Com o desenvolvimento cultural da sociedade, passamos cada vez mais a criar e aplicar normas para disciplinar as relações entabuladas pelos indivíduos que a integram. Referidas normas são de natureza variada, sendo diferenciadas pela fonte de formação e pela sanção que é imposta quando de seu respectivo descumprimento. Como exemplos, podemos citar as normas religiosas, cuja violação tem como conseqüência uma punição moral (sanção psicológica) e as normas de etiqueta de uma determinada classe social, economicamente abastada, em que se dá o afastamento social daquele que age de forma impertinente e deselegante. Contudo, atualmente observamos um quadro social em que há, preponderantemente, a incidência das normas do direito, o qual demonstra, pela experiência vivenciada pela humanidade, ser amplamente mais eficaz o seu conteúdo imperativo, exatamente por força de seus preceitos sancionadores. Sob a ótica do direito, um cidadão pode desenvolver uma atividade profissional baseada em atos de comércio, vendendo pipocas nas ruas e em frente aos espetáculos públicos porque a nossa vigente Constituição da República estabelece como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (artigo 1º, inciso IV). No setor público, a observância e aplicabilidade das normas de direito tem ainda maior peso, eis que, enquanto para as relações da vida privada, o indivíduo pode fazer tudo o que a lei não proíbe, ao administrador cabe exatamente o contrário, ou seja, deverá fazer somente o que a Constituição e as leis infraconstitucionais determinarem. Nessa parte é que chegamos ao assunto do presente artigo, porquanto em inúmeras ocasiões são protocolados nos órgãos de trânsito competentes, solicitações de transferência de domínio de veículo automotor de proponentes compradores que celebraram negócio com único herdeiro, quando ainda em tramitação o procedimento de inventário que tem por objeto o veículo alienado. Cabe uma análise mais aprofundada dos institutos jurídicos envolvidos na situação antes de ser dada a resposta sobre o desfecho administrativo do sobredito pedido. De acordo com o nosso ordenamento jurídico, a transferência de propriedade de bens móveis ocorre com a simples tradição (artigo 1226 do Código Civil). Duas questões devem ser esclarecidas com relação a essa afirmação. A primeira é “o que são bens móveis”? A resposta é dada pelo próprio Código Civil no artigo 82 que dispõe serem móveis os bens suscetíveis de movimento próprio, ou de remoção por força alheia, sem alteração da substância ou da destinação econômico-social, sendo exemplos uma geladeira, um fogão, um computador, uma égua, um cão e os veículos automotores. A outra indagação é concernente ao que consiste a “tradição”. Tradição é um termo técnico utilizado no mundo do direito e designa a efetiva entrega do bem transmitido por ato entre vivos. Então, quando uma pessoa compra uma pipoca do pipoqueiro, entregando-lhe a importância em dinheiro e recebendo o saquinho com as pipocas, opera-se a tradição nesse momento e, aquele que pagou pelo alimento, torna-se o seu legítimo proprietário. Quando se trata de veículos automotores, ocorre o mesmo fenômeno, entretanto, exige-se uma forma prescrita em lei para se aperfeiçoar o negócio, oferecendo maior segurança jurídica para aqueles que adquirem essa espécie de bem, motivo pelo qual há necessidade de se preencher o certificado de registro de veículo (CRV), reconhecendo-se em cartório como autêntica a assinatura do vendedor, a fim de ser requerida a Autoridade de Trânsito a efetiva transferência da propriedade do veículo no cadastro inserido no sistema nacional de trânsito, expedindo-se, caso seja deferido pelo Delegado de Polícia, a documentação pertinente. Então não há problema quando uma pessoa compra um veículo que é objeto de sucessão hereditária de único herdeiro, ingressando com o requerimento na CIRETRAN para ser realizada a transferência do domínio do automóvel? A resposta é que há um vício na forma como foi promovida a alienação do veículo, eis que, muito embora se trate de um bem móvel, a lei, em certos casos, a fim de assegurar direitos de terceiros, cria uma ficção jurídica, tratando-os como imóveis, quando tais coisas constituírem o espólio (patrimônio deixado pelo morto aos herdeiros), porquanto o artigo 80, inciso II do Código Civil considera como imóveis o direito a sucessão aberta. Os bens imóveis são o solo e tudo quanto se lhe incorporar natural ou artificialmente, bem como o que a lei assim o definir (inclusão e grifo nosso). E o meio de se alienar um bem imóvel, todos nós sabemos, somente através de escritura pública registrada no cartório de registro de imóveis competente (artigo 1227 do Código Civil), e se casado for, necessário é a concordância do cônjuge, que deverá igualmente assinar o instrumento público lavrado em cartório, sob pena de nulidade. Assim meus amigos leitores, o herdeiro pode alienar o seu direito incidente sobre um veículo automotor que integra o espólio, desde que se obedeça às formalidades exigidas pela legislação em vigor, mormente pelo fato da coisa, nesses casos, receber juridicamente o enfoque de bens imóveis. Um forte abraço e fiquem com Deus.
Dos veículos automotores como objeto de direito sucessório
Há problema quando uma pessoa compra um veículo que é objeto de sucessão hereditária de único herdeiro, ingressando com o requerimento na CIRETRAN para ser realizada a transferência do domínio do automóvel?
Delegado de Polícia Titular do Município de Pindorama/SP e Diretor da 201 CIRETRAN, acumulando as funções de Delegado de Polícia do Município de Paraíso/SP, leciona a disciplina de Hermenêutica Jurídica no IMES/FAFICA em Catanduva/SP.
FIGUEIREDO, Gustavo Steffen Azevedo. Dos veículos automotores como objeto de direito sucessório . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3073, 30 nov. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20534. Acesso em: 15 nov. 2024.