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Sobre a constitucionalização do trato conferido aos delitos contra o patrimônio, cometidos sem violência ou grave ameaça.

A proibição de excessos na intervenção penal sobre a liberdade e a aplicação do princípio da isonomia, considerados os benefícios garantidos na órbita dos crimes contra as ordens tributária e econômica (Lei nº 10.684/03)

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4. Breves considerações gerais sobre o que prevê a lei no trato dos crimes contra o patrimônio, cometidos sem violência ou grave ameaça

Como se sabe, as condutas tipificadas sob o rótulo de crimes contra o patrimônio estão contidas no Título II da Parte Especial do Código Penal Brasileiro, entre seus arts. 155 e 183. Sobre tais, com muita segurança, pode-se afirmar que, ao lado do tráfico de drogas, são as que mais povoam o quotidiano de quem atua na justiça criminal. Além disso, cabe ainda destacar que os autores da ampla maioria das condutas ali incriminadas são oriundos dos estratos economicamente menos favorecidos da sociedade.

Ressalvadas as condutas perpetradas mediante violência ou grave ameaça à pessoa – que não só atingem o patrimônio, mas também a liberdade, a integridade física ou mesmo a vida das vítimas, além de caracterizarem-se pela maior ousadia de seus agentes –, é de se concluir que a criminalidade contra o patrimônio caracteriza-se, em regra, pelo seu baixo grau de lesividade, pelos pequenos danos causados aos ofendidos. Apesar disso, se comparados ao previsto no art. 9º da Lei nº 10.684/03, é de se reconhecer que não são relevantes os benefícios garantidos pela lei àqueles acusados por tais práticas.

Além das possibilidades limitadas de aplicação da Lei nº 9.099/95 e de algumas causas especiais de diminuição ou isenção de pena (v.g., arts. 155, §2º [12], e 171, §1º [13], do CP), em relação à generalidade dos crimes contra o patrimônio, cometidos sem violência ou grave ameaça, somente merecem destaque a causa geral de diminuição de pena contida no art. 16 do CP [14], relativa ao arrependimento posterior (limitada temporalmente à ocasião do recebimento da denúncia), a atenuante prevista no art. 65, III, b do CP [15] e, por fim, as causas de isenção de pena previstas no art. 181 [16] do CP – com as ressalvas do art. 183 [17]. Como se vê, nada que possa ser comparado às possibilidades de extinção da punibilidade abertas pelo art. 9º da Lei nº 10.684/03. Aliás, cabe destacar que aquilo que, com limitações temporais, é minorante ou atenuante para os agentes dos crimes contra o patrimônio a que se refere – reparação dos danos provocados –, é causa de extinção da punibilidade para determinados crimes cometidos contra a ordem tributária (arts. 1º e 2º da Lei nº 8.137/90).

Com isso, assiste-se à absurda e irracional realidade do aprisionamento [18] de autores de pequenos furtos que não façam jus aos benefícios da Lei nº 9.099/95 ou a outros – como à substituição da pena privativa de liberdade por multa ou pena restritiva de direitos ou, mesmo, ao sursis – por serem, por exemplo, reincidentes específicos, enquanto responsáveis por fraudes milionárias contam com a confortável possibilidade de nem mesmo serem processados, sendo-lhes garantida a extinção de sua punibilidade pela quitação do débito que tenham com a Fazenda Pública. E, frise-se, esse débito pode, inclusive, ser parcelado.


5. A constatação do paradoxo e a necessidade de se proceder à equação constitucional da situação, a partir de uma solução que maximize e conjugue isonomia e liberdade

As semelhanças entre as condições de incriminação e os bens tutelados nas situações acima abordadas são muitas, afigurando-se claros o paradoxo e a inconstitucional desigualdade decorrente do trato privilegiado garantido relativamente aos crimes previstos nos arts. 1º e 2º da Lei nº 8.137/90, 168-A e 337-A do CP, quando comparado ao que reserva a lei penal aos acusados pela prática de delitos contra o patrimônio, cometidos sem violência ou grave ameaça. Afinal, em ambas as hipóteses, o que se verifica é a tutela contra o patrimônio, ainda que nos casos previstos nos arts. 1º e 2º da Lei nº 8.137/90, 168-A e 337-A do CP diga-se do patrimônio de uma coletividade, arrecadado e gerido pelo Estado em nome daquela mesma coletividade. Aliás, para que não restem dúvidas quanto às efetivas semelhanças, basta verificar que a conduta tipificada no art. 168-A do CP, cujos acusados de sua prática gozam dos benefícios previstos no art. 9º da Lei nº 10.684/03, está prevista justamente no Título II da Parte Especial do Código Penal, em meio aos demais crimes contra o patrimônio.

Se assim é, não há razão que justifique a desigualdade do tratamento reservado a uma e outra situação, mesmo porque – e é aqui que se encontra a mais grave e irracional das contradições – impõe-se a conclusão de que o que a lei faz é garantir uma repressão bem mais branda – verdadeira descriminalização indireta – a condutas mais graves, destinando uma intervenção penal mais drástica a condutas com menor potencial lesivo.

Em termos práticos, a única diferença que se pode destacar entre as situações sob análise diz respeito aos estratos sociais ocupados pelos autores dos delitos tipificados nos arts. 1º e 2º da Lei nº 8.137/90 [19], 168-A e 337-A do CP, em relação aos estratos dos quais, em regra, são oriundos os que praticam delitos contra o patrimônio. Porém, sob a égide de uma ordem constitucional que – em nome do princípio da igualdade – só pode admitir um Direito Penal que se aplique a fatos, negar a possibilidade de correção judicial da irracional contradição que se apresenta significa dar ares de legalidade a um Direito Penal de autor. Em última análise, equivaleria a – até que enfim – reconhecer-se abertamente a intervenção seletiva e, logo, perversa do Direito Penal no Brasil, como forma de controle do refugo social e das contradições não desejadas, mas produzidas pelo atual modelo capitalista de consumo, que traz em si o gérmen da desigualdade social.

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Nesse sentido, vale transcrever a lição de Vera Regina Pereira de Andrade:

"Com efeito, se a conduta criminal é majoritária e ubíqua, e a clientela do sistema penal é composta regularmente em todos os lugares o mundo por pessoas pertencentes aos baixos estratos sociais, isto indica que há um processo de seleção de pessoas às quais se qualifica como delinqüentes e não, como se pretende, um mero processo de seleção de condutas qualificadas como tais. O sistema penal se dirige quase sempre contra certas pessoas, mais que contra certas ações legalmente definidas como crime." (ANDRADE, 2003, p. 267)

E segue a autora:

"Desta forma, a ‘minoria criminal’ a que se refere a explicação etiológica (e a ideologia da defesa social a ela conecta) é o resultado de um processo de criminalização altamente seletivo e desigual de ‘pessoas’ dentro da população total, enquanto a conduta criminal não é, por si só, condição suficiente deste processo. Pois os grupos poderosos na sociedade possuem a capacidade de impor ao sistema uma quase que total impunidade das próprias condutas criminosas. Enquanto a intervenção do sistema geralmente subestima e imuniza as condutas às quais se relaciona a produção dos mais altos, embora mais difusos danos sociais (delitos econômicos, ecológicos, ações da criminalidade organizada, graves desviantes dos órgãos estatais) superestima infrações de relativamente menor danosidade social, embora de maior visibilidade, como delitos contra o patrimônio, especialmente os que têm como autor indivíduos pertencentes aos estratos sociais mais débeis e marginalizados. (Zaffaroni, 1987, PP. 22 e 32, e Baratta, 1991ª, p. 172, 1982b, p. 35, 1993, p. 49, e 1991b, p. 61)." (ibidem)

E, tratando-se de benefícios favor libertatis, a não extensão do previsto no art. 9º da Lei nº 10.684/03 – especialmente do contido em seu §2º – a situações circunstancialmente análogas e menos danosas significa violação drástica e frontal aos direitos fundamentais da igualdade e liberdade. Com isso, converte o Direito Penal em veículo de injustiça, em situação de flagrante inconstitucionalidade por afronta à proibição de excesso, valendo reportar em termos auxiliares ao que dispõe o art. 60, §4º, IV, da CF [20].

Em situações eventuais e absurdas como a que se descortina no presente caso, portanto, deve-se admitir "a analogia in bonam partem para salvar a racionalidade do direito e, com ela, o princípio republicano de governo, que exige esta racionalidade" (ZAFFARONI, 2008, p. 155).

A partir de uma análise sistêmica, com a qual se devolve a coerência ao ordenamento, conclui-se pela necessidade de, a partir de analogia in bonam partem, diante do gritante paradoxo exposto, estenderem-se os benefícios previstos no art. 9º da Lei nº 10.684/03 a todos os acusados pela prática de crimes contra o patrimônio, cometidos sem violência ou grave ameaça, aos quais seja cominada pena máxima igual ou inferior a 05 (cinco) anos, que é o limite maior previsto entre os delitos abrangidos pelo mencionado dispositivo. Assim, caberá declarar extinta a punibilidade daqueles que, nessas condições, a qualquer tempo repararem o dano causado à vítima, que é alçada ao primeiro plano do litígio, seguindo a tendência expressa na última reforma processual penal. Pode-se inclusive cogitar do parcelamento do débito decorrente do dano causado pelo autor, a ser autorizado pelo juiz, ouvidos Ministério Público e vítima, numa forma de aplicação da justiça restaurativa a tais casos.


6. Considerações finais

Essas são as conclusões puras a que se chega. Contudo, nada impede que o juiz module os efeitos da analogia e extraia de uma análise sistêmica do ordenamento jurídico-penal outras condições à concessão dos benefícios, com vistas a amenizar o choque que a postura eventualmente possa causar na comunidade jurisdicionada, que, em regra, sofre as influências dos clamores punitivos difundidos pelos meios de comunicação de massa, os quais acolhe de forma passiva, acrítica.

Dessa forma, por exemplo, com amparo no que prevêem os incisos II e III do art. 44, I e II do art. 77, dentre outros dispositivos do CP e da legislação penal, como condição à concessão do benefício da suspensão pelo parcelamento do valor do dano ou extinção da punibilidade pelo pagamento desse valor à vítima, poderá o juiz exigir que o submetido à persecução penal por crime contra o patrimônio, cometido sem violência ou grave ameaça, seja primário, tenha a seu favor as circunstâncias judiciais passíveis de análise na ocasião, bem como se mostre a medida suficiente à prevenção de futuras condutas delinqüentes. Ainda, para evitar que a medida fomente novas práticas delitivas, pode exigir que o investigado/processado/condenado comprove ocupação lícita, da qual possa extrair a quantia necessária ao pagamento do valor do dano. De se consignar, todavia, que tais exigências não se fazem necessárias e, inclusive, mostram-se excessivas, uma vez que não constam do art. 9º da Lei nº 10.684/03, que ora se toma por referência.

Enfim, o que não se pode admitir é que o juiz, no contexto pós-positivista, permaneça inerte diante de tão flagrante disparidade legislativa, especialmente em se tratando de Direito Penal, cuja intervenção é estigmatizante, por si só dotada de potencial criminógeno. Ao juiz cabe conferir efetividade à Constituição, ao que procede quando interpreta a lei de modo a maximizar seus princípios, atribuindo-lhes eficácia "tão alta quanto possível relativamente às possibilidades fáticas e jurídicas" (ALEXY, 2008, p. 37). E, impende lembrar, os princípios em causa no presente debate são os da liberdade e igualdade que, como já dito, compõem o núcleo fundamental dos direitos fundamentais e da própria noção de Justiça.

Aliás, a interpretação que aqui se propõe nada mais faz senão promover uma efetiva busca por Justiça, que é pressuposto de um Direito que possa ser reconhecido como tal (RADBRUCH, 2004, p. 11). Sobre o papel do juiz nessa busca por Justiça, a que chama pretensão de correção, eis o que diz Alexy, especialmente acerca de situações complexas, em que a lei não basta e se faz necessária a ponderação de princípios:

"Mas, se lei, precedente e dogmática não determinam a resposta a uma questão jurídica, o que define casos difíceis, são necessárias valorações adicionais, que não se deixam depreender somente do material fundado em autoridade dado. Se a pretensão de correção deve ser satisfeita, essas premissas adicionais devem ser fundamentadas. Mas isso é, se o fundado em autoridade ou institucional sozinho não dá resposta, possível somente no caminho da argumentação prática geral. Em seu quadro, reflexões de conformidade com a finalidade e idéias daquilo que é bom para a comunidade têm, sem dúvida, o seu lugar legítimo. Isso, porém, nada modifica nisto, que a questão diretiva do decidir judicial no âmbito da abertura é a questão sobre a compensação correta e a distribuição correta. Questões sobre a distribuição correta e a compensação correta são questões de justiça. Questões de justiça, porém, são questões morais. Assim, a pretensão de correção funda, também, no plano da aplicação do direito, uma união necessária de direito e moral." (2008, ps. 39-40)

Ao intérprete cabe dar sentido à norma, contextualizando a aplicação do Direito em relação à realidade, com o que o vivifica. Para isso servem os princípios em sua plasticidade, através da qual asseguram aberturas ao ordenamento jurídico, possibilitando que se (re)acomode diante das sempre renovadas demandas da realidade.

A proposta construída no presente trabalho, para além de corrigir pela via judicial algumas das muitas injustiças legisladas [21] em matéria penal, representa mais uma forma de evitação do encarceramento e seus estigmas, garante economia e, ainda, promove a pacificação social, talvez o principal escopo da jurisdição, ao viabilizar o restabelecimento do estado de coisas anterior, a partir da reparação dos danos ocasionados à vítima através da conduta criminosa. Frise-se, inclusive, que a interpretação sugerida supera uma das críticas sempre feitas ao Direito Penal, que diz respeito à incapacidade de algumas de suas penas assegurarem a pacificação social, dada sua inépcia quanto ao restabelecimento do status quo ante e uma vez que são aplicadas sem a participação da vítima, que é confiscada para o exercício monopolizado do jus puniendi.

"A característica diferenciada do poder punitivo é o confisco do conflito, ou seja, a usurpação do lugar de quem sofre o dano ou é vítima por parte do senhor (poder público), degradando a pessoa lesada ou vítima à condição de puro dado para a criminalização. Os paliativos que hoje se ensaiam para não vitimizar pela segunda vez não conseguem dissimular a essência confiscatória da vítima que caracteriza o poder punitivo e, menos ainda, podem garantir sua anulação. Só quando se retira o conflito desse modelo e ele é resolvido de acordo com um dos outros modelos de decisão de conflitos chega-se a uma solução; porém, nessa condição, o poder punitivo desaparece, porque, por definição, teremos saído de seu modelo." (ZAFFARONI, 2007, p. 30-31)

Aliás, se a decisão estivesse a seu dispor, segundo seu juízo de conveniência e oportunidade, é bem provável que a ampla maioria das vítimas de crimes contra o patrimônio preferisse ser ressarcida dos danos sofridos a ver o acusado submetido a outra medida, como, por exemplo, o aprisionamento. Os tempos são outros, os bens mais abundantes e até mesmo descartáveis, razão pela qual, diante de possibilidades como as aqui diagnosticadas, deve o intérprete construir a melhor alternativa para a adequação do Direito Penal à realidade, sempre orientado pela primazia da liberdade.

Já ao final deste estudo, afigura-se plausível que surjam questões quanto a qual solução se constituiria como a mais correta para as duas situações confrontadas: uma punição mais incisiva em relação aos crimes abrangidos pelo art. 9º da Lei nº 10.684/03, ou um tratamento mais benigno com relação aos delitos contra o patrimônio, cometidos sem violência ou grave ameaça?

Entendemos que tanto uma quanto outra coisa, desde que se mantenha a coerência do ordenamento em relação aos princípios constitucionais, de modo a conciliar a proibição de excesso, quanto aos crimes contra o patrimônio de que se trata, com a proibição de insuficiência, no que concerne à intervenção penal nos crimes contra as ordens tributária e econômica.

Assim, caso não alcance o objetivo de chamar a atenção para o cada vez mais evidente processo de deslegitimação do Direito Penal pela sua instrumentalização perversa – que tem por única finalidade a conservação do status quo,com a neutralização do refugo social –, servirá o presente debate para destacar a necessidade de se proceder a uma adequada intervenção penal relativamente aos crimes contra as ordens tributária e econômica, constatada a proteção insuficiente em relação aos bens jurídicos violados por essas condutas. Enquanto tal adequação não ocorre, constatado o excesso punitivo que emerge da comparação entre as situações expostas no decorrer deste trabalho, cabe ao Judiciário corrigir a injustiça legislada e, em nome da igualdade, conjugada à primazia da liberdade, estender os benefícios previstos no art. 9º da Lei nº 10.684/03 aos autores dos delitos contra o patrimônio, cometidos sem violência ou grave ameaça, o que se faz possível a partir da analogia in bonam partem ora sugerida.

Sobre os autores
Juarez Morais de Azevedo

Juiz de Direito em Minas Gerais. Graduado em Direito pela UFJF. Especialista em Criminologia. Mestrando em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (Portugal). Membro do INESPE – Instituto Novalimense de Estudos do Sistema Penitenciário.

Domingos Barroso da Costa

Graduado em Direito pela UFMG. Especialista em Criminologia e Direito Público. Mestre em Psicologia pela PUC-Minas. Assessor judiciário e professor universitário. Membro do INESPE – Instituto Novalimense de Estudos do Sistema Penitenciário.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AZEVEDO, Juarez Morais; COSTA, Domingos Barroso. Sobre a constitucionalização do trato conferido aos delitos contra o patrimônio, cometidos sem violência ou grave ameaça.: A proibição de excessos na intervenção penal sobre a liberdade e a aplicação do princípio da isonomia, considerados os benefícios garantidos na órbita dos crimes contra as ordens tributária e econômica (Lei nº 10.684/03). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3093, 20 dez. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20602. Acesso em: 25 nov. 2024.

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