RESUMO: Inicia com o estudo acerca da natureza jurídica dos recursos e a sua sujeição a um juízo de admissibilidade prévio ao juízo de mérito, passando à análise dos pressupostos de admissibilidade comuns a todos os recursos. Examina a origem do recurso especial constitucional, suas características, o procedimento relacionado ao exame de sua admissibilidade e cada um de seus pressupostos específicos. Em seguida, analisa como os tribunais vêm realizando o mencionado juízo e cita casos de inadmissão do recurso especial constitucional que exibem interpretações controvertidas acerca dos requisitos de admissibilidade. O estudo traça considerações, com base em entendimentos doutrinários e jurisprudenciais, sobre a equivocada maneira como os tribunais vêm criando obstáculos processuais ilegítimos, mediante a interpretação formalista e restritiva dos requisitos de admissibilidade, com o único propósito de encerrar processos, sem a preocupação com a efetiva prestação jurisdicional. Aborda a violação ao direito de acesso à justiça causada pelo excesso de formalismo, direito este que não pode ser visto tão somente como a possibilidade de a parte mover a ação judicial e ter acesso ao Poder Judiciário, mas deve proporcionar aos litigantes o justo resultado na solução do conflito posto em julgamento.
Palavras-chave: Juízo de admissibilidade. Recurso especial. Requisitos. Obstáculos processuais. Acesso à justica.
INTRODUÇÃO
Sabe-se que o recurso, haja vista a sua natureza de ato postulatório, deve atender a determinados requisitos para que possa ser admitido e apreciado em seu mérito. No que concerne ao recurso especial, que possui caráter excepcional, exige-se para a sua admissão, além dos requisitos genéricos exigidos para a interposição de qualquer modalidade recursal, requisitos específicos, os quais demandam uma maior cautela por parte do advogado quando do seu manejo.
Ocorre que é cada vez maior o número de recursos especiais que não chegam ao Superior Tribunal de Justiça por terem o seu seguimento obstado já na origem e outros que, apesar de chegarem à instância especial, não ultrapassam a barreira da cognição.
Quando da análise destas decisões de inadmissão, percebe-se que, muitas vezes, a causa para o não conhecimento do recurso especial é a leitura restritiva de seus requisitos de admissibilidade e a supervalorização das formalidades processuais, em notório prejuízo à apreciação do mérito das demandas.
Sob o argumento – que não deixa de ser verdadeiro - de que o Superior Tribunal de Justiça encontra-se atribulado com a quantidade de processos, vêem-se, com frequência, julgamentos que demonstram a simples busca pelo encerramento dos processos a qualquer custo, em detrimento dos princípios constitucionais, principalmente da garantia do acesso à justiça.
Sabe-se que é imperiosa a observância dos requisitos de admissibilidade e das formalidades processuais no trâmite de qualquer modalidade recursal, haja vista que estas asseguram a segurança jurídica dos jurisdicionados, ainda mais no caso do recurso especial, que necessita de regras específicas para que tenha respeitada a sua excepcionalidade e a sua finalidade precípua de ser o intérprete final do direito federal.
Ocorre que essa necessária “filtragem” não pode ser alcançada por vias impróprias, mediante a consideração de filigranas processuais – algumas impostas ao arrepio da lei – em detrimento do direito material em discussão; bem como não podem os requisitos de admissibilidade do recurso especial e as formalidades a ele inerentes serem utilizados com o fim maior e principal de eliminação de processos.
Nesse contexto, o presente trabalho tem como objetivo examinar a prática dos tribunais locais e do Superior Tribunal de Justiça que, utilizando-se do apego formal excessivo e da leitura restritiva dos requisitos de admissibilidade do recurso especial, deixam de conhecer dos recursos, consolidando uma prática que visa à mera diminuição do volume de processos que chega à instância especial.
Será realizado um estudo que, no primeiro capítulo, partirá do exame da natureza jurídica do recurso e da justificativa para a existência de um juízo de admissibilidade prévio ao juízo de mérito, passando à análise dos pressupostos de admissibilidade comuns a todos os recursos.
No segundo capítulo, será abordado o recurso especial, sua origem histórica, suas características, a forma de realização da cognição de sua admissibilidade e o exame de cada um de seus pressupostos específicos. Compreender o recurso especial, sua natureza e seus pressupostos de admissibilidade, é tarefa imprescindível ao entendimento acerca da maneira correta de realização do seu juízo de admissibilidade.
Por fim, no terceiro e último capítulo, será analisada a forma pela qual os tribunais vêm realizando o mencionado juízo e interpretando os requisitos de admissibilidade, com a exibição das posições doutrinárias e jurisprudenciais existentes sobre a matéria. Serão mencionadas algumas situações comuns de inadmissão do recurso especial que exibem interpretações controvertidas acerca dos requisitos de admissibilidade, em particular no que se refere à exigência da demonstração da efetiva violação à lei federal, ao exame de matéria fática na instância especial, à necessidade do prequestionamento e às questões referentes à exigência do preparo.
Sem a pretensão de esgotar o tema, haja vista que poderiam ser citadas diversas outras situações que demonstram a referida prática dos tribunais, bem como diversos outros direitos fundamentais do recorrente que também são violados com tal prática, busca-se com este trabalho fazer considerações, com base em entendimentos doutrinários e jurisprudenciais pertinentes à matéria, acerca da indevida interpretação que tem sido dada aos requisitos de admissibilidade nos casos mencionados e a flagrante ofensa à garantia do acesso à justiça encontrada nesses julgamentos.
2 O RECURSO E SUA ADMISSIBILIDADE
2.1 A natureza jurídica dos recursos
O conceito de recurso mais utilizado pela doutrina foi proposto por Moreira (1998, p. 207), que afirmou ser aquele “o remédio voluntário idôneo a ensejar, dentro do mesmo processo, a reforma, a invalidação, o esclarecimento ou a integração da decisão judicial que se impugna”.
Desta definição é possível extrair diversas características essenciais ao recurso, dentre elas o fato de que a sua interposição não dá origem a uma nova relação processual, inserindo-se no bojo da mesma relação jurídica onde foi proferida a decisão impugnada.
Embora exista divergência quanto à sua natureza jurídica, no que se refere a sua consideração como prolongamento de uma ação ou uma ação autônoma, a maior parte dos doutrinadores defende ser o recurso a continuação do direito de ação já exercido[1]. Jorge (2010, p. 26) afirma que o autor de um processo judicial, ao interpor um recurso, estará “renovando o seu pedido de tutela jurisdicional anteriormente veiculado por meio da demanda”.
Seguindo a mesma linha de entendimento, Câmara (2009) observa que mesmo quando da interposição de um agravo de instrumento, modalidade recursal que é interposta em autos apartados, o que se tem é um desdobramento do procedimento, mas não o aparecimento de um novo processo.
Independentemente da tese adotada, conclui-se que o recurso, por sua qualidade de ato postulatório, necessita atender a certas exigências, para que possa ser admitido e ter o seu fundamento apreciado.
O direito de recorrer se converteria em abuso se tivesse o poder de exigir do Estado a realização de atos processuais destinados à revisão de uma sentença de mérito ainda quando, desde logo, se pudesse prever a carência daquele direito ou a ilegitimidade do seu exercício. Por isso, o direito de recorrer, assim como o direito de ação, se subordina a certas condições, cuja falta torna quem o exercita carecedor dele, dispensando o órgão jurisdicional de apreciar a sua pretensão.
2.2 A sujeição dos recursos ao duplo exame: juízo de admissibilidade x juízo de mérito
O exame dos recursos no sistema processual brasileiro é desdobrado, ou seja, é realizado em duas frentes: uma referente à admissibilidade e outra ao julgamento do conteúdo da impugnação.
Para que sejam processados no tribunal competente para o seu julgamento, os recursos devem atender, portanto, aos denominados requisitos de admissibilidade, os quais são questões preliminares ao exame do próprio pedido e somente se e depois de constatado o preenchimento destes requisitos se passará à análise do conteúdo da impugnação judicial, denominado mérito.
Assis (2011, p. 120), ressaltando o fato de que todo recurso prolonga indefinidamente o processo, afirma que “é natural que, para legitimar a atividade adicional subsequente à interposição, a lei imponha uma série de requisitos específicos”.
Autorizada doutrina compara os referidos requisitos de admissibilidade às condições da ação exigidas para que uma demanda possa ser admitida em juízo.
Jorge (2009, p. 62) defende esta analogia e paralelismo, mas ressalva que “na ação os requisitos são verificados em relação a fatos exteriores e anteriores ao processo e nos recursos os requisitos de admissibilidade são aferidos tendo em vista o próprio processo já existente.”
Mancuso (2010, p. 111), igualmente, sustenta a correlação entre as condições da ação e os pressupostos recursais, ao afirmar que:
Ao interesse de agir corresponde o de recorrer, à legitimidade para propor a ação corresponde a subjetivação, no vencido, do poder de interpor o recurso; à possibilidade jurídica do pedido corresponde a adequação do recurso ao modelo legal previsto na espécie.
Câmara (2008) classifica os requisitos de admissibilidade recursal em “condições do recurso” e pressupostos recursais. Os primeiros, equivalentes às condições da ação, seriam a legitimidade para recorrer, o interesse de recorrer e a possibilidade jurídica do recurso. Os últimos consistiriam na análise do órgão ad quem (para o qual é dirigido o recurso) investido de jurisdição, da capacidade das partes para recorrer e da regularidade formal do recurso[2].
A semelhança entre as condições da ação e os requisitos de admissibilidade do recurso é notável, ainda, no fato de ambos consistirem em questões prévias ao julgamento e serem questões de ordem pública, ou seja, podem ser conhecidas de ofício, a qualquer momento, independentemente de alegação das partes.
Didier (2010) identifica o juízo de admissibilidade como sendo um juízo sobre a validade do procedimento, operando-se no plano da validade dos atos jurídicos complexos. Outros autores acreditam que a admissibilidade atua no plano da própria existência do recurso. De uma forma ou de outra, o juízo de admissibilidade condiciona o julgamento do mérito recursal, podendo impedir que seja ele apreciado.
O juízo de admissibilidade pode ser positivo ou negativo e as expressões utilizadas para esses dois resultados são, respectivamente, “conhecimento” e “não conhecimento”.
O não conhecimento de um recurso equivale à declaração de que o mesmo é inadmissível, o que segundo Moreira (1968 apud JORGE, 2009, p. 65) “é julgar que não concorrem os requisitos necessários do legítimo exercício da atividade judicante, no funcionamento suplementar pleiteado pelo recorrente”.
Em sendo a inadmissibilidade, conforme anota Didier (2010), uma decisão que obsta o prosseguimento da atuação do magistrado, impedindo que seja examinado o mérito do ato postulatório e o prosseguimento da marcha processual, esta decisão, consequentemente, deve ser fundamentada, ou seja, devem ser explicitados os motivos pelos quais se entendeu não estarem presentes os pressupostos de admissibilidade recursal, conforme estabelece a regra prevista no texto constitucional acerca das decisões do Poder Judiciário:
Art. 93. Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observados os seguintes princípios:
IX - todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação. (BRASIL, 1988)
No que concerne ao juízo positivo de admissibilidade, segundo a doutrina majoritária, a fundamentação não teria consequência prática, já que não cabe recurso contra a decisão proferida pelo juízo a quo que admite o recurso, pelo simples fato de que a parte contrária poderá, em suas contrarrazões, antes de ser proferida a decisão quanto à admissibilidade, expor os motivos pelos quais sustenta o não conhecimento do recurso. Ademais, mesmo sem provocação da parte, o órgão ad quem tem o poder de apreciar todos os requisitos em novo juízo de admissibilidade, não havendo que se falar em preclusão, por serem considerados matérias de ordem pública.
Moreira (1968) defende que a admissão do recurso é o desenvolvimento normal do Processo que percorre o itinerário previsto sem se deparar com obstáculos. No entanto, nos casos em que existe previsão expressa no tocante à fundamentação da admissibilidade do recurso, esta deverá ser explícita, como é o caso dos recursos excepcionais (especial e extraordinário), que exigem a referida fundamentação mesmo em caso positivo, prevista no art. 542, §1.º, do Código de Processo Civil (BRASIL, 1973).
Art. 542. Recebida a petição pela secretaria do tribunal, será intimado o recorrido, abrindo-se-lhe vista, para apresentar contra-razões.
§ 1º Findo esse prazo, serão os autos conclusos para admissão ou não do recurso, no prazo de 15 (quinze) dias, em decisão fundamentada
Por outro lado, o juízo de admissibilidade dos recursos na legislação processual brasileira também é realizado em duplo exame, isto porque, em regra, o recurso é interposto perante o órgão que proferiu a decisão (a quo), que realizará a primeira verificação do atendimento aos requisitos de admissibilidade e decidirá pelo seu conhecimento ou não.[3]
A apelação, por exemplo, é interposta perante o juiz de primeiro grau e depois remetida ao tribunal competente, já o recurso especial é interposto perante o tribunal local e posteriormente remetido ao Superior Tribunal de Justiça. Nos dois casos a remessa somente é possível após o juízo positivo de admissibilidade.
Este primeiro juízo realizado pelo órgão prolator da decisão recorrida, entretanto, não é definitivo, pois, se negativo, o recorrente terá sempre a possibilidade de dirigir recurso, na modalidade de agravo, ao órgão competente ad quem, haja vista que a este cabe proferir decisão definitiva acerca da admissibilidade da impugnação, para que só então seja apreciado o seu fundamento. O juízo positivo realizado na origem não vincula o órgão ad quem, que poderá, quando da realização de seu juízo, apreciar livremente os requisitos.
Para Nery Jr. (1997, p. 222), “a razão jurídica que possibilita ao juízo a quo fazer o exame da admissibilidade do recurso decorre do princípio da economia processual”, ou seja, seria uma forma de impedir que recursos manifestamente inadmissíveis fossem remetidos ao órgão ad quem e, tardiamente, fossem declarados insuscetíveis de conhecimento.
Conforme aduz Moreira (1968, p. 114) “se o recurso reveste-se de características que tornam manifestamente inviável o exame da decisão é necessário que se corte da raiz a pretendida extensão do processo”.
O juízo de admissibilidade realizado no órgão ad quem, este sim, possui caráter de definitividade, já que, em sendo negativo, encerra o processo sem que o mérito tenha sido apreciado, ou seja, sem que nada seja decidido acerca do direito do recorrente.
Caso seja constatada, no órgão ad quem, a presença de todos os requisitos indispensáveis ao seu conhecimento, o recurso será então recebido para a apreciação dos fundamentos e razões do recorrente, quando só então poderá ser modificada ou mantida a decisão vergastada.
O juízo positivo de admissibilidade, entretanto, não influencia nem vincula o julgamento do mérito desse recurso, tornando apenas possível a sua apreciação.
Moreira (1997), ao tratar da distinção entre os juízos de admissibilidade e de mérito, afirma que ao primeiro deles corresponde à verificação da possibilidade de se dar atenção ao que o recorrente pleiteia, seja para acolher, seja para rejeitar a impugnação feita à decisão contra a qual se recorre. Ao outro, cuida-se de averiguar se a impugnação merece ser acolhida, caso o recorrente tenha razão, ou rejeitada, caso não a tenha.
Enquanto o juízo de admissibilidade é realizado em duas oportunidades, no juízo a quo e no juízo ad quem[4], o juízo de mérito só pode ser realizado no juízo ad quem, sob pena de usurpação de competência.
Assis (2011, p 130), apoiando-se nas idéias de Moreira, observa a inviabilidade do julgamento do mérito recursal pelo mesmo órgão que proferiu a decisão, haja vista que o curto espaço de tempo decorrido entre a prolação do ato e a interposição do recurso não enseja clima propício à mudança do entendimento externado.
No exame de mérito, será analisada a matéria devolvida através da interposição do recurso, que é a própria pretensão recursal, e, empós decidido se assiste razão ao recorrente, será então reformado, anulado, ou integrado o provimento impugnado. Tal exame, entretanto, somente será possível após a admissibilidade do recurso, que é aferida através do atendimento aos pressupostos de admissibilidade recursal, que a seguir serão abordados.
2.3 Requisitos de Admissibilidade Genéricos
2.3.1 As várias classificações indicadas pela doutrina
Não obstante a certeza de que por ocasião do juízo de admissibilidade deve ser verificada a presença de requisitos que são necessários para o conhecimento e julgamento do mérito de toda e qualquer impugnação, denominados genéricos, a doutrina não é uníssona quanto à classificação desses requisitos, se baseando, basicamente, em dois critérios diferentes para a realização dessa tarefa.
A maior parte dos doutrinadores segue a divisão estabelecida por Moreira (1968), que os discrimina em requisitos intrínsecos e extrínsecos. Os primeiros seriam atinentes à própria existência do poder de recorrer, que seriam: o cabimento do recurso; a legitimidade para recorrer; o interesse em recorrer e a inexistência de fato impeditivo ou extintivo do poder de recorrer. Já os requisitos extrínsecos relacionar-se-iam ao exercício daquele poder: a tempestividade; a regularidade formal e o preparo.[5]
Entretanto, existe classificação que os divide em requisitos objetivos e subjetivos, que se referem ao recurso propriamente dito e à pessoa do recorrente, respectivamente. Os requisitos objetivos seriam a adequação, tempestividade, preparo e motivação. Os subjetivos consistiriam na legitimidade e no interesse para recorrer.
Apesar de ambas as classificações esquematizarem de forma satisfatória os requisitos de admissibilidade recursal, por ser considerada de compreensão mais fácil pela doutrina majoritária, neste estudo será adotada a divisão proposta por Moreira (1968), que os separa em requisitos intrínsecos e extrínsecos.
2.3.2 Requisitos intrínsecos
2.3.2.1 Cabimento
O requisito do cabimento está ligado a dois outros fatores: a recorribilidade e a adequação. São espécies de requisitos inerentes ao próprio cabimento.
A recorribilidade está presente quando o pronunciamento judicial que se deseja atacar é passível de recurso, o qual deverá está previsto em lei para determinado tipo de decisão.
O Código de Processo Civil (Brasil, 1973), em seu art. 496, prevê as espécies recursais: apelação, agravo, embargos infringentes, embargos de declaração, recurso ordinário, recurso especial, recurso extraordinário e embargos divergência. Cada uma das espécies é associada a um tipo de decisão: interlocutória, sentença ou acórdão.
Já o requisito da adequação exige que o recurso interposto contra determinada decisão seja o indicado pela lei para aquele tipo de decisão, o que se torna possível pelo fato de a legislação processual brasileira haver previsto os tipos de pronunciamentos judiciais e os recursos oponíveis contra cada um deles.
Isso porque no sistema processual civil brasileiro vige o princípio da singularidade dos recursos, também denominado de unirrecorribilidade ou princípio da unicidade, o qual, segundo Nery Jr. (1997), estabelece que para cada ato judicial recorrível existe um único recurso previsto no ordenamento, sendo vedada a interposição simultânea ou cumulativa de mais de um recurso visando a impugnação de um mesmo ato judicial. Excepcionalmente uma mesma decisão comportará mais de um recurso. É o que ocorre, por exemplo, com a possibilidade do manejo simultâneo do recurso especial e do recurso extraordinário, quando uma mesma decisão contrariar norma constitucional e norma de direito federal.
Ocorre que, ante a dificuldade, às vezes existente, em se identificar a natureza de determinada decisão, se interlocutória ou sentença, por exemplo, pode ocorrer de a parte utilizar-se de recurso inadequado, impedindo o seu conhecimento.
O princípio da fungibilidade veio a solucionar essa situação, na medida em que um recurso equivocado pode ser conhecido e julgado como se fosse o correto, desde que o recorrente não tenha agido de má-fé ou que não tenha havido erro grosseiro. É o princípio segundo o qual o processo não deve sacrificar o fim pela forma, ou seja, a parte não pode ser impedida de fazer valer a correta aplicação da lei pelo equívoco formal na interposição de um recurso.
Nesse caso, o juiz, tomando ciência da inadequação de uma impugnação recursal, verificando a existência de controvérsia sobre qual recurso deve-se propor naquele caso e constatando a boa-fé do recorrente, deve ordenar o seu processamento em conformidade com o rito do recurso cabível
A recorribilidade e a adequação, portanto, são os fatores essenciais para que o recurso seja considerado cabível. Terminologias diferentes, como a utilizada por Souza (2000), que prefere falar em taxatividade e singularidade, consistem apenas em maneiras distintas de se afirmar que o recurso só será cabível quando estiver previsto em lei e quando for ele o único meio adequado para combater a decisão geradora da irresignação.
2.3.2.2 Legitimidade
A lei processual atribui a determinadas pessoas a possibilidade de recorrer, tendo em vista a relevância que a decisão possa ter para elas e a possibilidade de seu interesse em recorrer.
Conforme o art. 499 do Código de Processo Civil (Brasil, 1973), são legitimados à interposição de recurso: as partes (autor e réu, incluídos os litisconsortes, intervenientes e assistentes), o terceiro prejudicado e o Ministério Público.
A parte, segundo Chiovenda (1998 apud JORGE, 2009, p. 104), “é aquela que demanda em seu próprio nome a atuação de uma vontade da lei, e aquele em face de quem essa atuação é demandada.”
O terceiro, apesar de não fazer parte da relação processual, pode sofrer prejuízos com o ato decisório proferido no litígio, mesmo não tendo atuado como parte da demanda, por possuir uma relação jurídica ligada àquela discutida em juízo. Havendo algum prejuízo a alguém que não foi parte na ação, que foi reflexamente atingido pela sentença que pretendeu solucionar o litígio, nada mais justo que este tenha o direito de recorrer daquela decisão.
Essa legitimidade tem como objetivo evitar que a eficácia de uma sentença prejudique o direito de outrem, estranho à causa e que não participou do contraditório, o que feriria os princípios informadores do processo previstos na Constituição Federal.
De acordo com Santos (1993, p. 94), “considera-se haver prejuízo do terceiro quando o ato decisório diretamente ou apenas por repercussão reflexa, necessária ou secundária, ofenda o direito deste.”
O terceiro, entretanto, tem o dever de demonstrar a conexão entre a relação jurídica sub judice e aquela da qual é titular de direito e deveres, conforme exige o art. 499 do Código de Processo Civil (Brasil, 1973):
Art. 499. O recurso pode ser interposto pela parte vencida, pelo terceiro prejudicado e pelo Ministério Público.§ 1º Cumpre ao terceiro demonstrar o nexo de interdependência entre o seu interesse de intervir e a relação jurídica submetida à apreciação judicial.
Em seu recurso, deverá discutir justamente a lide apreciada pela sentença, não sendo permitida a inovação. “No recurso de terceiro deve este, em princípio, defender o direito da outra parte, para assim indiretamente, lograr que seja defendido, mediatamente, direito seu.” (WAMBIER, 2006, p. 244)
O Ministério Público é legitimado para recorrer tanto na condição de parte como na de fiscal da lei. A circunstância de não ter oficiado antes no processo, segundo a doutrina, é irrelevante, podendo este intervir em qualquer fase do mesmo, recebendo-o no estado em que se encontra. A irresignação da parte também não retira a legitimidade do Ministério Público para recorrer, conforme estabelece a Súmula nº 99 do Superior Tribunal de Justiça: “O Ministério Público tem legitimidade para recorrer no processo em que atuou como fiscal da lei, ainda que não haja recurso da parte”.
2.3.2.3 Interesse
O interesse recursal está intimamente relacionado à existência para o recorrente de uma situação de desvantagem jurídica oriunda da decisão a ser recorrida. É essa situação que conduz o recorrente a buscar, através do recurso, que seja proferida uma decisão que lhe proporcione uma situação mais favorável.
Além da desvantagem, denominada por alguns autores de sucumbência[6], o recorrente deve demonstrar a necessidade e a utilidade do recurso.
A necessidade do recurso estará presente quando o recurso consistir no único meio de o autor lograr êxito em sua pretensão.
Nesse sentido, em artigo publicado acerca do juízo de admissibilidade dos recursos civis, observa Câmara (2002, p. 11):
[...] significa isto dizer que, havendo algum outro meio capaz de permitir ao recorrente alcançar o resultado prático que com o recurso se pretende obter, então o recurso não é necessário, dele não se podendo conhecer por falta de interesse em recorrer. Indispensável, pois, que em cada caso concreto se verifique quais seriam as conseqüências no caso de não se interpor o recurso.
Já a sua utilidade se demonstra quando o recurso é capaz de lhe proporcionar uma situação mais vantajosa, isto porque não é razoável que o recorrente interponha recurso que não seja capaz de, objetivamente, modificar para melhor a sua situação de sucumbência.
A conjugação do binômio necessidade-utilidade foi formulada por Moreira (1968) e acolhida pela doutrina pátria como fator indispensável à aferição do interesse recursal.
2.3.2.4 Inexistência de fato impeditivo ou extintivo do poder de recorrer
Considerados requisitos negativos de admissibilidade dos recursos, os fatos impeditivos e extintivos do poder de recorrer são atitudes tomadas pela própria parte que impedem que o seu recurso seja admitido.
Moreira (1968, p. 96) afirma que “a ninguém é dado usar as vias recursais para perseguir determinado fim, se o obstáculo ao atingimento desse fim, representado pela decisão impugnada, se originou de ato praticado por aquele mesmo que pretende impugná-la”.
A doutrina diverge quanto à classificação dos fatos em impeditivos e extintivos. Alguns autores afirmam serem fatos impeditivos do poder de recorrer: a desistência da ação, o reconhecimento jurídico do pedido, a renúncia ao direito sobre o qual se funda a ação e a transação. Já os fatos extintivos seriam a renúncia ao recurso, a desistência do recurso e a aquiescência da parte em relação ao teor da decisão.
Neste caso, a diferença estaria na direção da vontade manifestada, os primeiros seriam direcionados à ação em si, os últimos ao próprio direito de recorrer.
Outros, entretanto, os enquadram de forma diferente. Para Jorge (2009) o único fato extintivo do direito de recorrer seria a desistência do recurso, todos os outros seriam impeditivos. Isto porque, segundo o autor, na desistência o recurso já foi interposto, por isso não se poderia dizer que seria um fato impeditivo do recurso, consistiria, por outro lado, em um fato extintivo do julgamento do mérito. Quanto à renúncia ao recurso, a parte ficaria impedida de praticar um ato incompatível com a própria renúncia, e na aquiescência o próprio art. 503 do Código de Processo Civil (Brasil, 1973) diz que a parte “não poderá recorrer”, ou seja, ficaria impedida de recorrer.[7]
Já Nelson Luiz Pinto (2001) prefere excluir do elenco dos pressupostos intrínsecos a inexistência de fato impeditivo ou extintivo do direito de recorrer, entendendo que esta categoria seria subsumível ao interesse recursal.
2.3.3 Requisitos extrínsecos
2.3.3.1 Tempestividade
A legislação processual estabelece um prazo para que a decisão possa ser impugnada, prazo este que, transcorrido, gera a preclusão temporal, perdendo a parte o direito de praticar o ato de recorrer.
A previsão de prazos para a interposição dos recursos, segundo Jorge (2010, p. 146) decorre do princípio da segurança jurídica, pois em sendo fixado um prazo para que a decisão venha a ser impugnada, “ele acaba com a intranqüilidade das partes, diante de uma situação em que a decisão pudesse ser revista a qualquer momento”.
A tempestividade é requisito de forma que visa à verificação da obediência, pela parte recorrente, do prazo estipulado legalmente para a prática do ato impugnatório.
O termo inicial para a contagem do prazo recursal é a data em que a parte toma ciência da decisão, que, segundo os arts. 242 e 506 do Código de Processo Civil (Brasil, 1973), pode se dar através da leitura da sentença em audiência, da intimação das partes ou da publicação do dispositivo do acórdão em órgão oficial. O referido prazo, segundo a lei processual, é contado excluindo-se o dia do início e incluindo-se o do final.
A tempestividade recursal, portanto, consiste no exercício do direito de recorrer dentro do prazo estipulado pela lei para cada recurso. Sendo intempestivo o recurso, cabe à autoridade perante a qual é interposto, quando do juízo admissibilidade, negar-lhe seguimento, impedindo que o mesmo seja processado e remetido ao órgão ad quem.
2.3.3.2 Regularidade formal
Para que sejam admitidos, os recursos devem também observar a forma prevista em lei. Apesar de existirem normas específicas quanto à forma que deve possuir cada espécie de recurso, existem normas gerais que se aplicam a todos eles.
Assis (2011) elenca quatro requisitos formais genéricos: petição escrita; identificação das partes; motivação e pedido de reforma ou de invalidação do pronunciamento recorrido.
Assim, a petição, protocolada na forma escrita, deve conter os nomes e a indicação das partes, para que haja uma delimitação subjetiva do recurso, bem como os fundamentos de fato e de direito pelos quais o recorrente requer nova decisão.
A petição, em regra, deverá ser assinada e o subscritor deve ter procuração nos autos para representar o recorrente. Em regra, esta petição será dirigida ao juízo que proferiu a decisão impugnada, que enviará as razões do recurso para o órgão competente para o julgamento.[8]
O recorrente deve indicar exatamente os erros que maculam a decisão e os fundamentos pelos quais acredita que ela está errada. Baseando-se no entendimento de Seabra Fagundes, Jorge (2009, p. 183) afirma que quando a parte delimita o objeto e alcance de sua impugnação “estará possibilitando ao recorrido oferecer a sua resposta e estará, da mesma forma, indicando ao órgão julgador qual a parte da decisão que está sendo atacada e de que maneira ela deverá ser reformada ou anulada”.
Por fim, a necessidade de pedido expresso de reforma deve-se ao fato de que o provimento substitutivo do ato impugnado, seja para a reforma, invalidação ou integração da decisão, consiste no próprio objeto do recurso.
2.3.3.3 Preparo
O último requisito extrínseco, o preparo, consiste no pagamento das despesas relativas ao recurso. O valor de tais despesas é estabelecido na lei de organização judiciária para cada recurso e a ausência do referido pagamento gera a sanção de inadmissão, denominada, neste caso, de deserção.
Apesar de ser também um requisito de admissibilidade, o preparo é dispensado em alguns casos tendo em vista a pessoa do recorrente e a espécie do recurso. É dispensado o preparo, por exemplo, para o Ministério Público, União, Estados, Municípios e respectivas autarquias; para o beneficiário da justiça gratuita e também para a interposição de algumas espécies de recurso, como os embargos de declaração e o agravo retido.
Feitas essas considerações iniciais acerca dos recursos cíveis em geral e a sua admissibilidade, no capítulo seguinte iniciar-se-á a abordagem do Recurso Especial, objeto central deste estudo.