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Análise das ações afirmativas à luz do princípio da igualdade

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Agenda 25/02/2012 às 09:46

4. DAS AÇÕES AFIRMATIVAS FRENTE AO PRINCÍPIO DA IGUALDADE

4.1 Racismo, Preconceito e Discriminação

Na leitura dos textos constitucionais, muitas vezes encontramos as palavras: racismo, preconceito e discriminação. Tais termos confundem-se no ordenamento jurídico, embora sejam diferentes por definição. Tendo isso em vista, procuraremos sinteticamente distingui-los.

Racismo é conceituado pelos dicionários jurídicos da seguinte forma:

RACISMO. 1. Direito penal, a) Teoria defensora da superioridade de uma raça humana sobre as demais; b) crime inafiançável e imprescritível consistente em fazer discriminação racial, sujeito a pena de reclusão; c) segregacionismo; tipo de preconceito conducente à segregação de determinadas minorias étnicas; d) ação ou qualidade de pessoa racista; e) discriminação e perseguição contra raças consideradas inferiores (Matteucci). 2. Sociologia Geral, a) Conjunto de caracteres físicos, morais e intelectuais que distinguem certa raça; b) apego à raça." (DINIZ, MARIA HELENA, in "Dicionário Jurídico", vol. 4, Editora Saraiva, 1998, p. 29)

Acrescente-se ainda essa segunda definição:

RACISMO. S.m. (Fr. racisme) Dir. Pen. Forma extremada de preconceito que leva à segragação certas minorias étnicas. Segregacionismo. Cognato: racista (adj.), que é adepto do racismo. CF. arts. 3 (IV), 4 (VIII), 5 (XLII); L 7716, de 5.1.1989...." (OTHON SIDOU, J.M., in "Dicionário Jurídico da Academia Brasileira de Letras Jurídicas", 2a. edição, Ed. Forense Universitária, p. 465)

Ora, racismo pressupõe a crença em uma hierarquia entre determinados grupos humanos, isto é, que haveria um grupo superior dominante e um grupo inferior dominado (MADRUGA, 2005, P. 134).

Nesse sentido, Manoel Gonçalves Ferreira Filho (2000, p. 57) ensina que constitui racismo propugnar a separação de etnias. Ele diz ainda que a forma comum de racismo é a afirmação da superioridade de certas raças em relação a outras, idéia antiga e que não será eliminada de um sopro pela lei. Nas palavras dele:

Na mesma linha, José Cretella Júnior (1988, p. 175) entende que racismo é a "ideologia que defende a superioridade de um grupo étnico sobre outro (arianos e não-arianos)", tendente a promover a segregação ou até mesmo a eliminação de determinados grupos étnicos, como ciganos e judeus.

Salientemos desde já que tal conceito está ligado a fatores socioeconômicos e culturais. Ou seja, a noção de racismo não está restrita a noções de ordem antropológica ou biológica, projetando-se, ao contrário, numa dimensão abertamente cultural e sociológica (ABREU, 1999, p. 67).

Assim, configura racismo qualquer discriminação ilegal em relação a grupos de pessoas. Conforme deduzido pelo parquet federal no julgamento do Habeas Corpus n° 15.155 - RS (2000/0131351-7):

[...] também configura  racismo qualquer discriminação ilegal em relação à grupos de pessoas, quer sejam ligadas  por uma cultura e religião comuns (católicos, protestantes,  mulçulmanos, budistas, judeus, etc), quer sejam unidas pelos liames da mesma nacionalidade (alemães, americanos, argentinos, portugueses, israelitas, chineses, brasileiros, etc), quer sejam jungidas por laços de uma origem regional semelhante (nordestinos, sulistas, etc), quer sejam vinculadas por outros traços emocionais ou psicológicos, tais como a aparência da cor da pele (negros, índios, europeus,mestiços, etc.).

 Aliás, sublinhemos que a subdivisão da espécie humana em raças, do ponto de vista genético, não é cabível, pois brancos, negros, índios e amarelos formam todos, uma só raça. A diferença genética entre um ser humano e outro - independente de seus fenótipos - é tão pequena que a genética não autoriza a divisão em raças. Conseqüentemente, o termo racismo deve ter suas origens trabalhadas no âmbito sociocultural e não na biologia.

A idéia de inexistência de raça é aceita pelo Supremo Tribunal Federal, conforme julgamento do HC 82424/RS, em que foi Relator o Ministro Moreira Alves e Relator do Acórdão o Ministro Maurício Correa:

3. Raça humana. Subdivisão. Inexistência. Com a definição e o mapeamento do genoma humano, cientificamente não existem distinções entre os homens, seja pela segmentação da pele, formato dos olhos, altura, pêlos ou por quaisquer outras características físicas, visto que todos se qualificam como espécie humana. Não há diferenças biológicas entre os seres humanos. Na essência são todos iguais. 4. Raça e racismo. A divisão dos seres humanos em raças resulta de um processo de conteúdo meramente político-social. Desse pressuposto origina-se o racismo que, por sua vez, gera a discriminação e o preconceito segregacionista. (HC 82424 / RS - Relator:  Min. MOREIRA ALVES - Relator p/ Acórdão:  Min. MAURÍCIO CORRÊA- Julgamento:  17/09/2003 - Órgão Julgador:  Tribunal Pleno)

Por tudo isso, na mesma linha de entendimento do Ministro Celso de Mello, temos que o racismo é “um indisfarçável instrumento de controle ideológico, de dominação política e de subjugação social”.

Fica claro também que este é um conceito político-social e não biológico. Nas palavras do Min. Maurício Corrêa:

[,,,] o racismo é antes de tudo “uma realidade social e política”, sem nenhuma referência à raça enquanto caracterização física ou biológica, refletindo, na verdade, em reprovável comportamento que decorre da convicção de que há entre os diversos grupos humanos uma hierarquia, suficiente para justificar atos de segregação racial, inferiorização e até mesmo de eliminação de pessoas, como ocorreu no Holocausto da Alemanha nazista.

Esclarecida essa primeira definição, é necessário entender o que é preconceito. Esse termo designa um juízo de valoração a respeito de algo que ainda não se conhece (MADRUGA, 2005, P. 137). Trata-se, portanto, de um julgamento de forma antecipada.

Registra o Dicionário Aurélio que preconceito significa:

PRECONCEITO: "1.Conceito ou opinião formada antecipadamente sem maior ponderação ou conhecimento de fatos, idéia preconcebida. 2. julgamento ou opinião formada sem se levar em conta o fato que os conteste, prejuízo. 3. Superstição, crendice, prejuízo. 4. Suspeita, intolerância, ódio irracional ou aversão a outras raças, credos, religiões." - Novo Aurélio - O Dicionário da Língua Portuguesa - Século XXI - Editora Nova

Observe que suas conseqüências são suspeitas, intolerância, ódio irracional ou aversão a outras raças, credos, religiões, culturas, etnias, etc.

Ressaltemos que o preconceito tem índole subjetiva, ou seja, expressa opinião de foro íntimo. É uma postura interna preconcebida, de ordem psicológica, em relação ao próximo.

Por fim, entendamos o conceito de discriminação. Discriminar é separar, denota um ato segregacionista.  Trata-se de uma distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em diferenças reais ou imaginárias.

Conforme ensinamento de Joaquim B. Barbosa Gomes (2001, p.19) discriminação constitui a valorização generalizada e definitiva de diferenças, reais ou imaginárias, em benefício de quem a pratica, não raro como meio de justificar um privilégio. Ele afirma ainda que discriminar nada mais é do que insistir em apontar ou em inventar diferenças, valorizar e absolutizar essas diferenças, mediante atividade intelectual voltada à legitimação de uma agressão ou de um privilégio.

Adelino Brandão (2003, p. 12-13) diferencia os termos preconceito e discriminação da seguinte forma:

A discriminação (segregação, separação, apartação) é ato. Como ato, pode ser observado, descrito, testemunhado. Preconceito, como a etmologia do vocábulo indica (pré+conceito) é um pré-juízo, ou seja, um pré julgamento: juízo antecipado ou a priori – opinião formada sem reflexão, conceito anterior a toda experiência ou fato: prevenção, abusão. Encarado como fenômeno psicológico-social, o preconceito é atitude; isto é: expectativa de comportamento do outro. Não pode ser fixado, fotografado, registrado, realmente. Somente pode ser inferido. Num caso de discriminação, desde que os critérios sejam comuns, todos os observadores do fato estarão forçosamente de acordo sobre ele e poderão relatar, objetivamente, o que testemunharam. Num caso de preconceito, cada observador verá e interpretará a seu modo os dados apresentados e as contradições serão inevitáveis. O que a este pareceu manifestação inequívoca de “preconceito racial”, para aquele terá sido um simples “mal entendido”, enquanto um terceiro inferirá que se trataria de preconceito, mas de outra ordem ou categoria, nada tendo de ofensivo. A discriminação envolve desigualdade de tratamento. O preconceito envolve sentimentos (antipatia, aversão, ódio, medo, insegurança, desconfiança etc.).

Fica claro até agora que o racismo é a doutrina que sustenta a superioridade de um grupo em relação a outro. Ele está na raiz do preconceito e da discriminação ilegítima. Preconceito, por sua vez, é uma idéia preconcebida, isto é, formada antecipadamente, sem maiores ponderações ou conhecimento dos fatos. Diz respeito a sentimentos e opiniões intolerantes. Ora, trata-se de algo abstrato, de índole subjetiva, que pode inclusive nunca se manifestar. Já a discriminação estabelece diferenças, separa, segrega. Esta é, portanto, uma desigualdade de tratamento.

4.2 Discriminação legítima e Discriminação ilegítima

A discriminação pode ser ilegítima ou legítima.

Na ilegítima, os critérios usados são irrazoáveis. Utilizando-se de um díscrimen injustificado são atribuídos privilégios a determinados grupamentos, em detrimento de outros. Essa discriminação segrega grupos ou pessoas, em razão de sua cor, orientação sexual, idade, compleição física, etc.

Entre as formas ilegítimas, uma das mais perversas e mais difíceis de serem combatidas é a “discriminação por impacto desproporcional ou adverso”, também chamada de “discriminação de resultados” ou “estrutural”. Trata-se de uma discriminação indireta, ou seja, não advém de uma manifestação expressa. Ela é dissimulada, quase invisível. São, conforme explicação de Joaquim B. Barbosa Gomes (2001, p. 24), “práticas administrativas, empresariais ou de políticas públicas aparentemente neutras, porém, dotadas de grande potencial discriminatório”.

Ainda que não haja intenção discriminatória no momento da concepção dessa prática legislativa ou administrativa, em conseqüência de sua aplicação resultam efeitos nocivos sobre certas categorias de pessoas, historicamente vistas como socialmente vulneráveis.

Nas palavras de Álvaro Ricardo de Souza Cruz (2005, p. 33-34):

Conhecida também como discriminação indireta, a discriminação de fato, que não se dá por meio de atos concretos ou de manifestações expressas, aparece até mesmo nas práticas administrativas, empresariais e nas políticas públicas aparentemente neutras, quando recebe a denominação de discriminação por impacto desproporcional. Diz respeito a práticas já arraigadas, consolidadas no cotidiano e por isso consideradas legítimas até mesmo pelos operadores do Direito. A denominação discriminação por impacto desproporcional explica-se pelo fato de tais práticas procederem a um favorecimento desarrazoado de um grupo em detrimento de outro. Ocorre quando um mesmo tratamento aplicado a todos traz conseqüências negativas somente para alguns.

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Ora, é mais fácil perceber e combater a “discriminação intencional”, isto é, aquela que tem o intuito deliberado de marginalizar e traduz-se em atos concretos. É justamente pela dificuldade de ser identificada e combatida que a “disparate impact” - desprovida de concretude – torna-se a forma mais perversa de discriminação.

O “leading case” nessa matéria é o caso Griggs v. Duke Power Co., de 1970. Conforme Joaquim B. Barbosa Gomes (2001, p. 179) a empresa de energia elétrica Duke Power Co., pressionada pelo Estatuto dos Direitos Civis de 1964, permitiu que os negros fossem admitidos em outros setores, não mais se limitando as tarefas em que predominava o trabalho braçal.

Porém, tal empresa estabeleceu como requisito para a promoção de seus funcionários, a aprovação em dois testes de inteligência. Tal exigência, embora impostas indistintamente a negros e brancos, tinha um impacto desproporcional sobre os negros, posto que estes estudaram em escolas de ensino inferior ao ministrado nas escolas dos brancos.

Independente de existir ou não um “ânimo discriminatório” por parte da empresa, o fato é que havia um resultado econômico que perpetuava as iniqüidades sociais.

A Suprema Corte decidiu que provas de admissão, quando não estritamente relacionadas ao desempenho do ofício ou atividade almejada, são inconstitucionais.   Afirmou ainda que “a lei proíbe não apenas a discriminação manifesta, mas também as práticas que são justas na forma, porém, discriminatórias em sua operacionalização” (GOMES, 2001, p. 184).

Percebe-se com isso que as discriminações ilegítimas nem sempre são fáceis de serem identificadas.

Outra questão que dificulta demonstrar a ocorrência da discriminação ilegítima decorre do fato de que o ato configurador da prática discriminatória pode resultar de mais de um motivo, alguns deles legítimos. A isso se dá o nome de “Teoria dos Motivos Mistos” (Mixed motive theory).

Já a discriminação legítima é aquela que pode ser justificada e chancelada pelo direito.  Para que uma discriminação atenda os princípios de igualdade e seja constitucional, segundo Celso Antônio Bandeira de Melo (1978, p.49, 51) é necessário que haja uma relação de pertinência lógica entre “o fator de desequiparação e a diversificação de regime que se lhe faria corresponder”.

Em outras palavras, a discriminação não pode ser gratuita ou fortuita. É necessário que haja uma adequação racional entre: o tratamento diferenciado e o motivo desse tratamento. Nas palavras do próprio Celso Antônio Bandeira de Melo (1978, p. 51):

Em síntese: a lei não pode conceder tratamento específico, vantajoso ou desvantajoso, em atenção a traços e circunstâncias peculiarizadoras de uma categoria de indivíduos se não houver adequação racional entre o elemento diferencial e o regime dispensado aos que se inserem na categoria diferençada.

 Ademais, Celso Antônio Bandeira de Melo (1978, p. 55) ensina que essa correlação lógica precisa estar em conformidade com o sistema constitucional:

De logo, importa, consoante salientado, que haja correlação lógica entre o critério desigualador e a desigualdade de tratamento. Contudo, ainda se requer mais, para lisura jurídica das desequiparações. Sobre existir nexo lógico, é mister que esse retrate concretamente um bem – e não um desvalor – absorvido no sistema normativo constitucional.

Portanto, é necessário, primeiramente, que haja pressupostos fáticos diversos a serem diferenciado. Segundo, precisa-se de uma lei que os diferencie, instituindo um benefício ou exonerando de um encargo determinada categoria de pessoas ou uma pessoa futura e indeterminada. Tal lei deve ter a intenção de desequiparar, ou seja, a diversidade de tratamentos tem de ser professada inequivocamente e não obtida por via implícita ou fortuita. Por fim, é necessário que essa diferenciação tenha um fundamento racional e prestigiado em nossa ordenação jurídica máxima.

Como exemplo de discriminação legítima, temos o ato discriminatório decorrente das necessidades inerentes ao trabalho a executar (“business necessity”).  Ou seja, a natureza do negócio pode validamente justificar algum tipo de discriminação. Por exemplo, as mulheres não participam em certos setores das forças armadas em que é imprescindível a força física. Trata-se de uma discriminação juridicamente admissível, pois há uma justificativa racional para atribuir esse específico tratamento. O Superior Tribunal de Justiça, no Recurso Especial nº. 173312/MS, compartilhou desse mesmo entendimento:

EMENTA: CONCURSO PÚBLICO - ACESSO À CARREIRA MILITAR - DISTINÇÃO DE SEXOS - ISONOMIA - NÃO VIOLAÇÃO - "Resp- administrativo - Concurso público – Sexos masculino e feminino - Não pode haver distinção, em face da isonomia, dos direitos de homem e mulher, embora, pela própria natureza, certas atividades sejam próprias para o homem ou mais recomendadas para a mulher. O acesso é facultado às carreiras militares. Hoje, fica à deliberação do Estado, naquele concurso, precisar de pessoas para atividades recomendadas para homem e não para mulher. Em sendo assim, não vejo que a simples distinção, em si mesma, possa afrontar o princípio da isonomia." (Ac un da 6.ª T do STJ -Resp 173.312 - MS - Rel. Min. Luiz Vicente Cernicchiaro - j 23.11.98 - Recte.: Estado de Mato Grosso do Sul; Recda.: Francis Helen Dornelas Gimenez - DJU-e 1 22.03.99, p. 262 – ementa oficial) (IOB n.º 9/99 - Caderno 1 - pág. 257).

Outra pratica aceita como discriminação legítima são as ações afirmativas. Tais ações constituem justamente o foco do nosso trabalho.  Como já vimos anteriormente, elas consistem em dar tratamento preferencial a um grupo marginalizado, com o objetivo social de impedir a perpetuação de desigualdades historicamente comprovadas.

Porém, nem todos concordam com a legitimidade dessas ações. Analisaremos a partir de agora os argumentos dos opositores das ações afirmativas. Veremos ainda que, mesmo os que reconhecem a legitimidade dessas medidas, admitem que elas precisam preencher certas condições de validade, que também serão mencionadas no decorrer do capítulo.

4.3 Análise dos argumentos contrários às Ações afirmativas

A partir das ações afirmativas, vantagens não-extensíveis aos demais integrantes da sociedade são concedidas aos grupos desfavorecidos. Alguns desses benefícios não criam danos diretos a terceiros. É o caso, por exemplo, de uma legislação laboral protetora da condição singular feminina que garanta licença maternidade. Ora, conceder tal proteção à mulher não causa prejuízo direto a outros grupos.

 Existem, porém, outras medidas de promoção de grupos socialmente vulneráveis que provocam danos aos demais integrantes da sociedade. Tais medidas recebem o nome de discriminação reversa (reverse discrimination). A partir delas, uma categoria restrita é selecionada para receber vantagens, que, de outra forma, seriam disputadas por um grupo maior.

Com efeito, essas vantagens acabam sendo subtraídos do alcance dos não-beneficiários da política afirmativa. Ou seja, o favorecimento de um grupo implica, necessária e imediatamente, a exclusão de outro. O professor Paulo Gustavo Gonet Branco (2003, p. 131-140), comentando o assunto, assim nos explica:

Trata-se de ‘um jogo de soma zero, no qual a destinação de um bem a uma pessoa significa tirar esse mesmo bem de outra (...). É também um jogo de tudo-ou-nada, porque os bens e as posições alocados não podem ser divididos’. O estabelecimento de quotas para grupos desfavorecidos manifesta bem essa situação de soma zero, característica da discriminação reversa. Veja-se o que acontece aqui: há um número reduzido de vagas para estudantes numa universidade, que normalmente é posto à disputa de todos os interessados que preencham certas condições de capacidade mínima. Quando se adota uma política de quotas para favorecer um segmento da população, um certo número das vagas na universidade não estará mais em disputa pelos estudantes que não pertencem àquela parcela da população. E não estará à disposição de integrantes da maioria apenas por isso – por ele não compartilhar as características, no mais das vezes inatas, daquele segmento beneficiado com a reserva de vagas. Daí se falar em jogo de soma zero – o que é dado a alguém o é porque é retirado de outrem.

Os não contemplados pelas ações afirmativas não raro sentem-se descontentes com o tratamento preferencial dispensado aos beneficiários dessa política.

As principais críticas à ação afirmativa são as de que ela menospreza o princípio universal da igualdade; não leva em conta o sistema de mérito individual; reforça a discriminação e o preconceito racial e; a dificuldade de identificar quem é negro e quem é branco no Brasil.

Analisemos a primeira crítica, isto é, a afirmação de que as políticas de discriminação positiva são inconstitucionais pela quebra do princípio isonômico.

Ora, como vimos no primeiro capítulo deste trabalho, a igualdade ganhou novo contorno, incorporando ao seu conteúdo, a igualdade material.

Logo, o princípio da isonomia não deve ser analisado puramente em seu aspecto formal, mas também em perspectiva material. Com efeito, a aplicação pura e simples da igualdade formal perpetuaria as heranças discriminatórias históricas.

Assim, tomada a acepção material do princípio sob exame, as ações afirmativas nada têm de ilegítimas. José Joaquim Gomes Canotilho (1999, p. 385) bem retrata essa opinião:

Uma das funções dos direitos fundamentais ultimamente mais acentuada pela doutrina (sobretudo a doutrina norte-americana) é a que se pode chamar de função de não-discriminação. A partir do princípio da igualdade e dos direitos de igualdade específicos consagrados na constituição, a doutrina deriva esta função primária e básica dos direitos fundamentais: assegurar que o Estado trate seus cidadãos como cidadãos fundamentalmente iguais. (...) Alarga-se [tal função] de igual modo aos direitos a prestações (prestações de saúde, habitação). É com base nesta função que se discute o problema das quotas (ex.: parlamento paritário de homens e mulheres) e o problema das affirmative actions tendentes a compensar a desigualdade de oportunidades (ex.: quotas de deficientes).

Ainda seguindo esse raciocínio, temos o acórdão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, na Apelação Cível n.º 70013034152, julgada em 25/05/2006, pela terceira câmara cível, tendo como Relator o Des. Paulo de Tarso Vieira Sanseverino:

A deflagração de políticas pró-ativas, de ações afirmativas frente à questão da segregação racial, de forma a apaziguar os prejuízos impingidos a determinados grupos, excluídos de certos segmentos sociais, econômicos e culturais e com o gozo de direitos humanos e liberdades fundamentais mitigados, não revela violação ao princípio da igualdade. Configura apenas mais uma alternativa para viabilizar o seu hegemônico alcance, indo ao encontro da instituição do tão almejado Estado Democrático de Direito, como sabidamente está dito no preâmbulo da Constituição Federal: ‘(...) destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias (...)’.

Por tudo isso, percebemos que o entendimento predominante é o de que houve uma mudança de paradigmas do sistema jurídico, de tal forma que a igualdade formal foi alijada, dando-se preferência à faceta material do princípio isonômico. Ressaltamos ainda que a igualdade material  respaldam as ações afirmativas.

A própria Constituição-cidadã, como já vimos, foi além da mera vedação das práticas discriminatórias para adotar, por conta própria, políticas públicas de caráter afirmativo.

Em relação à segunda crítica, relativa ao sistema meritocrático, os detratores das ações afirmativas afirmam que, ao dar preferência a determinados grupos, adotam-se critérios de avaliação preestabelecidos, como a cor da pele, em detrimento das aptidões intelectuais e profissionais do indivíduo.

Já os que defendem as políticas afirmativas, sustentam a necessidade de alterar os critérios de apuração de mérito, buscando outros valores, que não digam respeito só ao intelecto. Eles sustentam que os padrões de admissão têm de incluir valores étnicos-raciais e socioeconômicos. Isso porque a inteligência é afetada pela trajetória escolar do indivíduo, de tal forma que os estudantes de condição econômica desfavorável ou marginalizados por serem negros, evidentemente, ficam prejudicados (MADRUGA, 2005, p. 211). 

Ora, tomemos um aluno que desfruta de uma educação de qualidade, em uma escola particular de ensino. Em geral, além de uma boa escola, este aluno também tem a sua disposição, os melhores livros, freqüenta cursos de idiomas estrangeiros, recebe de professores particulares reforço em certas matérias e tem um computador a sua disposição para fazer pesquisas.

Imaginemos, então, outro aluno, que estuda em uma das escolas públicas brasileiras - as quais passam à metade do ano em greve – e que vai para escola sem nem ao menos alimentar-se direito.

 Digamos que o primeiro aluno seja aprovado com 70 por cento de acertos num exame de admissão e o segundo aluno seja aprovado - graças ao sistema de cotas - com apenas 55 por cento de aproveitamento da mesma prova. Esse percentual de acerto indica que o primeiro estudante é mais inteligente que o segundo? Parece-nos que não.

Com efeito, se o segundo aluno, superando as adversidades de sua condição sócio-econômica ou a discriminação em razão da cor de sua pele, conseguiu concluir o segundo grau e obteve ainda os pontos necessários para sua admissão em um vestibular, ainda que dentro de um sistema de cotas, é sem dúvida porque tem seus méritos e estes em nada são inferiores ao de qualquer outro aprovado. Ambos os estudantes demonstraram amor à aprendizagem e alta capacidade de aproveitamento.

Semelhante posicionamento é esboçado por Sales Augusto dos Santos (2003, p. 113-114):

Contudo, faz-se necessário saber de quem é o mérito, ou, se se quiser, quem tem mais mérito. Serão aqueles estudantes que tiveram todas as condições normais para cursar os ensinos fundamental e médio e passaram no vestibular ou aqueles que, apesar das barreiras raciais e de outras adversidades em sua trajetória, conseguiram concluir o ensino médio e também estão aptos para cursar uma adversidade? Devemos considerar somente o mérito da chegada, aquele que se vê ou se credita somente no “cruzamento da linha de chegada”: na aprovação do vestibular? Ou devemos considerar também o mérito de trajetória, aquele que se computa durante a vida escolar dos estudantes, que leva em consideração as facilidades e as dificuldades dos alunos para concluírem os seus estudos?

Assim, mais uma vez mostra-se frágil o argumento contra as ações positivas. O mérito não precisa ser abolido, apenas ter um conjunto mais coerente de critérios, considerando questões econômicas e socioculturais.

O terceiro argumento contrário a essa nova política sustenta que as ações afirmativas reforçam a discriminação e o preconceito racial. Ou seja, elas aumentam a importância da raça na dos indivíduos, “reforçando tendências à racialização da vida política” (MUNANGA, P. 92-93). O resultado final disso seria a divisão da América em subnações raciais e étnicas.

Nesse sentido, George Reid Andrews (1997, p. 139) advertiu que a instituição de ações afirmativas nos Estados Unidos aumentou ainda mais o racismo contra os negros. Em relação a esse agravamento dos conflitos e tensões raciais no país, ele afirma que “Pesquisas indicam que a mera menção às ações afirmativas pode provocar a expressão de atitudes e comportamentos mais racistas entre os brancos do que na ausência de uma menção de tais programas”.

Combatendo essa idéia, Ronald Dworkin (2001, p. 438-439) ensina que a existência de uma consciência racial, tal qual existe nos Estados Unidos, é conseqüência de uma história de escravidão, repressão e preconceito, e não da criação de ações afirmativas. Ele afirma ainda que, os Estados Unidos permanecerão impregnados de divisões raciais enquanto as carreiras mais lucrativas, gratificantes e importantes continuarem a ser prerrogativas de membros da raça branca. Por fim, ele esclarece que é por aumentar o número de negros atuando como elite profissional, que se reduzirá o sentimento de frustração, injustiça e constrangimento racial na comunidade negra.

Assim, as ações afirmativas, ao buscarem a solução de distorções sociais e econômicas, não têm o condão de reforçar a discriminação e o preconceito enraizados no corpo social.

Grupos vulneráveis, como os negros e os índios, não serão diminuídos em seus valores pessoais ao serem beneficiados. Como defende Kabengele Munanga (1996, p. 126) “Desde quando a reparação de danos causados por séculos de discriminação prejudica a dignidade e o orgulho de uma população?”.

O quarto argumento contra as ações afirmativas é o fato de nos constituirmos em um país cuja miscigenação inter-racial foi tão constante que torna difícil a definição de quem é negro.

Nos Estados Unidos, conforme Kaufmann (2007, p. 240-241), prepondera um sistema birracial, isto é, só existem duas “raças”: negros e brancos. Não há categoria de mulatos, morenos ou pardos. Apenas uma gota de sangue negro enegrece a pessoa, ainda que, aparentemente, o indivíduo seja branco. São consideradas negras as pessoas que possuem qualquer ancestralidade africana, tal critério é conhecido como “one drop rule”. Assim, tem-se nesse sistema a necessária objetividade para definir os beneficiários das ações afirmativas.

Já no Brasil, existem várias “raças” intermediárias entre os brancos e os negros, por isso, dizemos tratar-se de um sistema multiracial. Na definição das “categorias raciais” conjugam-se fatores como aparência física, cor da pele e status social (Kaufman, 2007, p. 245-251).

Aqui, sempre se adotou o sistema de autoclassificação, o qual permite fraudes, pois pessoas usando de má-fé podem se declarar negras para se beneficiarem das políticas afirmativas  (Kaufman, 2007, p. 253).

Combatendo esse argumento dos detratores, Cidinha da Silva (2003, p. 39) afirma que é contraditório que todos saibam quem é negro na hora de preteri-los, mas não quando se trata de resguardá-los de manifestações racistas. A autora assim expõe seus argumentos:

Tão logo se iniciou a discussão sobre a implantação das cotas para negros (as) nas universidades brasileiras, seus opositores tentaram impor-nos um falso dilema: quem é negro(a) no Brasil? “Dúvida” nova, haja vista que, para discriminar, o tiro vem historicamente sendo certeiro, mas para garantir direitos (desconstruindo privilégios), surpreendentemente, a pessoa negra se desvanece na decantada miscigenação racial brasileira.

Por tudo isso, vemos o quanto são frágeis os argumentos contrários às ações afirmativas. Assim, esta nova política se estabelece firmemente como instrumento hábil de combate a discriminação.

4.4 Análise das ações afirmativas frente ao princípio constitucional da igualdade

Já constatamos que as normas podem estabelecer critérios diferenciadores entre as pessoas, desde que à eleição de tais critérios seja justificável. São as chamadas discriminações legítimas.

Verificamos ainda que essas discriminações constituem-se em gênero, do qual as discriminações decorrentes da natureza da atividade ou do negócio (business necessity) e as ações afirmativas são espécies.

Entretanto, o fato das ações afirmativas, em tese, serem tidas como não significa que todo programa positivo é invariavelmente amparado pelo sistema constitucional. Isso porque, uma análise desse teor não pode ser feita em abstrato. Assim, cada medida específica deve ser diagnosticada no caso concreta.

 Ademais, uma mesma medida pode ser constitucional em uma região e não o ser em outra, pois a análise depende também do contexto social e cultural para o qual for estabelecida.

Ora, as diferenciações não transgridem a igualdade desde que possuam fundamento razoável e proporcional. É justamente a proporcionalidade que fornece subsídios para melhor interpretação dos casos que digam respeito à restrição de direitos.

Dessa forma, precisamos analisar primeiramente se há conformidade ou adequação dos meios ao objetivo visado. Assim, as políticas afirmativas devem ser adequadas aos nossos problemas, não cabendo a simples transposição de modelos europeus ou norte-americanos para nosso país. Conforme ensinamentos de Munanga (1996. p. 268): aproveitar sem copiar, as experiências estrangeiras, para reinventar nossas próprias soluções.

Além disso, devemos examinar também se a ação afirmativa possui um critério exigível e necessário. Isso porque entendemos que o programa adotado não pode extravasar os limites da consecução dos objetivos determinados.

É necessário ainda diagnosticar se não há um meio de ação menos gravoso, capaz de produzir resultado similar. 

Conforme ensina Roberta Fragoso Menezes Kaufmann (2007, p. 272), as medidas precisam ser as mais limitadas possíveis. Por isso, é conveniente estabelecer prazos certos de duração para as ações afirmativas e elas devem prever um critério de qualificação mínima para os candidatos. Mesmo porque pessoas sem qualificação não conseguiriam acompanhar o ritmo dos demais colegas, ficariam desmotivadas e, conseqüentemente, abandonariam seus cargos e ou estudos.

Tal idéia, de que não se podem ampliar demasiadamente os programas positivos, é conhecida como narrowly tailored (estreitamente desenhadas) e é utilizada pela Suprema Corte dos Estado Unidos como base para analisar a constitucionalidade de programas desse tipo.

Ora, uma política melhor desenhada é mais específica e diminui a margem de pessoas reversamente discriminadas. Por exemplo, imaginemos a reserva de 30 por cento de vagas para negros em um determinado concurso público. Com efeito, a adoção do critério racial isolado acaba beneficiando, sobretudo, a classe alta e média negra que não é a mais carente de benefícios. Dessa forma, a classe pobre negra não seria tão beneficiada.

Ademais, tanto os brancos ricos, quanto os brancos pobres estariam sofrendo danos decorrentes dessa discriminação reversa. Seria justo um programa que beneficiasse negros ricos em um país em que brancos pobres também não tem igualdade de oportunidades? Parece-nos que não.

Entendemos, portanto, que uma ação afirmativa bem desenhada, nesse caso, conjugaria o binômio: raça e pobreza. Acrescentemos inclusive que a união do critério racial com o social daria mais legitimidade a essa medida e a tornaria passível de maior apoio popular.

Por fim, deve-se analisar a proporcionalidade em sentido estrito, na qual se procura perquirir se os resultados obtidos pela política afirmativa são proporcionais à intervenção efetuada. Como ensina Robert Alexy (1999, p. 78), “quanto mais grave é a intervenção em um direito fundamental, tanto mais graves devem ser as razões que a justifiquem”.

Comentando as condições de validade das ações afirmativas Sydney Pessoa Madruga da Silva (2005, p. 268) ensina:

Os critérios diferenciadores suficientes a caracterizar a legitimidade de determinado ato consistem, basicamente, nos seguintes elementos: os objetivos dos atos discriminatórios devem ser lícitos; a desigualdade deve possuir um nexo plausível com a finalidade da norma; e o estabelecimento da diferença ter um conteúdo de razoabilidade e proporcionalidade.

Similar a essa idéia, segundo Mônica de Melo (1998, p.92), a Corte Internacional de Direitos Humanos aceita discriminações quando, cumulativamente: os objetivos da norma ou medida que estabelece o tratamento diferenciado são lícitos; a distinção é baseada em desigualdades reais e objetivas entre as pessoas e circunstâncias; e a proporcionalidade é obedecida.

Ainda nesse sentido, Cláudio Petrini Belmonte (1999, p. 157-174) ressalta serem proibidas diferenciações de tratamento sem fundamento material bastante (sem qualquer justificação razoável), segundo critérios relevantes. Diz ainda que a norma será arbitrária se não se basear num fundamento sério, se for sem sentido e sem um fim ou se criar diferenciações jurídicas em relação às quais não é evidente um fundamento razoável .

Quem faz uma análise bem detalhada a respeito desse tema é Celso Antônio Bandeira de Melo, em “O Conteúdo Jurídico Constitucional da Igualdade”. Já inclusive citamos algumas considerações desse autor ao tratar das discriminações legítimas, debaixo do tema, “Racismo, Preconceito e Discriminação”. Porém, consideraremos, a partir de agora, de forma mais detalhada essa obra, fundamental para entender que diferenciações podem ser feitas sem a quebra da isonomia.

O referido autor procura delinear qual o critério legitimamente manipulável que autoriza distinguir pessoas e situações em grupos apartados, para fins de tratamentos jurídicos diversos, sem que haja agravos à isonomia.

Cabe a lei dispensar tratamentos desiguais. Ela elege um elemento diferencial e atribui-lhe relevo para fins de discriminar situações. Ou seja, a lei cria regimes diversos, por deferir direitos e obrigações diferentes, para categorias diferentes.

Ora, já que a lei tem a função de discriminar, que este é seu exercício normal, resta saber quando lhe é vedado estabelecer discriminações.

Por via do princípio da igualdade, não se pode estabelecer desequiparações fortuitas, arbitrárias ou injustificadas. Qualquer especialidade ou prerrogativa deve ser fundada em uma razão muito valiosa do bem público.

Segundo Celso Antônio Bandeira de Mello (1978, p. 16), entre as pessoas há diferenças facilmente perceptíveis a olhos vistos, as quais, todavia, não poderiam ser, em quaisquer casos, erigidas, validamente, em critérios distintivos justificadores de tratamentos jurídicos díspares. Exemplificando isso, ele nos diz:

Assim, ‘exempligratia’, são nitidamente diferenciáveis os homens altos dos homens de baixa estatura. Poderia a lei estabelecer – em função dessa desigualdade evidente - que os indivíduos altos têm direito a realizar contratos de compra e venda, sendo defeso o uso desse instituto jurídico às pessoas de amesquinhado tamanho? Por sem dúvida, qualquer intérprete, fosse ele doutor da maior suposição ou leigo de escassas luzes, responderia pela negativa.

Porém, atentemos ao seguinte fato: se a estatura, nesse caso, não é suscetível de erigir um critério diferencial das pessoas, não significa que, em outra situação, ela não possa caracterizar-se como um discrímen legítimo. Prova disso é a decisão do Supremo Tribunal Federal, ao julgar o Recurso Extraordinário nº.140889:

RECURSO EXTRAORDINÁRIO - CONSTITUCIONAL - ADMINISTRATIVO - CONCURSO PÚBLICO PARA INGRESSO NA CARREIRA DE DELEGADO DE POLÍCIA - ALTURA MÍNIMA - REQUISITO - RAZOABILIDADE DA EXIGÊNCIA - 1. Razoabilidade da exigência de altura mínima para ingresso na carreira de delegado de polícia, dada a natureza do cargo a ser exercido. Violação ao princípio da isonomia. Inexistência. Recurso extraordinário não conhecido. (STF - RE 140889 - 2ª T. - Rel. Min. Marco Aurélio - DJU 15.12.2000 - p. 00104)

Nesse segundo caso, portanto, o díscrimen estatura é justo, pois se mostra adequado à função a ser exercida. Existe uma razoabilidade nessa exigência. Pelo que se conclui que em um caso o díscrimen pode ser ilegítimo e em outro legítimo.

Qualquer elemento residente nas coisas, pessoas ou situações pode ser escolhido como fator discriminatório (estatura, credo religioso, cor da pele, cor dos olhos, sexo, compleição física, etc.) sem que isso signifique, por si só, um desacato ao princípio isonômico. Conseqüentemente, não é no traço de diferenciação escolhido que se firmam as desequiparações, sejam elas odiosas ou legítimas.

Ainda assim, o critério discriminatório adotado tem de preencher dois requisitos.  O primeiro é que ele deve ou voltar-se para um único indivíduo indeterminado e indeterminável no presente, ou atingir uma categoria de pessoas. Pois, caso se refira a um sujeito único, atual, determinado ou determinável estará transgredindo a isonomia. O motivo disso fica claro na explicação de Celso Antônio Bandeira de Mello (1978, p. 32):

Figure-se grotesca norma que concedesse benefício ao Presidente da República empossado com tantos anos de idade, portador de tal título universitário, agraciado com as comendas tais e quais e que ao longo de sua trajetória política houvesse exercido os cargos X e Y. Nela se demonstraria uma finalidade singularizadora absoluta; viciosa, portanto. Trata-se, então, de saber se a regra questionada deixa postas abertas à eventual incidência futura sobre outros destinatários inexistentes à época de sua edição, ou se, de revés, cifra-se que ostensiva quer sub-repticiamente apenas a um destinatário atual. Neste último caso é que haveria quebra do preceito igualitário.

O segundo requisito é que o critério discriminatório há de residir, necessariamente, na pessoa, coisa ou situação, pois elemento algum que não resida nelas mesmas poderá servir de base para sujeitá-las a regimes diferentes. Afinal, não há como desequiparar pessoas e situações quando nelas não se encontram fatores desiguais.

Além disso, deve haver uma correlação lógica entre o fator de desigualação e o tratamento jurídico diferenciado. Essa pertinência lógica não pode ser aferida de forma abstrata, pois dependendo do momento histórico e das concepções próprias da época, uma mesma lei poderá ora ser ofensiva ao princípio isonômico, ora ser plenamente compatível com ele.

Por fim, é necessário que a correlação lógica entre o critério de discriminação e o tratamento jurídico diferenciado esteja em consonância com os interesses prestigiados na ordenação jurídica máxima, a Constituição.

Por tudo isso, concluímos que nem todo programa positivo é invariavelmente amparado pelo princípio constitucional da igualdade. Sendo assim, é imprescindível que cada medida específica seja diagnosticada no caso concreto.

Nessa análise, devemos apurar: se há fundamento razoável e proporcional para atribuir um tratamento diferenciado; se há conformidade ou adequação dos meios ao objetivo visado; se não há um meio de ação menos gravoso, capaz de produzir resultado similar; se os resultados obtidos pela política afirmativa são proporcionais à intervenção efetuada; se há uma correlação lógica entre o fator de desigualação e o tratamento jurídico diferenciado; e, por fim, se essa correlação está de acordo com os interesses absorvidos no sistema constitucional.

Sobre a autora
Poliana Pereira Garcia

Servidora pública

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GARCIA, Poliana Pereira. Análise das ações afirmativas à luz do princípio da igualdade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3160, 25 fev. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21152. Acesso em: 23 nov. 2024.

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