RESUMO: O presente artigo busca expor as correntes doutrinárias que travam relevante debate acerca da natureza jurídica das leis orçamentárias, analisando a aplicabilidade prática e as implicações jurídicas decorrentes, tendo em vista o conteporâneo conceito de orçamento como peça de planejamento do Estado, bem como a crescente tendência de conferir à lei orçamentária função que não se limita à mera autorização formal de dispêndios públicos.
Palavras-chave: orçamento público; natureza jurídica do orçamento; lei de efeitos concretos; orçamento autorizativo; modelo impositivo de orçamento.
SUMÁRIO: 1. Introdução – 2. Do Debate quanto à Natureza Jurídica do Orçamento – 2.1. Do Contemporâneo Conceito de Orçamento como Instrumento de Planejamento – 2.2. Das Correntes Doutrinárias acerca da Natureza Jurídica do Orçamento – 3. Da Aplicabilidade Prática do Debate e suas Implicações Jurídicas – 3.1. Orçamento: Lei de Efeitos Concretos –3.2. Da Discussão acerca do Modelo Impositivo de Orçamento – 4. Conclusão.
1. INTRODUÇÃO
Tema que sempre originou controvérsias na disciplina do direito financeiro refere-se ao exame da natureza jurídica do orçamento. Algumas correntes doutrinárias protagonizam o acalorado debate com teses que buscam identificar a essência jurídica do instituto. Ao tempo em que permanece a polêmica ante a ausência de unanimidade no campo doutrinário, o ordenamento jurídico brasileiro trata de conferir ao orçamento público natureza de lei, servindo de instrumento autorizativo para o dispêndio dos gastos públicos.
Em que pese, contudo, situar-se o orçamento nos contornos da atividade legiferante do Estado, é de se observar que o modelo constitucional desenhado para o instituto não se cinge ao caráter legal por meio do qual se instrumentaliza, mas é o orçamento público atual peça de planejamento que assume a função de elemento de programação política e econômica do País, adquirindo substancialmente essência de ato político-administrativo, na medida em que expõe o plano de ação do Estado na busca pela consecução dos seus fins.
Nesse sentido, importante questão concernente ao caráter autorizativo ou impositivo do orçamento para o dispêndio dos gastos públicos surge como decorrência direta do exame da natureza jurídica orçamentária, revelando-se ser tendência crescente o anseio social para fins de vinculação do Estado ao instrumento orçamentário.
Para a discussão do presente tema, inicialmente são tecidas breves considerações a respeito do contemporâneo conceito de orçamento enquanto instrumento de planejamento. Após, adentra-se no exame da natureza jurídica do instituto, à luz das diversas correntes doutrinárias. Por fim, analisa-se o atual caráter autorizativo da lei orçamentária em face da discussão acerca da implantação de eventual modelo impositivo de orçamento.
2. DO DEBATE QUANTO À NATUREZA JURÍDICA DO ORÇAMENTO
2.1. DO CONTEMPORÂNEO CONCEITO DE ORÇAMENTO COMO INSTRUMENTO DE PLANEJAMENTO
Para o regular funcionamento da sociedade e a garantia do bem estar comum, é dever do Estado suprir as chamadas necessidades públicas [1], que se referem ao conjunto das obrigações que o Estado se vinculou junto à sociedade, por meio de um comando normativo. Sendo o atendimento das necessidades públicas meta a ser satisfeita pelo Estado, surge daí, então, a necessidade do exercício de uma atividade financeira estatal [2], justamente para viabilizar a consecução desses objetivos, por meio do instrumento que chamamos de Orçamento.
A bem da verdade, o orçamento encontra suas origens na necessidade de autorizar e controlar a aplicação dos recursos públicos, estando relacionada, assim, ao desenvolvimento da democracia, como forma de oposição Estado arbitrário antigo, em que o chefe do executivo considerava-se soberano e detentor do patrimônio originário da coletividade. Portanto, no seu âmago, trata-se o orçamento de autorização para que os representantes do povo possam, em seu nome, realizar o dispêndio dos recursos públicos.
Atualmente, além de cumprir o papel de autorização para a aplicação dos recursos, o orçamento passou, também, a ser instrumento de planejamento das ações do Estado. Inicialmente, o conceito clássico do orçamento previa uma peça que contemplava apenas a estimativa das receitas e a fixação das despesas, em um documento estático, eminentemente contábil e financeiro. Com o passar dos tempos, a peça orçamentária veio se aprimorando até adquirir característica de instrumento de gestão. Com o desvanecimento da versão clássica, surgiu o conceito moderno de orçamento, que faz as vezes de planejamento, por isso também chamado orçamento-programa.
De fato, a contemporânea peça orçamentária caracteriza-se, pois, por inserir-se dentro de um contexto dinâmico de ação e planejamento, como instrumento de programação política e econômica do País:
"O orçamento como veiculador de determinada política financeira do Estado acaba direcionando a política econômica global do Estado. Realmente, por meio do orçamento é possível ao Estado estimular ou desestimular a produção, o consumo e o investimento, ora incrementando a política de gastos públicos (déficit sistemático), ora contendo as despesas, adiando obras e serviços e, ao mesmo tempo, aumentando a carga tributária para absorver o poder aquisitivo dos particulares (superávit orçamentário)". (HARADA, 1995)
Ressalte-se que a Constituição Federal, ao adotar a tripartição do planejamento orçamentário, nos termos do seu art. 165, com o orçamento englobando três espécies de leis orçamentárias, qual sejam, o plano plurianual, a lei de diretrizes orçamentárias e a lei orçamentária anual, acaba por reforçar a constatação de que o planejamento é exigência ao moderno conceito de orçamento, decorrente do princípio da programação [3].
Nesses termos, não há como negar que o orçamento evoluiu para ganhar contornos de peça programática das ações do governo, não havendo mais que se falar em orçamento sem inseri-lo necessariamente no contexto de planejamento.
2.2. DAS CORRENTES DOUTRINÁRIAS ACERCA DA NATUREZA JURÍDICA DO ORÇAMENTO
Não é de hoje que o debate acerca da natureza jurídica do orçamento é alvo de acirradas discussões na doutrina. Desde sempre o tema foi controvertido, por vezes tornando-se confuso, mas que se revela de suma importância, porquanto a partir da delimitação da natureza jurídica do orçamento, poder-se-á proceder a uma análise precisa do conteúdo de seu regime jurídico, com as implicações jurídicas daí decorrentes.
Abstraindo o embate acadêmico, o ordenamento jurídico brasileiro trata de prever o orçamento público como Lei, conforme se retira claramente do art. 165 da Carta Magna [4]. Quanto a esse ponto, não resta qualquer dúvida. O próprio início do referido artigo já reforça tal assertiva, quando fala em Lei do Orçamento. A discussão, na verdade, pauta-se em determinar se é o orçamento uma lei do ponto de vista material, assim entendida aquela que possui conteúdo de regra de direito e eficácia inovadora, ou se tem caráter meramente formal, na qual estão inscritos atos de cunho político-administrativo.
A controvérsia jurídica acerca da natureza do orçamento, embora ancorada em diversas contribuições doutrinárias, lastreia-se classicamente nas teses encampadas por Paul Laband, Gaston Jèze e Leon Duguit, as quais fornecem os pilares básicos que sustentam toda a discussão. Prevalecem na doutrina quatro teses distintas: (a) o orçamento é lei não apenas formal, mas também material, na medida em que se origina de um órgão legiferante, não havendo porque indagar sobre a sua substância; (b) o orçamento, embora com aparência de lei, não é lei em sentido material, mas tão somente lei formal; (c) o orçamento é, em relação às despesas, um mero ato administrativo, mas em relação à realização das receitas, lei em sentido material; (d) o orçamento é uma condição para a alocação dos recursos, sendo apenas lei formal, mas substancialmente um ato-condição.
A primeira corrente nasceu do jurista alemão Hoennel, o qual entende que o orçamento é sempre uma lei, na medida em que emana de um órgão legiferante, isto é, o Poder Legislativo. Por tal razão, afirma Hoennel que tudo aquilo que é revestido sob a forma de lei constitui-se em preceito jurídico, pois a forma de lei traz em si mesma o conteúdo jurídico. Nesse aspecto, qualquer lei traria inserta um comando normativo. Esta tese sofreu críticas porque classificava as normas jurídicas segundo a origem, não levando em conta o conteúdo jurídico.
A segunda corrente veio a partir de Paul Laband [5], como resistência à anterior, entendendo que o aspecto formal não poderia, por si só, fazer do orçamento uma lei, tomando esta palavra em seu sentido material. Nesse sentido, afirma que a utilização da forma legal em nada altera o conteúdo do orçamento, não suprindo a ausência do preceito jurídico. Assim, entende que o orçamento apresenta extrinsecamente a forma de uma lei, mas seu conteúdo é de mero ato administrativo. Logo, o orçamento seria, então, apenas lei em sentido formal, materialmente não constituindo regra de direito.
A terceira corrente é liderada por Léon Duguit, o qual identifica na peça orçamentária uma mescla de lei em sentido formal e material, considerando o orçamento, em relação às despesas e às receitas originárias, um mero ato administrativo e, em relação à receita tributária, lei em sentido material, já que a arrecadação tributária dependeria de autorização orçamentária. Pelo que se observa, Duguit analisou ordenamentos jurídicos em que a autorização para a cobrança de tributos obedece ao princípio da anualidade tributária, que exige a prévia inclusão de autorização no orçamento como condição à cobrança de tributo.
A quarta corrente, por sua vez, originou-se de Gaston Jèze [6], criador do conceito do ato-condição, defendendo a tese que o orçamento não é lei em sentido material em nenhuma de suas partes, embora tenha o aspecto formal e a aparência de lei. Afirma que tanto em relação às despesas quanto no que concerne às receitas, seria o orçamento apenas lei formal, mas com o conteúdo de mero ato-condição, sendo a lei orçamentária, em qualquer caso, o implemento de uma condição para a cobrança e para o gasto.
Em suma, portanto, teríamos a seguinte construção lógica das teses doutrinárias acerca da natureza jurídica do orçamento: (i) o orçamento seria lei, tanto em sentido formal, quanto em sentido material, porque originário de órgão legiferante (Hoennel); (ii) a lei não se classifica pela origem, mas pelo conteúdo, logo, por não conter nenhuma regra de direito do ponto de vista material, o orçamento seria apenas lei formal (Laband); (iii) o orçamento não é lei formal na sua totalidade, pois em relação às despesas e às receitas originárias, vem a ser mero ato administrativo, mas em relação às receitas tributárias, torna-se lei em sentido material (Duguit); (iv) tanto em relação às despesas, como também no que concerne às receitas, o orçamento não é lei material, mas em qualquer caso trata-se, substancialmente, de ato-condição (Jèze).
As duas últimas correntes parecem não ser aplicáveis, conforme sistematização jurídica conferida pelo nosso ordenamento pátrio, pois se sustentaram no princípio da anualidade tributária. Relembre-se que tal princípio esteve presente no ordenamento brasileiro até a Constituição de 1967, tendo sido suprimido nesta mesma Carta pela Emenda Constitucional nº. 1 de 1969, e assim permanece até os dias atuais, não sendo mais a autorização orçamentária pressuposto que condiciona a cobrança de tributo [7]. Por outro lado, vemos também que a primeira corrente foi superada, não encontrando maior respaldo atual, pois sabemos que nem toda lei possui conteúdo de regra de direito, diferenciando-se lei material de lei formal.
Além dessas correntes clássicas, há ainda uma teoria oposta, segundo a qual o orçamento teria efetivamente natureza material, criadora de direitos e inovadora da ordem jurídica, conforme corrente encampada pelo jurista espanhol Sainz de Bujanda [8]. Argumenta, nesse ponto, que o orçamento seria lei em sentido pleno, de conteúdo normativo, com eficácia material constitutiva e inovadora, possuindo mesmo força de lei. No Brasil, essa teoria não recebeu maiores adeptos.
A posição que nos parece mais adequada, portanto, considera o orçamento como lei formal. De fato, entre os nossos juristas contemporâneos, embora não haja unanimidade doutrinária, percebemos ser majoritário o entendimento que atribui ao orçamento a natureza jurídica de lei formal. Citemos, nesse sentido, a preciosa lição de Ricardo Lobo Torres:
"A teoria de que o orçamento é lei formal, que apenas prevê as receitas públicas e autoriza os gastos, sem criar direito subjetivos e sem modificar as leis tributárias e financeiras, é, a nosso ver, a que melhor se adapta ao direito constitucional brasileiro; e tem sido defendida, principalmente sob a influência da obra de Jèze, por inúmeros autores de prestígio, ao longo de muitos anos e sob várias escrituras constitucionais". (TORRES, 2011)
Nesse mesmo sentido, vale observar também a renomada doutrina de Regis Fernandes de Oliveira, embora defenda veementemente a nova concepção da lei orçamentária como peça vinculativa da ação do Estado, atribui a este a natureza de lei formal:
"Em suma, e inserindo-nos na discussão, basta a afirmação de que se cuida de lei em sentido formal, que estabelece a previsão de receitas e despesas, consolidando posição ideológica governamental, que lhe imprime caráter programático. Ao lado de ser lei, é o orçamento plano de governo, mas que deve possuir previsões efetivas de ingressos públicos e previsões reais de despesa, equilibradas com aqueles". (OLIVEIRA, 2011)
Portanto, a melhor doutrina aponta para identificar o orçamento como peça formalmente instrumentalizada por meio de lei, mas que materialmente constitui-se em ato político-administrativo. Nesse ponto, já se posicionou, inclusive, o Supremo Tribunal Federal, adotando expressamente a tese majoritária e pondo fim à discussão na esfera jurisdicional:
“EMENTA: - DIREITO CONSTITUCIONAL E TRIBUTÁRIO. CONTRIBUIÇÃO PROVISÓRIA SOBRE MOVIMENTAÇÃO FINANCEIRA - C.P.M.F. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE "DA UTILIZAÇÃO DE RECURSOS DA C.P.M.F." COMO PREVISTA NA LEI Nº 9.438/97. LEI ORÇAMENTÁRIA: ATO POLÍTICO-ADMINISTRATIVO - E NÃO NORMATIVO. IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO: ART. 102, I, "A", DA C.F. 1. Não há, na presente Ação Direta de Inconstitucionalidade, a impugnação de um ato normativo. Não se pretende a suspensão cautelar nem a declaração final de inconstitucionalidade de uma norma, e sim de uma destinação de recursos, prevista em lei formal, mas de natureza e efeitos político-administrativos concretos, hipótese em que, na conformidade dos precedentes da Corte, descabe o controle concentrado de constitucionalidade como previsto no art. 102, I, "a", da Constituição Federal, pois ali se exige que se trate de ato normativo. Precedentes (...)”. (ADI 1640 / DF, Relator(a): Min. SYDNEY SANCHES, Julgamento: 12/02/1998)
3. DA APLICABILIDADE PRÁTICA DO DEBATE E SUAS IMPLICAÇÕES JURÍDICAS
3.1 ORÇAMENTO: LEI DE EFEITOS CONCRETOS
O debate acerca da natureza jurídica, já vimos, é controvérsia doutrinária permanente. Apesar de não haver unanimidade no campo doutrinário, tem prevalecido o entendimento segundo o qual atribui ao orçamento a natureza jurídica de lei formal, dotada efeitos concretos. Para alguns, contudo, a presente discussão revela-se inócua, desprovida de aplicabilidade prática. Não é, porém, o que pensamos. Por trás de uma feição aparentemente formal, o tema reveste-se de importância extrema, sobretudo porque, agora, a discussão renova-se pela inclusão de questões outras, dentre elas a proposta de um modelo de orçamento impositivo.
Ao estudar a essência da norma orçamentária, poder-se-á verificar se o orçamento é instrumento que vincula a Administração, criando expectativas de efetiva realização e estabelecendo limites de flexibilização orçamentária, ou se apenas é instrumento que autoriza a aplicação dos recursos públicos. Sendo o orçamento lei não somente do pondo de vista formal, mas revestindo-se também de certo conteúdo material, tornar-se-ia instrumento impositivo a vincular o Executivo à sua fiel observância, devendo as previsões relativas à realização das receitas e despesas serem obrigatoriamente cumpridas pelo Poder Público. Ao contrário, possuindo natureza somente de lei formal, mas com conteúdo substancialmente administrativo, o orçamento teria apenas caráter autorizativo, tornando-se mera previsão e sugestão de aplicação dos recursos, sem que haja o dever legal de sua efetiva implementação.
Enquanto ato normativo, a lei possui como característica ser genérica, não sendo direcionada a uma só pessoa ou situação específica, tampouco aplica-se uma só vez a certa situação, mas pressupõe uma abstração do seu comando. Existem certas leis, contudo, como é o caso das leis orçamentárias, que embora formalmente se instrumentalizem por meio de lei, possuem conteúdo eminentemente administrativo e, nesse ponto, não se revestem de caráter normativo, ao contrario, guardam natureza de concretude.
Assim, trata-se o orçamento de lei formal, de efeitos concretos, pois embora envolva generalidade no sentido de sua aplicabilidade ser voltada ao conjunto de toda a coletividade, o seu objeto, contudo, limita-se à autorização para a utilização específica de recursos por determinado exercício, não possuindo, pois, abstração típica de espécie normativa. Aqui se fala, portanto, em ausência de densidade normativa da lei orçamentária.
A rigor, a programação da alocação dos recursos públicos no orçamento, aprovado para cada novo exercício, não valerá para os anos seguintes como uma norma abstrata de enunciado normativo, mas ela é pontual e concreta para determinada situação, sendo necessária a renovação periódica do planejamento e a elaboração de nova lei nos exercícios subseqüentes. Não há, assim, generalidade e abstração nas leis orçamentárias. Portanto, é mesmo o orçamento lei formal, dotada de efeitos concretos, formalmente instrumentalizado por meio de lei, mas materialmente constituindo-se em ato político-administrativo.
Resta, então, verificar se as disposições presentes na peça orçamentária, sobretudo no que tange à realização das receitas e despesas nela previstas, revestem-se de caráter impositivo, a criar direito frente ao seu eventual descumprimento, ou tem o orçamento caráter meramente autorizativo, sem que haja a obrigação legal de implementação. O pano de fundo do debate, pois, além do propósito classificatório da natureza jurídica do orçamento, insere-se no questionamento acerca dos efeitos da lei orçamentária para o Estado.
Como já se sabe, a razão de existir do orçamento nasceu da necessidade de combater arbitrariedades no dispêndio dos recursos públicos. Assim, o povo, por meio dos seus representantes eleitos, autoriza o plano de ação do Estado, consubstanciado na lei orçamentária. Atualmente, o entendimento predominante é o de que permanece a essência que deu origem à peça orçamentária, isto é, continua o orçamento a ter caráter autorizativo. Logo, o fato de determinada verba estar nele prevista, não obriga o governante a realizá-la, ao contrário, apenas o autoriza.
Aliás, esse sempre foi o entendimento do Supremo Tribunal Federal, mesmo em época anterior à Constituição de 1988, não alterado até os dias atuais, posicionando-se no sentido de conferir ao orçamento caráter autorizativo. Assim, a inclusão de verba no orçamento não gera, de pronto, direito ao seu recebimento, pois a previsão de despesa, em lei orçamentária, não confere direito subjetivo a ser assegurado por via judicial, como decorrência do orçamento ser, em regra, instrumento autorizativo. Veja-se, nesse sentido, o antigo julgado da Corte Suprema:
”EMENTA: ORCAMENTO. VERBAS DESTINADAS A INSTITUIÇÃO ASSISTENCIAL. - A PREVISÃO DE DESPESA, EM LEI ORCAMENTARIA, NÃO GERA DIREITO SUBJETIVO A SER ASSEGURADO POR VIA JUDICIAL. - AÇÃO RESCISÓRIA IMPROCEDENTE. (AR 929 / PR, Relator(a): Min. RODRIGUES ALCKMIN, Julgamento: 25/02/1976)
Logo, daí extraímos que a existência de eventual verba para certo setor social pelo Estado, trata-se tão somente de intenção, não obrigando-o à sua realização. É, portanto, plano de ação e planejamento do Governo, cabendo ao administrador público, diante de situações concretas, sobretudo quando se deparar com escassez de recursos, dar prioridade a determinadas despesas, ajustando os gastos diante das necessidades ao longo do exercício.
Obviamente, existem verbas orçamentárias que, em razão de comando normativo constitucional, estão vinculadas a finalidades específicas, não havendo margem de discricionariedade do Poder Público nesse aspecto. Contudo, mesmo que haja impositividade em certos casos, o orçamento continua sendo autorizativo, sobretudo porque estas determinações nascem de previsão constitucional anterior, estabelecendo-se em nível acima do plano em que está a Lei Orçamentária. Não se pode dizer, portanto, que em razão de tais vinculações o orçamento passaria a não ter caráter autorizativo. Eventual exceção não tem o condão de alterar a sua natureza.
O problema dessa tese, contudo, é que na medida em que o orçamento vem a ter caráter autorizativo, não vinculando o Estado à sua estrita observância e, por isso, sem gerar direito subjetivo a terceiros, na prática, ficam os governantes com dupla alternativa: realizar ou não as verbas previstas. Abre-se, assim, um poder que, se mal utilizado, pode ser nocivo à sociedade, pois da concretização dos gastos depende a satisfação de necessidades públicas, razão de existir do Estado, o que parece ser contraditório com a ampla margem de discricionariedade atualmente presente na realização do orçamento.
Por tal razão, apesar do modelo constitucional conferir caráter autorizativo à lei orçamentária, entendimento inclusive pacificado na jurisprudência, parcela relevante da doutrina e da opinião pública criticam esse posicionamento, indagando se seria o orçamento público mera peça de ficção, sem a possibilidade de exigência do seu efetivo cumprimento pela sociedade. Nesse sentido, crescem as vozes daqueles que defendem a necessidade de se implantar um modelo de orçamento que vincule o Estado à sua fiel observância.
3.2.DA DISCUSSÃO ACERCA DO MODELO IMPOSITIVO DE ORÇAMENTO
Embora o orçamento seja peça chave para a nação, no plano formal, as disposições orçamentárias convertem-se em mera promessa, expectativas que muitas vezes não saem do papel. Nesse sentido, o debate acerca do modelo orçamentário impositivo passa a ganhar força. Cada vez mais se nota uma crescente tendência à limitação da margem de discricionariedade administrativa no dispêndio dos recursos públicos, o que pode ser notado, inclusive, pelo aumento gradativo da criação de vinculações orçamentárias, hoje expostas em vários dispositivos do próprio texto constitucional.
É que, na prática, deparamo-nos rotineiramente com mecanismos adotados pelo Executivo que desvirtuam o real objetivo do orçamento. A flexibilidade orçamentária, como instrumento de gestão administrativa, pode permitir ações do tipo: gastar menos do que foi aprovado, beneficiando certas regiões do país; estimar a menor a arrecadação, para utilizar-se dos denominados créditos especiais; prever receitas a maior, para se modular aos limites de endividamento; dentre tantas outras possíveis manobras. Enfim, o caráter autorizativo abre margem ao mau gestor para a realização de práticas no campo da discricionariedade administrativa que vão de encontro aos reais objetivos orçamentários. Com isso, as expectativas criadas a partir da proposta orçamentária não demoram muito para serem frutadas logo em seguida, convertendo-se o orçamento em mera peça retórica.
Ora, se a gênese do orçamento guarda relação com a autorização dada pelo povo aos seus governantes para a utilização dos recursos públicos, não é errado concluir que, ao fim e ao cabo, quando não se efetiva a aplicação conforme consentido, estar-se-á agindo à revelia daquilo que foi autorizado e, portanto, em arrepio ao próprio regime democrático, que exige a subsunção dos governantes aos objetivos do Estado. De fato, o caráter autorizativo do orçamento não pode originar uma benesse ao Executivo de forma a ser possível descumprí-lo, caso contrário, voltaríamos para a fase anterior à existência do orçamento, com a aplicação arbitrária dos recursos públicos. Não é esse o objetivo do orçamento. Ao contrário, a discricionariedade administrativa deve ser exercida visando unicamente cumprir os objetivos encampados na Lei Maior.
A decisão de gastar é, sem dúvida, eminentemente política, porém, deve passar por todo um processo de criação das leis orçamentárias, desde a participação popular na sua elaboração, até as discussões de emendas no legislativo. Tudo isso, obviamente, perde o sentido quando a discricionariedade administrativa pode ser utilizada como manobra para justificar a inexecução daquilo que foi exaustivamente planejado e discutido. De fato, parece mesmo ser contraditório ter todo o trabalho de elaboração do orçamento, recheado de estimativas técnicas e discussões públicas, para ao seu final tratar-se de mero indicativo.
Nesse sentido, é inegável a crecente pressão social para que haja uma modificação na interpretação da peça orçamentária, dotando-a de maior coercitividade no que tange aos limites de efetivação da aplicação dos recursos nela aprovadas, evitando que o Executivo renegue a vontade popular a partir da manipulação do orçamento. A doutrina, a propósito, também começa a se manifestar, inclinando-se, embora lentamente, quanto à necessidade de vinculação do Executivo à peça orçamentária. Voz forte, nesse sentido, é entoada na doutrina de Regis Fernandes de Oliveira:
"Já não se pode admitir um orçamento sem compromissos, apenas para cumprir determinação legal. Já não se aceita o governante irresponsável. Já longe vai o tempo em que se cuidava de mera peça financeira, descompromissada com os interesses públicos. Já é passado o momento político em que as previsões frustravam a esperança da sociedade. A introdução do orçamento participativo foi o primeiro passo. Para que serve? Está o governantes obrigado a acolher as propostas que lhe forem apresentadas? Para que ouvir a sociedade? Trata-se de mero jogo lúdico? É mera diversão, tal como os jogos com os cristãos da Antiga Roma, que eram devorados pelos leões para gáudio de uma platéia destituída de sentido ético? Serviria de mera burilação de ocupante desocupado do governo? Mera elucubração mental para brincadeira com os interesses públicos? A evidência das respostas às questões formuladas leva-nos à conclusão de que o orçamento não pode ser mera peça financeira, nem apenas simples plano de governo, mas representa o compromisso político de cumprimento de promessas sérias levadas ao povo. A previsão desperta esperança, expectativa de satisfação dos compromissos, certeza de que os desejos serão atendidos". (TORRES, 2011)
Na verdade, o desejo de um orçamento cada vez mais vinculado, dotado de impositividade ao gestor, reflete, no seu íntimo, o anseio da população pela efetivação das políticas públicas, transferindo-se para a lei a confiança que não se tem nos governantes, revelando crescente tendência de descrença das instituições e, especialmente, do Poder Executivo. A rigor, a proposta faz repensar, inclusive, a relação entre os Poderes do Estado, já que no orçamento autorizativo o governo não está obrigado a justificar o porquê de não ser executada determinada despesa, o que não ocorreria no orçamento impositivo, onde o administrador público passaria a ter o dever de submeter à apreciação parlamentar justificativa para eventual inexecução orçamentária.
Ante a complexidade da peça orçamentária, contudo, há desdobramentos que impedem resolução breve. Por um lado, quando se considera o orçamento apenas com caráter autorizativo, banaliza-se o gasto público, permitindo-se eventual desvio de finalidade na aplicação dos recursos públicos. Por outro lado, quando se vislumbra o orçamento apenas com caráter impositivo, corre-se o risco de burocratizar a despesa, ao se entender que determinada verba deve ser realizada obrigatoriamente, mesmo que não se revele necessária para o atendimento da meta positivada, causando certo engessamento na máquina pública.
Ou seja, apesar de haver o necessário comprometimento do Estado com a efetividade das medidas contempladas na lei orçamentária para que esta não vire peça fictícia, não se pode negar que o orçamento insere-se em um contexto dinâmico de planejamento e ação, não sendo documento estático, mas que flutua conforme seja alterada a conjuntura econômica global, sendo necessário que a atuação estatal possua, de fato, certa margem de liberdade. Logo, não se vislumbra ser possível, objetivamente, sem analisar as condições factuais de cada caso, vincular o administrador e impor-lhe o orçamento para cumprimento cego de suas disposições. Esse outro extremo seria, de igual forma, devastador para os fins sociais.
A saída parece estar no equilíbrio, na medida em que o orçamento possui normas que revelam objetivos, e outras que denotam meios, porquanto a atividade financeira não se esgota num único diploma. O modelo orçamentário inicia-se na Constituição Federal, com a indicação de metas, chegando, só após, na fase de delimitação da aplicação dos recursos públicos, com o orçamento. Assim, da correta interpretação do diploma normativo orçamentário, extraimos tanto normas que indicam metas programáticas, como também outras que oferecem o modo de alcançá-las. As primeiras, relacionam-se aos fins; as segundas, referem-se aos meios. Não é por outro motivo que o orçamento recebe a denominação de Lei dos Meios [9], embora também implicitamente preveja os fins, decorrentes da própria Carta Magna.
No que se refere às normas indicativas de metas e programas de governo, não resta a menor dúvida, estas devem revestir-se de caráter obrigatório. De fato, são os fins que revestem a lei orçamentária do caráter da obrigatoriedade, daí porque os objetivos previstos na peça orçamentária possuem nitido caráter impositivo, ao vincular o Estado à sua consecução e alcance. Por sua vez, nas normas representativas da utilização e aplicação dos recursos públicos, nestas não há como se ter absoluto caráter impositivo, sendo necessária certa margem de flexibilidade, para o próprio bom andamento do Estado. Entre as duas espécies normativas, pois, pode-se estabelecer uma atuação conjunta, umas oferecendo os meios, com certa margem de discricionariedade, e outras objetivos, com a impositividade que lhes são inerentes, absorvida desde o próprio texto constitucional.
Atualmente, a regra é de que o orçamento é autorizativo, salvo quando há vinculação expressa. Talvez seja a hora de se inverter a lógica, estabelecendo que as verbas autorizadas na lei orçamentária, na sua maioria, deveriam vincular o administrador, salvo se houver a demonstração da invibilidade quanto à sua execução, seja pela arrecadação insuficiente, seja pela perda de interesse público na efetivação do programa, ou ainda, seja pela modificação da conjuntura econômica.
Aliás, já é perceptível observar o princípio de mudança nesse enfoque, ainda que em fase de debate, mas sinalizam-se os primeiros sinais de que modificação mais significativa nesse aspecto possa vir a ser sentida em um futuro breve, com a consequente relativização do caráter meramente autorizativo do orçamento, para, enfim, termos um instrumento de planejamento orçamentário que confira real segurança à população.
Nesse ponto, registre-se que no âmbito do Congresso Nacional várias propostas de Emendas Constitucionais já foram lançadas na tentativa de implementar um modelo de orçamento impositivo, ainda sem sucesso. Dentre elas, podemos citar as recentes PEC's 565/2006 e 281/2008. Em alguns Estados da Federação já visualisamos, também, manifestações nesse sentido. De fato, os parlamentares demonstram intensa insatisfação, porquanto na maioria das vezes se tornam reféns do Executivo, não tendo nenhuma garantia de que seus projetos receberão os recursos aprovados. A cada novo contingenciamento promovido pelo Poder Executivo, surgem discursos, debates e proposições para alterar o processo orçamentário brasileiro e ampliar a força do parlamento. Isso novamente tem ocorrido no ano corrente, após o significativo corte em cifra de bilhões no Orçamento-Geral da União.
Por outro lado, vale lembrar, também, na esfera da responsabilização fiscal, que a Lei Complementar nº. 101/2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal), dentre as inúmeras regras nela presentes, traz capítulo próprio dedicado a transparência da execução orçamentária para fins de controle social, estabelecendo normas quanto à publicação e prestação das contas de forma clara e detalhada, bem como a elaboração de relatórios periódicos de acompanhamento orçamentário. Ressalte-se, ainda, que outro normativo, a recente Lei Complementar nº. 131/2009 [10], trouxe significativas inovações à LRF, estipulando, por um lado, o orçamento-participativo como dever legal a ser observado pelo gestor e, por outro lado, regras para o acompanhamento pela sociedade, em tempo real, das informações detalhadas sobre a execução orçamentária e financeira, em meios eletrônicos de acesso público. Tais medidas, obviamente, representam um freio em eventuais manobras do gestor público, por meio do chamado controle social da Administração Pública.
Por fim, é de se observar, ainda, recente modificação de entendimento do Supremo Tribunal Federal no sentido de admitir a possibilidade de controle de constitucionalidade de lei orçamentária. Por reconhecer a natureza de lei formal ao orçamento, havia entendimento consolidado na Suprema Corte de que não cabia controle de constitucionalidade em face de lei formal. exceto quanto à dispositivos que tivessem densidade normativa abstrata. Contudo, na ADI nº. 4048, o STF evoluiu o entendimento anterior, ao entender que, agora, independente do conteúdo da norma atacada, seja ela dotada de carga de abstração, seja norma de efeitos concretos, o simples fato de se tratar de uma lei em sentido formal, já justifica a possibilidade de controle de constitucionalidade. Indubitavelmente, esse é um grande avanço no sentido de vincular os atos de execução orçamentária à estrita obediência aos fins a que se destina.
“EMENTA: (...) II. CONTROLE ABSTRATO DE CONSTITUCIONALIDADE DE NORMAS ORÇAMENTÁRIAS. REVISÃO DE JURISPRUDÊNCIA. O Supremo Tribunal Federal deve exercer sua função precípua de fiscalização da constitucionalidade das leis e dos atos normativos quando houver um tema ou uma controvérsia constitucional suscitada em abstrato, independente do caráter geral ou específico, concreto ou abstrato de seu objeto. Possibilidade de submissão das normas orçamentárias ao controle abstrato de constitucionalidade. (...)” (ADI 4048 MC/DF, Relator(a): Min. GILMAR MENDES, Julgamento: 14/05/2008)
Por tudo isso, é inegável o avanço social, ainda a passos lentos, mas em tendência crescente, no sentido de conferir certa impositividade ao orçamento, com a consequente diminuição da concentração de poder do administrador público.