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Algumas considerações a respeito do corte no fornecimento de serviços públicos.

Aspectos materiais e processuais do tema

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Agenda 01/01/2012 às 15:44

É inconstitucional a permissão legal para que se proceda ao corte de serviços públicos essenciais, por se tratar de situação violadora de direitos humanos fundamentais do indivíduo.

PRÉVIAS CONSIDERAÇÕES INTERDISCIPLINARES

Não é desconhecido dos operadores do direito, de um modo geral, o fenômeno do esgotamento paradigmático do pensamento jurídico fundado a partir da premissa de um direito natural (concepção tomista que foi empregada por séculos pelos juristas como modo de pensar dogmaticamente o direito) que encontra inúmeras dificuldades de resolver os problemas decorrentes da complexidade das relações intersubjetivas, ainda mais em um mundo que prima pela celeridade decorrente dos próprios avanços tecnológicos num mundo globalizado, o que não pode ficar á margem do ordenamento jurídico (parece sintomático e óbvio que não se possa pretender resolver os problemas decorrentes do mundo moderno, verbi gratia, com contratações eletrônicas, por vetustos brocardos de direito romano canônico).

Ou seja, começa-se a compreender que não basta que o ordenamento jurídico passe a prever esta ou aquela conduta eis que fatores, mormente de índole econômica, que permitem a volatização do capital, em tempo recorde, acabam por influenciar de forma tão marcante a sociedade com eficácia muito maior do que a imposta por textos legais (por exemplos, não se desconhece que decisões legislativas tem levado, em muitos países, ao fechamento e à criação de fábricas, com muitos reflexos no que tange, por exemplo, a volume de empregos, geração de renda, qualidade de vida etc.).

Tanto assim que autores como Celso Lafer propugnam, como proposta inicial para a solução do problema referente ao hiato apontado, a adoção de um novo modelo paradigmático [01] (o referido autor propõe chamá-lo de paradigma da filosofia do direito, para permitir um "pensar" menos dogmático, mais aberto ao "perquerir" ou ao "questionar", tomando, aliás, o dogma não como um fim em si mesmo (como se dava no modelo paradigmático positivista então dominante), mas, ao contrário, como um ponto de partida, como, ademais, vinha sendo sugerido por Tércio Sampaio Ferraz Jr., [02] permitindo-se a interpretação que autorize abranger fatores interdisciplinares).

E isso se torna relevante na medida em que, igualmente, se tem por inegável que o Direito seja um fenômeno histórico, revestido de temporalidade e que, nos primórdios da civilização já tinha seu conteúdo intimamente ligado aos desígnios dos detentores do poder (verbi gratia, no Egito Antigo, no período conhecido por Antigo Império, ou seja, entre 2.664 a C e 2.155 a C, cunhou-se a expressão segundo a qual "o justo é o que o faraó ama, e o mal é aquilo que o faraó odeia" [03], não obstante a ponderação de que o justo e ético, para esse povo se confundia com a emblemática noção de maat [04]), reforçando-se o entendimento segundo o qual o direito implica numa evidente técnica de controle social (caráter igualmente destacado pelo já mencionado Tércio Sampaio) [05].

Essas concepções ligando o Direito ao poder se tornam uma questão de grande relevo posto que, em um mundo globalizado, em que o poder econômico se concentra pólos globalizantes opostos aos dos globalizados, se pode passar a questionar se fatores intimamente ligados ao poder não estão colocando em xeque a interpretação que se possa fazer do ordenamento jurídico como um todo (o que se tem revelado como óbvio numa concepção geopolítica).

Tal discussão se torna muito evidente e atual, num mundo em que as informações e a tecnologia são difundidas de forma muito rápida, por veículos como a internet e a própria mídia, de um modo geral, observando-se uma crise de efetividade, outro fator de complexidade a ser sopesado (e, lamentavelmente, não se tem observado a preocupação das Faculdades de Direito em enfocar tais situações) em primeiro lugar, do ordenamento jurídico enquanto tal (como se pode entendê-lo como forma de controle social eis que o mesmo para ser alterado exige uma série de atos e formas dos poderes normativos, que demandam um tempo totalmente incompatível com as mudanças sociais, e, sobretudo, econômicas ?), o que vem acompanhado da crise instrumental (se o ordenamento estabelece direitos, em caso de violações a esses direitos tem-se o direito de ação para o devido restabelecimento da situação, o qual, como é cediço, repousa num instrumental processual para que possa ser exercitado), o que nos conduz a um terceiro evento, qual seja, o da crise do Poder Judiciário (ente institucional que tem por função precípua o exercício da jurisdição, ou jurisdicere, poder de "dizer o direito", de forma imparcial).

Aliás, autores como Montesquieu [06] explicam, sob um prisma histórico, que o Poder Judiciário se revela como um poder criado para suportar os desgastes das mazelas do poder, esclarecendo de forma simples, que se cuida de um poder criado para evitar o desgaste do soberano nas questões políticas polêmicas (pondera no sentido de que o poder de dizer o que é certo e o que é errado dentro de um Estado se revela como o maior poder de um Estado, posto que, quem o detém, pode-se dizer sempre como correto).

Assim, verifica-se que somente fatores muito candentes teriam levado os detentores do poder a não concentrar tal poder para si (resta como tentador dizer-se sempre certo, nunca estando errado) e isso se revela no fato de que, psicologicamente, ninguém gosta de estar errado (as pessoas dificilmente aceitam que lhes digam que estão erradas, optando por acreditar que foram vítimas de injustiça num julgamento a reconhecer as próprias falhas), o que significa que não se revela como raro que o julgador acabe por sempre se indispor com um dos pólos da relação (quando não com ambos), o que explica que a função de dizer o certo e o errado seja extremamente desgastante para quem a detém.

Daí a necessidade do soberano de atribuir a um terceiro tal função, para que este se desgaste politicamente com o fato de tal ou qual decisão, revelando a importância da liberdade do Julgador, que deve ser independente para tal mister, sob pena de se convolar em mero repetidor do soberano, isentando-o da responsabilidade política por seus atos.

Tais variáveis são postas em conflito, de forma candente, na questão que se delineia no presente momento, com a discussão das ações versando sobre a possibilidade de corte no fornecimento de serviços, em regime de concessão, que impliquem em relações de consumo, quando se verificar a mora do consumidor hipossuficiente (até porque normalmente são invocadas antinomias aparentes de normas, com regimes jurídicos diversos, como se exporá adiante), o que se tem se verificado num sem número de demandas análogas versando sobre tal tema, que tem abarrotado os fóruns do país (como se verifica, aliás, de forma sintomática, pela análise do grande número de Julgados sobre o assunto).


O DESAFIO DA COMPLEXIDADE CRISE DO PODER JUDICIÁRIO E TEMPESTIVIDADE DA JURISDIÇÃO

Como é de conhecimento geral, tal questão passa pelo exame da necessidade de se conferir, não só uma eficácia formal aos atos processuais, mas, em verdade, o que se passa a buscar é algo mais amplo, ou seja, uma efetividade de tais atos processuais – o processo não é pode mais ser visto como um fim em si mesmo, devendo-se buscar a sua utilização como instrumento de consecução de algo maior, qual seja, o direito de ação, liberdade pública ou fundamental right, previsto na norma contida no artigo 5º, inciso XXXV da Constituição Federal.

Ou seja, parte-se da constatação segundo a qual não basta que os atos de impulso oficial direcionem adequadamente (e de forma indefinida) um processo como fim em si mesmo, posto que isso poderia implicar numa forma jurisdicional de se negar a jurisdição (deve-se combater o assim denominado despacho protocolar ou burocrático que, muitas vezes, nada resolve em relação a quaisquer questões processuais).

Ao contrário, a partir do advento da Emenda Constitucional nº 45/04, que instituiu a chamada "Reforma do Poder Judiciário", passou-se a admitir o status constitucional de princípios que já existiam na legislação ordinária, realçando a importância de se buscar conferir a almejada efetividade aos atos processuais.

Melhor dizendo, insta ponderar no sentido de que tal Emenda passou a prever a necessidade de um tempo razoável de duração de um processo, como se observa pela atual redação da norma prevista no artigo 5º, inciso LXXVIII, da Constituição Federal, o que vem sendo, de um modo mais ou menos uniforme, chamado pela doutrina como princípio da tempestividade da jurisdição, o qual, em última análise, pareceria uma certa constitucionalização de princípios processuais já estabelecidos na legislação ordinária como asseverado acima (como, verbi gratia, as normas contidas nos artigos 125, inciso II do Código de Processo Civil e 2º da Lei nº 9.099/95 – ambas trazendo como princípios processuais, deveres de rápida solução de um litígio, celeridade e economia processuais, dentre outros que visam, em última ratio, atingir tais escopos, tal como se dá com a simplicidade de formas, etc.).

E, muito antes da busca por um número cabalístico (com emprego de fórmulas mágicas ou matemáticas [07] para a sua aferição, o que restaria como praticamente impossível ante as peculiaridades e o grande número de incidentes que poderia, de forma hipotética, ocorrer no processo civil) de dias pré-determinados para a realização de atos processuais, o escopo preconizado pela norma em comento não parece ter sido lançar uma regra específica a respeito do tempo processual, mas, como convém a uma liberdade pública (ou fundamental right, na acepção empregada por J. J. Canotilho, em seu conhecido Curso de Direito Constitucional Português), se buscou estabelecer um princípio norteador da mudança de mentalidade que se espera de magistrados, promotores, advogados e, sobretudo, de legisladores.

Isso porque, como parece despontar com singular obviedade franciscana, se uma lei vier a aumentar ou dificultar o trâmite processual, tornando-o mais longo, sem um fator adequado a justificar tal medida (por exemplo, criando-se uma antinomia [08]), a inovação legislativa será reputada como inconstitucional, justamente por colidir com tal orientação programática.

Do mesmo modo, por exemplo, se houver perda injustificável de prazos, ou demora indevida na realização do impulso oficial ou do sentenciamento de processos, poder-se-á invocar o referido princípio constitucional da tempestividade para embasar, por exemplo, a impetração de um mandado de segurança contra tais espécies de atos coatores [09], sem prejuízo, inclusive, das providências inerentes ao cumprimento das obrigações de fazer, inclusive, as do artigo 461 e seus consectários do Código de Processo Civil (até mesmo com imposição de astreintes em face do Poder Público [10] – o que depois deverá ser resolvido em sede de execução por regras próprias do artigo 100 e seus consectários da Constituição Federal).

Mas, fundamentalmente, o que parece estar a ocorrer é uma busca pela ruptura com dogmas formais do processo em geral, como modo de galgar modos mais céleres e práticos de se conseguir a tutela invocada, o que leva a releituras de postulados teóricos até então cristalizados [11], como forma de se atingir uma interpretação mais consentânea com essas aspirações de efetividade (o propósito sincretista do processo, tem despontado de forma manifesta pelo poder legiferante, como se observa, por exemplo, pela inserção de um parágrafo 7º, no artigo 273 do Código de Processo Civil, passando a admitir a propositura de medidas cautelares no bojo da própria ação em que se busca a tutela que seria tida como principal, restringindo, sobremaneira, a condição da ação interesse de agir, pela falta de necessidade, num grande número de demandas, tornando obsoletas ações cautelares incidentais [12] e em grande parte, ações cautelares preparatórias [13]; ou, por exemplo, com as introduções recentes trazidas pela Lei nº 11.232/05, que retiraram o status de ação, da execução de título judicial, tornando-a em fase do processo de conhecimento, ou seja, fase de cumprimento de sentença como se tem pela atual redação do artigo 475 e seus inúmeros consectários do Código de Processo Civil).

Tal sincretismo, aliás, se revela de todo adequado num universo de grande número de demandas, eis que implica em situação de redução sensível do número de demandas, para uma mesma finalidade, com racionalização do uso dos serviços forenses (ao invés de se autuar duas demandas, uma cautelar e outra principal, com duas autuações e dois despachos, duas citações etc., seria de se concluir pela desnecessidade de tal expediente, diante da clareza solar da orientação do artigo 273, par. 7º, CPC, com desnecessidade de propor-se ações cautelares indevidamente, neste contexto, com o que se terá a prática de um número reduzido de atos, o mesmo se dando em relação à execução, em que se poderá intimar eletronicamente [14] o advogado, sem a necessidade de confecção de mandado de citação ou de utilização de Oficial de Justiça para tal mister, liberando os serventuários e juízes para a análise de outros feitos – ou, ainda, através de se instar o Ministério Público e outros entes legitimados, para a propositura de ações coletivas – as class action, correntes no direito anglo-saxâo, no sistema jurídico da Common Law), em situação, ademais, que obedece aos próprios princípios da legalidade e da moralidade dos atos do Poder Público lato sensu (e, aí, obviamente se pode inserir o Poder Judiciário), como decorre da redação da norma contida no artigo 37, caput, da Constituição Federal, o que, obviamente, deve ser sopesado em conjunto com a nova garantia da tempestividade da jurisdição, mencionada linhas atrás (ou seja, o aludido tempo razoável de duração do processo, estabelecido pela norma contida no artigo 5º, inciso LXXVIII, da Constituição Federal).

Resta saber, no entanto, se o Poder Judiciário será dotado de infra-estrutura adequada para chegar a tal padrão de excelência que lhe permita cumprir adequadamente tal fundamental right, mormente no que tange a um número de funcionários aptos e suficientes para o auxílio do magistrado no cumprimento de prazos e fases processuais (muitas vezes, e os juízes sabem disso, as demoras ocorrem não porque os magistrados se recusam a trabalhar, mas porque oficiais de Justiça demoram a localizar os cientificados, cartorários não preparam adequadamente conclusões, o que, às mais das vezes, ocorre, igualmente, não por leniência dos serventuários, mas por um volume abissal de serviços, sem a adequada infra-estrutura, já que, igualmente sabido, o volume de demandas cresce em velocidade assustadora).

Existem, ademais, razões aptas a explicarem tal fenômeno, diante das dificuldades existentes em relação à estrutura do Poder Judiciário estatal para dar vazão ao julgamento de demandas, de forma imparcial, de forma célere, o que tem sido analisado por vários segmentos doutrinários, devendo-se destacar o importante trabalho desenvolvido, de forma imparcial, analisando inúmeras vertentes desta problema, realizado por José Rogério Cruz e Tucci. [15]

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Mas é importante que se destaque que tal como demonstrado pelo cientista Edgar Morin [16], na sua célebre análise do paradigma da complexidade, o pensamento científico não mais pode prescindir da perquirição interdisciplinar na busca de soluções aos problemas a serem enfrentados, posto que inexistiria campo de estudos completamente estanque das demais áreas do pensamento.

Isso porque a ciência deixou de ser um conhecimento absoluto, calcado, apenas e tão somente na verificação empírica, de leis e postulados sem exceção, eis que, em qualquer campo de análise, de se analisar o feixe de fatores a ele relacionados, cujos reflexos poderão influenciar no resultado final.

Tais detalhes não tem permanecido alheios à interpretação do direito, sendo pormenorizadamente destacados em questões como a recentemente decidida pelo Supremo Tribunal Federal na situação de cobrança de contribuições previdenciárias de servidores inativos, a discussão das células-tronco, direitos das minorias (como, por exemplo, a discussão das relações homo-afetivas) etc...

Diante disso, com a devida licença, não mais se pode permitir a busca de soluções simplistas, no ordenamento jurídico pátrio, esvaziando-se a discussão interdisciplinar, sobretudo fatores de ordem econômica e sociológica, o que se revela patente na discussão a respeito da possibilidade de interrupção de serviços públicos por inadimplência do consumidor (situação que pode ser vista por vários aspectos, como se passará a expor).


ALGUMAS CONSIDERAÇÕES ACERCA DO REGIME JURÍDICO PRÓPRIO – NOTAS DE DIREITO MATERIAL E PROCESSUAL

Não se pode esquecer, antes de mais nada, que, em ultima ratio, até por força do disposto na norma contida no artigo 175 da Constituição Federal, os serviços públicos, de um modo geral, em relação a seus consumidores, implicam em relações de consumo, nos termos do que vier a ser estabelecido em lei (o artigo 6º e seus consectários do Código de Proteção e Defesa do Consumidor se orienta no mesmo sentido, notadamente como pode ser observado pelo advento da norma contida no seu inciso X).

Igualmente não se nega que as concessionárias de serviços públicos essenciais, tais como serviços de água e luz (pouco importa se em regime de concessão, ou se em regime de exploração pela administração direta ou indireta), sempre se lembrando que se cuida de serviços públicos essenciais (a Portaria nº 03/99 da Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça - publicada em 19.03.99 - reconheceu como serviço essencial o fornecimento de água, energia elétrica e telefonia – podendo-se invocar, até mesmo, para a compreensão de um conceito legal de serviço público essencial a orientação contida na Lei 7.783 de 28 de junho de 1989, que cuidou da questão do chamado ‘direito de greve", que estabeleceu um rol de tais serviços em sua norma contida no artigo 10º [17]) busquem, sob a égide do seu sistema de regulação (amparados por diplomas normativos mormente firmados por agências reguladoras em nível administrativo – a despeito da redação, por exemplo, da norma contida no artigo 3º, inciso V da Lei nº 9.427/96 que instituiu a agência reguladora ANEEL, com atribuições para, no setor elétrico "dirimir, no âmbito administrativo, as divergências entre concessionárias, permissionárias, autorizadas, produtores independentes e autoprodutores, bem como entre esses agentes e seus consumidores"), toda a espécie de justificativa para justificar o corte indiscriminado de consumidores inadimplentes, pouco importando as razões da inadimplência (o país observou consternado que, no ano de 2.007, como amplamente divulgado pelos meios de comunicação de massa, os mass media, uma concessionária cortou a energia de uma residência na qual havia aparelhos médicos ligados, ocasionando a morte de uma pessoa idosa).

O mesmo pode ser dito, mutatis mutandi, em relação ao quanto estabelecido pelo advento da Lei nº 8.987/95 que dispôs sobre o regime de concessão e permissão da prestação de serviços públicos, no direito pátrio e que, em sua norma contida no artigo 6º, § 3º, inciso II, estabelece que, em linhas gerais, toda concessão ou permissão pressupõe a prestação de serviço adequado ao pleno atendimento dos usuários, conforme estabelecido nesta lei, nas normas pertinentes e no respectivo contrato, não se caracterizando como situação de descontinuidade do serviço a sua interrupção em situação de emergência ou após prévio aviso, quando, por inadimplemento do usuário, considerado o interesse da coletividade, o que, ademais, encontra eco nos termos da vetusta Portaria nº 466, de 12.11.97, do DNAEE (Departamento Nacional de Águas e Energia Elétrica, atualmente o órgão foi sucedido pela Agência Nacional de Energia Elétrica - ANEEL) que estabelece diversas situações em que o concessionário poderá suspender o fornecimento de energia elétrica, com destaque para o advento da norma contida em seu artigo 76, inciso I, no que tange a situações de atraso no pagamento da conta após o decurso de 15 (quinze) dias de seu vencimento mediante prévia comunicação do consumidor.

No entanto não se pode esquecer que, em primeiro lugar, a atuação administrativa de ditas agências, quando muito, resta, como regra geral, como mera reguladora dos textos legais, não podendo, nesses termos, suplantar ou alterar os termos das normas legais, sob pena de maceração do princípio da tripartição de poderes, em manifesto desrespeito ao texto constitucional, que, ademais, como diretriz principiológica, estabelece, tanto em seu corpo principal, como nos atos das disposições constitucionais transitórias, a necessidade de proteção dos consumidores como diretriz programática (em última análise, pelo disposto na norma contida no artigo 5º LICC, esse seria o fim social ao que o diploma normativo se destinaria em relação a tanto).

De tal sorte que o sistema constitucional já estabeleceria a linha mestra no sentido de que antinomias aparentes devam ser resolvidas em prol dos consumidores hipossuficientes (sob pena de se ter como letras mortas, o que, nem de longe, parece ter sido o escopo preconizado pelo legislador pátrio constituinte ao editar tais normas, aquelas contidas nos artigos 5º, inciso XXXII, 170, inciso V e o próprio artigo 175, todos da Constituição Federal e a própria orientação do artigo 48 ADCT que estabeleceu urgência na criação de diploma protetivo a esse respeito).

Mas, mesmo que assim não se entendesse, o que se admite por mero apego ao debate e amor á dialética, seria de se ponderar no sentido de que, mesmo em nível infraconstitucional, o que se tem é que o CDC (Lei nº 8.078/90) deve ser tido como norma de orientação principiológica a respeito da matéria de proteção aos consumidores em geral, com primazia sobre qualquer outro diploma de mesma hierarquia, eis que especial em relação de consumo (lex specialis derrogat generalis).

Nesse sentido, inclusive, parece indispensável, para a melhor compreensão, que se destaque a opinião literal a esse respeito, sintetizada, deste modo, por Nelson Nery Jr., que o aponta o seguinte, com precisão acerca da questão, lançando verdadeira "pá de cal", se for permitida a metáfora, a esse respeito:

"... o microssistemado direito das relações de consumo será sempre regido, de forma principal e geral, pela lei especial que o criou, vale dizer, pelo Código de Defesa do Consumidor. ... O Código de Defesa do Consumidor, por outro lado, é lei principiológica. Não é analítica, mas sintética. Nem seria de boa técnica legislativa aprovar-se lei de relações de consumo que regulamentasse cada divisão do setor produtivo (automóveis, cosméticos, eletroeletrônicos, vestuário, etc.). Optou-se por aprovar lei que contivesse preceitos gerais, que fixasse os princípios fundamentais das relações de consumo. É isso que significa ser uma lei princípiológica. Todas as demais que se destinarem, de forma específica, a regular determinado setor das relações de consumo deverão submeter-se aos preceitos gerais da lei principiológica, que é o Código de Defesa do Consumidor. Assim, sobrevindo lei que regule, v.g.; transporte aéreo, deve obedecer aos princípios gerais estabelecidos no CDC ...." [18]

Dúvida não parece haver, portanto, no que tange à inconstitucionalidade manifesta de tais diplomas que parecem se orientar em permissões para que se proceda ao corte de tais serviços públicos essenciais, o que, em ultima ratio, deve ser entendido como uma situação violadora de direitos humanos fundamentais do indivíduo, sob a perspectiva do princípio da dignidade da pessoal humana expressamente estabelecido como valor fundamental do Estado de Direito na República Federativa do Brasil (artigos 1º e 5º e seus consectários da Constituição Federal).

De forma expressa, sobre a inconstitucionalidade de tais normas, valiosa se revela a opinião do Promotor e Professor Plínio Lacerda Martins , para quem, dizendo muito em pouco, aponta no sentido de que:

"Nesse sentido, é correta a premissa, que qualquer norma infraconstitucional que ofender os direitos consagrados pelo Código do Consumidor estará ferindo a Constituição e, mutatis mutandis, deverá ser declarada como inconstitucional. Nesta direção estabelece Arruda Alvim: "Garantia constitucional desta magnitude, possui, no mínimo, como efeito imediato e emergente, irradiado da sua condição de princípio geral da atividade econômica do País, conforme erigido em nossa Carta Magna, o condão de inquinar de inconstitucionalidade qualquer norma que possa consistir em óbice à defesa desta figura fundamental das relações de consumo, que é o consumidor" Sem embargo destas considerações, faz-se necessário comentar o princípio da proibição do retrocesso em face das garantias fundamentais. Com efeito o direito do consumidor possui o status de direito constitucional e, como tal, não pode o legislador ordinário fazer regredir o "grau de garantia fundamental" conforme leciona Marcos Gouvêa. A lei da concessão do serviço público (Lei 8.987/95) ao afirmar que não se caracteriza como descontinuidade do serviço a sua interrupção "por inadimplemento do usuário, considerado o interesse da coletividade" (art. 6º, § 3º, II), na realidade está praticando o autêntico retrocesso ao direito do consumidor, haja vista que o art. 22 do CDC afirma que os fornecedores de serviço essencial são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes e "contínuos". Arrimado a este fato acrescente-se que o direito do consumidor possui garantia fundamental na Constituição e que a interrupção do fornecimento, além de causar uma lesão, afeta diretamente a sua dignidade, sem embargo da dificuldade de acesso à Justiça que o dispositivo apresenta, consolidando assim na autotutela do direito do fornecedor. Admitir a possibilidade do corte de energia elétrica implica em flagrante retrocesso ao direito do consumidor, consagrado em nível constitucional. Por isso o princípio de retrocesso veda que lei posterior possa desconstituir qualquer garantia constitucional. Ainda que lex posteriori estabeleça nesse sentido, a norma deverá ser considerada inconstitucional. Por tais razões é manifesta a inconstitucionalidade do dispositivo legal previsto no art. 6º, § 3º, II da Lei 8.987/95 que autoriza a interrupção de serviço essencial, em razão do princípio da proibição de retrocesso." [19]

Sob tal perspectiva, parece razoável, eis que desponta com singular clareza solar, que outras leis ordinárias, que venham a disciplinar o mercado de fornecimento de água ou de energia elétrica, não obstante possam se revestir da mesma natureza (lei ordinária), não possam suplantar cânones protetivos dos consumidores, sob pena de se criar categorias jurídicas novas, os consumidores de fornecimento de água ou de energia elétrica, por exemplo, com menos direitos que os consumidores geral, sem qualquer fator de discrimen [20] razoável a esse respeito, o que, se prevalecesse, implicaria em manifesta situação de inconstitucionalidade [21] de tais restrições das referidas leis por colidência clara com o princípio constitucional da igualdade (tanto assim que, por exemplo, no mercado de contratos de prestação de seguro saúde, com incidência de lei especial, a conhecida Lei nº 9.656/98, inúmeros expedientes das empresas prestadoras de serviços de plano de saúde e de seguro saúde tem sido afastadas sistematicamente pela jurisprudência dos Tribunais pátrios e pelos enunciados e resoluções do CONSU, órgão interministerial referido na Lei nº 9.656/98, hierarquicamente superior à ANS [22], agência nacional de saúde suplementar que regulamenta o setor, a demonstrar o acerto do presente entendimento a respeito do tema, ou seja, da orientação principiológica da legislação consumerista).

De tal sorte, não se pode pretender, de modo algum, a exclusão da incidência da Lei nº 8.078/90 em relação à disciplina do fornecimento de serviços públicos, ainda que por regime de concessão ou permissão, e, ainda que leis ordinárias venham a disciplinar o setor, como aventado linhas atrás, não se podendo, portanto, num juízo prima facie, deixar de reconhecer, como regra (que como se exporá adiante comporta algumas exceções, notadamente no que tange ao dolo e à má-fé) a necessidade de incidência da norma contida no artigo 22 da Lei nº 8.078/90 que proíbe o corte no fornecimento de serviços essenciais.

Não se pretende, com isso, obviamente, impedir o lídimo direito do Poder Público, suas autarquias ou empresas concessionárias, de cobrar suas dívidas, mas, ao contrário, tal direito não pode ser exercido de forma abusiva, em violação ao disposto na norma contida no artigo 42 do mesmo Código do Consumidor, que impede que o consumidor seja exposto a situações de ridículo (o corte do serviço se torna notório na vizinhança, sobretudo nas cidades do interior), não se podendo, igualmente, submetê-lo a constrangimento e ameaças.

Neste sentido, inclusive, de se pedir vênia para apontar Julgado do extinto E. 1º Tribunal de Alçada Civil do Estado de São Paulo, da lavra do eminente Rizatto Nunes, para quem, sobre questão análoga (no caso, corte de energia elétrica, igualmente um serviço público essencial):

"MEDIDA CAUTELAR – CAUTELA INOMINADA – Pretensão à legitimação do ato de suspensão do fornecimento de energia elétrica – Impossibilidade – Serviço essencial que se submete ao princípio da continuidade – Inadimplência do consumidor –usuário – Irrelevância – Artigos 22 e 42 do CDC e artigo 6º, par. 3º, II da Lei nº 8.987/95 – Essencialiade e urgência serviço reconhecida expressamente pelo ordenamento jurídico – Demonstração judicial da má-fé do usuário em não querer pagar a dívida necessária à caracterização do interesse da coletividade capaz de legitimar o ato de interrupção – Liminar mantida – Agravo Desprovido." ....Vê-se, portanto, que há ampla determinação para que os serviços públicos sejam eficientes , adequados, seguros e contínuos, exatamente como prevê o artigo 22 do Código de Defesa do Consumidor, já referido. Diga-se que aqueles que pensam que se pode efetuar o corte do fornecimento, confundem o direito de crédito que tem o consumidor, com o direito que ele não tem de cessar a prestação do serviço. É claro que ele pode e deve receber o seu crédito, mas a cobrança não podeser abusiva ( artigo 42 do CDC ). É por isso que a ameaça ou suspensão de serviço essencial extrapola os limites da legalidade...." AI 1.303.190-8, Espírito Santo do Pinhal, Rel. Rizzato Nunes, v.u., j. 02.06.04.

No mesmo sentido, a orientação já traçada pelo E. Superior Tribunal de Justiça, a qual, igualmente, peço vênia para destacar, nesta oportunidade:

"Corte no fornecimento de água. Inadimplência do Consumidor. Ilegalidade.

1. É ilegal a interrupção no fornecimento de água, mesmo que inadimplente o consumidor, à vista das disposições do Código de Defesa do Consumidor que impedem seja o usuário exposto ao ridículo. 2. Deve a concessionária de serviço público utilizar-se dos meios próprios para receber pagamentos em atrasos. 3 . Recurso não conhecido." STJ - R. Esp. 122.812-ES, 1ª Turma, Min. Milton Luiz Pereira, j. 05.12.00, v.u., DJU 26.03.01, p. 369, in Lex STJ 143/104.

Do mesmo órgão, com igual teor, a evidenciar que o entendimento em questão não se revela como isolado, de se ponderar no sentido do seguinte Julgado:

ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. ENERGIA ELÉTRICA. AUSÊNCIA DE PAGAMENTO DE TARIFA. CORTE. IMPOSSIBILIDADE.

1. É condenável o ato praticado pelo usuário que desvia energia elétrica, sujeitando-se até a responder penalmente. 2. Essa violação, contudo, não resulta em reconhecer como legítimo ato administrativo praticado pela empresa concessionária fornecedora de energia e consistente na interrupção do fornecimento da mesma. 3. A energia é, na atualidade, um bem essencial à população, constituindo-se serviço público indispensável subordinado ao princípio da continuidade de sua prestação, pelo que se torna impossível a sua interrupção. 4. Os arts. 22 e 42, do Código de Defesa do Consumidor, aplicam-se às empresas concessionárias de serviço público. 5. O corte de energia, como forma de compelir o usuário ao pagamento de tarifa ou multa, extrapola os limites da legalidade. 6. Não há de se prestigiar atuação da Justiça privada no Brasil, especialmente, quando exercida por credor econômica e financeiramente mais forte, em largas proporções, do que o devedor. Afronta, se assim fosse admitido, aos princípios constitucionais da inocência presumida e da ampla defesa. 7. O direito do cidadão de se utilizar dos serviços públicos essenciais para a sua vida em sociedade deve ser interpretado com vistas a beneficiar a quem deles se utiliza. 8. Recurso improvido. Decisão: Por unanimidade, negar provimento ao recurso. (RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA nº 8915/MA, PRIMEIRA TURMA do STJ, Rel. JOSÉ DELGADO. j. 12.05.1998, Publ. DJU 17.08.1998 p. 00023).

E, ainda mais, não se pode deixar de atentar para o fato de que, como igualmente sabido, a matéria em comento envolve o exame de direito à saúde, direito assegurado pelas normas contidas nos artigos 6º e 196, ambos da mesma Constituição Federal, na medida em que, como sabido, uma residência sem fornecimento de serviços de água e esgoto, com certeza, tornar-se-á um ambiente insalubre para os seus moradores (sob uma simples interpretação do princípio da dignidade da pessoa humana que sobrepuja o direito de coerção patrimonial do credor, por simples juízo de proporcionalidade ou incidência da conhecida logus del razonable, ou lógica do razoável como asseverado por autores como Celso Lafer, em sua conhecida obra a respeito da reconstrução dos direitos humanos, Ed. Companhia das Letras, 1.991, a partir dos estudos de Hannah Arendt sobre filosofia do direito)) e, igualmente, para quem não contribuiu para a situação, de qualquer modo, que seriam os vizinhos (a falta de água em imóvel, seguramente, implicará em mau cheiro, falta de condições de higiene, propiciando o aparecimento de insetos e outros vetores aptos à transmissão de doenças etc – enfim, gerará situação que afetará não só a saúde dos moradores do imóvel, como, igualmente, a própria saúde pública, numa acepção lato sensu, implicando, mesmo, em vulneração de um direito coletivo, como asseverado acima).

Tal direito coletivo, inclusive, pode implicar, em ultima ratio, numa via de acesso aos legitimados coletivos, em situações extremas à utilização dos instrumentos ínsitos a tal espécie de tutela, ainda que seja pela difusão aludida (saúde pública), nos estritos termos preconizados pelo advento da norma contida no artigo 81 e seus consectários da Lei nº 8.078/90.

E, como sabido, no ordenamento jurídico pátrio, o direito à saúde tem passado a ser entendido com um status de verdadeiro fundamental right (sobre o tema, Luiz Alberto David Araújo et alii, em seu conhecido Curso de Direito Constitucional, Ed. Saraiva, 2.008), sendo ainda correlato a outro sobreprincípio, na medida em que malgrado esteja previsto de forma expressa como direito social no artigo 6º da Magna Carta, como sabido, sem o direito à saúde restará vulnerado o próprio direito à vida, verdadeiro sobreprincípio constitucional defendido no "caput" da norma contida no artigo 5º da Constituição Federal de 05.10.1.988.

Inclusive se dá porque como já vinha asseverado pela norma contida no artigo 4º do Código Civil de 1916 (Lei nº 3.071, de 1º de janeiro de 1916), com disposição análoga, quase literal mantida no artigo 2º, do Código Civil de 2002 (Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2.002), atualmente vigente, a aquisição da personalidade da pessoa física no Direito brasileiro somente ocorre com o nascimento com vida, de modo que, sem vida, ressalvados raríssimos efeitos jurídicos dos quais não se cuida (como respeito ao cadáver ou às disposições de última vontade), não haverá como se defender qualquer outro direito intitulado.

E como ressalvado o plurívoco vocábulo "saúde" deve ser entendido na sua acepção ampla para que se dê a maior proteção possível ao direito à vida que como mencionado é um verdadeiro sobreprincípio constitucional.

E de nada adianta assegurar-se o direito à vida se não se assegurar o direito à saúde que nos estritos termos da norma contida no artigo 196 da Constituição é "direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem a redução do risco de doenças e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços (novamente se destaca a pertinência para o caso em estudo) para sua promoção, proteção e recuperação" (não é, ademais, preciso, uma visão muito acurada para perceber que, a questão se encontra intimamente ligada, sob tal perspectiva, com a questão de fornecimento de serviços de água, esgoto e energia elétrica, enquanto serviços públicos essenciais, posto que, sem tais bens de consumo, insista-se, haverá condições muito propícias para o aparecimento de doenças que atingirão a própria coletividade – outro dado a permitir a aplicação do princípio da proporcionalidade na análise da questão posta à reflexão no presente trabalho).

Sobre o tema, inclusive ressalvando a obrigação de todos em relação à preservação do objeto jurídico saúde (em suas plurívocas acepções) de se destacar a opinião de JOSÉ AFONSO DA SILVA para quem, dizendo muito em pouco a esse respeito, vaticina:

"A saúde é concebida como direito de todos e dever do Estado, que a deve garantir mediante políticas sociais e econômicas que visem a redução do risco de doenças e outros agravos. O direito à saúde rege-se pelos princípios da universalidade e igualdade de acesso às ações e serviços que a promovem, protegem e recuperam" (in Curso de Direito Constituticional Positivo, 17ª Edição, São Paulo, Malheiros, Brasil, 2000, pág. 804).

Desta feita, é inescusável o dever do Estado (em sua acepção ampla, o que envolve não só a prestação de serviços públicos pela administração direta e indireta, mas igualmente alcança as concessionárias de tal serviço, eis que o Estado lato sensu não poderia conceder tais serviços sem a previsão e preservação de tais parâmetros, sob pena de burla à orientação trazida pelo constituinte pátrio, com manifesta ineficácia de exclusão de tal situação) em garantir o acesso igualitário a toda e qualquer pessoa residente e domiciliada em território nacional tal acesso.

E, como se cuida de serviços essenciais (diante de tudo quanto destacado acima – havendo nítida necessidade do Magistrado assumir seu papel de guardião da Constituição Federal e seus princípios), tem-se que os mesmos devem ser contínuos, como asseverado pela norma contida no artigo 22 do referido estatuto consumerista (Lei nº 8.078/90), sendo vedado o corte do fornecimento do serviço, que, portanto, como matiz principiológica para todos os tipos de relação de consumo (como asseverado linhas atrás), não pode ser tido como revogado por normas regulamentares hierarquicamente inferiores, ou que, principiologicamente não possam ter derrogado ou revogado o Código Consumerista (que, dentre outras disposições, protege, inclusive, consumidores hipossuficientes contra práticas abusivas – artigo 6º, inciso IV da mesma Lei nº 8.078/90).

Não se pode esquecer, na esteira de tudo quanto asseverado linhas atrás, que, além de todos os direitos postos em questão, resta analisar, ainda, a questão referente à segurança, eis que, como se revela cediço, eis que público e notório, imóveis em que não ocorra o fornecimento de serviços essenciais como água e energia elétrica (e igualmente não se esqueça que a Portaria nº 03/99 mencionada acima elencou como serviços essenciais, não só esses dois, mas também os serviços de telefonia), igualmente tornar-se-ão, além de insalubres, inseguros (com vulnerações ao disposto nos artigo 1.277 do Código Civil – ou 554 do Código Civil de 1.916, o conhecido Código Bevilácqua), não só para os seus moradores, como para toda a vizinhança (isso quando a habitação não puder ser tida como coletiva ou multi-familiar, com necessidade de resguardar-se, não só idosos e doentes, como também crianças e adolescentes), sendo o direito à segurança outro princípio constitucional como desponta do advento da norma contida no artigo 5º, caput, da Constituição Federal (sem energia, verbi gratia, não haverá iluminação, havendo risco de saques, ataques, permanência de indivíduos suspeitos, etc....).

E tudo isso não pode ser admitido senão em desprestígio do dever de eficiência que a Administração Pública lato sensu deve empregar em suas atividades regulares (artigo 37, caput, Constituição Federal, e, no caso bandeirante, artigo 111 da Constituição do Estado de São Paulo), somente vindo a reforçar a orientação lançada no presente artigo, no que tange à inconstitucionalidade manifesta dos dispositivos legais mormente empregados pelas fornecedoras de tais serviços, como forma de justificar suas atitudes, defendendo suas posturas como exercício regular de direito, bem como a evidenciar que, em casos de antinomia ou conflito aparente de normas, o Magistrado não deve vacilar, em tais casos, no que tange à utilização do princípio da proporcionalidade (a supramencionada regra da "lógica do razoável") em prol dos consumidores hipossuficientes.

Aliás, de se ponderar, inclusive, que a forma reiterada como essas decisões tem sido lançadas, tornando obsoletas as defesas fundadas em sua legalidade (como visto a inconstitucionalidade é manifesta, sendo reconhecida em todos os níveis pelos Tribunais pátrios), não se pode negar que se tenha, nesses casos, a situação mencionada como manifesto abuso no exercício do direito de defesa, nos estritos termos preconizados pelo advento da norma contida no artigo 273 e seus consectários do Código de Processo Civil, o que, em havendo verossimilhança da alegação (tal verossimilhança seria, inclusive, necessária à inversão dos ônus probatórios em favor do consumidor hipossuficiente, nos estritos termos preconizados pelo advento da norma contida no artigo 6º, inciso VIII da Lei nº 8.0787/90), permitirá, sem maior dificuldade, que se antecipe tutela, em condições como tal, para manter a continuidade do serviço público em questão (seja energia elétrica, seja fornecimento de água e esgoto, ou seja o serviço essencial, pouco importando, como aventado acima, que se cuide de atividade exercida em regime de concessão ou diretamente pelo Poder Público).

Da mesma forma, parece temerária a tática empregada por algumas dessas fornecedoras de serviços, no sentido de se recusarem a atender a medidas liminares, por via transversa, aduzindo que as medidas judiciais em questão deveriam ser deferidas apenas para o período descrito na petição inicial (algumas vezes se chega a interpor embargos declaratórios a esse respeito), pretendendo fazer valer entendimento burocrático no sentido de que seria necessária uma ação para cada mês de inadimplemento, em visão totalmente dissociada do atual modelo paradigmático do ordenamento jurídico (como aduzido nos primeiros tópicos do presente artigo).

Ora, data máxima, concessa, permissa vênia, o que se revela é que tais condutas implicam manifestas pretensões deduzidas contra expresso texto de lei, o que, como sabido, implica em situação de reconhecimento da conduta do improbus litigator, vedada pelo advento da norma contida no artigo 17 e seus consectários do Código de Processo Civil, e, isso se dá porque, como aduzido, a lei é expressa no sentido de que, em se cuidando de obrigação não instantânea (ao contrário, se tem aí evidente obrigação de trato sucessivo, que se vence, como é cediço, mês a mês, em prestação essencial que, como visto, é sucessiva e não pode ser interrompida ou suspensa), a situação se encontra expressamente disciplinada pelo advento da norma contida no artigo 290 do Código de Processo Civil (e o corpo jurídico destas prestadoras, pelo óbvio, não pode alegar o desconhecimento da lei – desde há muito se acolhe no ordenamento jurídico pátrio o vetusto, porém pragmático adágio de direito romano – jus quiritum – resgatado por glosadores medievais, no sentido de que ignorantia legis nemo excusat, o qual, em tradução literal e livre implica a idéia de acordo com a qual a ninguém será dado alegar ignorância da eli, como previsto pelo advento da norma contida no artigo 3º da Lei de Introdução ao Código Civil).

Tem-se, portanto, nesses casos, o dolo manifesto (ainda que eventual) em postergar o cumprimento das ordens judiciais, na vã esperança de forçar consumidores a acordos, de forma constrangedora e indevida, eis que manifestamente ilegal (nesse sentido, além da desobediência e de possível fraude processual – artigo 347 do Código Penal, se torna a aduzir a vedação contida nos artigos 42 e 71, ambos do Código de Proteção e Defesa do Consumidor – Lei nº 8.078/90), a recomendar a pronta intervenção judicial, não só com o início da persecução penal (pelos princípios da oficialidade e oficiosidade [23] da ação penal, tais providências devem ser encetadas, desde logo, eis se trata de delitos passíveis de aferição por ações penais de iniciativa pública incondicionada – nos termos preconizados pelo advento da norma contida no artigo 40 do Código de Processo Penal – não sendo necessário sequer que se aguarde o trânsito em julgado ou preclusão da decisão para determinar a remessa de cópias ao Ministério Público em relação a tanto), como a pronta imposição da reprimenda com imposição da pena de litigância de má-fé.

Da mesma forma, como isso pode ainda não ser suficiente para a garantia da efetiva proteção à obrigação de fazer (restabelecimento do fornecimento) ou não fazer (proibição de corte) em questão, seria possível, até mesmo, a imposição de multas diárias (astreintes), mesmo que por ato fundado no poder geral de cautela do Juiz (artigos 798, 799 e 461 e seus consectários, todos do Código de Processo Civil), evitando-se que tais manobras protelatórias e indevidas possam vulnerar direitos consumeristas de pessoas hipossuficientes.

E, ainda mais, como aspecto processual do tema, não seria demais aduzir que, em condições como tal, inclusive, com tais nobres interesses em conflito, como a saúde e a segurança coletivas, tal qual visto acima (nos estritos termos preconizados pelo advento da norma contida no artigo 129 e seus consectários da Constituição Federal), com interesses de índole pública e coletiva em nítida conexão com os interesses privados do particular, não parece haver margens para dúvidas no que, tange, por exemplo, à plena atribuição funcional e legitimidade lato sensu (como sabido, ter-se-ia, aí, uma situação de legitimação, eis que se demandaria alheio como se fosse próprio, mediante autorização legislativa, como desponta dos termos da orientação contida no artigo 6º, in fine, do Código de Processo Civil) do Ministério Público para a propositura de ações civis públicas nesta seara, em sede de desencadeamento da tutela coletiva, como admitido pelo advento das normas contidas, a esse respeito, nas leis nº 7.347/85 e 8.078/90 (artigo 81 e seus consectários no que tange a direitos transindividuais homogêneos, coletivos e difusos), quando em risco a situação de habitações coletivas, loteamentos irregulares, condomínios, abrigos, hospitais e estabelecimentos congêneres, que se vejam em situação de inadimplência de tais serviços, já que não se admitirá o corte de tais serviços, como fartamente ponderado linhas atrás.

E, obviamente, além do Ministério Público outros legitimados como as Defensorias Públicas, Municípios, associações civis, etc... não estarão impedidos de, igualmente, em condições como tal, assumirem pólos ativos em demandas deste jaez, no que se refere à proteção de consumidores hipossuficientes, quando se puder coletivizar o interesse a ser posto em juízo (seja em sede preventiva, no que tange a tutelas de urgência, ou, modernamente, litisregulação, seja em sede repressiva, quando já caracterizado o ato ilegal – neste último caso, provavelmente, a tutela estará agregada a pedido condenatório, eis que danos materiais e morais provavelmente restarão configurados).

Sobre esta última questão, inclusive, de se ponderar no sentido de que não se cuida de suscitação nova, como se pode observar, verbi gratia, pelo seguinte precendente dos Tribunais pátrios. Nesse sentido:

"Apelação Cível APC 5012898 DF - DJU de 03.11.19: "Corte de fornecimento de energia elétrica efetuada pela prestadora de serviço. Pagamento da fatura em tempo hábil. Provimento parcial. Reconhecimento do dano moral. Fixação em 150 vezes o valor da fatura."

Sob tal perspectiva, no entanto, não se nega que o ente responsável pelo fornecimento de tais serviços possa cobrar o débito, pelas vias legais e processuais adequadas, não se admitindo, no entanto, e como regra, o corte do fornecimento do serviço essencial (salvo situação de dolo ou má-fé, obviamente, como se exporá adiante), pelas razões invocadas (em alguns casos tem-se observado recusas imotivadas e renitências de algumas sucursais em atender liminares, provocando cortes sob as mais variadas alegações, o que, com a devida licença, além de implicar em situação de manifesta desobediência à ordem judicial, que, como sabido encontra sancionamento no ordenamento penal, eis que tal desobediência é delito previsto pelo Código Penal, acaba por poder ser tipificado, também, em concurso formal, com a norma contida no artigo 71 do Código de Defesa do Consumidor – tudo isso, inclusive, dependendo do dolo, ainda que eventual, dos funcionários da empresa ou ente em questão).

Inclusive, com as cautelas e formalidades ínsitas ao referimento procedimento, não há que se falar em situação de impossibilidade de se proceder a restrições de crédito por dados verdadeiros e reais, como a inclusão do nome do devedor em cadastro negativdor (SERASA, SPC e congêneres), eis que se deva admitir atos de cobrança nos limites da lei, inclusive desestimulando novos atos de mora contratual em detrimento de outros credores (sem o que haveria indevida situação de enriquecimento sem causa, de toda não admitida pela legislação de regência, como se observa, verbi gratia, pelo advento da norma contida no artigo 885 do Código Civil), sem, no entanto, o corte no fornecimento de serviços.

Isso porque, convém que se destaque, a inclusão do nome dos devedores inadimplentes em instituições de cadastro como o SERASA e o SPC é conduta lícita, dentro do que prevê a legislação infra-constitucional (artigo 43 e seus consectários da Lei nº 8.078/90 – o chamado Código de Proteção e Defesa do Consumidor), apenas se devendo coibir os abusos, que sujeitam seus agentes (ou seja, quem determina inclusões) às penalidades de estilo (indenizações, lucros cessantes, etc), quando a inserção ocorrer em abuso do exercício regular do direito.

Neste sentido, v.g., destaco o seguinte entendimento jurisprudencial a respeito, que demonstra, inclusive, ser tal orientação um entendimento cristalizado há mais de década:

"AGRAVO DE INSTRUMENTO – LIMINAR DEFERIDA EM MEDIDA CAUTELAR – CANCELAMENTO DE REGISTRO DE NOME DE EMPRESA NOS CADASTROS DO SERASA E SPC – ILEGITIMIDADE DE PARTE – RECURSO PROVIDO – "O SERASA – Centralização de Serviços de Bancos S/A – é instituição autônoma, que obtém junto aos cartórios distribuidores de todas as Comarcas do Estado, mediante pagamento de emolumentos, informações dos feitos ajuizados relativos a pedidos de falência, concordata, execução e busca e apreensão, conforme lhe autoriza a Portaria nº 31/88, da Corregedoria Geral de Justiça. A coleta de informações, pelo SERASA, dá-se independentemente de provocação do credor, nos moldes. do art. 43 do Código de Defesa do Consumidor, sendo regulada pelo Provimento nº 07/91, da CGJ. Destarte, a legitimação passiva caberá ao titular do interesse que se opõe ao afirmado na pretensão, não ao credor" (in agr. instr. nº 96.003316-5, de Rio do Sul, rel. Des. Pedro Manoel Abreu, em. publ. DJE 17.09.96, pág. 41) Anotação de inadimplemento de cliente nos cadastros no SPC e do SERASA, é operação que não pode ser equiparada a ato ilegal ou abusivo, pois a atividade bancária utiliza-se destes dados sigilosos como instrumento de segurança da atividade creditícia que desempenha. Para a concessão de liminar em ação cautelar, faz-se necessária a configuração dos requisitos do fumus boni juris, que consiste na plausibilidade do direito invocado e no periculum in mora, que corresponde à irreparabilidade ou difícil reparação desse direito." TJSC – AI 96.006241-6 – 2ª CCiv – Rel. Des. Nelson Schaefer Martins – J. 12.11.96.

E a demonstrar que tal entendimento não foi superado pelo tempo (como dito acima seria entendimento cristalizado há mais de uma década), tem-se o seguinte trecho de aresto do E. Superior Tribunal de Justiça, a respeito do tema, tem-se o seguinte precedente:

STJ-220159) RECURSO ESPECIAL. INSCRIÇÃO EM CADASTRO DE INADIMPLENTES. CONDUTA DO COMERCIANTE. LEGALIDADE.

1. Receber ou recusar cheque é opção do comerciante. Não há Lei que determine curso forçado dessa forma de pagamento. 2. Não comete ato ilícito o comerciante que, recebendo cheque sem provisão de fundos, encaminha o nome do emitente para cadastro de proteção ao crédito. 3. Nada impõe ao comerciante o dever de exigir identificação do emitente de cheque, tampouco de fiscalizar se o portador do talonário é mesmo o titular da conta-corrente. 4. Os danos causados à pessoa cujos documentos foram indevidamente utilizados por terceiro para, fraudulentamente, abrir conta-corrente em instituição financeira, não podem ser imputados ao comerciante que recebe pagamento em cheque sem provisão de fundos e encaminha o nome de quem consta no título a cadastro de inadimplentes. O comerciante, no caso, é tão vítima quanto quem perdeu os documentos. (Recurso Especial nº 831336/RJ (2006/0034572-3), 3ª Turma do STJ, Rel. Humberto Gomes de Barros. j. 06.03.2008, unânime, DJ 01.04.2008)."

Mas, não obstante tal permissão, a possibilidade da inscrição deve ser feita com observância das cautelas legais, não podendo ser tida como direito absoluto e irrestrito do credor, eis que, diz a lei, notadamente nos parágrafos 1º e 3º do mencionado artigo 43, que os cadastros (entidade na qual podem ser inseridas entidades como o SERASA e o SPC) deverão ser verdadeiros, em linguagem de fácil compreensão, bem como que o consumidor terá direito à imediata correção de inexatidões encontradas (exige-se que se faça a inserção de dados verdadeiros no Cadastro, não se podendo ter por inadimplente pessoa que busca tutela judicial de seu interesse), situações, no entanto, que não obstante possíveis, independem do corte no fornecimento que não pode ser admitido como aventado linhas atrás.

Ou seja, num momento a priori, o consumidor não pode ter cortado o fornecimento de serviços públicos essenciais (como dito acima, a Portaria nº 03/99 da Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça estabelece serviços de fornecimento de água, energia elétrica e telefonia como essenciais), o que não se confunde com a possibilidade de cobrança pelas vias regulares, inclusive, se for o caso, com inscrição do nome do devedor em cadastro negativador de crédito, desde que com as cautelas do artigo 43 e seus consectários da Lei nº 8.078/90, o que deve ser ponderado mormente porque, na generalidade dos casos que se encontram nos Tribunais pátrios, o que se tem observado é que o consumidor não quer o corte (o que é direito dele, como frisado acima), mas igualmente se pretende a retirada de seu nome dos cadastros em questão, o que, no entanto, deve ser visto de forma parcimoniosa, eis que, somente se houver abuso (por exemplo, erro no que tange ao valor, data, etc....) tal pleito poderá vir a ser atendido eis que a regra será, em casos como tal, reconhecer-se como direito legal do credor, assim proceder.

Aliás, sobre o dever de indenizar, em caso de abusos (inclusive a omissão ou demora na exclusão do nome indevidamente inserido ou sem justa causa), de se ponderar a respeito do seguinte precedente, o qual pede-se vênia para a transcrição:

TJDFT-070325) CIVIL E DIREITO DO CONSUMIDOR. DANO MORAL. ANOTAÇÃO DO NOME DO CONSUMIDOR NO CADASTRO DE DEVEDORES DA SERASA. DADO COLHIDO JUNTO AO CARTÓRIO DE DISTRIBUIÇÃO. EXECUÇÃO EM CURSO. EXTINÇÃO E BAIXA DA AÇÃO EXECUTIVA. ELIMINAÇÃO DA ANOTAÇÃO. RETARDAMENTO. ABUSO DE DIREITO. ATO ILÍCITO. QUALIFICAÇÃO COMO FATO GERADOR DO DANO MORAL. COMPENSAÇÃO PECUNIÁRIA DEVIDA. IMPORTE ADEQUADO.

1. A atividade exercitada por entidade sistematizadora e mantenedora de cadastro de devedores reveste-se de legalidade, municiando com legitimidade a anotação de ação executiva em curso que promove, mas, quitado o débito que fazia o objeto da execução, extinta e definitivamente arquivada a ação, assiste ao consumidor que figurara como executado o direito de ter seu nome excluído do cadastro de inadimplentes em que havia sido anotado de imediato por iniciativa própria e exclusiva da Serasa, a quem, tendo promovido a inscrição às suas exclusivas expensas, estava debitada a obrigação de promover a eliminação da anotação que havia promovido no exercício do direito que detinha. 2. O retardamento na exclusão da inscrição caracteriza-se como abuso de direito da entidade arquivista e transmuda-se em fato gerador do dano moral ante a continuidade na afetação da credibilidade, bom nome e decoro do consumidor quando já havia satisfeito o débito que o atingia e não detinha a condição de executado e inadimplente, determinando que, caracterizada a manutenção da inscrição de forma indevida, porque desprovida de lastro material, e sendo presumidos os danos morais por ele experimentados, cuja qualificação se satisfaz com a mera existência e persistência da anotação indevida, assiste-lhe o direito de merecer uma compensação pecuniária ante o aperfeiçoamento do silogismo delineado pelo artigo 186, do Código Civil para que o dever de indenizar resplandeça. 3. A mensuração da compensação pecuniária a ser deferida ao atingido por ofensas de natureza moral deve ser efetivada de forma parcimoniosa e em conformação com os princípios da proporcionalidade, atentando-se para a gravidade dos danos havidos, para o comportamento do ofensor e para as pessoas dos envolvidos no evento, e da razoabilidade, que recomenda que o importe fixado não seja tão excessivo a ponto de ensejar uma alteração na situação financeira dos envolvidos, nem tão inexpressivo que redunde em uma nova ofensa ao lesado. 4. Recurso conhecido e improvido. Unânime. (APC nº 0030110880485 (279649), 2ª Turma Cível do TJDFT, Rel. Teófilo Caetano. j. 27.06.2007, DJU 11.09.2007, p. 125).

Nessas condições, tem-se que o corte no fornecimento de tais serviços (atualmente a questão se faz como muito relevante no que tange ao fornecimento de água e energia elétrica, como se observa pelo grande volume de ações a esse respeito nos Tribunais e Fóruns do país) se releva como expediente abusivo e ilegal, na generalidade das contratações, como se buscou esmiuçar acima, mas isso não significa que, em algumas situações excepcionais tal medida não seja possível.

Mas isso, em princípio, deve ser tido como situação excepcionalíssima e devidamente justificada sob pena de imediata atuação jurisdicional, com imposição de todas as medidas processuais aduzidas acima.

Isso porque, como se tem como igualmente sabido, a regra no direito brasileiro é a de que se deva preservar a boa-fé (não se presumem, ademais, o dolo ou a má-fé, que podem ser extraídas de algumas posturas adotadas pelos contratantes) nas relações negociais de um modo geral (na Lei nº 8.078/90, por seu artigo 4º, inciso III, se buscou a preservação de tal postura com o estabelecimento de um conceito de boa-fé objetiva – ou seja uma orientação efetiva a se prestar de proteção contra práticas abusivas – as conhecidas letras miúdas, expressões dúbias e literais que possam alterar o verdadeiro sentido da intenção das partes etc.), sendo certo que, com o atual Código Civil (Lei nº 10.406/02) tal proteção se estendeu a toda e qualquer espécie de contratação, além das consumeristas (artigo 422, CC).

Ou seja, diante disso, parece ser inequívoco que a boa-fé deva ser preservada a qualquer custo, não se podendo admitir que atos de má-fé ou eivados com o dolo (causa, ademais, de anulação de atos jurídicos nos termos da legislação cível de regência) possam surtir efeitos jurídicos [24], de sorte tal que não se pode pretender conceber que consumidores que se utilizem de má-fé ou dolo possam obter proteção jurídica, de forma que seria abusiva e desproporcional (ainda sob a ótica da incidência do princípio da proporcionalidade para a solução das ditas antinomias apontadas no início do presente trabalho).

Assim, em situações em que o consumidor estiver pretendendo se valer do fornecimento de serviço para fins ilícitos (por exemplo, em caso extremo, um traficante pretendendo fornecimento de água e energia elétrica para continuar a produzir entorpecentes, sem qualquer autorização e em vedação aos termos da Lei nº 11.343/06 – com utilização de uma empresa criada de forma irregular e outro fim social), ou de forma abusiva (pessoas que tenham condições de pagar pelo serviço, mas que se recusem a tanto, dolosamente), pelo óbvio que o corte deva ser admitido, até para efeitos de prevenção geral (até por extensão analógica da conhecida exemplary damages do direito anglo-saxão, no sistema jurídico da Common Law).

Tais situações, insista-se, no entanto, devem ser devidamente apresentadas no bojo dos processos, permitindo amplo contraditório, eis que excepcionais (a regra será concluir pela ilegalidade do corte, como aventado acima), não se podendo admitir a inclusão de tais dados em peças padrão, ou standard, apresentadas por grandes escritórios de advocacia de forma padronizada em todos os casos a esse respeito – posto que isso seria expediente temerário e procrastinatório, até mesmo com alteração da verdade a respeito dos fatos – também autorizando a imposição das penas aplicáveis ao improbus litigator), podendo o Magistrado, até o mesmo, se valer de seus amplos poderes instrutórios (no processo civil, com as mesmas razões do processo penal, se admite ampla persecução da busca da dita verdade real, como se permite defluir da interpretação dos artigos 130 e 131, ambos do Código de Processo Civil, desde que, obviamente, o Magistrado fundamente sua decisão – artigo 93, inciso IX da Constituição Federal, com a redação dada pelo advento da EC nº 45/04), para determinar provas hábeis a tal aferição, como, por exemplo, constatações por Oficiais de Justiça, ou diretamente pelo juiz (inspeções judiciais reais) ao local ou, até mesmo, realização de estudos sociais do caso para aferir tais condições (às vezes mesmo com a análise do padrão de vida do consumidor, ou melhor dizendo, seu padrão de consumo, para ver se o mesmo deixou de pagar para atender despesas prementes como alimentação e aluguel, ou se para comprar um carro importado, de luxo, novo, por questões de status, o que, como asseverado acima, pode ser aferido, caso a caso – sem padronização de defesas de forma abusiva).

Sobre o autor
Julio Cesar Ballerini Silva

Advogado. Magistrado aposentado. Professor da FAJ do Grupo Unieduk de Unitá Faculdade. Coordenador nacional dos cursos de Pós-Graduação em Direito Civil e Processo Civil, Direito Imobiliário e Direito Contratual da Escola Superior de Direito – ESD Proordem Campinas e da pós-graduação em Direito Médico da Vida Marketing Formação em Saúde. Embaixador do Direito à Saúde da AGETS – LIDE.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Julio Cesar Ballerini. Algumas considerações a respeito do corte no fornecimento de serviços públicos.: Aspectos materiais e processuais do tema. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3105, 1 jan. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20762. Acesso em: 22 dez. 2024.

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