Naquele momento a situação estava difícil e se agravando ainda mais com a seca que assolava a região, somando-se a isso a retirada das agências de ajuda humanitária da ONU. [110]

Então, os países desenvolvidos passaram a liderar um programa de assistência aos militares em conflito na Somália, estampando suas intenções com a causa humanitária. Só que, por trás delas, procurava-se fortalecer seus poderes hegemônicos, com a disseminação de projeções econômicas, militares e políticas naquele contexto.

3.6.5 O recente caso da Líbia

Inspirados nas revoluções da Tunísia e do Egito, ocorridas meses antes, e num possível "efeito dominó", manifestantes líbios passaram a reivindicar ao Estado mais respeito aos seus direitos básicos, além de uma maior liberdade e desenvolvimento do país. Os protestos se iniciaram no dia 15 de fevereiro de 2011 e duram até os dias de hoje. Governando a Líbia há mais de 40 anos, o ditador Muammar Khadafi é o principal alvo das tensões que clamam pela deposição do seu cargo e pela implementação do regime democrático.

A onda de manifestações espalhou-se rapidamente e ganhou destaque na mídia internacional, comovendo pessoas de diversos lugares que, unidas pelas redes sociais da internet, expuseram aderência à primazia dos direitos humanos.

A partir de então, intensificaram-se os embates dos exércitos anti e pró-Khadafi, proliferando tiroteios, assassinatos e rixas por toda a Líbia.

De repente, as principais cidades do país, com destaque para Tripoli e Benghazi, se viram tomadas pelos conflitos. Muammar Khadafi foi perdendo gradativamente seu controle sobre a população líbia.

A comunidade internacional também condenou a postura de Khadafi em frente da morte de centenas de pessoas. O Conselho de Segurança das Nações Unidas determinou o congelamento dos bens de Khadafi e de integrantes da sua base de apoio. Os EUA, por sua vez, aplicaram sanções aos desmandos governamentais na Líbia, enquanto o Tribunal Penal Internacional, almejando a plenitude na apreciação do caso, aplicou a medida proibitiva de viagens externas para o presidente líbio. Mesmo contrariando grande parte dos países da sociedade internacional, alguns chefes de Estado da América Latina (dentre eles, Cuba, Venezuela e Nicarágua) não reconhecem a interferência sobre o governo líbio, respaldados no preceito de competência privativa diante dessas tensões humanitárias.

Aliada às reprimendas líbias, o avanço do fundamentalismo islâmico, as crises rebeldes no Oriente Médio (Iêmen, Barein e Jordânia) e os levantes da Síria e de Israel colocam os EUA numa situação delicada em função do seu status de "polícia" internacional [111], quando coordenam coalizões atuantes nesta área. As revoltas árabes ao norte da África e no Oriente Médio são, de fato, respostas efetivas à opressão de regimes fatigados pela impunidade e pelo desdém internacional. A iniciativa da população não só da Líbia, mas de tantos outros casos, é apenas um reflexo da mudança principiológica dos indivíduos vítimas de tal martírio. A ânsia por justiça e igualdade reduz o mercantilismo de valores escondidos atrás das ditaduras questionadas.

Sobre isso, vultosas especulações enladeiam os setores econômicos da Líbia, principalmente no que trata da exploração petrolífera. Mesmo com tantas reservas de petróleo e gás em sua região, somente uma minoria privilegiada usufrui dos rendimentos dessa atividade. Tal riqueza natural [112] atrai também a ganância de Estados sedentos por lucros financeiros. A partir disso, exaspera-se a constatação do apanágio humanístico das intervenções, maculando suas legítimas articulações, diante das restrições impostas ao Estado líbio.

Em face dos estímulos do presidente francês, Nicolas Sarkozy, e do primeiro-ministro inglês, David Cameron, os americanos tomaram o eixo das intervenções sobre a soberania da Líbia. Essa ressalva pela aprovação alheia revela a multipolaridade das decisões incisivas no plano externo.

Quando a OTAN começou a liderar as ações militares na Líbia, o desentendimento entre seus países-membros tornou-se gritante. Uma das mais notórias medidas interventivas da OTAN foi a adoção de uma zona de exclusão aérea sobre o espaço territorial líbio, devido ao constante tráfego de aviões militares que bombardearam repentinamente as forças de Khadafi.

Por sua vez, os EUA, munidos pela mobilização conjunta do presidente Barack Obama e da secretária Hillary Clinton, buscam, antes de qualquer fato, conter as ofensivas khadafistas através do empenho contingente no sentido de flexibilizar, facilitar a ablação dos opositores. É visível a trilogia propugnada no redimensionamento dos encargos intervencionistas: os EUA detêm o comando das operações, a OTAN entra com os meios executórios e a ONU legitima as prementes medidas fixadas.

Porém, ao povo líbio cabe sopesar a sua subordinação às intervenções estrangeiras, haja vista que tantas provações servem para aprimorar o ideal de senso crítico ante a referida política.

Sobre o autor
Wendell Carlos Guedes de Souza

Bacharel em Direito, Bacharelando em Administração, Auxiliar da Procuradoria Jurídica do Município de Rio Tinto/PB e ex-estagiário do Tribunal de Justiça do Estado da Paraíba.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUZA, Wendell Carlos Guedes. A questão das intervenções humanitárias diante da nova ordem internacional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3064, 21 nov. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20472. Acesso em: 20 nov. 2024.

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