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A desordem do discurso jurídico.

Reflexões intempestivas

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Agenda 22/01/2012 às 05:50

Foucault, enquanto profeta anunciou que “o século XXI será deleuziano”. Ledo engano! O século XXI será sadiano.

"Quem só o Direito conhece, nem o Direito conhece"

(Oliver Wendel Holmes, juiz norte-americano)

"É preciso ser duro; mas perder a ternura jamais"

(Che Guevara)


UM ESCRITO, QUALQUER QUE SEJA não basta. E mesmo não querendo fazer apologia a inconclusão (por conta dos fetiches metodológicos que a institucionalizam), temos que reconhecer, é sempre um texto inacabado quer se queira científico ou não, mesmo porque, como disse Georges Bataille, "a filosofia jamais é uma casa, mas um canteiro de obras", de obras sempre incerta e imprecisa ("Metamorfoses somos e seremos...", como disse Jorge de Sena), que, nas palavras de Foucault, "indefinidamente, para além de sua formulação, são ditos, permanecem ditos e estão ainda por dizer", sendo possível (apesar de aporético e paradoxal) falar em falso, inexato, errôneo a título de hipótese de trabalho teórico (Althusser), mas também a título de uma experiência com a realidade concreta nua e crua suspeita de ser em si (Kant), [mesmo porque também, como diria o professor Emmanuel Carneiro Leão, "qualquer fato já é sempre feito", e, além disso, aponta Maria Helena Varela: "A nossa relação com o real foi sempre, e ainda é essencialmente mítica, imaginária, e a ela se subordinando o discurso racional" (VARELA, 1996)]... E, em última instância, somos justamente isso que em crítica de arte chama-se bricoleurs. E por seu infinito de buscas e lacunas insuperáveis, diz belamente Maria Helena: "A procura do eu individual e coletivo, do humano e do divino no humano, a viagem marítima ou sertaneja, histórica ou insituada, termina ou começa sempre nessa Viagem infinita da escrita, "l’infini de La mort impossible à mourir", como dizia Blanchot". (VARELA, 1996). Mas, como sair disso, que Barthes chama sartrenianamente un huis clos? Pergunta e responde com humor Umberto Eco: "Blefando. Pode-se blefar com a língua. Esse jogo desonesto, salutar e libertador chama-se literatura" (ECO, 1984). Trata-se, aqui, não de filosofia, mas de literatura, literatura jurídica, e, literalmente, de um blefe jurídico do STF dado em recente e inânime decisão a propósito da ADI nº 4277/DF e da ADPF nº 132/RJ, e, eu diria, com as palavras de Vladimir Safatle, "sem a compreensão adequada dos móbiles em operação no interior da filosofia moral" (SAFATLE, 2011). Penso em Baudrillard: "Haveria o direito ao desejo, o direito ao inconsciente, o direito ao gozo? Absurdo. É o que torna ridícula a liberação sexual, quando ela fala em direito" (BAUDRILLARD, 1996). Então, continuando com Baudrillard: "Por que não reivindicar o "direito" de ser homem ou mulher? Por que não também o de ser de Leão, Aquário ou Câncer? Mas o que significa ser homem ou mulher, se tivermos esse direito?", e, mais ainda, que direito? Concluindo: "Posso reivindicar o direito de mover, no jogo de xadrez, o cavalo em linha reta, mas que sentido isso pode ter? Ter direito nesse tipo de questão é estúpido" (BAUDRILLARD, 1996). Tudo isso quer dizer que não podemos blefar assim. Podemos? A resposta que aparece no horizonte do direito contemporâneo desenha o esboço de um sim na jurisprudência do STF. Estranho paradoxo, porque não se pode blefar com o Direito, portanto, trata-se, aqui, de pensar algo que só pode ser conquistado, por exemplo, com regras de um jogo de pôquer. Mesmo porque seria insensatez tratar estas regras como proposições hermenêuticas ou como paradigmas epistemológicos ou como filosofia moral, apesar de todas as profundidades receberem a espessura de uma carta de baralho e suscetível de serem embaralhadas e depois cartadas nas mãos dos jogadores previamente posicionados... Trata-se de um jogo e de jogadores? Não aqui! Mas é assim que, jogando, Foucault, por exemplo, como exímio jogador (criando, inclusive, regras do jogo), inicia a primeira de suas cinco conferências no Brasil, na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro entre 21 e 25 de maio de 1973, denominadas "A verdade e as formas jurídicas": "O que gostaria de dizer-lhes nestas conferências são coisas possivelmente inexatas, falsas, errôneas, que apresentarei a título de hipótese de trabalho; hipótese de trabalho para um trabalho futuro. Pediria, para tanto, sua indulgência e, mais do que isso, sua maldade" (FOUCAULT, 1999). Ok! É com maldade que digo: as conferências de Foucault, vindo a lume, se revelam inexatas demais, falsas demais, errôneas demais. E sem indulgência, as tarefas deixadas para o futuro árduas demais, e nem sei se valem à pena... Questão de temperamento: não me dobro ao rigor mortis da filosofia, não privilegio velórios, não creio que com minha sexualidade possa "ir para o céu" e tampouco penso que alguém tenha o paraíso terrestre no ânus e faça disso seu curso ontológico. Mas isso já é outra conversa, não cabe aqui. Em outras palavras, o conhecimento constitui e, pior ainda se constitui, como "uma fatalidade e uma espécie de maldição já reconhecida no Gênese ("Não provarás da árvore da Ciência")" (ROSSET,1989), que nos perturba na aurora e no crepúsculo, e é preciso não se importar em sofrer (a gente sempre erra) no interregno de algum tempo. Drama comum de mestres e discípulos, já que é preciso não permanecer discípulo. É que pensar não é um instinto natural, e por isso geralmente aparece como que sem necessidade e repleto de censuras e exclusões injustas e visíveis na superfície quando o fundamento fica ou é obnubilado por uma escrita, leitura, escuta ou surdez ideológica. Daí todas as aporias insolúveis, por exemplo, do conceito histórico e institucionalmente constrangedor de liberdade etc. Sempre! Razão pela qual, por exemplo, a liberdade de pensamento etc. só pode ser liberdade se dada a quem pensa radicalmente diferente, e por isso será sempre de resultado crítico, difícil, cruel, implacável, doloroso, inaceitável... E etc. porque todo conceito (Hegel) é como uma sentença de expulsão do paraíso, portanto, quanto maior o conhecimento maior é a dor e o sofrimento, como já o disse Schopenhauer. Conseqüentemente, como observou Bertrand Russel, "elegância e bom gosto são predicados para alfaiates e sapateiros", para o pensador são impróprias e mesmo inúteis. Dizer data venia não é sinal de polidez, educação, boa retórica, mas cinismo ou ironia. Ninguém sofre com elegância ou bom gosto. Por elegância talvez, alguns, (estética da existência?), mas por bom gosto, nunca, ninguém (ética da existência?). E Ernesto Sábato, recentemente falecido, disse: "Desejo ser seco e não enfeitar nada. Uma teoria deve ser implacável e volta-se contra seu criador se este não trata a si mesmo com crueldade" (SÁBATO, 1981), portanto, nem elegância, nem bom gosto, mas exigências da verdade (filosófica, histórica, científica, literária, jurídica etc.), e apenas isso, e, contra ela, a crença, a censura, a rejeição, a interdição, enfim, todos e mais uma vez os procedimentos de exclusão e opressão! Afinal diria Popper: "Nossa ignorância é sóbria e ilimitada", ou seja, sob ou sobre ela impõe-se um estranho dever ser ou um grande labor. Contra ela a exigência dos trabalhos científicos, e, com ela gestos e pedidos remanescentes de uma vida fascista. Um horror! É que poucos possuem o talhe humano necessários para a compreensão. Isso é muito triste! Falência das instituições e do processo educativo! Sem dúvida! Vazio de pensamento? (Arendt). Geralmente sim, infelizmente! Mas, de qualquer forma, ou talvez até por isso mesmo, como dizia Roland Barthes, "nós fazemos, nós continuamos sempre o mesmo discurso, é preciso muita paciência daqueles que nos cercam para suportar, de nossa parte, esse discurso imperturbável que é o nosso durante a vida" (BARTHES, 2003).


SABER DIZER UM SIM, SABER DIZER UM NÃO?

Nas palavras de Goethe, em "As afinidades eletivas", através de Edward, um dos personagens: "Devemos ficar sempre calados em sociedade para não incorrer, às vezes, no mesmo caso, pois não somente as observações significativas como também as opiniões mais triviais podem soar mal aos interesses das pessoas presentes" (GOETHE, 1992). Em outras palavras, ou, nas palavras de Foucault, em "A ordem do discurso": "Sabe-se que não se tem o direito de dizer tudo, que não se pode falar de tudo em qualquer circunstância, que qualquer um, enfim, não pode falar de qualquer coisa. Tabu do objeto, ritual da circunstância, direito privilegiado ou exclusivo do sujeito que fala..." (FOUCAULT, 2001). E a verdade? O que importa a verdade quando o charme de um "intelectual" está em engajar-se no prazer de "enfrentar o mundo todo, a família, o padre, o professor Ministro do Supremo Tribunal Federal", o policial, o professor, o Estado etc., esfacelar a tradição, enfraquecer a autoridade, quebrar tudo, liberar geral em nome do direito à felicidade, em nome do desejo, do gozo etc.? A motivação selvagem segue os argumentos mais pífios, e as motivações mais banais. Vide, por exemplo, a recente invasão da Reitoria da USP por estudantes. E basta a violência! Fato irrelevante é claro, mas denúncia que parece existir a crença que a violência em si e para si é parteira da história, logo que, em si e para si ela resolve tudo e qualquer coisa... Coisa louca! Mas que história? Guia-nos, portanto, uma angústia: não é mais necessário inequivocamente saber a que dizer "Sim" ou a que dizer "Não"? Talvez sim! Talvez não! Difícil saber. Mas, inegavelmente, por exemplo, diz Hanna Arendt, o esfacelamento da tradição ao aprofundar a lacuna atualmente existente entre o passado e o futuro, implicou (ou implica) "a perda de sabedoria, isto é, para falar como Karl W. Deutsch, na dificuldade de discernir, num contexto, as classes de perguntas que devem ser feitas" (ARENDT, 1977), e as respostas que deveriam ser dadas assumem o caráter de simulacro. Com efeito, parece não ser mais preciso saber inequivocamente a que dizer "Sim", a que dizer "Não"; tudo e qualquer coisa se tornam defensável em nome da "diferença", do "pluralismo", do "multicultural", da "ação afirmativa" etc. A resposta pode ser dada a gosto (Kant)... Tudo dependendo do que se gosta de comer ou de cheirar. De onde se coloca o céu: o céu na boca, o céu no ânus... Ou mesmo o céu no crime. O negócio é a lei do menos esforço... Estamos no paraíso da "estupidez"? O grande lance é ceder-se "as ilusões dos apaixonados pelo gozo orgásmico" (ROUDINESCO, 2008) ou pelo gozo lúbrico? Impõe-se a cada dia na esfera da sexualidade humana (como caso mais particular) o reinado do "ridículo" e do "tirânico" em nome da artistificação em simulacro da vida, humor, criação, paródia como remédio aos afetos tristes? É de se temer! Mesmo porque, como observa Roudinesco, "o sistema democrático, fundado no individualismo, na livre iniciativa e no mercantilismo, não estava (e não está) imune, a despeito de sua evidente superioridade, a inversão da Lei que não raro o levava (e ainda o leva) a aberrações contrárias a seus próprios princípios" (Cf. ROUDINESCO, 2008). Neste sentido, por exemplo, o rap Mano Brown, ao despejar um caminhão de palavras lixo em entrevista a revista FORUM, eivadas de clichês de algum "manual da oposição via rap", são lapidares: "Ajo como preto deveria agir. Digo "não" pras coisas que todo mundo acha que eu deveria dizer sim. Não precisamos disso" (ROVAI, 2011). Que bobagem! Como preto deveria agir? Não precisamos, quem? Não precisamos de que? Todos deveriam como o Mano Brow aderir ao rap made USA, ruminar o ressentimento racista do Norte no Sul e torná-lo fundamento de suas posições ideológicas? Sem cor, sem pobreza, o que é o racismo? Não vale para todos os racismos o que Jean-Paul Sartre disse em relação ao anti-semita: "escolhe o irremediável por medo da liberdade, a mediocridade por medo da solidão e, por orgulho, faz desta mediocridade irremediável uma aristocracia estratificada" (SARTRE, 1968). Existe uma maneira de preto agir oposta a de branco agir? Podemos dizer que branco é racista, e que preto não é racista? Preto é afro-descendente, não é também euro-descendente etc.? Pressupondo que a África toda seja preta (e não apenas negra), não há racismo na África? Basta ser preto para identificar-se africano, ou africano é quem nasce na África e vive nela e necessariamente não precisa ser preto ou negro? Um africano euro-descendente, branco, não é africano? Que homem ou mulher não tem sua origem mais longínqua na África? Em outras palavras, quem não é afro-descendente? Complexo de bastardia não pode definir uma identidade artificial e impelir a ação violenta de afirmação? Que homem, "branco" ou "preto", não é pobre? Ora, a manchete da entrevista-reportagem de Mano Brown estampa na página 6: "As palavras cortantes do Mano", e não "As palavras ignorantes de Mano". Por quê? São palavras de "luxo" ou do "lixo"? Ao ler a entrevista do Mano veio-me a lembrança, talvez imprecisamente, a metáfora do luxo do lixo desenvolvida por Joãozinho Trinta, da Escola Beija-Flor, como tema do enredo carnavalesco: "O lixo é um luxo" ou "o luxo é um lixo", sei lá! Talvez, de determinada perspectiva, a ordem dos fatores não altere o produto. São suplementares: "luxo" que gera lixo, "lixo" que gera luxo... A que dizer "não"? Ao luxo? Não diga isso para o filósofo francês Giles Lipovetsky. Ao lixo? Não diga isso para o carnavalesco Joãozinho Trinta. Mas, se se diz não a "vida", a "igualdade", a "liberdade", a "dignidade da pessoa humana", a "não violência", ou seja, "pras coisas que todo mundo acha que devo dizer sim", como disse o asno Mano Brown, em nome de que recusar o "direito" à eutanásia, a pena de morte, o racismo, ao livre comércio da droga ou dos órgãos etc.? No entanto o discurso do Mano Brown funciona. É um discurso de muita abertura (uma multiplicidade o atravessa ad infinitum e o faz minado de contradições) e sua eficácia é notável. Um discurso muito conveniente, para os arautos da opinião dominante que celebram a liberdade indeterminada e uma nova moral, uma moral hedonista. Como o asno Mano Brown eles também dizem, como muito bem anotou Phillipe Béneton, em seu ensaio "A nova roupagem do maligno", que:

- Seja autônomo, despreze os preconceitos, pense por si mesmo, satisfaça seus desejos, sua escolha vale como as outras, nós somos inocentes, viva a liberdade sem limites;

- Seja democrata, pratique a tolerância, os racistas, os sexistas, os "homófobos" são desprezíveis, é preciso ser de seu tempo, ame a humanidade, celebre a modernidade;

- Pense primeiro em si, rejeite as velhas morais puritanas do dom, da honra, do dever, cultive os prazeres do corpo, festeje à vontade.

Tudo isso, conclui Béneton: "é muito incoerente. Se todas as escolhas valem, a do racista e do canibal possuem o mesmo diapasão. Se sou absolutamente livre, sou também para não ser moderno ou democrata. Se sou sádico, devo ir até o final para saciar meus desejos? Se nenhum valor é imposto, em nome de que recusar a pureza ou o dever? Mas a retórica é poderosa, ela tende a mudar as máximas que governam os homens. Em nome de uma igual liberdade, ela tende a impor uma nova moral, centrada sobre o Eu e nas satisfações do homem físico. Vocês são os mestres, diz o discurso dominante, libertem-se e regressem à animalidade. O homem soberano está convidado a se tornar o último homem" (BÉNETON, 2002). O fato é que as pessoas como Mano não sabem o que estão dizendo, e não se importam em não saber. São ególatras ressentidos. Narcisistas com complexo de bastardia. Paranóicos angustiados e ocos... Apenas tagarelam, e o importante é tagarelar. E o Rap é pura e simplesmente tagarelice em nome da arte (já que tudo é arte, não há mais arte), e a sua simbologia social é o papagaio e tecnologicamente é o "celular" (sacando isso Mano diz recusá-lo), e sua "filosofia" (mesmo que não tenha ciência dela), parafraseando Deleuze-Guattari em "Mil platôs", são as "hecceidades"(quer dizer, individuações sem sujeito); seus "platôs" (quer dizer, as zonas de intensidade contínua onde se movimenta) são a miséria, a favela e o crime; seus "rizomas" (por oposição ao modelo da árvore) a África inexistente, logo, "o preto"; seus elementos são "singularidades" alienadas e sinistras, e suas "relações" devires, simulacros e buracos negros, quer dizer, a experimentação imediata que fazem de si mesmos é o caos político que Alexandre Youssef, articulista da revista TRIP (de 12 de maio de 2011), membro do Partido Verde, advoga, e, que, o jornalista José Arbex Jr. critica e, em artigo publicado em Caros Amigos, (nº 172/ 2011), chama de "fantástico liquidificador das ideologias" (que nada mais é, digo, do que os "agenciamentos" de Deleuze-Guattari). A saber, diz Youssef: "Imaginem um liquidificador em que se possa colocar as ramificações da esquerda, com estratégias e lógicas de mercado das agências de publicidade, misturando o rock, rap, artes visuais, teatro, um bando de sonhadores e outro de pragmáticos, o artista, o produtor, o empresário e o público. Tudo junto e misturado. O caldo dessa batida é uma nova tecnologia de participação e engajamento que funciona de forma exemplar para a circulação e produção musical, mas que, acima de tudo, é um projeto de formação política. O Fora do Eixo (abreviadamente, FDE, – É uma próspera empresa de gestão cultural que agrega 57 coletivos em todo pais, com capacidade de realizar 5 mil shows em 112 cidades), cria, portanto, uma geração que se utiliza sem a menor preocupação ideológica de aspectos positivos da organização dos movimentos de esquerda e de ações de marketing típicas dos liberais. É, como disse o teórico da contracultura Claúdio Prado, a construção da geração pós-rancor, que não fica presa à questões filosóficas e mergulha radicalmente na utilização da cultura digital para fazer o que tem que ser feito" (YOUSSEF apud ARBEX JR., 2011). Que dizer? Talvez que, ao contrário do Mano, Youssef e Cia não diz não para tudo... Reconhece que algumas coisas são importantes. Mas o problema talvez seja que diz sim a tudo... Mano ao avesso!

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ONDE PODEMOS NOS SITUAR?

Estamos já no paraíso da estupidez humana? Tomara que não! Se sim Nietzsche tem razão: "(...): as verdades são ilusões, das quais se esqueceu que o são, metáforas que se tornaram gastas e sem força sensível, moedas que perderam sua efígie e agora só entram em consideração como metal, não mais como moedas" (NIETZSCHE, 1978). E o paraíso (tanto quanto o inferno) é a não reflexão, e tudo se reduz a questionamentos e ações vazias de pensamentos! Se não, se há algo no que se denomina humano que não pode ser negado por nenhum pensamento ou por nenhuma ação política totalitária (eis o grande ensinamento de Auschwitz), e é preciso fazer saber pensar e pensar efetivamente a verdade humana, e a dignidade da verdade humana etc. Pascal não dizia como muito bem lembrou Todorov, "que toda dignidade do homem consiste no pensamento"? (TODOROV, 1995). E Hannah Arendt, ao perguntar "o que o pensamento faz?", responde: ele descobre ou cria "significado" e o significado a dignidade do homem etc. E ao rastrear o conceito, ela começa com Platão, e vê como ele a atividade do pensamento no diálogo silencioso que cada um mantém consigo mesmo diante do mal, da morte, do medo, de seus atos cotidianos, da culpa diante de um erro etc. e que serve para abrir os olhos do espírito e fazê-lo desenvolver-se, e que pode tornar-se "dialético e crítico" justamente porque consiste nesse diálogo rápido e silencioso de perguntas e respostas consigo mesmo ou diálogos entre "amigos", cuja única regra é a "regra de coerência", a exigência de que o pensador não seja contraditório, inconseqüente, desonesto. Razão pela qual, para Heidegger, todo pensamento é "pensar pensando o pensamento de..." Neste sentido, de fato à direita que não tinha um discurso e se "limitava a defender-se do marxismo" etc., como observou Simone de Beauvoir, é verdade, mas assim pensava o pensamento de Darwin, Marx, Freud, Gramsci etc., e, agora, (graças ao seu labor sistemático e persistente de seus pensadores com o pensamento que lhe era alheio e opositor), com Foucault, com Deleuze et alii, finalmente possuem um discurso sofisticado, competente, sedutor, e tornou-se arrogante, não pensa mais, (para que? Foucault já anunciou que "o século XXI será deleuziano") e se dedica exclusiva e cegamente ao duplo marketing: das idéias de seus pensadores de última hora e o de suas mercadorias. Na onda deste discurso pluralista, multiculturalista, nômade e extremamente sedutor da direita no século XXI surfam, mesmo sem o saber, sem o querer, os Manos da vida e todos os Fora e a maior parte dos dentro do Eixo. Os interpretes, discípulos de todas as horas e todos os "filósofos do desejo", apenas oferecem mais uma volta no parafuso quebrando a nossa cabeça presa no torno capitalista ultraliberal. O fato é que Foucault, Deleuze, et alii., consolidam filosoficamente o capitalismo, contrariando paradoxalmente seus desejos críticos (digamos, en passant, diagnóstico correto, prognóstico errado, prescrição legível e tratamento inadequado), mas que, Foucault e Deleuze et alii, insinuando-se sub-repticiamente no discurso liberal, não como de quem parte do discurso, mas como quem são, "antes, ao acaso de seu desenrolar, uma estreita lacuna, o ponto de seu desaparecimento possível" (FOUCAULT, 2001), acabam dando o seu acabamento necessário, e, assim, fundamentam filosoficamente o ultraliberalismo, e, como dizem os franceses, colocam a cereja no bolo, ou seja, eles, com riso irônico nos lábios, vêm nos dizer "com uma voz sem nome" (Foucault) que os precediam há muito tempo, nas palavras de Lebrun, "que não há necessidade de regular alguma coisa, que a mão invisível vai regular as coisas, sozinha". No campo jurídico, três hurras a jurisprudência! Hurra! Hurra! Hurra! Velha conversa de personagens muito diferentes! Ou, nas palavras de Baudrillard: "(...), em algum lugar, tudo isso está desde já ultrapassado, e que Foucault só pode estabelecer um quadro tão admirável porque opera no acaso de uma época (talvez a "era clássica", da qual ele seria o último grande dinossauro) que está definitivamente em derrocada" (BAUDRILLARD, 1984). Um quadro em que o perverso morreu, logo, ninguém é perverso; e quem insistir em esclarecer a perversão, apontar o perverso, é chamado de defensor de uma vida fascista. Como conseqüência, esclarece Roudinesco: "Se ninguém é perverso, uma vez que a palavra morreu, qualquer pessoa é então suscetível de sê-lo, por menos que seja suspeita de ter sido intensamente obsedada, em diversas ocasiões, por fantasias sadomasoquistas, fetichistas, criminosas etc." (ROUDINESCO, 2008). E a formulação do problema da necessidade do pensamento, o pensar, se coloca imediatamente, com uma urgência inesperada contra todos que pressupõem o "fim da história", ou, ao contrário, de forma bizarra anunciam que tudo que não pertence ou se opõe a "cultura homossexual" é fascista, e, conseqüentemente, dela (da urgência) nos vêm à longa reflexão feita por Hannah Arendt sobre o mal no quadro político contemporâneo [de nosso "Breve" (HOBSBAWN, 1995), ou "Longo" (ARRIGHI, 1996) século XX], que se inicia (com data de edição brasileira) em "Origens do totalitarismo" (1990), passa por "Eichmann em Jerusalém; um relato sobre a banalidade do mal" (1983) para chegar, finalmente, em "A vida do espírito" (1991) e concluir em "Responsabilidade e julgamento" (2004) em que todas as questões morais que guiam o pensamento de Hannah Arendt recebem sua formulação mais cristalina. Não existe o perverso, logo, não existe o que pensar sobre ele? Em outras palavras, o problema do bem e do mal não se coloca mais? (...) Então, diz-nos Arendet: "Será possível que o problema do bem e do mal, o problema de nossa faculdade para distinguir o que é certo do que é errado, esteja conectado com nossa faculdade de pensar? Seria possível que a atividades do pensamento como tal – o hábito de examinar o que quer que aconteça ou chame a atenção independentemente de resultados e conteúdo específico – estivessem dentro das condições que levam os homens a se absterem de fazer o mal, ou mesmo que ela os "condicione" contra ele?" (ARENDT, 1971). O problema, portanto, consiste em saber o que é a Faculdade de Pensar. No nosso caso, como ela se conecta e se interliga com a possibilidade ou impossibilidade de pensar os "Fundamentos" da República (Art. 1º da CF/1988) diante da necessidade de distinguir o bem do mal, o que é certo do que é errado?

Sobre a autora
Walter Aguiar Valadão

Professor universitário. Bacharel em História (UFES). Pós-Graduado "lato sensu" em Direito Público (UFES). Mestre em Direito Internacional pela UDE (Montevidéu, Uruguai). Editor dos Cadernos de Direito Processual do PPGD/UFES.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VALADÃO, Walter Aguiar. A desordem do discurso jurídico.: Reflexões intempestivas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3126, 22 jan. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20902. Acesso em: 22 dez. 2024.

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