O PERÍODO PRÉ-CONSTITUINTE E A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988: CONCRETIZAÇÃO DAS CONQUISTAS? À GUISA DE CONCLUSÃO
Um dos grandes marcos dos movimentos sociais urbanos brasileiros e que ocorreu em favor do fortalecimento da cidadania brasileira foi a Constituição de 1988. Marco este de particular importância para o processo de transição brasileiro, ela não apenas condicionou a maneira como esta seria encaminhada, mas também o conteúdo da agenda futura. Contudo, a Constituição não foi o único momento condicionante dessa agenda. Sucessivas mudanças institucionais, por um lado, e políticas governamentais, por outro, transformaram seqüencialmente as condições de mudança ao longo de todo o processo transicional. Daí ser difícil falar de umatransição, ou de umacaracterística da transição brasileira. Ainda que algumas tendências pareçam prevalecer ao fim de certo período, a complexidade temporal do processo não fica clara desde o início, nem para os atores, nem para os analistas.
Houve, em todo o Brasil um grande esforço de participação popular. Não apenas antes e durante a elaboração da Constituição Federal, como também antes e durante o processo de votação das constituições estaduais.
Por causa dessa grande participação popular, o período pré-constituinte e constituinte foi riquíssimo para o crescimento da consciência política do povo brasileiro. Nem todas as aspirações manifestadas pela população, entretanto, encontraram eco na Assembléia Constituinte Federal e nas Assembléias Constituintes Estaduais.
A década de 80 é reconhecida como um período rico para a politização da sociedade brasileira. Nela se buscou a luta pela redemocratização do país que, sem dúvida, passou pela rearticulação do movimento sindical, pela pluralização dos movimentos populares, pelo surgimento do Partido dos Trabalhadores em 1980, pela luta das diretas já, em 1984, e pelo processo de discussão e elaboração da Constituição em 85 e 87, promulgada em 1988.
Após a relevante experiência de mobilização popular pelas eleições diretas em 1984, o período da Assembléia Nacional Constituinte possibilitou a intensificação dos laços que já existiam no amplo e heterogêneo campo dos movimentos populares no Brasil [06]. Durante esse período os mais diversos movimentos procuraram se articular para respaldar projetos de lei para a formulação da nova Constituição.
No final de 1985, travou-se o primeiro grande debate em torno da escolha entre duas espécies de Assembléia Constituinte [07]. Olvidando ao apelo dos mais amplos segmentos da sociedade civil, que queriam uma Constituinte exclusiva, a maioria parlamentar seguiu a orientação do Governo e optou pelo Congresso constituinte, sendo essa a primeira derrota sofrida pela sociedade civil brasileira
Apesar da perda inicial, entenderam as forças populares, que não deveriam abandonar o movimento e suas bandeiras. Mesmo diante de um Congresso Constituinte, era preciso pressionar o máximo no sentido de obter o reconhecimento do direito de participação popular nos trabalhos de elaboração da nova Constituição. Através da participação e da pressão popular seria, de qualquer forma, possível alcançar alguns avanços (Silva, 2002:146).
O Regimento da Assembléia Nacional Constituinte acolheu o pedido do Plenário Nacional Pró-Participação Popular na Constituinte e admitiu a iniciativa de emendas populares. Por essa via, a população obtinha o direito a uma participação mais direta na elaboração constituinte.
O direito de apresentar emendas foi uma grande vitória alcançada pela pressão do povo. Nada menos que 122 emendas foram propostas. Essas emendas alcançaram o total de 12.265.854 assinaturas. Não apenas as forças progressistas serviram-se do instrumento da iniciativa de emendas. Também as forças conservadoras patrocinaram emendas populares. Contudo, as emendas de origem realmente popular foram em numero muito mais expressivo e obtiveram um total de assinaturas muitíssimo maior.
O ritual das emendas populares repetiu-se nos Estados, por ocasião da discussão das Constituições Estaduais. Nessa oportunidade grandes temas populares foram novamente discutidos e particularizados no nível das unidades da Federação.
A pressão popular não se limitou às emendas. Segmentos organizados estiveram presentes nas galerias e nos corredores da Constituinte durante lodo o período de funcionamento da Assembléia. Aí também não foi apenas o povo que fez pressão. As classes dominantes e os grupos privilegiados montaram esquemas formidáveis para acuar a Constituinte. A União Democrática Ruralista (UDR), por exemplo, mobilizou milhares de pessoas, inclusive jovens, para impedir que a Constituinte abrisse, no texto da Constituição, caminhos facilitadores da reforma agrária.
Além das emendas populares a população expressou suas opiniões por diversos canais, como através de sugestões apresentadas à Comissão Afonso Arinos e nas audiências públicas da Assembléia Constituinte, quando vários lideres puderam expressar a opinião dos segmentos sociais que representavam.
Através dos mais variados caminhos formais ou informais de que a sociedade civil brasileira lançou mão, com a criatividade que lhe é própria e com a força de sua esperança (abaixo-assinados, cartas e telegramas dirigidos à Assembléia Constituinte ou a determinados constituintes, atas de reuniões e debates remetidas a parlamentares, cartas de leitores publicadas em jornais etc.).
Paralelamente, no mesmo período, a questão urbana constituiu-se como um problema nacional, mesmo porque foi visualizada por uma verdadeira teia de movimentos populares que se articularam numa grande variedade de entidades por todo o país. Nesse contexto, situavam-se: movimentos populares de creches, mutuários do BNH, inquilinos, loteamentos clandestinos e irregulares, moradores de cortiços, favelados, e outros. Embora constituindo um campo heterogêneo de reivindicações, eles possuíam em comum a denúncia dos graves problemas da moradia. A luta pelo acesso à moradia e por condições dignas de vida na cidade são pontos marcantes desse processo.
A falta de moradia deixava, assim, de ser formulada apenas como uma expressão numérica dos índices governamentais, traduzida como déficit habitacional e ganhava novos contornos sociais. Os espaços da favela, dos loteamentos clandestinos, dos cortiços, dos bairros periféricos, tornados visíveis pelos movimentos, propunham uma nova leitura da questão urbana.
Não se tratava simplesmente de uma busca por uma urbanidade calcada na satisfação das necessidades de moradia, mas também pela incorporação desses lugares no espaço social/legal da cidade. Dessa maneira, buscou-se inscrever na legislação caminhos que viessem a reparar os resultados de uma urbanização absolutamente excludente, através de leis que modificassem a péssima distribuição da terra na cidade e apontassem para sua gestão democrática.
Na trilha das lutas por melhores condições de vida urbana, a participação popular dos movimentos de moradia, em suas diversas organizações, as ONG’s e outras entidades ligadas aos direitos humanos vão construir uma maneira nova de lidar com a chamada questão urbana. Nessa perspectiva, pensar a cidade e articular sua compreensão no período de 1980-1988, apresentou-se como um dinâmico movimento de apreensão da questão urbana como um campo social de luta por direitos e de sua inscrição na Constituição.
Nesse caminho, visualizou-se a construção de uma nova perspectiva de compreensão do urbano que, transformando-se na tônica de uma gama expressiva de movimentos populares de moradia e cidadania então emergentes, propõe que o viver a cidade e na cidade constituem-se em experiências de reconhecimento de espaço, de alternativas de mudança, de práticas de formação de sujeitos políticos.
Dentro desse contexto, o Movimento Nacional pela reforma urbana foi criado, articulando uma grande variedade de sujeitos, ou que se organizavam em torno de carências vividas no espaço urbano, ou que tinham vinculação com essa temática, como é o caso das organizações não governamentais, sindicatos, entidades de pesquisa e técnicos ligados a área do planejamento urbano. Esse movimento Transformou-se posteriormente, no Fórum Nacional de Reforma Urbana, espaço permanente de encontro desses sujeitos que, posteriormente, passou a exercer forte influência na elaboração das constituições estaduais, leis orgânicas municipais e dos planos diretores.
O Movimento Nacional pela reforma Urbana foi o responsável pela apresentação de uma proposta de Emenda à Constituição, denominada Emenda popular de reforma Urbana, subscrita por mais de 150 mil pessoas em todo o Brasil.
A característica fundamental que trazia era a afirmação do "direito à cidade" a todos aqueles que nela vivem e suas teses principais eram: a) a necessidade de que as cidades cumprissem sua "função social", garantindo justiça social e condições de vida dignas para todos no espaço urbano; b) a subordinação do direito à propriedade, às condições de necessidade social, admitindo, entre outros instrumentos, a penalização das grandes propriedades ociosas através da cobrança de imposto progressivo no tempo, e a regularização fundiária e urbanização das áreas urbanas ocupadas; c) a gestão democrática e participativa da cidade.
Nesse sentido, assumiu posição contrária à absoluta hegemonia exercida, até então, pela propriedade privada, aos vários processos de privatização dos equipamentos coletivos, dos serviços públicos e da infra-estrutura urbana; ao recuo da esfera pública no direcionamento do crescimento urbano, aos processos de especulação com a terra urbana e à falta de visibilidade, ou como se conclamou no século XXI, "transparência" nas políticas urbanas.
Como registra Silva (2002:147), o trajeto percorrido pela emenda da reforma urbana junto à Assembléia Constituinte foi "árduo e difícil". Assim como ocorreu com outros temas, houve grande mobilização das forças conservadoras para garantir que seus interesses permanecessem intocados no processo de construção da nova Constituição. Em relação ao tema da reforma urbana, os empresários do setor imobiliário garantiram presença substantiva na configuração da Subcomissão da Questão Urbana e Transporte, na qual a emenda foi discutida.
Por outro lado, se o Movimento Nacional de Reforma Urbana (MNRU) representava a articulação de diferentes segmentos para conferir força à "questão urbana" no contexto da Constituinte, há que se registrar que esse tema não tinha ainda, naquele momento, adquirido relevância suficiente para atrair a mobilização necessária de todos os setores existentes no interior das forças progressistas. Como conseqüência, a discussão desse assunto no âmbito da Subcomissão da questão Urbana e Transporte foi marcada por um caráter técnico e especializado, restringindo assim a possibilidade de que o debate fizesse aparecer na cena pública o jogo de interesse políticos em torno desse tema.
Como fruto dessa correlação de forças, a questão urbana aparece na Constituição de 1988 através de dois artigos. A emenda proposta não foi incorporada à Constituição na sua totalidade. Na realidade, o artigo incorporado ficou muito aquém disso. No entanto, pela primeira vez na história brasileira, estava presente na Constituição um capítulo específico destinado a tratar da política urbana que trazia como novidade a orientação para que as cidades cumprissem sua função social e promovessem o bem-estar de seus habitantes. Além disso, a Constituição também admitiu a necessidade da criação de mecanismos de participação da sociedade na gestão da cidade e a abertura para que os cidadãos participassem na elaboração das Leis Orgânicas e Planos Diretores Municipais e das Constituições Estaduais.
O Direito à moradia, contudo, principal bandeira do MNRU, não foi elencado à categoria de direito fundamental, conforme o pretendido. Só no ano de 2000, através da Emenda Constitucional nº 26, é que a moradia foi incluída no artigo 6º da CR/88, no rol dos direitos sociais, como fruto das reivindicações do agora já Fórum Nacional de Reforma Urbana.
Em meio a muitos fracassos, entretanto, há conquistas a comemorar. No tocante à materialização jurídica do princípio da "função social da propriedade", por exemplo. Pois embora presente em todas as constituições brasileiras desde a de 1934, o princípio da "função social", especialmente no tocante à propriedade urbana, somente encontrou uma definição consistente na Constituição de 1988, que, no art. 182, § 2º, estabeleceu: "A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor".
Nos termos do que expressou Fernandes(1998:61):
O direito de propriedade imobiliária urbana é assegurado desde que cumprida sua função social, que por sua vez é aquela determinada pela legislação urbanística, sobretudo no contexto municipal. Cabe especialmente ao governo municipal promover o controle do processo de desenvolvimento urbano, através da formulação de políticas de ordenamento territorial nas quais os interesses individuais dos proprietários de terras e construções urbanas necessariamente coexistam com outros interesses sociais, culturais e ambientais de outros grupos e da cidade como um todo.
Nessa linha, houve uma profunda modificação nas estruturas jurídicas vigentes, visto que o novel dispositivo, dentro do contexto em que foi inserido, retirou o caráter "absoluto" com que era vista a propriedade privada no Brasil.
Ademais, ainda que em termos nem sempre coincidentes com o que propunha a emenda popular da Reforma Urbana, a Constituição de 1988, como se disse, marcou a introdução dessa temática na história constitucional brasileira. A chamada Lei Maior passou a tratar de "Direito Urbanístico" (art. 24, I [08]) além de exigir que a cidade cumprisse, outrossim, a sua função social. Para tanto, o texto constitucional elegeu o plano diretor municipal como paradigma dessa obrigação (o que não estava proposto na emenda popular), mas represou sua eficácia ao remeter a aplicação das penalidades instituídas à regulamentação em lei federal.
Mas além do que definir formas de apropriação do espaço permitidas ou proibidas, mais do que efetivamente regular a produção da cidade, as conquistas constitucionais pertinentes à questão urbana e à participação popular agiram como marco delimitador de fronteiras de poder. Isso porque a lei organiza, classifica e coleciona os territórios urbanos, conferindo significados e gerando noções de civilidade e cidadania diretamente correspondentes ao modo de vida familiar dos grupos que estiveram mais envolvidos em sua formulação. Funciona, portanto, como referente cultural fortíssimo na cidade, mesmo quando não é capaz de determinar sua forma final. Mas só produz esse efeito, só tem a chamada "eficácia social", se não for fruto de uma imposição do Poder Público, se estiver adequada à realidade social. E esse foi o caso do capítulo constitucional referente à política urbana. Embora não a contento, foi produto de um movimento de bases, foram normas jurídicas feitas "de baixo para cima".
As maiores conquistas, porém, se deram no campo da democratização da gestão pública. Como frutos do momento histórico da "redemocratização" foram previstas formas de exercitar a democracia participativa, quais sejam, o plebiscito, o referendo, a iniciativa popular e os sistemas de gestão democrática das políticas públicas, que visam garantir uma participação política vinculante dos cidadãos nos processos de decisão sobre assuntos de interesse local ou nacional.
No dizer de Saule Jr.(1997:48), a Constituição, com base no princípio da soberania popular, visando assegurar a participação do povo nas decisões, estabeleceu sistemas de gestão democrática em vários níveis, tais como:
a) gestão das cidades: a cooperação das associações representativas no planejamento municipal, como preceito a ser observado pelos Municípios (art. 29, XII);
b) educação – gestão democrática do ensino público (art. 206, VI);
c) seguridade social – organização com caráter democrátio e descentralização da gestão administrativa, com a participação da comunidade, em especial de trabalhadores, empresários e aposentados (art. 114, VI);
d) a participação dos trabalhadores e empregados nos colegiados dos órgãos públicos em que seus interesses profissionais ou previdenciários sejam objeto de discussão e deliberação (art. 10);
e) saúde: ações e serviços de saúde que integram uma rede regionalizada e hierarquizada constituem um sistema único que deve ser organizado com participação da comunidade (art. 198);
f) assistência social: ações governamentais na área de assistência social, tendo como uma das diretrizes a participação da população, por meio de organizações representativas,, na formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis (art. 204);
g) cultura: o Poder Público deve promover a proteção do patrimônio cultural brasileiro com a colaboração da comunidade (parágrafo 1 do art. 216);
h) meio ambiente: é dever do Poder Público e da coletividade defende-lo e preserva-lo pra as presentes e futuras gerações;
i) criança e adolescente – o Estado deve promover programas de assistência integral à saúde da criança e do adolescente com a participação de entidades não-governmentais. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurara à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à dignidade, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, ao respeito, à liberdade, à convivência familiar e comunitária, além de coloca-los à salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade, e opressão (art. 227).
A previsão desses sistemas de gestão democrática tem a finalidade de conferir novos direitos aos cidadãos, de participar na formulação de legislações, através da iniciativa popular e audiências públicas, de fiscalizar as atividades dos governos, de promover a proteção ao meio ambiente, de participar da formulação e execução de políticas públicas através de canais institucionais como os conselhos da saúde, da criança e do adolescente, conselhos urbanísticos etc.
Houve uma mudança também no que tange a cultura política da sociedade civil brasileira. Se, até então, os movimentos e suas reivindicações tinham como foco central as denúncias sobre a ineficácia das políticas públicas, descaso e ineficiência, nos anos 80, a questão urbana tornava-se pública e articulada à nova intervenção que se construía pelos movimentos populares, agora também assumindo a responsabilidade pela tarefa de mudar os rumos da cidade, por uma participação política mais ativa, e mais importante: pela formulação de projetos e propostas para o ordenamento das cidades e da vida urbana.
A formulação da bandeira de luta por reforma urbana apresentada em 1987, quando da articulação do Movimento Nacional de Reforma Urbana, destacaria a proposição do direito à cidade. Sem dúvida, os movimentos populares articulavam um conjunto interessante de perspectivas e expectativas, demarcando assim uma centralidade de propostas que se moldaram, no período, em torno da chamada democratização do acesso à moradia.
A vitória nas eleições municipais de 1988 e 1992 de coalizões políticas populares em algumas das mais importantes cidades do país fortaleceu na sociedade brasileira a proposta da reforma urbana. Seus princípios tornaram-se referência nos debates acadêmicos e políticos sobre a questão urbana no Brasil. No campo dos movimentos sociais foi criado o Fórum Nacional da Reforma Urbana, que agrupa várias entidades representativas de segmentos em luta, organizações não-governamentais e órgãos de pesquisa.
Assim, a democracia não foi revelada pela oportunidade de participar daquele momento político, mas sim por outras disputas concretas, que se encaminhavam em torno da construção da cidadania, bem como por outras lutas por direitos, dentre os quais estavam os transportes, os equipamentos urbanos, a reformulação da função social da propriedade, a gestão democrática das cidades, e muitas outras concepções formuladas a partir de então.