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Cidade e cidadania no Brasil: uma análise historiográfica da participação popular construída num ambiente urbano

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09/02/2012 às 06:58
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O tema das experiências participativas na gestão pública é aqui tratado a partir da análise da das relações entre estado e sociedade assim como da trajetória das instituições democráticas e dos movimentos sociais no Brasil e em âmbito local, com enfoque no processo de urbanização e nas demandas sociais por ele geradas.

INTRODUÇÃO

Pudemos observar que o processo de crescimento urbano intensivo que acompanhou e tornou possível a industrialização brasileira a partir da chamada "Revolução de 1930", quando menos de 30% da população vivia em cidades, já provocou drásticas transformações socioeconômicas e espaciais no País. Desde meados da década de 50, a economia brasileira tem sido gerada principalmente nas áreas urbanas. Embora tenha havido uma queda significativa nas taxas de migração rural-urbana desde a década de 80 do século passado, a população urbana brasileira, principalmente na maior parte das áreas metropolitanas, continua observando altas taxas de crescimento.

O Brasil, como os demais países da América Latina, apresentou intenso processo de urbanização, especialmente na segunda metade do século XX. Em 1940 a população urbana era de 26,3% do total. Em 2000 ela era de 81,2%. Esse crescimento se mostra mais impressionante ainda se lembrarmos os números absolutos: em 1940 a população que residia nas cidades era de 18,8 milhões de habitantes, e em 2000 ela era de aproximadamente 138 milhões. Constatamos, portanto, que em 60 anos os assentamentos urbanos foram ampliados de forma a abrigar mais de 125 milhões de pessoas. Isso significa mais da metade da população do Canadá ou um terço da população da França (Arrighi, 1997:43).

Trata-se de um gigantesco movimento de construção urbana necessário para o assentamento residencial dessa população, bem como para a satisfação de suas necessidades de trabalho, abastecimento, transporte, saúde, energia, água, etc.

De um modo geral, na historiografia brasileira a combinação dos processos de industrialização e urbanização, na visão de vários estudiosos do processo [01], tem provocado uma grande concentração econômica, tendo sido apontados como geradores de "um processo de exclusão política e segregação sócio-espacial da maior parte da população"(Fernandes, 1998:03).. Na maior parte das cidades brasileiras, áreas centrais modernas são cercadas por parcelamentos muito pobres, geralmente irregulares, senão clandestinos, onde a auto-construção e a ausência de inserção do Poder Público são a regra. É conhecido o caso do Rio de Janeiro, cujas características se repetem em diversas outras capitais, em que edifícios e construções sofisticadas coexistem com favelas precárias, que geralmente resultam da invasão de áreas públicas e privadas. Paralelamente, um grande número de lotes de propriedade privada são mantidos vazios para especulação, uma vez urbanizados às custas da ação do Estado.

Em geral, a prestação sócio-espacial dos serviços públicos e a distribuição de equipamentos de consumo coletivo são desiguais, com as áreas mais pobres apresentando um déficit de sistemas de drenagem e saneamento, equipamentos de saúde e educação, áreas de lazer e espaços verdes.

Tais problemas, associados ao déficit habitacional [02], o padrão do processo de urbanização também têm provocado impacto e danos ambientais significativos, além de várias formas de mudanças culturais.

Compõe o complexo da urbanização brasileira um vasto rol de problemas sociais. Por isso, é preciso analisar as condições de vida da população urbana e a sua relação com a ausência ou má-prestação dos serviços públicos essenciais e condições mínimas de dignidade. Falamos dos "movimentos sociais urbanos", constituídos a partir de reinvindicações populares no âmbito das cidades e que serão estudados adiante.


CIDADANIA E MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS

Respaldados numa trajetória de mais de trinta anos de lutas, iniciada pelos movimentos das favelas, dos cortiços, dos loteamentos clandestinos populares; acrescidas das lutas nas ocupações urbanas, pela construção de moradias via mutirões; movimentos contra os aumentos nas prestações do antigo BNH, por parte dos mutuários; lutas dos moradores de conjuntos precários; de inquilinos pertencentes às camadas médias; até as lutas dos moradores que vivem nas ruas; a questão da cidadania e movimentos sociais acumulou conhecimento e experiências concretas.

O período entre 1945 e 1964, conhecido como "A Republica Populista", foi caracterizado pela reorganização do Estado de Direito, ou seja, as leis foram respeitadas e as liberdades individuais, garantidas, guardadas algumas exceções, como o fechamento do Partido Comunista Brasileiro em 1947. Durante esse período, uma parcela significativa dos trabalhadores organizou-se de forma independente, enfraquecendo o "peleguismo" [03], e formaram-se, em alguns Estados do Nordeste, as Ligas Camponesas, num processo de organização que, apesar de reunir ainda setores minoritários do campesinato, já apresentava certo grau de politização. A crise do populismo foi responsável pela polarização política, não ideológica, entre aqueles que defendiam uma política popular e nacionalista e aqueles que defendiam a abertura do mercado e uma maior aproximação com a política externa dos EUA (Reis, 2004: 34).

Destacam-se nesse momento a discussão que envolveu a criação da Petrobrás, a crise em relação à posse de Juscelino Kubitschek e a campanha da legalidade, que garantiu a posse de João Goulart.

O golpe liderado pelos militares, que depôs o presidente João Goulart, representou a reação dos setores conservadores da sociedade brasileira à manutenção da política populista no país.

Os governos ditatoriais militares que se sucederam no poder desde 1964 também foram responsáveis por um grande hiato no desenvolvimento da cidadania no país. É interessante perceber que o modelo político adotado pelos governos militares tentou disfarçar o autoritarismo por meio da manutenção de eleições para o Legislativo e para o Executivo da maioria dos municípios, além de "permitir" a existência de um partido de oposição. Ao mesmo tempo, líderes políticos e sindicais foram cassados, presos ou exilados, a imprensa foi censurada e as principais diretrizes do governo foram impostas pelos atos institucionais. Os governos militares inovaram e apostaram não apenas na repressão, mas também em um processo de alienação social, que se deu por meio da propaganda direta ou subliminar, caracterizada pelo ufanismo nacionalista, do sucateamento da educação, da qual foi tirada a possibilidade de formação consciente e crítica, e do controle sobre os meios de comunicação de massa, em especial a televisão.

Desde 67, o movimento estudantil tornou-se a principal forma de oposição ao regime cívico-militar. Nos primeiros meses de 68, várias manifestações tinham sido reprimidas com violência. O movimento estudantil manifestava-se não apenas contra a ditadura, mas também à política educacional do governo, que revelava uma tendência à privatização. A política de privatização tinha dois sentidos: era o estabelecimento do ensino pago (principalmente no nível superior) e outro, o direcionamento da formação educacional dos jovens para o atendimento das necessidades econômicas das empresas capitalistas (mão de obra especializada). Essas expectativas correspondiam a forte influência norte-americana exercida através de técnicos da Agência Norte-Americana para o Desenvolvimento Internacional (USAID) [04] que atuavam junto ao Ministério da Educação (MEC) por solicitação do governo brasileiro, gerando uma série de acordos que deveriam orientar a política educacional brasileira. As manifestações estudantis foram os mais expressivos meios de denúncia e reação contra a subordinação brasileira aos objetivos e diretrizes do capitalismo norte-americano.Prisões e arbitrariedade eram as marcas da ação do governo em relação aos protestos dos estudantes, e essa repressão atingiu seu apogeu no final de março com a invasão do restaurante universitário "calabouço", onde foi morto Edson Luís, de 17 anos (Doimo, 1984:33).

O fato, que comoveu e revoltou todo o país, serviu para acirrar os ânimos e fortalecer a luta pelas liberdades. Durante o velório do estudante, o confronto com policiais ocorreu em várias partes do Rio de Janeiro, sendo que o cortejo fúnebre foi acompanhado por 50 mil pessoas. Nos dias seguintes, manifestações sucediam-se no centro da cidade, com repressão crescente até culminar na missa da Candelária em 2 de abril, em que soldados a cavalo investiam contra os estudantes, padres, repórteres e populares.

Ainda na década de 1960, vamos encontrar militantes católicos preocupados em criar o Movimento pela Educação Básica (MEB) cuja a finalidade era atuar em regiões populares de baixa renda, com os objetivos de alfabetizar e conscientizar politicamente as camadas populares. Em 1962, os militantes da JUC e do MEB criaram a Ação Popular (AP), movimento político não-confessional dedicado à luta pelo socialismo e ao uso do método marxista (Doimo, 1984:34).

Foram essas práticas que fizeram a Igreja católica progressista posicionar-se claramente contra o golpe de 1964 e suas conseqüências. E foi por isso que muitos de seus membros foram perseguidos, presos, torturados física e psicologicamente, em alguns casos chegando a morte.

Em meados dos anos 70, todas as organizações de esquerda estavam praticamente dizimadas, ou decisivamente enfraquecidas, os principais dirigentes mortos, ou nas prisões ou nos exílios sem fim. Suas forças, dispersas, tenderiam a se reorganizar na esteira dos movimentos que tiveram lugar na segunda metade dos anos 70 (Reis,2004:43).

No Brasil do final da década de 70 e parte dos anos 80, ficaram famosos os movimentos sociais populares articulados por grupos de oposição ao então regime militar, especialmente pelos movimentos de base cristãos, sob a inspiração da Teologia da Libertação.

A partir de 1985, com a saída dos militares do poder, começa-se a pensar num novo conteúdo para a sociedade civil brasileira. Com a gradual abertura de canais de participação e representação política, a partir de pressões populares, os movimentos sociais (especialmente os populares) perderam a centralidade e a homogeneidade que tinham nos discursos sobre a participação da sociedade civil. Não se tem mais a bandeira única da luta contra o regime.

Passa a haver uma fragmentação do que se denominou como "sujeito social histórico" (Gohn, 2005: 74), centrado nos setores populares, fruto de uma aliança do movimento sindical com o movimento popular de bairro, formado por trabalhadores e moradores, até então tidos como de grande importância para o processo de mudança e transformação social.

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Surgem, então, novos atores dentro das novas formas de associativismos que emergiram no cenário político. A autonomia dos membros da sociedade civil deixar de ser fundamental para a construção da democracia tendo em vista que, com saída dos militares e o retorno do Estado Democrático de Direito [05], a sociedade política, traduzida por parcelas do poder institucionalizado do Estado e sua estrutura, passa a ser objeto de desejo das forças políticas organizadas. Novos e antigos atores fixarão seus objetivos, lutas e conquistas na sociedade política, especialmente no campo das políticas públicas.

Ao final dos anos 80, e ao longo dos anos 90, o cenário sócio-político se transformou radicalmente. Inicialmente teve-se um declínio das manifestações nas ruas, que conferiam visibilidade aos movimentos populares nas cidades. Alguns analistas diagnosticaram que eles estavam em crise porque haviam perdido seu alvo e inimigo principal - o regime militar. Na realidade, as causas da desmobilização foram várias. O fato inegável é que os movimentos sociais dos anos 70/80 contribuíram decisivamente, via demandas e pressões organizadas, para a conquista de vários direitos sociais novos, que foram inscritos em leis na nova Constituição brasileira de 1988.

A questão da cidadania já estava posta nos anos 80, tanto nas lutas pela redemocratização (que levaram ao movimento diretas já, à Constituinte e à nova carta Constitucional de 1988, destacando a questão dos direitos civis e políticos), como nas lutas pelos direitos sociais, por melhoria na qualidade da vida urbana, quando a cidadania ganha um novo contorno, como cidadania coletiva (Gohn, 2005:75). A cidadania dos anos 90 do século XX obteve novos significados como a idéia de participação civil, exercício da civilidade, responsabilidade social dos cidadãos como um todo, atribuindo deveres a uma sociedade que antes só reivindicava direitos.

Advém daí a noção de parcerias nas políticas governamentais e a mudança no cenário das relações entre Estado e Sociedade Civil, conforme exposto no primeiro capítulo.

Ocorreu, ainda nesse período, o surgimento de outras formas de organização popular, mais institucionalizadas, um espaço público não-estatal, onde irão situar-se os conselhos, os fóruns, redes e articulações entre a sociedade civil e representantes do poder público, para o atendimento das demandas sociais. Como exemplos podemos citar a constituição de Fóruns Nacionais de Luta pela Moradia, pela Reforma Urbana; Fórum Nacional de Participação Popular etc.

Os fóruns estabeleceram a prática de encontros nacionais em larga escala gerando grandes diagnósticos dos problemas sociais, assim como definindo metas e objetivos estratégicos para combatê-los. Emergiram várias iniciativas de parceria entre a sociedade civil organizada e o poder público, impulsionadas por políticas estatais tais como a experiência do Orçamento Participativo, a política de Renda Mínima, bolsa/escola etc. A criação de uma Central dos Movimentos Populares foi outro fato marcante nos anos 90, no plano organizativo; ela estruturou vários movimentos populares em nível nacional tais como a luta pela moradia, assim como buscou fazer uma articulação e criou colaborações entre diferentes tipos de movimentos sociais, populares e não populares (Ferraro, 1999:38).

Nos anos 90, os conflitos sociais envolvendo lutas diretas deslocaram-se da cidade para o campo com os movimentos dos sem-terra. Dentre os vários grupos organizados que surgiram destaca-se o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), que ganhou atenção até internacional. "Ética na Política" foi um movimento do início dos anos 90 com uma importância histórica porque contribuiu decisivamente para a deposição de um Presidente da República por atos de corrupção. À medida que as políticas neoliberais avançaram foram surgindo outros movimentos sociais como: contra as reformas estatais, a Ação da Cidadania contra a Fome, movimentos de desempregados, ações de aposentados ou pensionistas do sistema previdenciário. As lutas de algumas categorias profissionais emergiram no contexto de crescimento da economia informal. Algumas dessas ações coletivas surgiram como respostas à crise socioeconômica, atuando mais como grupos de pressão do que como movimentos sociais estruturados. Os atos e manifestações pela paz, contra a violência urbana, também são exemplos desta categoria. Se antes a paz era um contraponto à guerra, hoje ela é almejada como necessidade a todo cidadão/cidadã, em seu cotidiano, principalmente nas ruas, enquanto motoristas vítimas de assaltos relâmpagos, seqüestro e homicídios.

Grupos de mulheres foram organizados nos anos 90 em função de sua atuação na política, elas criaram redes de conscientização de seus direitos, e frentes de lutas contra as discriminações. O movimento dos homossexuais também ganhou impulso e as ruas, organizando passeatas e atos de protestos. Numa sociedade marcada pelo machismo isso é também uma novidade histórica. O mesmo ocorreu com o movimento negro, que deixou de ser quase que predominantemente movimento de manifestações culturais para ser também movimento de construção de identidade e luta contra a discriminação racial.

As principais mobilizações foram organizadas pelo MST e ocorreram nas cidades: passeatas, caminhadas, concentrações, acampamentos em praças públicas, ocupações de prédios públicos etc. Aos poucos, este movimento se tornou uma referência para lutas de outras categorias sociais, das camadas populares às camadas médias, e até alguns empresários - que saíram às ruas em passeatas com faixas e bonés brancos (uma das marcas emblemáticas do MST é o boné vermelho).

Devem-se destacar ainda três outros movimentos sociais importantes no Brasil nos anos 90: dos indígenas, dos funcionários públicos, especialmente das áreas da educação e da saúde; e dos ecologistas. Os primeiros cresceram em número e em organização nesta década; eles passaram a lutar pela demarcação de suas terras e pela venda de seus produtos a preços justos e em mercados competitivos. Os segundos organizaram-se em associações e sindicatos contra as reformas governamentais que progressivamente retiram direitos sociais, reestruturam as profissões, e arrocham os salários em nome da necessidade dos ajustes fiscais. Os terceiros, dos ecologistas, proliferaram após a conferência ECO 92, dando origem a inúmeras. Aliás, as ONGs passaram a ter muito mais importância nos anos 90 do que os próprios movimentos sociais. São ONGs inscritas no universo do Terceiro Setor, voltadas para a execução de políticas de parceria entre o poder público e a sociedade, atuando em áreas onde a prestação de serviços sociais é carente ou até mesmo ausente, como na educação e saúde, para clientelas como meninos e meninas que vivem nas ruas, mulheres com baixa renda, escolas de ensino fundamental etc.

A atuação do Terceiro Setor tem gerado um universo contraditório de ações coletivas: de um lado, elas reforçam as políticas sociais compensatórias ao intermediarem as ações assistenciais do governo; mas de outro lado, elas atuam em espaços associativos geradores de solidariedade e que exercem um papel educativo junto à população, aumentando sua consciência quanto aos problemas sociais e políticos da realidade.

Para que se entenda um pouco a trajetória dos movimentos populares nos anos 90 é importante registrar que eles não desapareceram, eles alteraram práticas e suas dinâmicas em função da mudança na conjuntura econômica e política e da nova correlação de forças. Passaram a atuar mais no plano institucional. Assim, na luta pela moradia deve-se registrar que ela tem sido a luta que conta com o maior número de assessores e organizações qualificadas, ou seja, com um corpo de especialistas e analistas e não apenas voluntários ou militantes (Nader, 2002:1-8).

Em 1993, foi criada a União Nacional por Moradia Popular (UNMP), rede de movimentos organizados a partir de entidades regionais existentes, na época, nos Estados de São Paulo, Minas Gerais, Paraná, Goiás, Pernambuco, Sergipe e Alagoas; que conta com o apoio de programas pastorais da Igreja Católica, a assessoria de ONGs que trabalham sob a perspectiva da Ajuda Mútua e da Autogestão. A UNMP tem como programa central o projeto autogestionário de mutirões para a construção da casa própria e participou das principais ações de luta pela moradia popular, nos anos 90, tais como: as "Caravanas para Brasília", O Estatuto da Cidade, a reivindicação da criação de um Fundo Nacional de Moradia Popular e do Conselho Nacional de Moradia Popular. Para atingir estes objetivos a UNMP participou em 1991 da coleta de um milhão de assinaturas para a criação de uma Lei de iniciativa popular, prevista na Constituição, e se articulou com a Central dos Movimentos Populares.

A maior expressão da organização pela moradia nos anos 90 é o Fórum Nacional de Reforma Urbana –FNRU (Silva, 2002: 143-301), ele se fortaleceu após a Constituição de 1988 dado que aquela Carta contém um capítulo sobre a reforma urbana. A II Conferência Internacional sobre Assentamentos Humanos (Habitat II), realizada em 1996, em Estocolmo, projetou as atividades do Fórum para além das fronteiras nacionais e deu respaldo à luta pela moradia à medida que a aprovou como um direito humano e ser obrigação dos governos implementarem este direito progressivamente.

O FNRU colocou as lutas pela moradia em um novo patamar. As bandeiras localizadas e as reivindicações parciais foram substituídas

[..] por um ideário onde o que se pede é o direito à cidade como um todo; incluem-se não só os direitos especificamente urbanos que visam acabar com a injustiça social no espaço das cidades, mas também o direito de participação na gestão da coisa pública (Silva, 1998: 13).

Dentre os inúmeros instrumentos jurídicos elaborados nos anos 90 pelos movimentos e ONGs articulados ao FNRU para garantir a moradia à população destacam-se Estatuto da Cidade, o Fundo Nacional de Moradia Popular e o Conselho Nacional de Moradia Popular.

No início de dezembro de 1999 realizou-se em Brasília, no espaço do Parlamento Nacional, a 1ª Conferência Nacional das Cidades que elaborou um documento denominado "Carta das Cidades". Neste documento podemos observar que as formas colegiadas e participativas da população são reivindicadas como plataformas de uma ampla gama de movimentos e organizações de lutas sobre as questões urbanas. Destacamos naquela Carta o Inciso X, que diz:

A democratização do planejamento e da gestão das cidades, com ênfase nos mecanismos que garantam o interesse público, o acesso à informação e o controle social sobre os processos decisórios das políticas e dos recursos públicos, nos vários níveis. Assegurando a participação popular em geral, mediante a realização de orçamentos participativos, entre outros instrumentos e, em âmbito nacional, a criação do Conselho Nacional de Desenvolvimento Urbano, com efetiva participação da sociedade.

Além das lutas do Fórum Nacional de Reforma Urbana, das conquistas jurídicas e legislativas expressas na Carta da Cidade e das conferências nacionais e internacionais, cumpre registrar também a maior experiência de gestão urbana com participação popular ocorrida no Brasil, na última década: os programas e as políticas de Orçamento Participativo, em várias cidades brasileiras, destacando-se a de Porto Alegre pela sua extensão. Naquela cidade, os Conselhos Municipais com participação popular, atuando por setor da administração, existem desde 1970. Entretanto, nos anos 90, a continuidade das diretrizes programáticas na gestão da cidade possibilitou o avanço da proposta do Orçamento Participativo, tornando-se um "modelo" para o resto do país.

O princípio da democracia participativa tem orientado, nos anos 90, a criação de uma série de estruturas participativas onde se destacam diferentes tipos de conselhos (nacionais, estaduais e municipais). Esses órgãos têm ganhado, crescentemente, grande importância porque a transferência e o recebimento dos recursos financeiros, pelos municípios, estão vinculados, por Lei Federal, à existência destes conselhos.

Na tradição brasileira a tendência dominante é restringir o universo de atores a serem envolvidos no processo participativo a um só segmento da comunidade.

Parte desses atores também desconhecem os espaços públicos de participação da sociedade civil nas novas políticas destinadas às áreas sociais, dando-se espaço para que as próprias autoridades não cumpram as leis.

Nesse novo cenário os movimentos sociais urbanos ampliam seu leque de atuação e se inserem na esfera estatal, colaborando para o caráter contraditório e fragmentado que o Estado passa a ter a partir da última década do século XX. Registre-se ainda que a nova política de distribuição dos fundos públicos, em parceria com a sociedade organizada, focada não em questões sociais, mas em projetos pontuais como crianças, jovens, mulheres, contribuiu para desorganizar as antigas formas de movimentos e as formas com que estes faziam suas reivindicações. "A palavra de ordem desses movimentos é ser propositivo, e não apenas reivindicativo" (Gohn, 2005:82).

O aumento da pobreza, o desemprego e a violência urbana transferiram a questão social para as grandes cidades. As políticas neoliberiais passaram a mostrar suas desvantagens ao final da década e um novo panorama dos movimentos sociais surge no novo milênio. Os movimentos sociais voltaram a ter visibilidade e se transformaram bastante, alterando alguns dos seus projetos políticos.

No que tange especificamente aos movimentos formados em torno da questão urbana que reivindicam a inclusão social e condições de habitabilidade nas cidades, também sofreram modificações não só nas pautas de reivindicação como também nas linhas de atuação e na relação dos atores envolvidos. Passou-se a falar na necessidade de uma "reforma urbana", dando-se uma amplitude à questão urbana antes nunca vista. Tais mudanças foram, sem sombra de dúvidas, fruto de um aprendizado adquirido ao longo da sua história e, principalmente, com a experiência, talvez, mais marcante de sua trajetória, iniciada no período pré-constituinte.

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Sobre a autora
Flávia de Sousa Marchezini

Procuradora do Município de Vitória (ES).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARCHEZINI, Flávia Sousa. Cidade e cidadania no Brasil: uma análise historiográfica da participação popular construída num ambiente urbano. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3144, 9 fev. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21028. Acesso em: 24 abr. 2024.

Mais informações

Anteriormente publicado na Revista Fórum de Direito Urbano e Ambiental – FDUA, Belo Horizonte, ano 8, n. 45, p. 12-25, maio/jun. 2009.

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