4 trajetória da formação docente jurídica no brasil
4.1 Os primeiros anos
A criação dos cursos jurídicos no Brasil tem relação direta com as necessidades decorrentes da formação do Estado Imperial Brasileiro, vinculada aos anseios das elites envolvidas no processo de independência iniciado em 1.808, com a transmigração da família real portuguesa.
Com efeito, a formação dos quadros políticos e administrativos para a efetivação da independência requeria profissionais preparados para solucionar o problema da escassez natural verificada naquele período, em virtude de o Brasil ainda ser uma terra desprovida de cultura jurídica, de escolas, de imprensa ou agremiações que estudassem o Direito, cujo conhecimento se limitava àqueles poucos que podiam freqüentar o curso em Portugal (BARRETO, 1922).
Além do atrelamento dos cursos jurídicos brasileiros à preparação dos candidatos aos cargos burocráticos de então, para alguns autores, entre eles, Bastos (2000), Venâncio Filho (2004) e Wolkmer (1968), a sua criação representa, também, a ruptura com a pressão da metrópole exercida sobre os estudantes que se dirigiam a Coimbra, em virtude da vinculação política.
E nesse contexto é que ocorreram as discussões sobre a criação dos cursos jurídicos, paralelamente aos debates para a realização da Constituição brasileira, na Assembléia Constituinte. Assim, o fracasso dessa constituinte, com a sua dissolução em 12 de novembro de 1.823, também resultou fracasso da primeira tentativa de criação dos cursos jurídicos no Brasil (BASTOS, 2000).
O imperador dissolveu a Assembléia Constituinte, mas criou, provisoriamente, pelo Decreto de 9 de janeiro de 1.825, o primeiro curso jurídico brasileiro, na cidade do Rio de Janeiro. Contudo, apesar de o curso não chegar a funcionar, foi criado para ele o Estatuto do Visconde da Cachoeira [21]. Dele, o ensino do Direito no Brasil recebeu a primeira influência.
Ressalte-se, porém, que esse estatuto retratava toda a carga ideológica do Império e das elites da época, ou seja, a formação do quadro burocrático para o preenchimento dos cargos administrativos e a centralização do controle estatal pela mão forte do governo. O fato é que o referido decreto não entrou em vigor, daí a desconsideração de muitos dos pontos observados no estatuto.
O artigo 10 da lei que instituiu os cursos jurídicos no Brasil ilustra esta implicação:
Art. 10º – Os estatutos do Visconde da Cachoeira ficarão regulando por ora naquilo em que forem aplicáveis, e se não opuserem à presente lei. A Congregação dos Lentes formará, quanto antes, uns estatutos completos, que serão submetidos à deliberação da Assembléia Geral. (Lei de 11 de agosto de 1.827. Disponível em www.senado.org.br. Acesso em 26/01/2006)
Tal fato ocorreu porque, dentre as diferenças verificadas, a lei retirou do currículo a cadeira de Direito Romano, considerada no estatuto basilar como o é à maior parte dos Códigos Civis das nações modernas, sendo, portanto, de importância inconteste.
Diferentemente também da lei, verifica-se no estatuto preocupação com conteúdos programáticos, metodologia, orientações sobre a conjugação da prática com a teoria, e sistemas de avaliação e inscrições, condutas dos docentes. Ademais, tece, em detalhes, informações sobre ementários, cadeiras e bibliografia a serem utilizadas nos cinco anos já estabelecidos para duração do curso naquela época. Tal discrepância mereceu o seguinte comentário do Professor Aurélio Wander Bastos:
A lei que criou os cursos jurídicos, ao contrário do Estatuto do Visconde da Cachoeira, não indicou para o estudo nas academias qualquer disciplina que estudasse técnicas de interpretação ou hermenêutica jurídica, como ressaltamos anteriormente. Este desvio que é um indicador da ausência da preocupação metodológica não aconteceu no Estatuto do Visconde da Cachoeira... Desta forma, independentemente das críticas que desenvolvemos sobre o Estatuto do Visconde da Cachoeira, não há como negar a sua visão integrada do ensino – para cada conteúdo disciplinar uma forma de ensinar – e, principalmente, deve-se admitir que se trata de um dos únicos documentos acadêmicos oficiais no Brasil que insistem na importância dos métodos e modos que deveriam os lentes (professores) utilizar na transmissão do conhecimento, chegando, inclusive, a detalhar linhas de atuação pedagógica, e um panorama bibliográfico, para a época, de grande extensão e percepção (BASTOS, 2000, p. 42-43).
Contudo, oficialmente, foi a Lei de 11 de agosto de 1.827 a primeira legislação referente à criação dos cursos jurídicos nas cidades de São Paulo e Olinda, e também do regramento sobre a ocupação dos cargos de professores desses cursos no Brasil, como se vê em seu artigo 9º:
Art. 9.º - Os que freqüentarem os cinco anos de qualquer dos Cursos, com aprovação, conseguirão o grau de Bacharéis formados. Haverá também o grau de Doutor, que será conferido àqueles que se habilitarem com os requisitos que se especificarem nos Estatutos, que devem formar-se, e só os que o obtiverem, poderão ser escolhidos por Lentes. (Op. cit., loc. cit.)
Neste particular, a habilitação proposta por esse artigo apresenta-se consentânea com a regulamentação dada pelo Capítulo XIII do Estatuto do Visconde da Cachoeira, o qual estabelece a defesa de "[...] várias teses escolhidas entre as matérias que aprendem no Curso Jurídico, as quais são primeiro apresentadas em Congregação, e deverão ser aprovadas por todos os professores." Já a vacância de alguma das cadeiras dos professores substitutos, comportaria a substituição pela proposição de um Doutor ou Bacharel formado, em que "concorram saber, probidade e bons costumes", únicos requisitos para o preenchimento dos cargos de professores substitutos (BRASIL. CONGRESSO. CÂMARA DOS DEPUTADOS, 1977)
Os primeiros anos que se seguiram à criação dos cursos jurídicos demonstraram as dificuldades no estabelecimento dos compêndios pátrios, bem como a má qualidade do ensino. Esse quadro levou o Ministro do Império, José Lino Coutinho, a baixar um aviso sobre "a incúria e desleixo de alguns lentes do curso jurídico de São Paulo, indiferentes à falta de freqüência dos seus discípulos e fazendo aprovações imerecidas" (VENÂNCIO FILHO, 2004, p. 49).
Tal situação acelerou a aprovação do decreto que viria implantar nova regulamentação para os cursos jurídicos brasileiros. Tentava-se, assim, uma reaproximação com o Estatuto do Visconde da Cachoeira.
4.2 O período imperial e suas reformas
O decreto de 7 de novembro de 1831 [22] instituiu os novos Estatutos dos Cursos de Ciências Jurídicas e Sociais do Império que, apesar de terem o rótulo de provisórios, vigoraram até 1.854, inaugurando a plêiade de reformas por que tem passado o ensino jurídico no Brasil até a atualidade.
Esses estatutos, apesar de criados com a intenção de eliminar as divergências mais graves entre a Lei de 11 de agosto de 1.827 e o Estatuto do Visconde da Cachoeira, foram no sentido contrário deste. Dispensando qualquer fundamentação doutrinária, e mantendo-se numa linha de repetição de mero regulamento de disposições legais e administrativas a regerem as instituições de ensino, representaram o molde acanhado e tímido de um ensino rotineiro, preocupado sobretudo, com as formalidades e com os procedimentos (VENÂNCIO FILHO, 2004).
Também não promovem qualquer alteração substancial na forma de preenchimento dos cargos dos docentes. Apenas estabelecem que, em caso de vagas, seriam elas ocupadas pelo substituto mais antigo e, havendo falta de substitutos, seria a vaga posta em concurso, para cuja admissão, os candidatos deveriam obter o grau de doutor. Além da tese de doutorado, deveriam indicar à Congregação um ponto para a dissertação. Os concorrentes seriam os argüentes uns dos outros, seguindo-se a antiguidade, e a votação seria feita por todos os lentes assistentes
Acrescente-se, a esse quadro, contudo, que já vem dessa época, a lista de dificuldades vivenciadas pelos cursos jurídicos. Essas dificuldades estão relacionadas às instalações físicas aos baixos salários e à evasão dos professores que se inclinavam para a política, a advocacia, a literatura e para as carreiras de estado. Isso ocorria tanto em São Paulo como em Olinda.
Diante dessa situação, foi solicitado ao governo, em relatórios das Congregações, remédio para a denominada crise dos lentes, em 1.837. essa crise se deveu à elevação ao posto de professor jovens inexperientes e sem conhecimento suficiente, como ocorreu em Olinda. À guisa de ilustração, vejamos este trecho de Vampré:
Um moço pungibarba, hoje formado com seus puros cinco anos, amanhã oferece teses, defende-as, toma o grau de doutor, entra em concurso e, noutro dia, está provido substituto e passa a ser lente de seus condiscípulos, com quem vivia e convivia em folgares, em chufas e na mais escandalosa familiaridade. E pode um moço desses ter os preciosos conhecimentos para ensinar e merecer o respeito de seus alunos, rapazes como ele? (VAMPRÉ, 1924, p. 65, apud VENÂNCIO FILHO, 2004, p. 55)
Embora considerando a defesa da tese para o exercício do magistério jurídico, era evidente a má escolha dos futuros docentes, pois a formação era deficitária até na qualidade técnica. Os aprovados, salvo raras exceções, contribuíam para o descrédito da academia, uma vez que eram escolhidos por apadrinhamento, além dos problemas relativos aos baixos ordenados percebidos. (Op. cit., loc. cit)
Afinal, até a Reforma Couto Ferraz, de 1.854, as maiores alterações verificadas no ensino jurídico de então se cingem à aprovação, em 1.851, da inclusão das cadeiras de Direito Romano e Direito Administrativo no currículo. Outra reforma ocorreu em 1.853, com o decreto de 30 de março [23], o qual demonstra a nítida influência do Estado e da Igreja e aproximação com o Estatuto do Visconde da Cachoeira. Constata-se nessa reforma que as pressões políticas é que são as verdadeiras impulsionadoras das questões da organização curricular no Império e as decisões são tomadas de acordo com critérios políticos e não científicos ou pedagógicos (VENÂNCIO FILHO, 2004).
Segundo o mesmo autor, essa reforma instituída pelo futuro Visconde do Bom Retiro transforma-se, então, na finalização da transitoriedade empreendida pela primeira reforma de 1.831, estabelecendo assim as bases para a estrutura dos cursos jurídicos, a qual vai perdurar até a modificação radical empreendida pela Reforma do Ensino Livre, marco inicial para a introdução da possibilidade de particulares ministrarem o ensino jurídico.
Mantendo a mesma linha do decreto anterior, de 1.831, no capítulo relativo ao provimento dos professores, esta reforma estabelece que o preenchimento das vagas de lentes substitutos seria feito por meio da defesa da tese, preleção oral e dissertação escrita. (DECRETO 1.386, DE 28 DE ABRIL DE 1.854. Disponível em: http//www.senado.gov.br. Acesso em: 20/03/06).
A título de registro, em 26 de abril de 1.865, foi promulgado o Decreto 3.454, que viria na esteira das reformas seguintes. Esse decreto apresenta certas características e tendências importantes no contexto do ensino jurídico, além de promover pequenas mudanças na regulamentação do preenchimento dos cargos de docentes.
Assim sendo, promoveu a redução dos cursos de cinco para quatro anos; trouxe a subdivisão das Faculdades de Direito nas Seções de Ciências Jurídicas e de Ciências Sociais; deu os primeiros passos para criação do ensino livre; transformou em optativa, a cadeira de Direito Eclesiástico; promoveu concurso entre os lentes substitutos para acesso à cátedra.
Essas mudanças foram vistas como sintoma do desgaste entre o governo e a Igreja. Com efeito os debates políticos locais foram tão intensos que foi realizada uma tentativa de criação da primeira universidade na Corte. Alegavam que as faculdades, da forma que se estabeleciam, não estariam alcançando os resultados desejados. Criticavam ainda a falta de organização da estrutura do ensino, levando a fracassar a educação superior.(BASTOS, 2000)
Entretanto, decorridos apenas quatorze dias da promulgação do referido decreto, caiu o Gabinete Furtado, presidido por Francisco José Furtado e responsável pela proposta. Assumindo o poder o Gabinete presidido por Pedro Araújo Lima, esse não foi posto em execução.(VENÂNCIO FILHO, 2004)
Desses primeiros cinqüenta anos da criação dos cursos jurídicos no Brasil, depreende-se que o objetivo almejado é a afirmação da independência e do novo estado, com a formação dos seus egressos para o aparelhamento da burocracia governamental. Desvia-se, assim, do verdadeiro papel do curso do Direito, bem como do seu profissional.
Uma análise mais aprofundada sobre as motivações que levaram às constantes reformulações dos cursos jurídicos, evidencia a preocupação definida dos governantes em prover técnicos preparados para a ocupação de setores estratégicos, quer na administração, no Judiciário, quer no Legislativo. No entanto, não tinham intenção de oferecer uma formação de cunho humanístico e cultural ao estudante, voltada para a compreensão da importância do Direito como instrumento de facilitação da convivência, de solução dos complexos problemas da vida em sociedade.
Aliás, como lembra Bittar (2001), nas constantes discussões parlamentares que permearam o tema Cursos de Ciências Jurídicas e Sociais, pouco se via sobre a finalidade do Direito ou sobre o papel dos seus egressos. Ao contrário, somente eloqüentes discursos, verdadeiros duelos políticos entre os liberais, as elites imperiais, a Igreja e as representações regionais.
4.2.1 A Reforma Leôncio de Carvalho
A Reforma do Ensino Livre, de autoria de Carlos Leôncio de Carvalho, influenciada pelo liberalismo cientificista, tem como "ponto teórico de partida a crença fundamental na liberdade humana: o homem é senhor de seu destino e por isso responsável por ele, com origem nas idéias de Kant e no espiritualismo eclético francês" (VENÂNCIO FILHO, 2004, p. 76). Essa reforma ampliou a possibilidade de "cada um expor livremente suas idéias e ensinar as doutrinas que acredite verdadeiras, pelos métodos que julgue melhores"(HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO NO BRASIL, Período Imperial. Disponível em: http//www.pedagogiaemfoco.pro.br/heb05.htm#crono. Acesso em: 22/04/2006).
Barros [24] apresenta-se como grande defensor das idéias de Leôncio de Carvalho, acrescentando que o cientificismo implica também liberdade de ensino e poder de concorrência. Diz esse autor:
Afastem os entraves à criação de escolas, de cursos, de faculdades, e estas florescerão vigorosas. O princípio da seleção natural encarregar-se-á de ‘fiscalizar’ a escola, só sobrevivendo os mais aptos, os melhores. O próprio ensino oficial só terá a lucrar com isto, a concorrência das escolas particulares obrigando-o a manter um ensino elevado. (BARROS, 1986, p. 187)
E mais adiante, argumenta:
O ensino livre, desta forma, aparece como complemento necessário da tarefa pedagógica que está no cerne do cientificismo ilustrado. A liberdade de ensino sem qualquer limitação é por ele concebida como a condição sine qua non de êxito de sua missão educadora. Dessa forma, ao lado da consciência livre, da escravidão abolida, da mulher emancipada, etc., se inscrevem no próprio cientificismo, como um item tão valioso e necessário quanto eles, a idéia de liberdade de ensino.
O esforço ilustrado, pra elevar o país ao nível do século, deveria ser feito pela constituição de uma elite verdadeiramente ilustre e era exatamente o ensino superior que teria a função de formar estas guias, estes ‘ilustrados’ a quem cabe acelerar a marcha histórica do país. (Op. cit., loc. cit) (grifos do autor)
Na sua linha de entendimento, essa libertação do ensino implicava a libertação do país, uma vez que o estado não era liberal e a educação era realmente uma das forças da sociedade para promovê-la. E uma das formas de promover essa libertação do ensino, seria a ampliação do acesso, via particulares, pois a concorrência elevaria a qualidade do ensino (BARROS, 1986).
Considerando que Leôncio de Carvalho e seus seguidores embasavam a Reforma do Ensino Livre no exemplo norte-americano e europeu (ALMEIDA JÚNIOR, 1956), não foram poucos os seus opositores. Estes chegaram, inclusive, a contextualizar, historicamente, o que ocorria naqueles Estados, para demonstrar a origem das suas críticas.
De fato, cada país concebia o ensino livre de acordo com a situação a que estava submetido. Assim, na França, tencionava-se a liberdade em relação à intervenção estatal; na Inglaterra, era da Igreja que se pretendia a desvinculação; na Alemanha, liberdade contra a Igreja e autonomia quanto ao Estado; nos Estados Unidos, a preocupação era com os empregadores. E nos Estados democráticos, o magistério é que mais facilmente pode assegurar as condições dessa liberdade (ALMEIDA JÚNIOR, 1956)
E segue o autor identificando os aspectos da experiência brasileira:
Certos propugnadores brasileiros do ensino livre fizeram tão grande alarde da liberdade de freqüência, que isto passou a constituir, entre nós, o elemento preponderante da conceituação daquele ensino, e não foi só: afirmaram ainda que a liberdade de freqüência era a regra generalizada nas universidades estrangeiras, e que nós, portanto, que não a havíamos ainda adotado, estávamos em lamentável atraso... (ALMEIDA JÚNIOR, 1956, p. 59).
Como se vê, no caso brasileiro, tentou-se a proximidade da reforma do sistema alemão da época. Contudo, o que se evidenciou, nessa tentativa, foi a implantação de apenas parte da experiência vivida naquele país, onde o aluno não poderia realizar os exames, ao final dos estudos, sem o atestado de freqüência passado pelo professor respectivo, fato que não ocorria aqui. A esse respeito, vale registrar, aqui, o relato de uma experiência vivida pelo Dr. Vicente Sabóia, professor da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, em visita oficial à Alemanha:
Não há verificação da presença dos alunos nos cursos; mas como eles não podem, no fim dos estudos, fazer exame de doutoramento sem o atestado de freqüência, passado pelo respectivo professor, este o negará se tiver observado a pouca assiduidade do aluno em sua apreciação, pois que ele facilmente, nos cursos teóricos, se põe em relação com seu auditório e, nos cursos práticos, se serve da lista em que se acham inscritos os alunos e chama diariamente certo número deles para os competentes exercícios. (apud ALMEIDA JÚNIOR, 1956, 71)
Já no Brasil, o que caracterizava o ensino livre era a liberdade de freqüência e a inexistência de exames parciais nas faculdades de Direito de São Paulo e do Recife, inspiradas, "sobretudo, em experiências estrangeiras mal assimiladas e nas quais as condições sociológicas e pedagógicas diferiam profundamente das existentes no Brasil" (VENÂNCIO FILHO, 2004, 87).
Com efeito, o cerne da Reforma do Ensino Livre se explicava no parágrafo sexto do artigo 20 do Decreto nº. 7.247 de 1.879 [25]:
§ 6º Não serão marcadas faltas aos alunos, nem serão eles chamados a lições e sabatinas. Os exames, tanto dos alunos como dos que não o forem, serão prestados por matérias e constarão de uma prova oral e outra escrita, as quais durarão o tempo que for marcado nos Estatutos de cada escola ou faculdade.
Essa situação levou o próprio colega de Leôncio de Carvalho na Faculdade de Direito de São Paulo, Professor Vicente Mamede, a redigir, na Memória Histórica de 1.883, aprovada pela Congregação na íntegra, que tudo estava pior que antes do decreto, inclusive a disciplina. Reiterava, ainda, o ilustre professor, que a reforma consagrava não a liberdade de ensino, mas a liberdade de não aprender (apud BARROS, 1986, p. 301).
Tal crítica, que se junta ao coro dos descontentes com a reforma, se deve, em grande monta, a não-cobrança da freqüência, nem dos chamamentos às lições e às sabatinas. Da mesma forma, os rigores requeridos nos exames finais não podiam também ser cobrados, haja vista o não-comparecimento dos alunos às aulas e a dificuldade de apresentar o conteúdo das disciplinas. Esses dados evidenciam a impossibilidade de um ensino de melhor qualidade como propugnado pelos defensores do ensino livre.
Por outro lado, o que se observa nesta reforma é manutenção da intenção política do aparelhamento estatal, desta vez, pela divisão dos cursos jurídicos em Ciências Jurídicas e Ciências Sociais. Essa divisão deslocou para o campo das Ciências Sociais, importantes matérias e incluiu outras, tipicamente para a formação de pessoal capacitado para a ocupação de cargos da administração. É o que se depreende dos parágrafos primeiro e segundo do artigo 23, do Decreto 7.247, de 19 de abril de 1.879:
Art. 23 As Faculdades de Direito serão dividas em duas seções:
§ 1º. A Seção de Ciências Jurídicas compreenderá o ensino das seguintes matérias: Direito Natural, Direito Romano; Direito Constitucional; Direito Eclesiástico; Direito Civil, Direito Criminal; Medicina Legal; Direito Comercial; Teoria do Processo Criminal, Civil e Comercial e uma aula prática do mesmo processo.
§ 2º. A Seção das Ciências Sociais constará das matérias seguintes: Direito Natural, Direito Público Universal, Direito Constitucional; Direito Eclesiástico; Direito das Gentes; Diplomacia e História dos Tratados; Direito Administrativo; Ciência da Administração e Higiene Pública; Economia Política; Ciência das Finanças e Contabilidade do Estado.
A presença no currículo, sobretudo, das disciplinas Direito das Gentes, Diplomacia e História dos Tratados, Direito Administrativo, Ciência da Administração e Higiene Pública, Economia Política, Ciência das Finanças e Contabilidade do Estado, mostra que houve uma valorização das carreiras de Estado, restringindo as do campo do Direito.
Esse desmembramento, segundo Venâncio Filho (2004), tornou o curso de Direito ainda mais técnico e objetivo. Incluiu somente a disciplina Medicina Legal, tornou optativa a Direito Eclesiástico nas duas seções, e conservou a disciplina Direito Romano.
Portanto, das observações sobre os debates ocorridos até então, manifestos nas reformas mencionadas, constata-se que os cursos jurídicos sempre estiveram a serviço dos interesses políticos, deixando, para segundo plano, os interesses na formação de profissionais do Direito aptos a exercê-lo como mecanismo de mitigação das injustiças sociais.
Bastos vai mais além ao tecer comentários sobre o ensino livre:
[...] De qualquer forma, o que se verifica é que os grandes debates, exceto a questão da divisão das Faculdades de Direito, não se concentravam mais na utilidade formativa das disciplinas, mas nas questões essenciais do Estado: a separação do Estado-Igreja e a educação no Império, que também era uma questão do Estado, a liberdade de ensino (BASTOS, 2000, p. 97)
O fato é que, ascendendo ao poder em 1.878 no cargo de Ministro do Império, por indicação de José Bonifácio, o Moço, e em seu lugar, Leôncio de Carvalho, que somente ficou até 1880 [26], implantou essa Reforma do Ensino Livre. Suas idéias se mantiveram até 1.915 no centro dos debates em matéria de ensino superior e, especialmente de ensino jurídico, apesar de não ter tido vida longa. Isso porque, na esteira das críticas sofridas pelo Decreto de Leôncio de Carvalho, em 1.885 foi promulgado o Decreto 9.360, de 17 de janeiro, criando a Reforma Felipe Franco de Sá, como última tentativa de reforma do Império.
Entretanto, também de vigência efêmera, apesar de algumas inovações no âmbito curricular, além da novidade do concurso para o lugar de professor catedrático: defesa de tese e dissertação, prova escrita, oral estudada e prova oral de improviso.
Também facultava o decreto, a abertura de cursos livres de ciências jurídicas e sociais nas faculdades, a serem ministrados por doutores e bacharéis em ciências jurídicas. Isso provocou grande reação na Faculdade de Direito de São Paulo, que propôs a suspensão de tais cursos, uma vez que criavam novas obrigações às quais não deveriam estar sujeitos os lentes e os estudantes, até que o Poder Legislativo as aprovasse. (VENÂNCIO FILHO, 2004).
Todavia, a vigência desse decreto se estendeu somente até novembro daquele ano, uma vez que, prevendo também a possibilidade da requisição de inscrição do exame para uma ou mais séries, ou para qualquer matéria da mesma série, criaram-se as propinas. Tratava-se do pagamento a ser efetuado pelo examinado, por ocasião do referido requerimento, a ser dividido entre os professores e o secretário.
Tal situação causou muita controvérsia [27], a ponto de o Gabinete do então Ministro Barão de Mamoré, suspender a execução desse Decreto, pelo de número 9.522, de 28 de novembro de 1.885. com efeito, "a razão principal dessa suspensão foram as facilidades dos exames que, incentivados pelas propinas, estavam desorganizando o ensino" (BEVILÁQUA, 1977, p. 270).
Conclui-se da análise da organização do ensino jurídico desse período que a preocupação reinante era com a formação de profissionais capacitados para o aparelhamento do Estado. Somava-se a isso o constante embate com a Igreja, implicando a perda de poder dela, e desembocando, no início, na participação dos particulares na administração do ensino jurídico, com a Reforma do Ensino Livre. Esse quadro trouxe conseqüências para a Primeira República e, de resto, tem influenciado o ensino até os nossos dias.
Cunha (1980) apresenta uma síntese procedente sobre os últimos anos desse período. Ele destaca que, nos últimos anos do Império, o ensino superior foi tomado de verdadeiro caos, traduzindo não só a crise do próprio Estado Imperial, como também as dificuldades políticas e legais para implementar transformações e soluções curriculares.
Mais completa, porém, se apresenta a caracterização do ensino jurídico na fase imperial, proposta por Rodrigues e Junqueira, que se seguirá pelo início do período republicano sem maiores alterações:
a) ter sido totalmente controlado pelo governo central. [...] Esse controle abrangia recursos, currículo, metodologia de ensino, nomeação dos lentes e do diretor, definição dos programas de ensino e até dos compêndios adotados; b) ter sido o jus-naturalismo a doutrina dominante, até o período em que foram introduzidos no Brasil o evolucionismo e o positivismo, em torno de 1870; c) ter havido, em nível de metodologia de ensino, a limitação às aulas-conferência, no estilo de Coimbra; d) ter sido o local de comunicação das elites econômicas, onde elas formavam os seus filhos para ocuparem os primeiros escalões políticos e administrativos do país; e) por não ter acompanhado as mudanças que ocorriam na estrutura social. (2002, p. 19)
4.3 A Primeira República e o ensino livre
A proclamação da República não provocou alterações na ideologia reinante nos anos do Império. Pelo contrário, veio a estabelecê-la, uma vez que, assim como no contexto político, pouca ou quase nenhuma mudança ocorreu no setor da educação. Tal fato também se verificou no ensino jurídico (CUNHA, 1980).
Assim sendo, as mudanças instituídas com a Reforma Leôncio de Carvalho, mormente a abolição da freqüência, as autorizações para o ensino por particulares e a regularização das faculdades livres em atuação por mais de sete anos, entre outras, foram se consolidando nos primeiros anos da República.
Mesmo considerando que o prognóstico efetuado por Barros sobre a libertação do ensino e melhoria da sua qualidade pela concorrência com as vias particulares não tenha sido verificado, o ensino livre supriu a carência governamental na área da educação relativa ao ensino superior e jurídico, em especial. Cumpre assinalar, porém, que, ressalvadas algumas exceções, toda a estrutura do ensino jurídico no Brasil se desenvolveu por meio da iniciativa privada. Contudo, esse desenvolvimento não se deu por meio de um programa educacional definido.
Na verdade, o programa educacional brasileiro beneficiou-se das idéias da campanha republicana, focadas no combate à excessiva centralização do poder no período imperial, enfatizando, portanto, a descentralização do poder político, incluída na Constituição de 1.891. Vale lembrar que se avolumou o número de faculdades livres, particulares ou estaduais à época, nas principais capitais, findando com o monopólio do Recife e São Paulo. Nesse contexto é que Fernando de Azevedo (1996) diz que, do ponto de vista cultural e pedagógico a República foi uma revolução que abortou.
Assim, a reforma instituída por Benjamin Constant Botelho de Magalhães, Ministro do Ministério da Instrução Pública, Correios e Telégrafos, que se deu pela aprovação do Decreto nº 1.232-H, de 2 de janeiro de 1891, veio somente alicerçar as bases em que se criara o ensino livre. Além de vincular as instituições de ensino ao Ministério supra e trifurcar os cursos jurídicos em Ciências Jurídicas, Ciências Sociais e Notariado, esse decreto suprimiu a cadeira de Direito Eclesiástico do currículo [28].
Mesmo com a distribuição dos cursos operada de quatro séries para Ciências Jurídicas; três para Ciências Sociais; e duas para o de Notariado a trifurcação estabelecida pela reforma teve os horários distribuídos de maneira que todos os cursos pudessem ser freqüentados simultaneamente (VENÂNCIO FILHO, 2004). O curso de Ciências Jurídicas habilitava para a advocacia, magistratura e ofícios de justiça; o segundo, para o corpo diplomático e consular, cargos de diretor, subdiretor e oficial das secretarias de governo e administração; e o último, para todos os ofícios da justiça.
Uma inovação importante da Reforma Benjamin Constant foi a criação, em cada faculdade, de uma revista acadêmica (art. 207). Foram criadas também, comissões de investigação em benefício da ciência do ensino, prevendo que, de três em três anos cada faculdade designasse ao Governo um lente catedrático, encarregado de fazer investigações científicas, ou estudar os melhores métodos de ensino e as matérias lecionadas, ou ainda, examinar os estabelecimentos e instituições das nações mais adiantadas da Europa e da América (VENÂNCIO FILHO, 2004).
Da mesma forma, o aluno classificado em primeiro lugar teria direito ao prêmio de viagem à Europa ou à América para se aplicar nos estudos pelos quais tivesse predileção ou àqueles designados pela faculdade.
Sobre esse importante programa de aprimoramento científico, não se encontram referências a nenhuma viagem na revista da Faculdade de São Paulo, mas várias menções são apresentadas por Clóvis Beviláqua (1977), referentes à Faculdade do Recife, tanto dos lentes quanto dos alunos.
No que tange ao preenchimento dos cargos de docentes, o requisito único da defesa de uma tese para ser lente, até então em vigor, sofreu alterações com a referida reforma. Assim, a escolha dar-se-ia por indicação ao Governo, antes do anúncio da inscrição de concurso e independentemente dele, desde que o candidato possuísse como requisitos: ser cidadão brasileiro de alta competência e em condições de exercer o magistério; ou então, no caso de estrangeiros, deveriam possuir:
[...] grau por escolas federais ou equiparadas ou por academias estrangeiras se houvessem habilitado por alguma delas, falassem correntemente o português, devendo, porém, no caso de graduados por academias estrangeiras, ficarem sujeitos à habilitação prévia, salvo se tivessem sido professores de faculdades estrangeiras reconhecidas pelos respectivos governos. (VENÂNCIO FILHO, 2004, p. 181)
Todavia, alteração que gerou grande controvérsia foi a instituída pelo art. 427 do Decreto nº.1.232H [29] que determinava a possibilidade de nomeação pelo Governo, de lentes interinos, nos casos das cadeiras novas que não fossem providas com os atuais substitutos ou independentes de concurso, nos casos declarados.
Tal foi a celeuma, que houve necessidade da promulgação do Decreto 1.340, de 16 de fevereiro do mesmo ano, suspendendo, provisoriamente, as disposições dos regulamentos vigentes, relativas ao provimento, exercício, licenças, faltas, penas, prêmios e jubilações (VENÂNCIO FILHO, 2004).
Todavia, o que se viu no bojo dessa reforma foi, além da instituição das faculdades livres e da trifurcação dos cursos, a liberdade sobre a freqüência e a possibilidade de realização de exames fora de época, o que mereceu a seguinte crítica de Beviláqua:
Estes exames extraordinários amiudaram-se de tal modo que a ironia da mocidade denominou elétricos os bacharéis que se precipitavam de uma para outra série no afã de conquistar o título acadêmico, alavanca julgada necessária para remover as dificuldades da vida. (1977, p. 322) (grifo do autor)
Em decorrência desses problemas apontados, em 30 de outubro de 1895, a Lei 314 trouxe modificações que representaram maior rigor em comparação às disposições da Reforma Benjamin Constant. Por exemplo: promoveu a reorganização do curso em cinco anos; encerrou os cursos de Ciências Sociais e Notariado; bem como restabeleceu a freqüência e incluiu regras mais rígidas, tanto para a realização dos exames, como para o acompanhamento dos trabalhos de criação de novos cursos livres.
Mesmo com as alterações da Lei 314/1.895, novas medidas foram propostas cinco anos depois, com a aprovação do Código dos Institutos Oficiais do Ensino Superior e Secundário, nome dado pelo então Ministro Epitácio Pessoa, à Lei número 746, de 29 de dezembro de 1.900, de sua autoria.
Substancialmente, as modificações estabelecidas por essa lei diziam respeito à forma de provimento dos cargos de docentes. Para tal, exigiam-se concursos e provas orais sobre todas as matérias da sessão, mas permitia a nomeação ao cargo, independentemente dessa prova, desde que o candidato possuísse obra publicada. Nesse caso, ela era sujeita ao exame da congregação, para julgar se revelava preparo suficiente, teórico e prático do candidato em todas as matérias da sessão (MOACYR, 1941).
Epitácio Pessoa caracterizava o sistema anterior como sendo o Governo uma mera chancelaria das congregações nos provimentos dos cargos. Isso ele condenava pois, outros requisitos de ordem moral, ausentes à apreciação, não poderiam deixar de compor os critérios para escolha de um educador, além da competência científica.
Por outro lado, também não mencionava o criador da lei que os requisitos relacionados aos saberes didáticos também deveriam ser apreciados. O que se verificou foi mais de uma nomeação inconveniente, uma vez que o critério da publicação de uma obra, por si só, não se apresenta como suficiente para se aferir a capacidade do educador (MOACYR, 1941).
Mais tarde, surge a reforma operada pelo Ministro da Justiça Rivadávia Correa, consubstanciada no Decreto 8659, 5 de abril de 1911, que aprovara a Lei Orgânica do Ensino Superior e do Fundamental da República, com prognóstico bastante otimista do seu autor. (MOACYR, 1941, p. 07). Dentre os pontos fundamentais apontados, estava a autonomia didática e administrativa dos institutos para com a União, com a criação do Conselho Superior de Ensino. Esse conselho, substituindo a função fiscal do Estado, estabeleceria as ligações necessárias e imprescindíveis ao regime de transição, após o qual os estabelecimentos de ensino passariam à total independência da União (VENÂNCIO FILHO, 2004). Também promoveu a divisão do curso em seis anos escolares, com dois períodos letivos, e instituiu a livre-docência.
Contudo, tais expectativas não se confirmaram, pois, na tentativa de imitar o sistema de ensino alemão, sobretudo na autonomia e na instituição dos livre-docentes, não foram observadas as peculiaridades nacionais, a ponto de receber a seguinte crítica de Sousa Brasil, Diretor da Faculdade de Direito do Ceará, em 1913, citado por Venâncio Filho:
Que conclusões tirar dessa análise de uma lei de retalhos, sem unidade nem método, sem o conhecimento das necessidades do país e das instituições similares que regem a instrução superior; lei que procura imitar o regime alemão no que ele tem de puramente peculiar, esquecendo o que se poderia aproveitar dele fora da Alemanha; que inova contra nossos hábitos e tradições, violentando a nossa psicose, deprimindo os estudos preparatórios, nivelando o saber e o talento pela bitola da mediocridade, promovendo a pululação de títulos acadêmicos sem valor, estabelecendo a confusão e a anarquia nas profissões liberais, falseando o critério que guiava a massa geral da população pela confiança justamente depositada nos diplomas de institutos oficiais ou fiscalizados pelo Estado; que conclusões tirar desse regulamento natimorto? (SOUSA BRASIL, 1913, apud VENÂNCIO FILHO, 2004, p. 220)
Nessa esteira, o relatório da Comissão de Instrução Pública do Congresso Nacional sobre a Reforma Rivadávia Correa, em trecho extraído da obra de Primitivo Moacyr, retratava o seguinte:
Invocando a experiência e lições de países adiantados em assuntos de instrução, como a Alemanha, inseriu-se na lei o que a Alemanha nunca fez, nem jamais aconselhou, sempre condenou; a um simples impulso saltam do bojo da máquina livres-docentes que orçam por centenas e que de sua capacidade científica exibiram como prova única um modesto trabalho, lançado muitas vezes em meia dúzia de páginas, de autoria duvidosa e ciência ligeira, docentes que, entretanto, gozam desde logo das regalias de professores com assento nas congregações, examinando alunos, votando sobre tudo que diz com a lei do ensino. (MOACYR, 1941, p. 139)
Tal crítica se deve ao fato de que a instituição da livre docência no Brasil carecia de análise das especificidades do nosso sistema educacional e da nossa cultura. Com efeito, promoveu-se apenas, a inserção desse instituto sem as devidas cautelas sobre o seu regramento
E prossegue o relatório:
Os institutos livres de ensino superior que proliferam assombrosamente, sem vestígio de qualquer fiscalização, que é abolida, procurando cada qual ganhar a palma na produção de doutores e bacharéis que se fazem por um passe de mágica, com prazer para os partidários da abolição dos títulos e de suas regalias, pelo aviltamento dos diplomas. (MOACYR, 1941, p. 139)
Na tentativa de modificação do status quo então criado é que, quatro anos depois, o jurista Carlos Maximiliano, ocupando a pasta do Ministério da Justiça, promovia nova reforma no ensino jurídico pelo Decreto 11.530, de 18 de março de 1915. A respeito dessa reforma comenta Maximiliano:
A Lei Orgânica do Ensino de 1911, propondo-se a negar valor aos títulos acadêmicos, produziu a mais completa epidemia de bacharelismo de que há memória no Brasil. Em país paupérrimo de ensino profissional com uma população em que o número de analfabetos não é inferior a 80%, fundaram-se academias em quase todas as capitais dos estados. Abriram-se nada menos do que seis faculdades de direito na cidade do Rio de Janeiro. Ora, é sabido que uma pequena cidade não fornece o número de doentes e nem de cadáveres para o ensino integral de Medicina. Em um foro pobre não se encontram vinte e seis juristas notáveis para professores de Direito. Sem as grandes despesas que o pequeno Estado não comporta, não é possível custear o funcionamento de uma escola politécnica. Não mais reconhece o Governo a existência de academia, em cidade pequena, capital de pequeno Estado.
Em uma grande metrópole apenas duas faculdades de Direito, Medicina ou Engenharia existirão com o cunho oficial. Ensine quem quiser, trazendo os discípulos a exame nos institutos do governo ou dos poucos que a estas forem equiparados. Assim, à concorrência monetária que fazia facilitarem as aprovações, opõe-se a concorrência para equiparação que obriga a escrupuloso rigor. A franqueza e a energia com que se atacaram abusos produziram alguns protestos individuais sem compostura, que constituíram mais uma prova de indisciplina pronunciada. (apud MOACYR, 1941, p. 166-167)
Afinal, as idéias defendidas pela Reforma do Ensino Livre trouxeram, no seu bojo, conforme já mencionado, o fim da hegemonia das Faculdades de Direito do Recife e de São Paulo. Contudo, os malefícios apontados pelos seus críticos chegaram a tal ponto de comprometimento da manutenção dos cursos jurídicos, sobretudo da sua quantidade, que na Capital da República ocorreu a fusão das Faculdades de Direito existentes: a Faculdade Livre de Direito fundiu-se com a Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais, em 24 de abril de 1.920, na vigência da Reforma Carlos Maximiliano.
Dessa forma, encerra-se, formalmente, o período controverso da implantação do ensino livre, iniciado em 1879 com Leôncio de Carvalho.
No entanto, nesse contexto, novamente a reivindicação universitária passava a ser uma aspiração nos meios educacionais. Professores e alunos mostravam-se insatisfeitos com um sistema de ensino superior, que, somente, previa a existência de escolas profissionais voltadas para a formação de diplomados nas três carreiras tradicionais – Direito, Medicina e Engenharia (VENÂNCIO FILHO, 2004).
Com o Decreto 14.343, de 7 de setembro de 1.920, então, foi criada a primeira Universidade do Brasil, resultante da junção da Escola Politécnica do Rio de Janeiro, a Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e a Faculdade de Direito do Rio de Janeiro. Iniciou-se, ainda sem o espírito integrador, mas era o primeiro passo à mudança do sistema educacional superior como um todo. E assim se manteve até a Reforma Francisco Campos [30].
Ainda assim, grandes juristas e professores continuavam apontando causas das deficiências encontradas no ensino e indicando soluções para o problema. Por exemplo, aproveitaram para apresentar um trabalho sobre o tema no Congresso do Ensino Superior [31], realizado pela Faculdade de Direito da Universidade do Rio de Janeiro, por ocasião da comemoração do centenário dos cursos jurídicos no Brasil. Esse trabalho foi dividido em duas sessões: a primeira tratava da organização universitária, e a segunda, do ensino jurídico. Foi, então, discutida, em nove teses, a problemática do ensino jurídico nesse período, extraindo-se dezesseis conclusões.
O ponto central da discussão e, portanto, a primeira tese, girou em torno do problema da evolução do ensino jurídico no Brasil. A questão debatida era se os seus cem anos de existência teriam correspondido às crescentes exigências de uma ampla formação técnica dos juristas. Eis as conclusões do relator dessa tese, o advogado Levi Carneiro:
a) O ensino jurídico, instituído pela Lei de 11 de agosto de 1.827, não tem evoluído de modo a corresponder a uma ampla formação técnica dos nossos juristas; b) as principais reformas ulteriores – cinco no regime imperial, sete no regime republicano –, quase todas resultantes de irrestritas autorizações legislativas, e as leis ou decretos que entre essas se intercalaram, derrogando-as ou suspendendo-lhes a execução obedeceram a critérios desencontrados, ora facilitando até ao exagero a obtenção dos diplomas acadêmicos, em faculdades equiparadas ou mesmo oficiais, ora reagindo contra esse e outros excessos, sem conseguirem a necessária eficiência do ensino, quer no ponto de vista exclusivamente teórico, quer no meramente prático, quer na conciliação feliz de um e outro; c) por isto mesmo, e ainda pela má ordenação das matérias no curso, e pelo desaproveitamento do tempo deste, não satisfaz o atual regime do ensino jurídico. (1927, p. 406-407)
Ante as suas conclusões, observa-se que, depois de cem anos de sua criação, os cursos jurídicos continuam em descompasso com a proposta primeira do Estatuto do Visconde da Cachoeira. Vale lembrar que seu estatuto não foi totalmente implantado, em virtude da mudança proporcionada pela dissolução da Constituinte de 1.823. Assim, as mesmas críticas de outrora são ainda, apresentadas. Nesse sentido, podem-se citar críticas: às reformas desencontradas, à facilitação da obtenção dos diplomas e à falta de eficiência do ensino; à dificuldade em estabelecer a conciliação entre o ensino teórico e o prático; e, à má distribuição curricular, não permitindo a evolução pretendida.
A segunda tese abordava a ausência de preparação dos candidatos às matrículas. Já a tese sete tratava da necessidade de atividade prática complementar aos cinco anos do curso. Entretanto, as teses cinco e seis revestem-se de especial importância para o trabalho de pesquisa em curso, tendo em vista os métodos recomendados para o exercício da docência:
V Três recomendações convém fazer a respeito do ensino do Direito.
A primeira é de simplificar o ensino, de modo a serem ministradas apenas as noções elementares dos diversos institutos: as nossas escolas não visam aparelhar cientistas.
A segunda é de adotar-se, ao contrário do que se pratica, a preleção ou lição-monólogo, com muita parcimônia, isto é, somente para a exposição sucinta das matérias a serem ensinadas.
A terceira recomendação é de se darem as noções teóricas concomitantemente com os exercícios práticos que elas comportam.
VI A lição não poderá ser exclusivamente um monólogo de quem ensina, sob pena do ensino se dirigir principalmente à memória do aluno, de ser sobremodo receptivo e de não exercitar convenientemente o raciocínio de quem aprende. Pelo contrário, os estudantes, em vez de meros assistentes, devem cooperar com o professor, observar com ele os fatos, que são base do ensino, e com ele raciocinar para descobrir os princípios. Desta maneira, desenvolver-se-á a pensar por si mesmo, e assim conseguirá a sua emancipação intelectual, que é o fim supremo da escola superior. (grifos dos originais) ((LIVRO DO CENTENÁRIO DOS CURSOS JURÍDICOS, 1.927, p. 446 - 448)
Como se vê, recomendava-se, depois de cem anos de criação dos cursos jurídicos, a aplicação do método de ensino prático, adotado pelos estatutos da Universidade de Coimbra, de 1.772, e pelo Estatuto do Visconde da Cachoeira, de 1.825. Nesse sentido, é procedente a crítica de Alberto Venâncio Filho (2004), ou seja, o estado real do ensino jurídico continuava o mesmo: conheciam-se os problemas, mas havia dúvida sobre os remédios a serem adotados, principalmente, sobre o real empenho em executá-los.
Seguramente, pode-se concluir, das conclusões extraídas desses trabalhos desenvolvidos no Congresso do Ensino Jurídico no Brasil, a ausência da relação teoria-prática, evidenciada, sobretudo, nos currículos, cuja matéria relacionada à prática forense, somente viria a ser implantada no Brasil com a Resolução do Conselho Federal de Educação de 1.972 [32].
4.4 A República Velha e a Reforma Francisco Campos
O movimento de renovação educacional da década de 1.920 teve, na Revolução de 30, um desfecho de grandes realizações. Destaca-se, nesse contexto, a criação do Ministério de Educação e Saúde, conduzido por Francisco Campos, cujas raízes eram bem mais sólidas do que as do começo da República. A reforma do ensino superior dessa ocasião, consoante Fernando Azevedo (1996, p. 669), foi "[...] sem dúvida, a de maior alcance entre todas as que se realizaram, nesse domínio, em mais de quarenta anos de regime republicano [...]".
Com efeito, a Reforma Francisco Campos, de 1931, como primeira medida no âmbito administrativo, criou um ministério específico para tratar dos problemas da educação e da cultura e promoveu o desdobramento do ensino em bacharelado e doutorado. O texto abaixo assim os define:
O curso de bacharelado foi organizado atendendo-se a que ele se destina a finalidade de ordem puramente profissional, isto é, o seu objetivo é a formação de práticos do Direito. Da sua seriação foram, portanto, excluídas todas as cadeiras que, por sua feição puramente doutrinária ou cultural, constituem antes disciplinas de aperfeiçoamento ou de alta cultura do que matérias básicas ou fundamentais a uma boa e sólida formação profissional.
E o doutorado se destina especialmente à formação de futuros professores de Direito, no qual é imprescindível abrir lugar aos estudos de alta cultura, dispensáveis àqueles que se destinam apenas à prática de Direito. O curso de doutorado se distribui naturalmente em três grandes divisões: a do Direito Privado, a do Direito Público Constitucional e a do Direito Penal e Ciências Criminológicas (VENÂNCIO FILHO, 2004, 305-6).
Nas palavras do Ministro Francisco Campos (BITTAR, 2001), havia um excesso de disciplinas sem objetivo específico, bem como inexistia preparo dos docentes, que se criavam de maneira independente, sem formação pedagógica. Argumenta ainda que a forma pela qual os currículos estavam estabelecidos, denotava um curso retrógrado, pouco abordando a compreensão dos institutos jurídicos brasileiros. Portanto, esses cursos requeriam modernização, como por exemplo, agregação de novos ramos do Direito como, por exemplo, a ampliação do estudo do Direito Civil, com a aceitação de aulas exclusivas sobre Direito de Família e das Sucessões, entre outras categorias específicas.
Ainda assinala o Ministro que, com essa intenção de bipartição do curso de Direito pretendia corrigir essa formação independente dos professores. Reconhecia que lhes faltam os largos e profundos quadros tradicionais da cultura, nos quais se processam, continuamente, a rotação e a renovação dos valores didáticos. Esses valores é que constituíam um ensino superior e secundário, de padrão, cujas exigências se desenvolvem em linhas ascendentes (VENÂNCIO FILHO, 2004)
Depreende-se do estudo realizado até então, que a exposição de motivos do ministro traduz o primeiro momento em que há, por parte dos órgãos do Governo, a aceitação oficial da carência dos saberes didático-pedagógicos do profissional da docência e da necessidade de sua formação. Assim, instituiu-se o doutorado no bojo da criação do Estatuto das Universidades Brasileiras, como tentativa de suprir essa carência, apesar de que não se trata de um programa de pós-graduação nos moldes conhecidos.
Contudo, na esteira dessas reformas, quando, então, foi criado esse estatuto, a tentativa de integração não lograra êxito, pois, ocorrida inicialmente na Universidade do Rio de Janeiro (Decreto 19.852, de 11/04/1.931), manteve, na realidade, um sistema de faculdades isoladas com um tênue vínculo administrativo, devido às dificuldades de romper com uma cultura já arraigada.
Com efeito, lembra Fernando de Azevedo (1971), em São Paulo, houve uma forte resistência das faculdades profissionais mais antigas. Elas deveriam, necessariamente, perder autonomia a partir de sua integração ao novo sistema instituído pela criação da universidade, que teria a preponderância das Faculdades de Filosofia, Ciências e Artes, consideradas o núcleo fundamental do sistema universitário, em função de suas raízes e ramificações.
Foi tamanha a resistência que a Lei 114, de 11 de novembro de 1935, tornava facultativa a criação do curso de doutorado, já que este curso, previsto pela Reforma Francisco Campos para a formação de professores e especialistas, de Direito absolutamente, não produzira frutos e o "resultado científico de sua atividade foi praticamente nulo" (VENÂNCIO FILHO, 2004, 310). O mesmo pode ser dito para o ensino jurídico até o Estado Novo, porquanto não teve grandes avanços, a despeito das significativas transformações no campo econômico e social.
Na verdade, apesar de serem observados grandes avanços no ordenamento jurídico trazidos pela Constituição de 1.934 [33], como a legislação de proteção aos trabalhadores e de amparo às classes menos favorecidas; a primeira menção, em um texto constitucional, de títulos específicos à família, à educação e à cultura, o ensino superior, e o jurídico em especial, não acompanhava as transformações significativas ocorridas no campo econômico e social.
Ao contrário, o que se viu no curso dos anos que se seguiram à Constituição de 1.934, foi um aumento, sem critério, de novas escolas e a utilização de recursos públicos para subvenção de escolas de qualidade duvidosa e padrões indesejáveis, bem como a federalização indiscriminada de universidades e escolas superiores (VENÂNCIO FILHO, 2004). Desse modo, tornam-se atuais as idéias iniciadas com a Reforma Francisco Campos, acerca da instauração de um regime universitário.
A esse respeito, também observa Venâncio Filho que se conseguiu estancar o fenômeno da federalização. No entanto, o mesmo não ocorreu em termos de criação das novas escolas, mormente com relação aos ramos cujos procedimentos facilitavam a instalação da faculdade. Inclui-se, nesse caso, a faculdade de Direito, o que teve a denominação irônica de inchaço do ensino superior, ou política de cogumelagem.
Verificava-se, assim, um descompasso entre as demandas socioeconômicas e o sistema educacional, que foi se agravando no campo do Direito, por referir-se ele, diretamente, às novas necessidades sociais.
Elucida também Venâncio, que, apesar da estagnação evidenciada no ensino jurídico e no processo de formação dos docentes jurídicos, merece destaque a influência exercida pelos professores italianos Tulio Ascarelli e Enrico Liebman, refugiados no Brasil em decorrência da II Guerra. Esses professores foram responsáveis, de um lado, "por uma visão mais moderna na análise dos problemas de Direito Comercial, inclusive nas interligações entre o Direito Comercial e o Direito Tributário" e, de outro, pelo desenvolvimento de estudos no ramo do Direito Processual, contribuindo para a formação da chamada Escola Paulista de Direito Processual, de influência nacional (VENÂNCIO FILHO, 2004), (grifos do autor).
E, dessa forma, mantiveram-se os cursos jurídicos, profissionalizantes e estagnados, em descompasso com as transformações socioeconômicas e políticas por que passava o Brasil. Tal descompasso chegou ao ponto de despertar o interesse também dos órgãos do empresariado que necessitavam de quadros tecnológicos e superiores para atender às novas demandas surgidas (AZEVEDO, 1996)
4.5 A LDB 4.024/61 e a Reforma Universitária de 1.968
Analisando o contexto de formação do sistema educacional brasileiro, verifica-se que, com a Reforma Francisco Campos, é que se estabeleceu o embrião do sistema universitário, trazendo consigo também as bases para a criação de um Plano Nacional de Educação. Também nesse contexto é que se deu a primeira tentativa oficial de instituição de um programa específico para a formação de docentes, embasados nos saberes didático-pedagógicos, com o programa fracassado do doutorado.
Todavia, além desses passos positivos para a consolidação de um ensino superior de qualidade, percebe-se que muito pouco foi realizado nos anos subseqüentes à reforma, bem como à Constituição de 1.934. Dessas parcas realizações, merece destaque a instituição da primeira universidade erigida após a mudança da Capital Federal: a Universidade de Brasília [34], publicamente compreendida como a primeira universidade efetivamente criada no Brasil (BITTAR, 2001).
Tal assertiva se justifica dada a concepção do seu projeto de criação, que objetivava a implantação de uma universidade orgânica e não de mais uma instituição superior de cunho profissionalizante, cujo plano de organização do ensino rompia com a tradição brasileira de centros de ensino isolados.
No que tange ao curso de Direito, especial destaque deve ser dado à inovação trazida, com essa universidade, com a vinculação do currículo de ensino jurídico às disciplinas de cunho sociológico e humanístico. Assim, pela primeira vez, uma proposta curricular apresenta-se com disciplinas voltadas para a educação geral e não apenas de caráter específico. Também inovou o currículo, apresentando especializações para o último ano das matérias específicas, nas áreas do Direito Empresarial, do Direito Penal, do Direito Público, e do Direito do Trabalho [35].
Considerada um marco no sistema educacional superior brasileiro, as influências decorrentes da implantação da Universidade de Brasília seriam sentidas em todo o arcabouço legislativo a partir da sua criação.
Nesse contexto, surge, em 20 de dezembro de 1961, a Lei nº 4.024, Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional que, em seus artigos 66, 68, parágrafo único e 70, definia o objetivo da educação superior, a importância do diploma, conferindo privilégio para o exercício das profissões e para a admissão em cargos públicos. Também privilegiou, essa lei, a competência do então criado Conselho Federal de Educação, em substituição ao Conselho Nacional de Educação, para fixar o currículo mínimo e a duração dos cursos que habilitassem à obtenção de diploma.
No entanto, deve-se frisar que essa lei também não se preocupou muito com a formação dos docentes do ensino superior, apesar de o seu artigo 66 (Lei 4.024, de 2/12/1.961) prescrever que "o ensino superior tem por objetivo a pesquisa o desenvolvimento das ciências letras e artes, e a formação de profissionais de nível universitário". Tal prescrição somente veio a evidenciar a necessidade de que os docentes, particularmente do ensino jurídico, deveriam possuir habilitação que lhes permitisse a consecução desses fins.
A formação docente continuava, então, estacionária, sobretudo por ter a nova lei favorecido a expansão do ensino superior no Brasil, especialmente do ensino jurídico. Esse fator reproduzia e multiplicava o status quo, pois avolumaram-se os problemas dado o aumento da quantidade das faculdades de Direito. Ficava claro, pois, a necessidade de docentes para o seu funcionamento.
Para ilustrar tal situação, é de grande importância a menção a um levantamento efetuado em 1961, pelo Professor Almeida Júnior, então membro do Conselho Federal de Educação. Para tal, baseou-se o ilustre docente, no trabalho efetuado na Itália por Calamandrei, denominado Troppi Avvocatti, sobre o universo de graduados dos cursos de direito, em comparação com os dos Estados Unidos da América, conforme mostra a tabela abaixo:
Tabela 1
Relação entre o número de graduados e local da graduação
Local de graduação |
Nº. de graduados |
Ano |
Estados Unidos |
9.433 ou 5,4 por 100 mil hab. |
1958 |
Brasil em conjunto |
3.562 ou 5,4 por 100 mil hab |
1959 |
Brasil sem São Paulo |
2,500 ou 4,6 por 100 mil hab |
1959 |
Somente São Paulo |
1.062 ou 9,6 por 100 mil hab |
1959 |
Fonte: (ALMEIDA JÚNIOR, 1965, p. 176)
Os dados acima demonstram que o Brasil, com aproximadamente um terço da população norte-americana àquela época – cerca de 65.900.000 contra 174.685.000 habitantes –, já detinha a mesma relação de advogados por grupo de 100 mil habitantes. Esse quadro se agrava ainda mais quando comparado somente o Estado de São Paulo com os EEUU. Nesse caso, a relação praticamente dobra, para uma população quase dez vezes menor: 11.062.000 habitantes.
Em decorrência dessa proliferação de faculdades de Direito e da preocupação com o seu nível de qualidade, somadas as críticas ao ensino jurídico, sancionou-se a Lei 4.215, de 27 de abril de 1.963. Desse modo, reformou-se o Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil e passando essa lei a regular o exercício da profissão de advogado, dispôs sobre o estágio profissional e o exame de ordem [36]. Esse exame promovia a seleção dos egressos dos cursos jurídicos.
Todavia, algumas dificuldades concorreram para a dispensa desse exame, como: a dificuldade inerente aos Conselhos Seccionais da Ordem; a fórmula alternativa de estágio em escritórios ou tribunais; a resistência à sua realização, apresentada pelos formandos; a incapacidade das faculdades de ministrarem adequadamente as aulas regulares para preparação dos bacharelandos. Tudo isso associado à grande discussão nacional realizada sobre o tema [37], levou à dispensa do exame e do próprio estágio profissional aos bacharéis que houvessem realizado, junto às respectivas faculdades de Direito. estágio profissional, por força da Lei 5.842, de 6 de dezembro de 1972, que atribuiu, ao Conselho Federal de Educação, o encargo de disciplinar o estágio de prática forense e organização profissional.
4.5.1 A Experiência do Centro de Estudos e Pesquisas no Ensino do Direito
Diante do quadro retratado anteriormente e à evidência da má qualificação dos egressos dos cursos jurídicos, a criação do Centro de Estudos e Pesquisas no Ensino do Direito (CEPED) [38], representa um marco na renovação do ensino jurídico. Instituído pela resolução 284/66, do Conselho Universitário da Universidade do Estado da Guanabara, tinha por finalidade, o aperfeiçoamento do ensino jurídico e a realização de pesquisas e estudos especializados no campo do Direito.
Em que pese as críticas sofridas, por exemplo, ser um meio de treinamento de advogados a serviço dos grupos internacionais que entravam no Brasil e necessitavam de instrumental jurídico para tanto, nos dizeres de José Eduardo Faria (1987), foi visível a eficiência com que alcançara seus objetivos e a inovação metodológica por ele proposta.
Também são merecedoras de destaque as considerações acerca desse centro, apresentadas pelo professor Alfredo Lamy Filho no Seminário para o Estudo e Análise da Reforma do Ensino Jurídico, realizado pelo Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB, em 1967. Colaborou para a realização desse evento, a Agência de Desenvolvimento Internacional Aliança para o Progresso, sendo ele o relator geral sobre o tema concernente à reforma do ensino jurídico, bem como à reformulação dos seus métodos, já que fora o responsável direto pela experiência do CEPED [39]:
1. Não há oposição ou incompatibilidade entre ensino teórico e ensino prático, que se devem integrar naturalmente na metodologia do ensino do Direito e na formação profissional do advogado.
2. O professor não deve ter exclusivamente a preocupação de esgotar programas, e a ambição de transmitir toda a matéria, mas, sim, de propiciar o melhor aprendizado dos pontos basilares da disciplina lecionada, através da imprescindível inteligência dos princípios doutrinários e do aperfeiçoamento do raciocínio jurídico do aluno.
3. O ensino jurídico deve ter presente a conveniência de preparar o aluno para entender e participar do processo de mutação e aperfeiçoamento das instituições jurídicas.
4. O método prelecional usualmente adotado deve ser temperado com o método dialogado, com o estudo prévio, por parte dos alunos, dos temas a serem objeto do debate em aula, inclusive exame de acórdãos, pareceres e problemas jurídicos hipotéticos.
5. É essencial intensificar esforços para maior motivação dos alunos, durante o curso jurídico e para tornar cada vez mais íntima a relação professor-aluno, para o que deve o professor colocar-se à disposição do aluno, durante certo tempo, fora da classe.
6. Os seminários, a realização de pesquisas em equipes, e de trabalhos práticos, fora das classes, a visita aos locais que permitam ver e sentir o funcionamento das instituições jurídicas, apresenta-se como da maior conveniência para complementação do método adotado. (SEMINÁRIO DE ENSINO JURÍCIDO; WALD, 1969, p. 262-264)
Para Venâncio Filho (2004), os tópicos retrocitados foram o ponto alto do seminário [40], uma vez que traduziam o interesse generalizado pela mudança tanto do ensino jurídico como dos seus métodos, embora houvesse forte corrente pela manutenção do status quo.
4.5.2 A Reforma Universitária de 1968
Nessa linha de reclamos por mudanças no ensino jurídico, o movimento da reforma universitária, iniciado em 1.967, retoma o esforço de atualização do ensino superior brasileiro, objetivando a transposição do individualismo ainda reinante e a integração do estudante na vida universitária, objetivando o estabelecimento de núcleos de desenvolvimento do ensino e da pesquisa.
Assim sendo, o grupo de trabalho criado pelo decreto 62.937 de 1968, encabeçado pelo professor Newton Sucupira, destacava, em seu relatório, a pós-graduação, como mecanismo de formação de docentes de alto nível e pesquisadores, objetivando a criação de centros nacionais de pós-graduação. Também faziam parte desse relatório, os seguintes comentários sobre as tradições do ensino superior no Brasil:
Confessamos que, deliberadamente, desprezamos o fator histórico do nosso ensino superior, que é um dos responsáveis por essa cultura verbalística que ainda nos domina e por nosso tardio despertar para a compreensão científica do mundo e sua transformação pela tecnologia. Não há o que temer por nossas tradições de ensino superior, pois não possuímos verdadeira tradição universitária a defender e a preservar. Umas das condições do êxito da reforma é romper definitivamente com duas tradições: a cátedra e a faculdade de autonomia. (SUCUPIRA, 1972, p. 42), (grifos do autor)
Assim, com a publicação da Lei 5.540, de 28/11/1968 e o conseqüente Decreto-Lei 464, de 11/2/1969 [41], concebia-se uma reforma universitária tendente a modificar o ensino superior brasileiro. Seu objetivo maior era a mudança de pensamento, perante as transformações socioculturais que se apresentavam. E, mais especificamente, quanto às faculdades de Direito, cumpre ressaltar que se revelavam pouco receptivas à idéia da reforma universitária, recusando a se transferir para o campus universitário. Em alguns casos, houve até impetração de mandados de segurança para resistir às idéias renovadoras (SUCUPIRA, 1972).
Com efeito, essa resistência, que se deu tanto fisicamente quanto com relação aos aspectos curriculares e docentes, implicou grande dificuldade de interação e, por conseqüência, da formação do pensamento universitário, tendo em vista a segregação dos alunos dos cursos jurídicos e até mesmo, dos professores (BITTAR, 2001). Isso porque, as disciplinas de formação básica e humanística, geralmente cursadas em outros departamentos, tinham nas faculdades de Direito, professores exclusivos para os seus alunos. Tal fato acaba por impedir a convivência maior dos alunos das diversas áreas do conhecimento e, por conseguinte, a formação mais universalizada do egresso do curso de direito.
Com relação aos problemas já evidenciados anteriormente, entre os quais aqueles relacionados ao crescente aumento de faculdades de Direito, percebe-se não terem sido enfrentados. Ao argumento de permitir o acesso dos candidatos excedentes que, mesmo aprovados, não conseguiam vagas nas instituições públicas existentes, o Estado editou o Decreto 63.341, de 1/10/1968 [42], permitindo o funcionamento daqueles cursos cujas áreas fossem escassas. Em conseqüência, verificou-se a manutenção do aumento indiscriminado das faculdades de Direito, dada a facilidade encontrada na concessão dessas autorizações, uma vez que ainda era grande a procura nas áreas tradicionais, entre as quais, o Direito.
Nesse sentido, continuaram os estudiosos na busca de soluções para esses problemas relacionados anteriormente, que, ainda que não gerados pela reforma universitária em questão, encontraram, na esteira das medidas dela advindas, ambiente propício à expansão desmedida do número de faculdades de Direito.
3.5.2 Novos olhares sobre a formação do docente jurídico
À experiência do CEPED, seguiram-se outros trabalhos também voltados para o ensino jurídico. Nessa direção citam-se os Encontros Brasileiros das Faculdades de Direito - hoje já na sua XXXVI edição [43]. O primeiro foi realizado em 1971, na cidade de Juiz de Fora, Minas Gerais. Um dos quatros pontos discutidos à época, foi a metodologia do ensino do Direito, cuja moção assim estabelecia:
Indispensável a reformulação da metodologia tradicional do ensino do Direito, no sentido de fazer com que o aluno passe a participar ativamente do processo didático, apontando, mais, que tal participação compreende o preparo e a prévia distribuição do material de classe apropriado, e a condução do debate em aula sob a orientação do professor para a progressiva fixação das normas e princípios que atendam à solução das hipóteses de trabalho, devendo a metodologia adotada servir de instrumento para conhecimento do fenômeno jurídico integrado na realidade social com a conjugação das disciplinas afins. (BASTOS, 2000, p. 291)
Isso posto, das discussões sobre ensino jurídico até o momento, depreendem-se, de modo geral, severas críticas à formação dos currículos, à duração dos cursos, a aspectos de interdisciplinaridade – algumas vezes –, e à metodologia utilizada. Somam-se a esse quadro, sérios debates sobre a qualidade dos professores, e dos egressos dos cursos de Direito. Não se podem ignorar, porém, as sugestões, propostas e experiências passíveis de reflexão.
Salvo as raras experiências narradas anteriormente, que também não proviam formação didático-pedagógica ao docente, capacitando-o para o magistério superior, observa-se que, no período analisado, não há registros de trabalhos voltados para o desenvolvimento dos saberes pedagógicos.
Ademais, a legislação referente ao assunto não explicita, em seu currículo, as disciplinas necessárias à formação para professores. Restringe-se a requerer, para a progressão na carreira docente da graduação nas universidades, a titulação stricto sensu e, para lecionar nos cursos de pós-graduação, o título de doutor conferido por instituições idôneas. Arrola, ainda indispensável, a apresentação de outros títulos que comprovem satisfatória especialização no campo de estudos a que se destina, tais como: atividade científica, cultural ou técnica, constante de publicações feitas em livros ou periódicos conceituados, nacionais ou estrangeiros [44].
A propósito, merece o devido destaque o resultado das pesquisas da professora Maria de Lourdes Seraphico Peixoto da Silva, por ocasião de uma palestra proferida no XII Encontro das Faculdades de Direito, em 1983, organizado pelo Colégio Brasileiro de Faculdades de Direito, realizado na Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Ela arrolara vinte e quatro pontos sobre a deficiência do ensino jurídico, dada a carência de capacitação de seus docentes [45], a saber:
1. O professor carece de formação pedagógica, metodológica atualizada.
2. Mais da metade dos docentes jamais passaram por serviços de diagnósticos e treinamento ou fizeram cursos de metodologia de ensino superior.
3. Raros são os professores conscientes de sua profissão. A maioria encara o magistério como uma atividade a mais. Usando da expressão muitas vezes empregada na gíria, fazem do magistério "um Bico".
4. Desvalorização pelos próprios docentes, da atividade do ensino a tal nível que, constatamos essa realidade ao ouvir inúmeras vezes uma indagação como: "você só dá aula ou trabalha, também?". Diante de tal pergunta inconcebível, como resposta temos tendência a indagar o que se entende por trabalho.
5. Carência mais absoluta de um sistema articulado de valores e filosofias bem definidas e coerentes de educação.
6. Mentalidade absolutamente auto-suficiente dos professores que consideram não necessitar de qualquer apoio que não o de seu próprio saber jurídico, esquecendo-se de que para ensinar não é suficiente saber o conteúdo, há que estar dotado, pelo menos, de um mínimo de habilidades técnicas de ensino.
7. Desprezo mais absoluto por cursos e treinamento no uso de tecnologia específica que tenham validade imediata e concreta, quer dizer, que sejam relacionados diretamente com a função essencial do docente que é a instrução em sala de aula, que só se torna eficaz, na medida em que tende a desenvolver o raciocínio heurístico.
8. Refratabilidade em grau superlativo à informação, análise e possível adoção de toda e qualquer técnica que escape à retórica que habitualmente se entende como inerente e indispensável aos profissionais do direito.
9. Desconhecimento total das diferentes formas e critérios de avaliação e da necessidade de que esta esteja adequada, integralmente, aos objetivos gerais de cada disciplina e aos específicos de cada unidade, inclusive podendo e devendo variar de unidade para unidade.
10. Absoluto analfabetismo em relação à necessidade da formulação de objetivos para a eficiência e eficácia do processo ensino-aprendizagem, bem como em relação aos métodos que se pode utilizar na seleção dos conteúdos programáticos e na formulação desses objetivos.
11. Ausência de dedicação de várias horas à preparação remota ou próxima dos desempenhos docentes, em sala de aula.
12. Falta de verdadeira consciência profissional, uma vez que com a desculpa de que percebe pouco, o professor afirma que não pode se dedicar como gostaria ao magistério porque precisa sobreviver. É inequívoco que deveria ser melhor pago, mas consideramos que, se ainda sabendo que ganharia pouco, resolveu lecionar, então não pode escusar-se por este motivo, sob pena de carecer de consciência profissional.
13. Mentalidade arcaica de quem pensa que uma vez preparada uma aula, não mais se necessita rever. Note-se as já famosas fichas amareladas pelo tempo, tão comuns em nosso quotidiano e, tão conhecidas e tão contestadas pelos alunos, com toda a razão.
14. Sob alegação de deficiência das bibliotecas, os professores, facilmente, se apegam ao sistema de apostilas que, normalmente, pecam por falta de nível e por tratarem "do mínimo indispensável para a subsistência", atrelando o aluno, quando a função do professor seria a de despertar o gosto pela pesquisa.
15. Hábito, nada salutar, de fazer da aula um ditado ou cópia que infantiliza o aluno obstaculizando o desenvolvimento de seu raciocínio e impedindo qualquer formulação diversa da chamada "matéria" ou "ponto dado".
16. Mentalidade medíocre de quem identifica a missão do professor com o cumprimento do programa, ou transmissão de conhecimento, como um gravador, simplesmente a nível de informação.
17. Temor a ser considerado medíocre por não se utilizar da tradição verbalística e exageradamente retórica.
18. Ausência de esforço contínuo não por informar, mas por ter como objetivo principal: iniciar, desenvolver e aperfeiçoar a raciocínio jurídico.
19. Inexistência de interesse em formar e orientar os alunos para que sejam capazes de transformar o material memorizado em conceito compreendido.
20. Falta de conscientização de que nada se faz, em termos de aprendizagem, pelo exclusivo monólogo de quem ensina, porque só se dirige essencialmente à memória do aluno, e é sobremodo receptivo, não exercitando o raciocínio e impedindo a cooperação dos alunos, o que gera desinteresse.
21. A maior causa de uma avaliação deficiente reside no fato de que esta não é elaborada em atenção aos objetivos.
22. Os professores não fixam objetivos no momento de elaboração de suas provas, para cada questão, atendendo-se aos três critérios fundamentais de que fala Robert C. Maeger - Conduta final, padrão de rendimento e condição de desempenho.
23. A avaliação normalmente tende a apreciar o que o aluno foi capaz de reter a respeito de um tema e não como raciocina em relação ao tema, e, isto, porque o próprio professor não sabe formular seus objetivos, definindo o que interessa que o aluno saiba fazer, ao longo do processo do ensino/aprendizagem.
24. A partir do momento, em que o professor se conscientizar de que está fora da realidade e de que é preciso fixar objetivos e levar seus alunos a atingi-los, para ser professor, então, perceberá que há um sem número de entraves à realização dos objetivos - entraves colocados pelo próprio professor, e, então, sentirá a urgente necessidade de reformular as habilidades técnicas de ensino que emprega. (SILVA, 1983)
Essas preocupações já haviam sido retratadas em sua obra Opção Metodológica para o Ensino do Direito, em que apresenta sua contribuição, fruto de sua própria experiência no processo ensino-aprendizagem [46], tanto como aluna quanto docente. Não obstante a época em que fora realizado o trabalho, observa-se que alguns pontos se revestem de grande atualidade e continuando permear as discussões travadas acerca do ensino jurídico.
4.6 Da abertura política até os nossos dias
4.6.1 Os novos paradigmas constitucionais, a criação da comissão de ensino jurídico da Ordem dos Advogados do Brasil e as novas Diretrizes Curriculares Nacionais
A década de 80 foi marcada pela transposição do regime de exceção para o democrático. Concorreram para isso o fim da ditadura, em 1985 e, posteriormente, a Constituição Cidadã de 1988 [47], que, no âmbito da educação, entre outros, promoveu, também, a constitucionalização da necessidade da formação para a cidadania.
Nesse contexto, a Constituição inovara com a consagração do princípio da autonomia universitária, abrindo espaço para a discussão sobre a necessidade de uma nova Lei de Diretrizes e Bases para a educação brasileira. Assim, a autonomia figurou entre várias disposições constitucionais sobre a educação, tais como: garantia da qualidade do ensino, a gestão democrática, o regime jurídico único e o plano de carreira para o magistério público, a gratuidade do ensino público, o acesso universal e a indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão.
Por outro lado, também na seara constitucional, houve um fortalecimento dos papéis do Ministério Público e do Judiciário. Ademais, a abertura de novos espaços para aspectos relacionados aos direitos coletivos e difusos; as questões indígenas e a função social da propriedade; questões econômicas, do meio ambiente; a proteção da vida privada e da intimidade, entre outros, ditaram a necessidade de reflexão sobre o Direito e, por conseguinte, sobre o seu ensino.
Somam-se a esses fatores, as rápidas transformações verificadas no mundo contemporâneo, com os avanços tecnológicos conformando a sociedade virtual e os meios de informação e comunicação. Emerge, assim, o verdadeiro desafio à educação, desafio esse que deve ser enfrentado por governantes, segmentos da sociedade organizada, pais, professores, instituições, objetivando um desenvolvimento humano, cultural, científico e tecnológico que propicie o enfrentamento das exigências atuais.
Essa nova conjuntura político-democrática trouxe, no seu bojo, a necessidade de mudanças no campo educacional, com envolvimento dos diversos segmentos sociais. Neste sentido, merece destaque a Ordem dos Advogados do Brasil, que, desde sua criação em 1.930 [48], tem se manifestado sobre as condições do ensino jurídico brasileiro.
As conferências nacionais por ela realizadas desde 1.958 [49], têm se apresentado como um mecanismo atuante e atual, em que também os problemas sobre a formação jurídica têm sido debatidos e indicativos de soluções apresentados. Incluiu-se aí a criação das diversas comissões no âmbito da Ordem dos Advogados, por meio das quais são efetivadas as providências que são objeto das deliberações empreendidas.
Um passo importante nesse sentido se deu com a criação da Comissão de Ensino Jurídico [50], em 1.992. Suas funções, posteriormente, foram reconhecidas pelo art. 54, inciso XV do Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil, Lei 8.906, de 4 de julho de 1994 [51]. Atendendo a esse estatuto, a Ordem passa a contribuir, mais efetivamente, no terreno do aperfeiçoamento da cultura e das instituições jurídicas, com a emissão de pareceres opinativos sobre a criação, reconhecimento ou credenciamento dos cursos jurídicos. Ademais, analisa, entre outros, aspectos relacionados à formação do quadro docente desses cursos, suas injunções junto ao Ministério da Educação, no sentido de se obstar a proliferação de cursos jurídicos, fato recorrente na história do ensino do Direito no Brasil.
A partir daí, em trabalhos conjuntos com a Comissão de Especialistas do Ensino do Direito do Ministério da Educação e da Cultura, envolvendo as comunidades acadêmica e profissional, foi gerada a Portaria MEC nº. 1.886, de 30 de dezembro de 1994, com início de vigência obrigatória a partir de 1996, depois diferida para 1998. ficaram, então, estabelecidas novas diretrizes curriculares e conteúdo mínimo dos cursos jurídicos em todo o país, repetindo, em seu artigo 14, o preceito constitucional, que determina a necessidade das atividades de ensino, pesquisa e extensão, composição da qual não podem mais prescindir as universidades.
Apesar da contradição inicial sobre o estabelecimento das diretrizes curriculares e do conteúdo mínimo presentes na mesma portaria [52], houve importantes passos na direção da já mencionada formação interdisciplinar. Por exemplo, ficou determinado que o curso jurídico desenvolveria atividades de pesquisa, ensino e extensão, interligadas e obrigatórias, objetivando a extrapolação daquela formação técnico-jurídica sempre combatida. Também ficou estipulada a destinação de cinco a dez por cento da carga horária total para atividades complementares, incluindo trabalhos de pesquisa, extensão, seminários, simpósios, congressos, conferências, monitoria, iniciação científica e disciplinas não previstas no currículo pleno. Tais medidas indicam a clara da mudança de rumos pretendida nos aspectos pedagógicos dos cursos jurídicos.
A inclusão obrigatória da defesa de monografia perante banca, também indica avanços no âmbito da iniciação científica e da pesquisa jurídica, surgindo como uma novidade até então.
Além dessas inovações, a Portaria 1.886/94 externou, também, a preocupação com os cursos noturnos, estabelecendo carga horária máxima de quatro horas de atividades por dia, estágio supervisionado obrigatório com duração mínima de 300 (trezentas) horas, bem como fixou o acervo bibliográfico mínimo de 10.000 (dez mil) volumes de obras referentes ao curso.
Mesmo reconhecendo falhas na portaria, como, por exemplo, a ausência de disciplinas de formação geral no eixo fundamental, apesar das menções à interdisciplinaridade, percebe-se que ela possibilitou avanços significativos no ensino jurídico. Deve-se, portanto, a ela a busca do programa de graduação em que o egresso não seja somente um reprodutor do ordenamento legal vigente.
Nesse mesmo período em que era editada a Portaria 1.886/94, outra contribuição efetiva era apresentada pelo Conselho Federal da OAB. Trata-se da pesquisa nacional por amostragem [53], realizada com mais de 1.700 sorteados dos 400 mil inscritos na OAB, distribuídos, proporcionalmente, ao número de advogados em cada estado. O objetivo dessa pesquisa, em primeiro lugar era identificar o perfil do profissional da advocacia.
Com base nesse estudo, o Ministério da Educação, pela Portaria n° 526, de 9 de abril de 1997, aprovou e divulgou, por meio da Comissão do Curso de Direito do Exame Nacional de Cursos, o tipo delineado para o graduando do Curso de Direito. De posse desse dado, poder-se-ia projetar o perfil do profissional apto para a sociedade em mudanças que se vislumbrava [54]: Assim sendo, esse profissional deveria apresentar as seguintes características:
a) formação humanística, técnico-jurídica e prática, indispensável à adequada compreensão interdisciplinar do fenômeno jurídico e das transformações sociais;
b) senso ético e profissional associado à responsabilidade social, com a compreensão da causalidade e finalidade das normas jurídicas e da busca constante da libertação do homem e do aprimoramento da sociedade;
c) capacidade de apreensão, transmissão crítica e produção criativa do Direito, aliada ao raciocínio lógico e consciência da necessidade de permanente atualização;
d) capacidade de equacionar problemas e buscar soluções harmônicas com as exigências sociais;
e) capacidade de desenvolver formas extrajudiciais de prevenção e solução de conflitos individuais e coletivos;
f) visão atualizada do mundo e, em particular, consciência dos problemas nacionais.
Em suma, paralelamente a essas exigências destacadas na pesquisa, o presidente da OAB Federal, Rubens Approbato Machado [55], já considerava, como aspecto fundamental no perfil, também do docente de direito, a permanente atualização profissional. Argumentava que a crescente ampliação e diversificação das relações sociais também requeria a atualização continuada dos docentes jurídicos, sobretudo perante os novos campos de atuação do Direito. Fica, portanto, aqui, encerrando este tópico, o recado do autor:
Aos atores do campo do direito, em função de suas experiências profissionais e das características intelectuais de sua atividade, urge uma atualização permanente de conhecimentos, afinal de contas, avolumam-se as demandas por parte dos novos nichos do mercado, tais como as áreas do biodireito, do direito consumidor, do direito eleitoral, do direito desportivo, do direito interbancário, do direito penal dos negócios e tantos outros ramos da frondosa árvore do direito, sempre expandindo-se, a mostrar que o direito é vida permanente. (MACHADO, 2004, p. 364)
4.6.2 A LDB 9.394, de 20/12/1996 e a nova legislação educacional em vigor
Na esteira dessas novas mudanças empreendidas no início de 1996, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional [56] foi a primeira a estabelecer parâmetros acerca da formação docente universitária, em seu artigo 66 e parágrafo único:
Art. 66 A preparação para o exercício do magistério superior far-se-á em nível de pós-graduação, prioritariamente em programas de mestrado e doutorado.
Parágrafo Único O notório saber, reconhecido por universidade com curso de doutorado em área afim, poderá suprir a exigência de título acadêmico.
Depreende-se, pois, que a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, ainda que não configure o mestrado ou doutorado como obrigatórios, indica a pós-graduação como ambiente de preparação dos docentes de nível superior. Percebe-se visivelmente o fortalecimento desses programas como locus para a formação dos professores ao estabelecer [57] que, pelo menos um terço dos professores das instituições de ensino superior deve deter essa titulação.
E corroborando a valorização da pós-graduação como preparação para o magistério superior, o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior [58] (SINAES), nos questionários de avaliação das instituições, também considera a quantidade de mestres e doutores em relação ao corpo docente, além de outros aspectos de sua atuação.
Mas, a lei, ao considerar que a pós-graduação é o meio de preparação para o magistério superior e não um processo de formação realizado, prioritariamente, em programas de mestrado e doutorado, comete uma incongruência em certos termos levando-se a entender como inconciliável a formação pedagógica do docente (Título VI – Dos Profissionais da Educação). Somente para o magistério superior é que ela se refere à preparação para o magistério (artigo 66), usando a expressão formação em todos os outros casos. Por outro lado, retira da formação superior, a obrigatoriedade da prática de ensino presente para os demais casos de formação docente profissional, consoante prescreve o artigo 65: "A formação docente, exceto para a educação superior, incluirá prática de ensino de, no mínimo, trezentas horas" Infere-se, portanto que, embora ela estabeleça – ainda que não exclusivamente –, como requisito para o magistério superior, a preparação em programas de pós-graduação e, em caráter prioritário, o mestrado e o doutorado, retira a obrigatoriedade da prática de ensino como formação para esse mesmo docente.
Ademais, deve-se atentar para o fato de que a legislação não estabelece também como eletivas, nos programas de especialização, mestrado ou doutorado, as disciplinas relacionadas à formação nos saberes didático-pedagógicos.
Infere-se assim, uma incongruência nessa regulamentação sobre a formação de professores para o ensino superior no Brasil, uma vez que ela não leva em conta, o mesmo processo de formação empregado nos outros níveis do ensino. Portanto, se se trata de profissional da Educação, deve a lei garantir a sua formação. Para isso, deve considerar todo o processo requerido para a profissionalização do professor da educação superior. Ademais, deve utilizar a mesma filosofia empregada para o bacharelado e para a licenciatura.
No entanto, a formação do bacharel não tem qualquer direcionamento para o magistério e, em havendo prática de estágio, essa é voltada para a profissão a ser exercida. Por outro lado, sendo a licenciatura voltada para o magistério e sendo o estágio obrigatório, será aproveitada apenas para os outros níveis do ensino e não para a educação superior, conforme determina a legislação em comento.
Esses fatores têm contribuído para o aumento da oferta dos programas de especialização, com a inclusão da disciplina denominada Metodologia do Ensino Superior ou Didática do Ensino Superior. A titulação, segundo Pimenta e Anastasiou (2002, p. 41), "tem servido para cumprir parcialmente a lei, mas também tem sido estimulada por instituições de ensino superior, por significar salários mais baixos do que os que seriam exigidos por titulados em cursos stricto sensu".
Todavia, não se pode olvidar que essa oferta também surge como resposta à demanda representada pelo aumento da quantidade de faculdades de Direito, fato que, necessariamente, requer mais professores para os seus quadros. E os programas stricto sensu não conseguem fornecê-los a contento.
Nessa direção, observa-se que o Estado, por um lado, permite a proliferação de instituições de ensino superior, não fazendo exigências sobre a formação didático-pedagógica dos professores no momento da composição dos seus quadros; por outro, imprime um processo avaliatório nas instituições superiores, utilizando-se de critérios cujos parâmetros não lhes foram exigidos. Assim sendo, em termos de qualificação desses mesmos docentes, exige-se de qualquer instituição de ensino superior, o quesito titulação em mestrado ou doutorado do corpo docente [59].
Outro exemplo que pode ser citado, nesse sentido, refere-se à exigência do trabalho de fim de curso. Inicialmente, com a revogada Portaria 1.886/94, instituía-se a monografia como trabalho obrigatório para obtenção da graduação. Agora, com a Resolução CNE-CES 09/04, mantém-se a obrigatoriedade de um Trabalho de Curso [60], como espaço para o trabalho de pesquisa e investigação científica.
Verifica-se, assim, a necessidade da formação de docentes que respondam por essas novas práticas, seja pelas exigências paradigmáticas apontadas, seja pela imposição da nova legislação em vigor. A propósito, muitos dos membros dos corpos docentes existentes atualmente encontram-se defasados do ponto de vista da metodologia ou a elas não foram ainda apresentados.
Dessa forma, conclui-se que a aquisição de inconteste conhecimento jurídico, aliada à uma vasta titulação do docente, não é garantia da existência do cabedal dos saberes didático-pedagógicos que possibilitem a cobrança e a supervisão de ações necessárias às práticas educativas que proporcionam sucesso dos alunos. Sobretudo, se desse profissional não houve cobrança por parte da instituição [61].