3. Pessoas artificiais
O ideal político hobbesiano é maquínico. Nessa filosofia pública, o Estado é um tipo de máquina (ou autômato) que funciona normalmente sem a interferência das ideologias e das disputas partidárias.
Na sociedade imaginada por Hobbes, idealmente não existiriam pessoas humanas, mas apenas pessoas racionais ou civis, detentoras de conhecimentos técnicos e especializados sobre as leis do estado civil como se fossem verdadeiras micromáquinas ambulantes.
O mínimo de racionalidade instrumental já existe logo no começo da instituição voluntária do Estado através do contrato social. Progressivamente, entretanto, a racionalidade deveria evoluir e atingir seu ponto máximo na consolidação de uma nova cultura jurídica atrelada a ideia de uma “societas civilis”, contraposta ao insociável estado de natureza (BOBBIO, 1991, p. 33).
A expectativa racional dos indivíduos nesse contexto aparece primeiramente na convenção originária do Estado, de onde se pressupõe a demanda pela objetividade máxima das relações contratuais. Gradativamente, porém, a máquina do Estado deve legalizar o modelo tecnicista na direção de uma sociedade artificial, onde existirão apenas pessoas civis ou jurídicas (cadastradas, burocratizadas e instrumentalizadas pelo sistema público-estatal). Nesse quadro institucional, segundo as palavras originais de Thomas Hobbes, o primeiro dever do soberano “é o de não despojar-se, nem permitir que outros o despojem dos poderes que lhe foram conferidos” (“Leviatã”: 219, apud BOBBIO, 1991, p. 51).
Entretanto, reconheceu o mesmo autor que no interior da máquina estatal, paradoxalmente, poderia reaparecer o estado de natureza através da luta desenfreada dos políticos em torno da ambição competitiva pelo poder de mando nos cargos públicos. O Leviatã poderia ficar doente, definhar e morrer em decorrência do comportamento irracional dos governantes e súditos. De acordo com a descrição de Hobbes (“Leviatã”, cap. XXIX):
Muito embora nada do que os mortais fazem possa ser imortal, contudo, se os homens se servissem da razão de maneira como fingem fazê-lo, podiam pelo menos evitar que seus Estados perecessem devido a males internos [...]. Portanto, quando acontece serem dissolvidos, não por violência externa, mas por desordem intestina, a causa não reside nos homens enquanto matéria, mas enquanto seus obreiros e organizadores. Pois os homens, quando finalmente se cansam de conflitos irregulares e de ataques mútuos, e desejam de todo coração transformar-se num edifício sólido e duradouro, por falta quer da arte de fazer leis adequadas para nortear as suas ações, quer também da humildade e paciência para aceitar ver suprimidos aspectos grosseiros e rudes da sua presente grandeza, não conseguem, sem a ajuda de um arquiteto muito hábil, ser reunidos em outra coisa que não seja um edifício desordenado, o qual, mesmo que consiga aguentar-se durante sua própria época, necessariamente cairá sobre a cabeça da posteridade.
A questão problemática do modelo hobbesiano seria então como ligar a realidade humana dos fatos com o ideal artificial e desumano do bem público-estatal? Nesse tipo de questionamento, um agravante a ser considerado é que o próprio Estado pode ser corrompido pelas paixões humanas dos governantes, prejudicando o bom funcionamento da máquina política. A animalidade pode reaparecer como força desestabilizadora da ordem social idealizada.
Para sair do estado de natureza na direção do estado civil Hobbes descreveu, anteriormente, a alternativa do “pacto de união’”. A meta desse acordo geral seria a fundação do Estado moderno. Porém, o único meio para que o Estado funcione proporcionando segurança coletiva é contar com a ajuda positiva dos indivíduos que renunciam ao poder natural e delegam todas as responsabilidades públicas para uma única pessoa ou assembleia jurídica representada pelo grande estado Leviatã. A obrigação fundamental seria neste caso que os indivíduos aceitassem a obrigação de obedecer a tudo aquilo que o detentor do poder comum viesse a ordenar (BOBBIO, 1991, p. 42).
Curiosamente, entretanto, no que se refere à desordem política, de acordo com a análise apresentada pelo crítico Norberto Bobbio, faltaria no pensamento de Hobbes uma teoria do abuso de poder. Em outras palavras, o que mais chamou atenção no livro escrito por Thomas Hobbes seria, segundo Bobbio, a falta de poder e não o excesso. Podemos questionar, entretanto, essas breves considerações do ilustre comentarista italiano, uma vez que o capítulo XXIX da obra “Leviatã” (“Das coisas que enfraquecem ou levam à dissolução de um Estado”) apresenta um diagnóstico amplo sobre as possibilidades que provocariam a desordem civil. Na descrição original de Hobbes, existem doenças do Estado mais graves (que causam perigo maior e mais premente), e outras não tão graves, mas que merecem, ainda assim, cuidadosa observação. Por exemplo, a dificuldade em conseguir dinheiro público; os monopólios ou contratos do governo que privilegiam alguns indivíduos; a grandeza imoderada de uma cidade; e o excesso de corporações que fragmentam a sociedade em particularismos, etc.
De fato, no capítulo XXIX Hobbes não propôs qualquer solução (imediatista, inclusive) para o problema da anarquia política desordenada. Esse capítulo admite, superficialmente, que os súditos podem resistir e usar da violência para derrubar os governos. Nesse caso, o autor se preocupou basicamente para que não houvesse confusão entre o fim da desordem política e a extinção do Estado, que seriam questões independentes na sua avaliação. De acordo com Hobbes (cap.XXX), se os direitos essenciais da soberania fossem retirados, “o Estado fica por isso dissolvido e todo homem volta à condição e calamidade de uma guerra com os outros homens, que é o maior mal que pode acontecer nesta vida”.
Entretanto, é justamente no capítulo seguinte, de número XXX (“Do cargo do soberano representante”), onde Hobbes vai propor um pacote de medidas a fim de evitar a desordem natural e civil. Nesse capítulo do Leviatã, encontram-se várias estratégias que funcionariam como elementos de transformação da realidade; dentre elas, podemos citar:
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O Estado deve manter os seus direitos soberanos e não renunciar à soberania. Deve aperfeiçoar os meios de arrecadar os impostos, saber nomear funcionários e ministros, garantindo a defesa, a paz e o bem do povo como princípios diretivos.
É contra o seu dever deixar o povo ignorante ou desinformado dos fundamentos e razões daqueles seus direitos essenciais, porque assim os homens são facilmente seduzidos e levados a resistir-lhe, quando o Estado precisar de sua cooperação e ajuda.
Os fundamentos legais dos direitos do Estado devem ser ensinados de modo diligente e verdadeiro, porque não se consegue manter a ordem contratual por muito tempo, usando-se apenas o terror da punição legal.
Outra estratégia é patrocinar as solenidades públicas destinadas a conhecer os deveres que as leis positivas estabelecem para todos os membros da comunidade nacional. A instrução deve se preocupar com as crianças, desde cedo, a fim de que obedeçam a seus pais enquanto estejam sob a sua tutela.
O soberano deve deixar claro que a Justiça tem como dever não tirar de nenhum homem aquilo que é dele; e muito menos, ninguém pode arrancar por violência ou fraude qualquer bem que seja dos vizinhos sem autorização do soberano. Entre as coisas tidas como propriedade, aquela que é mais cara ao homem é a própria vida, e os membros do seu corpo; e no grau seguinte, as coisas que se referem à afeição conjugal; e depois delas, as riquezas e os meios de vida.
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Da igualdade da Justiça faz parte a imposição igual dos impostos que não dependem da igualdade dos bens, mas da dívida que todo e qualquer cidadão deve ao Estado para manter a sua defesa individual constantemente. Quando os impostos incidem sobre as coisas públicas que os indivíduos consomem, todos pagam igualmente por aquilo que usam em decorrência da parceria contratual com o Estado.
Quando estiverem incapacitados por acidente inevitável e se tornarem incapazes de sustentarem-se com seu próprio trabalho, os indivíduos devem ser assistidos formalmente pelo Estado.
Aumentando o número de pessoas pobres na sociedade, porém, vigorosas, os indivíduos devem ser removidos para regiões ainda não habitadas suficientemente; evitando-se, ao mesmo tempo, o extermínio daqueles que se encontram habitando primeiramente esses lugares. Deve-se obrigar a habitação mais perto uns dos outros e tratar cada lote com arte e cuidado a fim de produzir o sustento necessário na devida época. Entretanto, admite textualmente Hobbes, quando toda a terra estiver superpovoada, então “o último remédio é a guerra, que trará aos homens ou a vitória ou a morte”.
O soberano deve fazer boas leis, isto é, leis justas. O objetivo das leis não é coibir o povo, mas “sim dirigi-lo e mantê-lo num movimento tal que não se fira com seus próprios desejos impetuosos, com sua precipitação ou indiscrição [...]”.
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Além de ser necessária, a lei deve ser evidente e mostrar fácil compreensão. Por exemplo, muitos processos desnecessários acontecem por causa das ambiguidades das palavras de uma lei, segundo Hobbes. Pertence ao cargo do legislador a tarefa de tornar evidente a razão pela qual a lei foi elaborada, garantindo principalmente que o corpo jurídico seja adequado e significativo para o bem do povo.
O castigo dos chefes e panfletários num tumulto e não o povo seduzido pode ser útil ao Estado como atitude politicamente exemplar. Ser severo para com o povo significa punir aquela ignorância que pode em grande parte ser atribuída ao soberano, cujo erro foi simplesmente não tê-lo instruído da melhor maneira a tempo.
Outra estratégia conservadora do Leviatã é escolher bem os conselheiros. O general na condição de chefe de Exército, se não for popular, não será amado, nem temido como deve ser pelos seus comandados. O general tem que ser industrioso, valente, afável, liberal e afortunado a fim de obter uma forte reputação entre os soldados. Faz parte da segurança do povo que aqueles a quem o soberano entrega seus exércitos e funções públicas sejam bons chefes e súditos fiéis.
4. Estrutura epistemológica do pensamento hobbesiano
A totalidade do pensamento contratualista hobbesiano apresenta uma série de proposições descritivas referentes ao estado de natureza e ao estado civil, empregando uma linguagem racionalista, inspirada em larga medida no modelo da Geometria e da Física Mecânica. De maneira geral, o fio condutor racionalista orienta a linguagem dessas proposições na tentativa de produzir a convergência das ideias através dos “ditames da reta razão”. Concretamente, a passagem das proposições do estado de natureza para o estado político acontece no pensamento hobbesiano por meio das ideias que representam a progressiva racionalidade instrumental dos participantes na execução do “pacto de união” baseado no imaginário maquínico do século XVII.
A ontologia do pensamento hobbesiano declara a tese de que o modelo jusnaturalista de Hobbes é dicotômico e não valoriza, por motivos óbvios, o meio-termo aristotélico na discussão política.
A metodologia civil imaginada por Hobbes deveria ser decretada pelo Estado, reproduzindo uma constante preocupação com a soberania do Poder Público, que deveria desenvolver um ordenamento de leis rígidas evitando a inclusão da subjetividade nos contratos civis, tendo em vista o medo de se aproximar do estado de natureza diante da incompetência natural das pessoas na tarefa de criação de uma sociedade.
Do ponto de vista axiológico, o Estado para Hobbes seria o agente principal da sociedade, por extensão, a obediência pública deveria ser um princípio mais que obrigatório na celebração dos contratos civis.
Teoricamente, a visão política de Hobbes é autocrática e interpreta a origem do Estado-máximo como necessidade racional da sociedade moderna. Na prática, procurando otimizar a função do Estado, que é uma solução contratual para o problema da desordem, Hobbes sugeriu um pacote de medidas burocráticas.
Recomendou ao Estado, por exemplo, instruir o povo sobre seus direitos e deveres civis; reforçar a cultura da obediência; informar a população sobre gastos e arrecadação do governo; promover a justiça social amparando os trabalhadores mais pobres; cumprir a Justiça em igualdade de condições, dentre outras medidas ordenadoras da realidade.
De maneira geral, as alternativas apontadas pelo contratualismo de Thomas Hobbes procuram evitar a desordem que ameaça o bom funcionamento da máquina do Leviatã. Nesse ponto, constata-se que nesse modelo contratualista realmente existe uma teoria e uma prática contra o abuso do poder.
Na base de suas críticas, Hobbes demonstrou certa preocupação teórica com a resistência armada do povo contra o abuso dos governantes, uma vez que o povo pode confundir, por falta de educação política, o problema [conjuntural] da desordem com a estrutura absolutamente necessária do Estado. Para reforçar a legitimidade do Leviatã e evitar equívocos radicais, Hobbes sugeriu investimentos na educação, na propaganda, na transparência dos governos, no funcionamento da Justiça, na cultura e na ética estatal com a expectativa de que a obediência ao Estado seria popularizada racionalmente deste modo.
Do ponto de vista sociológico, o ambiente do Leviatã sofre o risco permanente da desordem social. Hobbes tinha consciência de que circulavam vários reforçadores negativos na sociedade moderna que podem arruinar a ordem civil, dentre eles, a desinformação, a cultura da violência, as desigualdades econômicas, os interesses e as paixões de cada um. É justamente nesse ambiente de incerteza que o Leviatã precisa reforçar a cultura racional da obediência, transformando legalmente os indivíduos, os grupos e as instituições em novas máquinas civis ou pessoas artificiais da Modernidade.
Na expectativa racional dos indivíduos, o Estado precisaria desenvolver a sua presença burocrática em todos os setores sociais, não apenas fazendo regras e fiscalizando a conduta, mas, sobretudo garantindo a proteção do direito natural à vida através de uma nova cultura política da obediência, visto que os indivíduos não sabem se respeitar mutuamente, nem governar a coisa pública.
Reencontrando as dificuldades da hipótese do estado de natureza surpreendentemente na ordem civil, Hobbes propôs, adiante, como solução uma série de alternativas estatais, incluindo a educação, a propaganda e a massificação da cultura maquínica, onde a obediência não seria concebida como se fosse uma tragédia contrária à liberdade do indivíduo. A maquinização do homem através do direito positivo representaria neste contexto uma estratégia política do Leviatã com a intenção de aperfeiçoar as relações contratuais, despersonalizando, juridicamente, os indivíduos ao longo de sucessivas gerações.