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Hermenêutica filosófica e o imaginário jurídico moderno: uma breve análise do livro "Do Espírito das Leis" de Montesquieu

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Agenda 25/11/2011 às 14:56

Há momentos em que o imaginário jurídico persiste em acreditar em premissas do paradigma da metafísica clássica, desprezando, assim, até mesmo a subjetividade do intérprete, característica da filosofia da consciência.


Introdução: o imaginário jurídico moderno

Debater sobre interpretação dos textos jurídicos ainda demanda a necessidade de se desconstruir determina ideologia de neutralidade que permeia a atividade dos juristas. Em síntese, essa neutralidade pode ser entendida como a crença segundo a qual os profissionais do direito são operadores técnicos das normas, não havendo, assim, influência da sua subjetividade no processo decisório, ou mesmo um conteúdo político em suas decisões.

Essa ideologia possui influências de diferentes contextos históricos[2], podendo estar relacionada, dentre outros, à epistemologia das ciências naturais no campo jurídico[3]. Destaco, no momento, o papel exercido pela Escola da Exegese, na qual a identificação entre o texto da lei e o seu significado transmitia a idéia de que os juristas não desempenhavam qualquer função na concretização do direito, senão a de pronunciar uma verdade preexistente construída pelo legislador. Tal imaginário jurídico (hegemônico nos primórdios da modernidade) desprezava a influência que o próprio imaginário exerce na formação do direito. Isto é, negavam a dimensão ontológica fundamental da compreensão: a linguagem enquanto condição de possibilidade do próprio conhecimento.

O filósofo do direito Luis Alberto Warat foi responsável por trazer as primeiras discussões sobre semiologia jurídica ao Brasil e, portanto, por introduzir as reflexões em torno do papel exercido pela linguagem na formação da realidade jurídica[4]. No pensamento desse autor é possível perceber uma tentativa de resgate do valor político que o conhecimento possui na práxis! Sua análise explica que a epistemologia tradicional

propõe um saber que seja puro como teoria e, com isso, facilita que a [...] proposta seja ideologicamente recuperada, servindo agora para que os juristas contaminem a práxis de pureza, criando a ilusão de uma atividade profissional pura. [...] Os juristas de ofício, apoiados na idéia de um conhecimento apolitizado, acreditam que o advogado é um manipulador das leis, descompromissado politicamente, um técnico neutro das normas.[5]

No presente trabalho não busco aprofundar essas reflexões, sobretudo nos seus aspectos políticos/ideológicos, senão utilizá-las como o pressuposto teórico de que o imaginário dos juristas conforma hábitos interpretativos que implicam em diferentes formas de se concretizar o direito. Ou seja, a partir das crenças que os juristas possuem do seu ofício - construídas a partir de determinada tradição - é possível enunciar diferentes maneiras de se conceber o direito na sociedade atual.

Utilizo a expressão “imaginário jurídico” com o significado similar ao que Warat denomina de “senso comum teórico dos juristas” (SCTJ), contudo, optei pela primeira expressão para não desfigurar a tentativa inicial do autor de denunciar a dimensão ideológica das verdades jurídicas. Não se trata de uma negação do conceito, mas, pelo contrário, de uma tentativa de não transmitir uma idéia reducionista do SCTJ. Assim, o imaginário jurídico pode ser entendido neste trabalho simplesmente como o conjunto de “representações, imagens, pré-conceitos, crenças, ficções, hábitos de censura enunciativa, metáforas, estereótipos e normas éticas que governam e disciplinam anonimamente”[6] os atos de decisão dos juristas.

Por outro lado, também é fundamental esclarecer o que se entende por concretização do direito. Em sua crítica a Müller, Adeodato demonstra a vagueza do conceito:

é certo que Müller separa o dado lingüístico, a constituição textual, do procedimento lingüístico, a concretização; [...] O problema é determinar o momento em que a norma se concretiza, se quando a decisão judicial é prolatada [...], se quando a sanção é aplicada, se cada vez que o preso toma banho de sol, se quando termina a coação.[7]

No presente caso, interessa fornecer um conceito negativo de concretização do direito, não podendo, em nenhum momento, ser confundido com o mero dado lingüístico, isto é, com o texto normativo, pois quanto aos demais estágios de concretização, todos serão, em seus respectivos limites, influenciados pelos hábitos interpretativos dos juristas, aqui brevemente estudados.

Dessa forma, este ensaio tem o objetivo de analisar a possibilidade da hermenêutica jurídica filosófica na construção de outro imaginário jurídico, mais adequado às características da modernidade atual.

Para tanto, na Seção I, utilizou-se da leitura de trechos do livro Do Espírito das Leis de Montesquieu para representar superficialmente o aspecto mais tradicional do imaginário jurídico. Não se trata de supor que não houve modificações, mas de ressaltar elementos que ainda se mantém na interpretação jurídica atual, apesar da diferença de contextos em relação à época de composição daquela obra.

Na Seção II, busca-se explicar de uma maneira simplificada a proposta da hermenêutica filosófica com ênfase nos debates ocorridos no campo da filosofia, utilizando-se, sobretudo, das pesquisas de Lenio Luiz Streck.

Por fim, encaminhando-se para a conclusão, na Seção III, pretende-se responder especificamente o problema que motivou o trabalho: quais as possibilidades da hermenêutica jurídica (filosófica) na construção de outro imaginário jurídico?


Seção I - A interpretação judicial no pensamento de Montesquieu

Conforme mencionado, não se objetiva analisar de maneira aprofundada o pensamento de Montesquieu, ou mesmo o seu principal livro, Do Espírito das Leis. Enquanto marco teórico da própria forma com que entendemos o Estado moderno hoje, a mencionada obra importa, no momento, somente para observar suas semelhanças e possíveis influências ao imaginário jurídico atual. Foi dado prioridade aos aspectos do livro que tratavam da maneira com que o autor entendia os fundamentos da lei e, principalmente, da própria atividade judicial, analisando-se especificamente o Livro I (Das leis em geral) e o Livro VI (Conseqüências dos princípios dos diversos governos em relação à simplicidade das leis civis e criminais, a forma dos julgamentos, a determinação das penas).

De antemão, se faz necessário atentar para o contexto que Montesquieu estava situado ao escrever a obra. Segundo nos explica Matos, o objetivo do autor não era elaborar uma doutrina da separação dos poderes (como a entendemos hoje), mas responder ao questionamento acerca de como é possível proteger a liberdade, para tanto acreditava que a solução estaria na construção de mecanismos institucionais. Nesse sentido, Montesquieu

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assegurou que o poder naturalmente (inevitavelmente) abusará da liberdade, isto é, o poder naturalmente (inevitavelmente) corrompe e que o governante tendo meios e necessidade agirá sem considerar as liberdades dos súditos.

Com isso, Montesquieu descreveu a origem do mal e o meio para evitá-lo. Ao poder deve-se opor o poder. Apenas o poder correspondente pode controlar o poder. Com isso, proclama que o governante deve ser considerado como potencialmente mau e assim uma engenharia institucional deve evitar a ação maléfica, mesmo quando não tentada. A solução de Montesquieu, portanto, é que o poder deve necessariamente ser dividido para ser controlado.[8] (grifei)

Ainda de acordo com Matos, essa primeira versão da doutrina da separação dos poderes não visualizava tanto a separação entre executivo e legislativo, mas estava especialmente preocupada em que as leis não fossem produzidas por quem tivesse o poder de aplicá-las. Neste caso, percebe-se a importância que o controle do poder dos juízes já possuía na própria idéia de como deveria ser a engenharia institucional do Estado moderno.

Portanto, é no contexto de uma confiança na possibilidade e na necessidade de uma nítida distinção dos momentos que constituem o processo de produção do direito que a obra de Montesquieu deve ser historicamente interpretada. Mas, afinal, por que razão e de que maneira é possível ou necessário a separação entre a atividade de criação e aplicação de textos jurídicos? Ou será que ao decidir perante o caso concreto, o juiz também não estaria criando a norma jurídica?

Uma frase constante no prefácio do livro Do Espírito das Leis denuncia uma característica presente no pensamento do autor: “Não tirei meus princípios dos meus preconceitos, mas da natureza das coisas[9]. É possível perceber nitidamente, nesse momento, a concepção lingüística que está na base das teses de Montesquieu. Para ele, os prejulgamentos, isto é, os elementos que constituem a pré-compreensão do sujeito não influenciam na formação do conhecimento, dado que é possível apreender a natureza em si das coisas.

Não é difícil notar a partir dessa primeira análise de que maneira, com fundamentos nos pressupostos filosóficos da metafísica clássica[10], era (supostamente) possível a distinção exata entre as atividades de criação e aplicação do direito, pois, de acordo com sua teoria, o intérprete do texto seria capaz de se distanciar dos seus pré-conceitos para capturar uma verdade transcendental, a qual só precisava ser pronunciada.

Por outro lado, Montesquieu defendia que a própria lei consistiria numa manifestação da natureza das coisas:

As leis, no significado mais amplo, são as relações necessárias que derivam da natureza das coisas, e, neste sentido, todos os seres têm as suas leis: a Divindade tem as suas leis, o mundo material tem as suas leis, as inteligências superiores ao homem têm as suas leis, os animais têm as leis, o homem tem as suas leis.[11]

Assim, sendo a lei humana semelhante às leis naturais, seria possível captar igualmente sua própria essência, a qual, como dito, existe de maneira autônoma, independente dos sujeitos envolvidos ou mesmo da linguagem. Dessa forma, caberia ao legislador o papel de controlar as paixões humanas[12], pois através da razão[13] seria possível a criação de leis claras, impassíveis de interpretação[14].

Fixada a possibilidade de aplicação exata pelos juízes das normas estatuídas pelo legislador, a sua necessidade estava relacionada à própria defesa que Montesquieu fazia de um

governo republicano, [pois] é da natureza da constituição que os juízes sigam a letra da lei. Não há um cidadão contra o qual se possa interpretar uma lei, quando se trata dos seus bens, da sua honra ou da sua vida. [...] na Inglaterra, os jurados decidem se o réu é culpado ou não a partir do fato que foi levado ante eles; e, se for declarado culpado, o juiz pronuncia a pena que a lei determina para aquele fato: e para tanto lhe basta ter olhos.[15]

Dessa forma, para ele, vincular o juiz ao máximo à letra da lei, retirando qualquer arbítrio de sua decisão, consistia numa condição para que as instituições pudessem representar um sistema de proteção das liberdades, objetivo maior de sua teoria política e, conseqüentemente, de sua teoria jurídica.


Seção II – O que muda no paradigma[16] proposto pela hermenêutica filosófica?

Para entender a proposta da hermenêutica filosófica no direito se faz necessário antes compreender algumas incursões ocorridas na história da própria filosofia. Desde os primeiros estudos entendidos como filosóficos, havia uma preocupação com o relacionamento existente entre o ser humano e o conhecimento. Este campo da filosofia, chamado de gnoseologia, questiona basicamente a possibilidade que o sujeito possui de alcançar a verdade. Cada autor costuma tratar a história desse relacionamento de maneira diferente. Para Streck, existiriam dois paradigmas que antes da virada lingüística sustentaram as concepções que os filósofos tiveram em torno da verdade.

O primeiro consiste no paradigma metafísico clássico (aristotélico-tomista), segundo o qual se acreditava na possibilidade de apreensão por parte do sujeito (cognoscente) da verdade contida no objeto (cognoscível), isto é, a crença na possibilidade de desvelamento, descobrimento da essência das coisas do mundo. Em suma, as coisas do mundo possuiriam uma essência, uma natureza própria, cabendo ao ser humano encontrá-las de alguma forma. Vimos que para Montesquieu a razão humana (?) era este caminho.

Em segundo lugar, impulsionado, principalmente, por Descartes, surgiu o paradigma da filosofia da consciência, pelo qual a subjetividade do intérprete é assujeitadora do objeto. Quer dizer, o sujeito (cognoscente) representa a realidade na sua própria consciência, sendo essa a própria verdade. Nesse paradigma existe, de certa forma, a possibilidade de se dizer qualquer sobre qualquer coisa, pois o conhecimento é produzido pelo próprio intérprete.

O dado mais relevante dessa breve análise histórica consiste em se perceber o ponto de encontro desses dois paradigmas: ambos estão pautados no esquema sujeito-objeto, reservando, portanto, à linguagem o papel secundário de uma terceira coisa que se interpõe entre esses dois elementos. Ou seja, a linguagem, nesses paradigmas, tem pouca importância, pois serve apenas de elo entre o ser que conhece e a coisa a ser conhecida, não possuindo relevância na construção do conhecimento.

Com a viragem ontológica-lingüística o problema relacionado ao fundamento do conhecimento humano adquire outra dimensão: a verdade não está mais nas coisas (consideradas como existentes em si mesmas) ou ainda na mente do sujeito. Os próprios problemas filosóficos passam a ser lingüísticos, pois o compreender se dá na e pela linguagem.

É necessário esclarecer essa consideração teórica, surgida com o que ficou conhecido como linguistic turn: a linguagem perde a condição de terceira coisa que se interpõe entre o sujeito e o objeto. Não existe, nesse paradigma, relação entre sujeito-objeto, mas passaria então a ser entre sujeito-sujeito. Assim, a linguagem passa a ser considerada condição de possibilidade do próprio conhecimento, pois o próprio homem é um ser lingüístico; não por uma vontade do sujeito que agora deseja valorizar a linguagem, mas por uma compreensão de caráter ontológico,

no sentido de que nós somos, enquanto seres humanos, entes que já sempre se compreendem a si mesmos e, assim, o compreender é um existencial da própria condição humana, portanto, faz também parte da dimensão ontológica: é a questão do círculo hermenêutico-ontológico.[17] (grifei)

Retoma-se, por fim, o questionamento que compõe o título desta seção: o que muda no paradigma proposto pela hermenêutica filosófica (a partir da virada lingüística)? A transformação básica está na maneira com que os filósofos passam a entender a questão da verdade, ou seja, de como se constitui o conhecimento. Agora, acreditam tais filósofos, é possível se falar no alcance de uma ontologia fundamental: a compreensão das estruturas prévias que condicionam e precedem todo o conhecimento; qual seja, a própria linguagem enquanto condição de possibilidade de se estar no mundo. Nas palavras do Streck,

no giro, a invasão que a linguagem promove no campo da filosofia transfere o próprio conhecimento para o âmbito da linguagem, onde o mundo se descortina; é na linguagem que se dá a ação; é na linguagem que se dá o sentido (e não na consciência do sujeito-intérprete).[18]

Nesse sentido é possível dizer agora que alcançar a verdade não consiste em desvelar a essência das coisas, pois não se trata mais de objetividade, de metafísica. Por outro lado, também não é o produto da razão solipsista (egoísta) do sujeito, abandonando-se, portanto, o relativismo. A verdade, no paradigma da filosofia da linguagem, passa a ser alcançada dentro de determinado contexto histórico a partir da intersubjetividade que caracteriza a própria condição humana enquanto ser eminentemente lingüístico.


Seção III – Hermenêutica filosófica: por outro imaginário jurídico

Como foi possível perceber a partir da compreensão do paradigma hermenêutico, muitas das teses de Montesquieu estão pautadas em pressupostos filosóficos desacreditados pela comunidade científica atual. Por outro lado, estranhamente, muitas das práticas interpretativas observadas nas atividades dos juristas ainda se baseiam em tal imaginário, ou mesmo no paradigma acima representado da filosofia da consciência. Ambos igualmente vinculados ao esquema sujeito-objeto. Muitos exemplos poderiam ser citados para demonstrar esse atraso do pensamento jurídico nacional.

A situação mais esdrúxula – pois, a atualidade do debate remontaria à própria metafísica clássica de Montesquieu – consiste no fato dos manuais de direito ainda discutirem se o intérprete ao decidir deve atentar à vontade da lei ou à vontade do legislador. Assim, salvo na hipótese de argumentação dos juristas diante dos seus interesses no caso concreto, não faz sentido se acreditar que a lei possua realmente alguma vontade (o que certamente lhe daria caracteres anímicos!) ou mesmo que se considere necessário (ou em alguns casos, até possível) descobrir historicamente uma vontade (única) do legislador.

A constatação mais importante desse exemplo, no presente contexto, consiste em se perceber momentos em que o imaginário jurídico persiste em acreditar em premissas do paradigma da metafísica clássica, desprezando, assim, até mesmo a subjetividade do intérprete, característica da filosofia da consciência. Afinal, qual a diferença das crenças contidas nesse debate e a frase de Montesquieu acima citada de que ao juiz bastaria ter olhos para pronunciar o que diz a lei? Esse questionamento está no âmago da própria finalidade da ciência jurídica na atualidade. É o que diz Paulo de Barros Carvalho quando afirma que

o desprestígio da chamada interpretação literal, como critério isolado da exegese, é algo que dispensa meditações mais sérias, bastando argüir que, prevalecendo como método interpretativo do Direito, seríamos forçados a admitir que os meramente alfabetizados, quem sabe com o auxílio de um dicionário de tecnologia, estariam credenciados a descobrir as substâncias das ordens legisladas, explicitando as proporções do significado da lei. O reconhecimento de tal possibilidade roubaria à Ciência do Direito todo o teor de suas conquistas, relegando o ensino universitário, ministrado nas faculdades, a um esforço inútil, sem expressão e sentido prático de existência.[19] (grifei)

Outro exemplo das crenças mitológicas que permeiam o imaginário dos juristas pode ser percebido na caracterização que os manuais fazem do legislador com o objetivo de auxiliar na interpretação dos textos jurídicos. Referindo-se a Nino, Ferraz Jr critica essas impropriedades do legislador racional, o qual deve ser considerado: singular (mesmo diante da multiplicidade concreta de colegiados, parlamentares), único (todo o ordenamento obedece a uma única vontade), consciente (conhece todas as normas, as passadas e presentes), finalista (tem sempre uma intenção), onisciente (conhece todos os fatos e condutas, nada lhe escapando), onipotente (suas normas vigem até que ele próprio as substitua), além de justo, coerente, onicompreensivo, econômico, operativo e preciso[20].

A crítica óbvia aos dois exemplos acima referidos, para ficar apenas nesses, consiste em se constatar que ocorre uma alienação de parcela da teoria hermenêutica em relação à realidade material da decisão judicial. Pois, em ambos os casos, diante da impossibilidade de se alcançar a voluntas legis ou a voluntas legislatoris ou mesmo de se acreditar seriamente nas ditas propriedades do legislador racional, tais mecanismos interpretativos servem ao intérprete apenas para justificar uma decisão tomada previamente.

Por outro lado, ambas as técnicas realizam o importante papel de transmitir a necessária aparência de neutralidade para a atividade judicial, satisfazendo, portanto, a expectativa exterior de separação de poderes que está na matriz do Estado moderno idealizado por Montesquieu.

Constatada a atualidade da crítica ao imaginário jurídico da metafísica clássica, pode-se, finalmente, apontar às possibilidades da hermenêutica filosófica para modificação desse quadro.

Em primeiro lugar, no paradigma hermenêutico perde espaço a crença na possibilidade do intérprete retirar um sentido do texto, o qual já existiria previamente em si mesmo, como imaginava Montesquieu. Assim, o sujeito, ao buscar interpretar um texto jurídico, estará na verdade atribuindo-lhe sentido. Tal entendimento, no marco teórico da hermenêutica filosófica, representa uma dupla vantagem para a formação de um imaginário jurídico mais adequado ao Estado democrático de direito. A um, rompe com o dogmatismo que acredita na existência de verdades infinitas (dogmáticas) a partir dos textos, retirando, portanto, o caráter idealizado da hermenêutica jurídica em face da realidade. A dois, a atribuição de sentido pelo intérprete não significa, sob nenhum hipótese, a concordância teórica com a postura relativista de se dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa, tendo em vista que essa verdade se constrói a partir de um diálogo com a tradição, pois será “no nosso modo da compreensão enquanto ser no mundo que exsurgirá a”norma” produto da “síntese hermenêutica”, que se dá a partir da faticidade e historicidade do intérprete[21].

Em segundo lugar, essa “objetividade histórica” buscada pela hermenêutica filosófica nega absolutamente a utilização do método, o qual sofre das deficiências já apontadas. Talvez, aqui se esteja diante de um dos pontos mais delicados de toda a discussão em torno da interpretação dos textos jurídicos na atualidade, pois negar o método e, portanto, negar o legado da epistemologia das ciências naturais às ciências humanas e ao direito[22] vai de encontro à racionalidade que caracteriza o imaginário moderno. Em termos simples, podemos dizer: fica um vazio (epistemológico) na racionalidade do homem moderno quando se afirma a possibilidade de se alcançar a verdade, mas não se apresenta em contrapartida um como (metodológico).

A resposta para esse vazio foi mais ou menos explicado na Seção II, fazendo agora total sentido retomá-la. No paradigma hermenêutico, os filósofos acreditam ter alcançado a ontologia fundamental acerca da compreensão das estruturas que precedem o conhecimento. Dentre essas estruturas, afirma-se agora que a interpretação não ocorre em partes. O juiz, por exemplo, não interpreta primeiro para depois compreender e, por fim, aplicar; pois sempre existe uma estrutura prévia de sentido, isto é: primeiro compreendemos para depois interpretar. Isso é algo existencial do homem.

Esta passagem da tese de Luz pode ajudar a compreender a implicação dessa discussão na formação de outro imaginário jurídico moderno:

Gadamer passa a tematizar e a criticar a hegemonia do método vindo das exatas para as ciências humanas. Nas ciências humanas o modo de ser do Dasein se dá na faticidade. Não há como, analiticamente, operar-se uma separação entre sujeito e objeto, pois que o intérprete é constituído pelos pré-juízos legados pela sua tradição. No vocabulário gadameriano, rompe-se com a idéia de verdade e falsidade, para a noção de autenticidade, como a forma de ser dos pré-juízos autênticos de uma dada tradição. Pôde-se, então, ir além da noção negativa que a modernidade e a teoria das ideologias imputaram ao “pré-conceito”...[23] (grifei)

Dessa forma, chegando ao final da discussão, para a modernidade clássica caberia ao homem se utilizar da sua própria razão na busca pelo progresso[24]. Tal razão serve-se do método como forma de garantir a segurança e a certeza necessárias aos resultados da interpretação, afastando os pré-conceitos que relativizariam o encontro com a verdade em si (assim como dizem ser feito pelas ciências naturais)[25].

Ao se perceber o homem como ser essencialmente lingüístico essa parcialidade (ou historicidade) do conhecimento humano passa a ser vista simplesmente como máximo que pode ser alcançado. Perde sentido a idealização do método, pois, como demonstrado acima, ele sempre chega tarde, servindo apenas para justificar uma decisão que já fora tomada, afinal, nós sempre compreendemos. Daí que Streck repita incessantemente que não existe um grau zero de sentido.

É nesse ponto que a hermenêutica filosófica possibilita a formação de outro imaginário jurídico (moderno).

Ao reconhecer a limitação[26] inerente ao conhecimento humano, a hermenêutica filosófica fornece um instrumento teórico viável ao profissional do direito numa interpretação dos textos jurídicos capaz de promover um resgate dos aspectos não cumpridos da modernidade, pois é histórica (contextualizada) e, simultaneamente, antirelativista, respeitando o que Streck chama de direito fundamental à resposta correta.

Sobre o autor
Macell Cunha Leitão

Bacharelando em Direito pela Universidade Estadual do Piauí (UESPI) campus Poeta Torquato Neto em Teresina-PI. Membro do República - Grupo de Pesquisa sobre Direito, Democracia e Republicanismo (UFPI). Estagiário de Direito da Defensoria Pública do Estado do Piauí.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LEITÃO, Macell Cunha. Hermenêutica filosófica e o imaginário jurídico moderno: uma breve análise do livro "Do Espírito das Leis" de Montesquieu. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3068, 25 nov. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20501. Acesso em: 24 nov. 2024.

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