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O artigo 196 do Código de Processo Civil e o devido processo legal

Agenda 01/10/2001 às 00:00

"Os poderes do juiz no processo gozam de natureza constitucional e de natureza processual.

Mas o instituto em estudo os poderes judiciais processuais, gozam de natureza constitucional.

A Constitucionalidade é qualidade inerente a este instituto. " VICENTE MIRANDA


1. INTRODUÇÃO. INFORMAÇÕES INICIAIS

O artigo 196 do Código de Processo Civil ostenta

esta redação:

" É lícito a qualquer interessado cobrar os autos ao advogado que exceder o prazo legal. Se intimado, não os devolver dentro em 24 horas, perderá o direito à vista fora do Cartório e incorrerá em multa, correspondente à metade do salário mínimo na sede do juízo.

Parágrafo único. Apurada a falta, o juiz comunicará o fato a seção local da Ordem dos Advogados do Brasil, para o procedimento disciplinar e imposição de multa."

Fazendo repousar as suas decisões nesse texto, os Juizes do Trabalho determinam com uma regularidade e automaticidade que traduz inserção em programa computadorizado, a intimação dos advogados que ficam com os autos em seu poder além de

quinze dias, aproximadamente, a devolve-los no prazo de 24 horas, sob pena da imposição da punição legal, proibindo-o de retirar os autos durante seis (06) meses, sem prejuízo da comunicação à Ordem dos Advogados para a imposição das demais penas.

Há juizes que vão além e valem-se, de logo, da comunicação ao Ministério Público para a apuração do correspondente crime através de processo penal com a consequente punição criminal.

O fato se repete com muita frequência, sobretudo relativamente quanto a advogados que trabalham em escritórios de maior porte, porque há, naturalmente maior movimentação de autos e, muitas vezes, quem os retira não é o profissional que está no patrocínio da causa, ou porque há maior complexidade e necessidade de maior exame, ou, frequentemente, para elaboração de cálculos que dependem de um contador especializado.

Evidentemente que, se o advogado tem contra sí um prazo fluindo, esgotado este, o seu pronunciamento depois do respectivo termo final, de nada valerá, e deverá ser desentranhado. É esta uma consequência processual a que ninguém pode fugir: não cumprido o prazo, incide a coisa julgada ou a preclusão. É inevitável, de sorte que neste trabalho não há lugar para exame desta situação processual.

Reportamo-nos ao advogado que retira os autos do Cartório para exame e prosseguimento, por exemplo, de uma execução, ou para colher prova emprestada, ou elaborar cálculos de liquidação ou artigos de liquidação, por exemplo.

Nestas situações é que são aplicadas as penas aos advogados tidos como faltosos porque não devolveram os autos cobrados no prazo que é sempre fixado em vinte e quatro horas (24).

Intimado o advogado, não devolvidos os autos, punição para o advogado, comunicação à OAB para novas penalidades e informação ao Ministério Público para o Processo Penal.

Questiona-se, então, se este proceder estaria correto constitucionalmente.

Entendemos que não e dizemos porque.


2. O ARTIGO 196, DO CPC E A CONSTITUIÇÃO FEDERAL

A Lei Maior do nosso País dispõe de norma específica a respeito, impedindo que qualquer acusado seja condenado sem a necessária defesa, que se denomina, sem o devido processo legal, situação processual que está incrustada no artigo 7º, LV, com estas palavras:

" aos litigantes em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral, são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes."

Em consequência, ninguém pode ser condenado ou sofrer qualquer tipo de punição sem que lhe seja assegurada a ampla defesa e o contraditório, a produção de provas, a utilização dos recursos cabíveis. Seja quem for, seja em que processo for, quer judicial, quer administrativo.

Na situação aqui enfrentada, todavia, o advogado é apenado puramente por não atender a uma intimação para devolução dos autos em vinte e quatro horas (24), sem direito a ampla defesa, ao contraditório, à produção de provas, aos recursos pertinentes e que existiram.

A intimação não é para que o advogado se defenda, se justifique, ao menos, é para devolver os autos sob as penas da lei, que não de pronto utilizadas sem mais qualquer outro ato.

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Não há a utilização do devido processo legal, do contraditório, da ampla defesa, dos recursos incidentes. A Secretaria certifica a não devolução e o advogado é, imediatamente apenado sem mais quaisquer investigações.

Aí reside a inconstitucionalidade, pois qualquer pena há de ser precedida do devido processo legal. Só então o acusado pode ser apenado.


3. O QUE É O DEVIDO PROCESSO LEGAL

Aqui nos valeremos dos ensinamentos dos doutrinadores, dos mestres constitucionalistas e processualistas para melhor sustentar a nossa tese e, dizem os estudiosos sobre "due process of law" o que a seguir se lê:

"O princípio do devido processo legal entra agora no Direito Constitucional Positivo com um enunciado que vem da Carta Mágna Inglesa: ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal (art. 5º LIV).

Combinado com o direito de acesso à Justiça (art. 5º XXXV) e contraditório e a plenitude da defesa (art. 5º LIV), fechando-se o cerco das garantias processuais. Garante-se o processo, e quando se fala em processo, e não em simples procedimento, alude-se sem dúvida, a formas instrumentais adequadas, a fim de que a prestação jurisdicional quando entregue pelo Estado, dê a cada um o que é seu, segundo os imperativos da ordem jurídica. E isso envolve a garantia do contraditório, a plenitude do direito de defesa, a isonomia processual, a bilateralidade dos atos procedimentais, conforme autoriza lição de Frederico Marques. "JOSÉ AFONSO DA SILVA, 11ª ed. MALHEIROS, pág. 411.

Nesse passo, segue J. CRETELLA JÚNIOR, afirmando o seguinte:

"A expressão "devido processo legal é a versão " ad litteram" da expressão inglesa due process of law correta e correspondente em nossa língua deverá ser "adequado processo jurídico". Due em inglês, é "devido", "próprio",adequado. Seu antônimo é undue (not just: not lawfull, as na undue proceding; improper, not appropriate, or

suitable ). Em vernáculo teremos "não devido, "não justo, injusto, ilegal (como, por exemplo, na frase: um processo ilegal, impróprio, inadequado, não apropriado ou seguivel). DEVIDO PROCESSO LEGAL é aquele em que todas as formalidades são observadas, em que a autoridade competente ouve o réu e lhe permite a ampla defesa, incluindo-se o contraditório e a produção de todo tipo de prova – desde que obtida por meio lícito – prova que entenda seu advogado dever produzir, em juízo. Sem processo e sem sentença, ou prolatada esta por magistrado incompetente, ninguém será privado da liberdade ou de seus bens. "COMENTÁRIO À CONSTITUIÇÃO DE 1988, I Vol. J. CRETELLA JÚNIOR, Ed. Forense Universitária, 2ª ed. Pág.530.

A consagrada ADA PELLEGRINE GRINOVER, segue caminho que adota o mesmo endereço, como de resto o fazem os demais estudiosos do Direito Processual e do Direito Constitucional, e diz ela:

"Passando a outra disposição, verifiquemos a que estipula que ninguém poderá ser privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal( art. 5º LIV da CF). Essa regra, que se extrai do sistema anterior, hoje vem escrita, com todas as letras, na Constituição. "pág.39.

Reportando-se ao art. 601, do Código de Processo Civil, diz assim a consagrada autora:

"O que ocorre aqui é a possível perda da propriedade, pela via do processo de execução, sem a garantia constitucional do devido processo legal.

Eis um vício que acarreta a nulidade absoluta, derivada do descumprimento da garantia constitucional, se os atos forem praticados conforme permite a disposição processual.

Com relação ao contraditório e a defesa, gostaria de analisar mais profundamente o que vem expresso no inc. IV, do art. 5º, da Constituição:

"Aos litigantes em processo judicial ou administrativo e aos acusados em geral, são assegurados o contraditório e a ampla defesa com os meios e recursos a ela inerentes."

As garantias da defesa e do contraditório são intimamente ligadas, porque da defesa brota o contraditório e, pela informação que dá pelo contraditório, faz-se possível a defesa. Eis a interação entre os dois princípios. Essas garantias nasceram historicamente para o processo penal. Foram, depois, levados ao processo civil e, embora não explicitamente nas constituições anteriores, doutrina e jurisprudência as aceitavam, para o processo não - penal, do princípio da inasfatabilidade do controle judicial.

Mais tarde ainda, com a tendência que se chamou de jurisdicionalização do processo administrativo, acabou-se reconhecendo o direito ao contraditório e à ampla defesa em todos os processos administrativos de natureza punitiva; ou se, naqueles procedimentos administrativos poderiam culminar em aplicação de uma penalidade." ADA PELLEGRINE GRINOVER – "PROCESSO EM EVOLUÇÃO"- Editora Universitária Forense, 1ª ed. 1966, págs. 40/41.

Ressalta desses escólios, que ninguém pode sofrer uma pena sem a oportunidade do contraditório e da ampla defesa com a produção das provas que sustentem a defesa.

Vê-se, por conseguinte, que a punição a qualquer acusado, mesmo em processo administrativo, que é a hipótese aqui enfrentada, só pode ocorrer depois de adotado o devido processo legal, isto é, depois de aberta a oportunidade ao advogado acusado de retenção abusiva de autos, depois de apuração levada a efeito com a obediência ao dispositivo constitucional que impõe a obediência ao devido processo legal, garantida ao acusado a mais ampla defesa e o contraditório, com a produção das provas permitidas e da utilização dos recursos que couberem.


4. POSIÇÃO DA OAB SOBRE A MATÉRIA ABORDADA

O Estatuto da Advocacia e da OAB, diz no Capítulo destinado rotulado "DAS INFRAÇÕES E SANÇÕES DISCIPLINARES", artigo 34, inciso XXII, que:

"Constitui infração disciplinar:

................

reter abusivamente, ou extraviar autos recebidos com vista ou em confiança."

A retenção, portanto, há de ser abusiva, isto é, na linguagem jurídica,

"Exercício ou irregular de um direito, ou seja, além de seus limites e fins sociais, causando prejuízo a outrem, sem que haja motivo legítimo que o justifique. É um ato ilícito que gera o dever de ressarcir o dano causado".DICIONÁRIO JURÍDICO, de MARIA HELENA DINIZ, Vol. I, pág. 32.

Como ato ilícito, deve ser devidamente apurado, sem conclusões precipitadas, decorrentes, apenas de simples intimação para devolução dos autos, e não deve haver justificativa para esse ato ilegítimo, só apurável através do devido processo legal.

Segundo, pois, a redação do dispositivo do Estatuto, para que a retenção dos autos se constitua em motivo de aplicação de pena, é imprescindível que o comportamento do advogado seja abusivo, ilícito e a abusividade e ilicitude não se presume, devem ser provadas pois resultarão numa pecha na vida do profissional, de modo indelével, incluindo-o no rol dos irresponsáveis e por isso, mau comportamento não se presume: comprova-se e a comprovação só pode ocorrer mediante apuração do fato seguindo-se o devido processo legal, de acordo com os ditames constitucionais.

Nesse passo o Conselho Federal da Ordem dos Advogados assim decidiu sobre o tema:

"Emente: RETENÇÃO ABUSIVA DE AUTOS. NECESSIDADE DA PRESENÇA DE ELEMENTOS SUBJETIVOS, EFETIVAMENTE DEMONSTRADOS NOS AUTOS :A MÁ FÉ E A VONTADE CONSCIENTE DE CAUSAR PREJUÍZOS À PARTE ADVERSA. NÃO HÁ DE SE CONCEBER DIANTE DE DÚVIDAS E INCERTEZAS, POSSA SER APLICADA A RIGOROSA PENA DE SUSPENSÃO A PROFISSIONAL, QUE LHE CAUSARÃO PERDAS MATERIAS PRINCIPALMENTE A DE NATUREZA MORAL. SÓ A "VERDADE MATERIAL"AUTORIZA A APLICAÇÃO DA PENALIDADE E ESTA SÓ PODERÁ SER EXTRAÍDA, FACE A ANÁLISE DAS PROVAS EXISTENTES. AUTOS. RECURSO PROVIDO." Proc. nº 00l.751/97/SCA- PR, Rel. Edson Damasceno – In EMENTÁRIO DO CONSELHO FEDERAL 1997/1998, págs. 115/116.

E de outro modo não pode ser, porque sem uma apuração meticulosa, na qual se dê seguimento ao devido processo legal, assegurando-se ao advogado acusado defesa ampla e o direito de produção de prova, impossível imputar-lhe a prática de ilícito profissional, que pode ser até caracterizado como ilícito penal e arruinar uma carreira profissional, até porque a decisão judicial é sempre dada a público através dos editais constantes do Diário da Justiça, execrando a figura do profissional, na maioria das vezes sério e competente, que, por motivos não revelados, passou do prazo para a devolução dos autos que lhe fora confiados. E para se saber desses motivos é imprescindível a adoção do devido processo legal, como já demonstrado insistentemente.


6. CONCLUSÃO

A nossa conclusão, é, pois, apontada na direção segundo a qual não pode o juiz, sem a instauração do devido processo legal, através do qual assegure-se ao advogado defesa ampla com a produção das provas disponíveis e dos recursos pertinentes, evitando-se a execração pública de um profissional que pode ser dedicado a sério, e que por motivos alheios à sua vontade reteve autos, muitas vezes até já findos, para colher uma prova emprestada, por exemplo, como já foi dito retro

Sem, em consequência, a adoção do devido processo legal, é impossível, validamente, ser punido o advogado sob a acusação de retenção de autos, mesmo após a sua intimação para devolvê-los em 24 horas e sem que tenha sido obedecido o preceito constitucional do devido processo legal, muito menos cabe, por consequência ao Ministério Público, como se a apuração tivesse sido levada a cabo e apurada a responsabilidade criminal do advogado, e na verdade, nada disso ocorrera, tudo não passando, data vênia, de um exagero e de uma aplicação literal da lei, contrariando a lição de Carlos Maximiliano, de acordo com a qual por mais clara que pareça a lei, deve ser ela sempre interpretada, merecendo cada ramo do direito a sua hermenêutica própria e específica e, no caso, cuida-se de acusação séria, que pode levar o advogado até ao processo penal e a uma condenação criminal.

Não pode, então, valer-se o juiz do texto literal da lei para punir o advogado sem a necessária apuração dos fatos.

Recorde-se que faltando o empregado a duas audiências iniciais, o juiz deve aplicar-lhe a punição de permanecer por 06 (seis) meses sem poder ajuizar um outra reclamação. Mas por se tratar de uma pena, esta só pode ser imposta depois de apurada a falta, isto é, depois de seguido o devido processo legal. O advogado não pode merecer tratamento diferenciado.

Sobre o autor
Euripedes Brito Cunha

advogado em Salvador (BA)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CUNHA, Euripedes Brito. O artigo 196 do Código de Processo Civil e o devido processo legal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 6, n. 51, 1 out. 2001. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2130. Acesso em: 22 nov. 2024.

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